segunda-feira, 23 de março de 2020

A crise já está a mudar as regras do jogo


Nos últimos dias têm-se multiplicado os pacotes financeiros apresentados pelos governos para fazer face à crise que atravessamos, que ameaça tornar-se uma profunda recessão. Um dos aspetos comuns é o estabelecimento de linhas de crédito e diferimentos fiscais para as empresas afetadas pelo surto, uma medida que tem importância por garantir liquidez imediata a setores que de outra forma ficariam estrangulados. O problema é que o endividamento no setor empresarial já era grande antes da crise e este apoio não compensa os custos que se prevêem dado que o período de distanciamento social (e consequente redução das encomendas e da procura) ainda agora começou e pode ser longo.

Gabriel Zucman e Emmanuel Saez, dois economistas que se têm destacado no trabalho com Thomas Piketty para estudar a evolução das desigualdades de rendimento e riqueza, propõem outro caminho: que os governos atuem como “pagadores de último recurso” e cubram os custos reportados pelas empresas que têm de interromper a atividade, permitindo que mantenham os trabalhadores. A ideia é acertada, mas tem o problema de parecer sugerir que a segurança social se substitua às empresas e garanta o rendimento dos trabalhadores, o que pode ser incomportável se for feito com base em endividamento.

Na revista Project Syndicate, Pavlina Tcherneva pergunta-se “O que faria Roosevelt?” nesta situação. Face à ameaça de despedimentos em massa, aumento do desemprego – a OIT estima que se possam perder 25 milhões de empregos em todo o mundo – e consequente espiral recessiva, a resposta é clara: os governos devem intervir e mobilizar os recursos necessários para combater a pandemia, garantir que a maioria das pessoas possa trabalhar a partir de casa e que os restantes têm condições de saúde no trabalho reforçadas, assegurar os rendimentos de todos (incluindo trabalhadores independentes e precários), assegurar o acesso à habitação e diminuir custos domésticos para as famílias (água, luz, gás, internet, etc.).

É também preciso saber qual a dimensão dos estímulos orçamentais necessários. Hoje em dia, até entre economistas do FMI se reconhece o efeito multiplicador da despesa pública em tempos de crise: isto significa que, por cada euro investido pelo Estado, o PIB aumenta mais do que um euro. J.W. Mason, professor de economia da City University of New York (CUNY), estima que, para os Estados Unidos e face à contração prevista do produto, este valor ande à volta de 3 biliões de dólares (cerca de 14% do PIB), bastante mais do que o anunciado até agora por Trump. Josh Bivens, do Economic Policy Institute, defende que o estímulo tem de ser de pelo menos 2,1 biliões. Os números impressionam e revelam a dimensão da crise.

Isto dá-nos uma ideia do montante do estímulo orçamental necessário para responder à pandemia. Na Alemanha, Espanha, Itália e França os governos têm adotado medidas musculadas. Por cá, as medidas anunciadas pelo governo até agora são tímidas – os apoios às empresas representam pouco mais de 4% do PIB – e a ausência de resposta aos despedimentos e violações do código do trabalho que já estão a ocorrer é preocupante. Exigir como contrapartida dos apoios públicos às empresas que não despeçam trabalhadores é o mínimo nesta fase. Mas noutros países, como Itália, já se proibiram todos os despedimentos.

Outro aspeto importante a ter em conta é que muitas grandes empresas que agora requerem resgates do Estado passaram os últimos anos a gastar boa parte dos lucros em “buybacks” de ações para remunerar os acionistas e os gestores (que dependem do desempenho da empresa), em vez de os reinvestirem ou aumentarem os salários. Na American Airlines, por exemplo, o enriquecimento foi de tal ordem que o diretor-executivo, Doug Parker, chegou a afirmar: “Acho que nunca mais vamos perder dinheiro”. Três anos depois, face à hipótese de falência, a empresa pode vir a estender a mão ao Estado. Outras empresas, como a EasyJet, planeiam manter a distribuição de dividendos mesmo recorrendo ao dinheiro público. Há quem defenda que uma das condições do resgate seja travar estas práticas.

E como é que se financiam os estímulos orçamentais? A questão costuma ser levantada sempre que se fala em aumentar a despesa, e a resposta vai-se tornando evidente: os governos podem financiar a despesa pública através do banco central, algo a que se tem chamado “dinheiro de helicóptero”. No caso de Portugal e da zona euro, isto teria de passar pela atuação coordenada dos países com envolvimento do BCE; a Reserva Federal (nos EUA) ou o Banco de Inglaterra podem fazê-lo diretamente. A ideia é que os bancos centrais podem recorrer à impressão de moeda para financiar o investimento dos países ou mesmo a transferência de dinheiro para as pessoas (já foi aprovada em Hong Kong e Singapura e está a ser considerada nos EUA). O receio de que faria disparar a inflação parece ter diminuído após a experiência da última década, na qual os bancos centrais injetaram vários milhares de milhões no sistema financeiro sem que a inflação tenha aumentado significativamente.

O recente anúncio da Comissão Europeia, que suspendeu pela primeira vez as regras orçamentais que impõem limites à despesa pública, é um passo na direção certa. No entanto, o pacote financeiro da UE continua a ser manifestamente insuficiente (37 mil milhões, ou 0,26% do PIB da EU-27, vindos de fundos que já existiam), o Eurogrupo não foi capaz de um único contributo que se veja e ainda não se admite a única hipótese sensata: que o BCE financie a despesa e investimento dos Estados através da impressão de moeda. Além disso, o problema da redução da dívida mantém-se devido às metas do Tratado Orçamental – quando o vírus for considerado contido, os países que aumentaram a despesa terão acumulado ainda mais dívida pública e estarão sujeitos à pressão da Comissão. A crise que se afigura na zona euro pode tornar-se pior do que a de 2010-12. Se a resposta se ficar pela concessão de crédito às empresas e aos países em dificuldades, os problemas do endividamento voltarão para os perseguir depois da pandemia - no Financial Times, Wolfgang Munchau escreve que a Europa precisa de liquidez, não de dívida.

O que parece certo é que a crise que enfrentamos é inédita e as respostas também terão de o ser. A discussão na última semana tem sido reveladora disso mesmo – aos discursos marcantes juntam-se planos de proporções históricas e, de repente, tudo o que nos garantiam ser impossível ou demasiado radical começa a tornar-se aceitável. Depois de contida a pandemia, talvez seja bom não esquecermos essa lição.

4 comentários:

Anónimo disse...

Um artigo pescado no twitter de Frances Coppola:

https://tribunemag.co.uk/2020/03/the-anti-wartime-economy

Ou para resumir nas palavras da mesma Frances Coppola:

"Maintain people's incomes and support business cash flows. DB is talking nonsense about hyperinflation, but helicopter money isn't needed now. We don't want to stimulate demand, we want to survive."

"bridge loans are a bad idea."

Anónimo disse...

E o professor Steve Keen propõe Cornabonds e explica o modo de os implementar.

https://www.patreon.com/posts/34943799

https://www.patreon.com/posts/34537282

E sobre a matemática da propagação

https://www.patreon.com/posts/34565061

J. Lopes disse...

Parece muito provável que Portugal tenha que enfrentar problemas económicos graves. Gostaria que analisassem o que propõe para Espanha, no jornal “Publico”, Juan Torres López, em “Hay alternativas. Pero queda poco tiempo para evitar una catástrofe”, (https://blogs.publico.es/juantorres/2020/03/23/hay-alternativas-pero-queda-poco-tiempo-para-evitar-una-catastrofe/). Ficarei muito grato.

Jose disse...

Surpreendentemente ainda não ouvi falar em 'rendimento mínimo garantido' para esta emergência.

Está todo muito entretido a esgotar o capital das empresas com um lay-off a 25% da massa salarial.