terça-feira, 31 de março de 2009

Uma escolha acertada ou disponível? - III

“Já quanto ao facto de, por vir do PCP, poder contribuir para aplacar uma eventual sangria para a esquerda, o valor acrescentado é apenas aparente. Vir desse partido não é garantia de pender para a esquerda, a não ser para eleitores mais desatentos (e será que estes votam nas europeias e/ou se preocupam com os cabeças de lista?): a ser só isso, se não estivesse com o PSD, Zita Seabra também poderia ser uma boa candidata para estancar a sangria à esquerda…

Na verdade, exceptuando as questões da laicidade e dos costumes, onde o governo também tem estado bem à esquerda, Vital tem sido um acérrimo defensor da terceira via, como evidenciam os exemplos abaixo.

Mesmo nas questões europeias, o seu entusiasmo com o Tratado de Lisboa (ver, por exemplo, o seu artigo no PÚBLICO de 11/12/07) torna o seu pensamento deficitário do europeísmo crítico de que a esquerda hoje precisa para não só responder eficazmente à crise mas também para se renovar libertando-se da influência neoliberal que a terceira via tão profundamente absorveu.

E, note-se, o europeísmo crítico vem hoje de ilustres socialistas. Mário Soares tem dito e escrito (veja-se o recente livro de crónicas) que, por causa da crise, o Tratado de Lisboa perdeu actualidade... E, no número 3 da revista OPS!, João Ferreira do Amaral discorre sobre as marcas neoliberais na arquitectura constitucional da UE. E Alegre escreve sobre a necessidade de se expurgar do Tratado de Lisboa a norma que obriga os serviços públicos às leis da concorrência.

Numa altura de profunda crise do neoliberalismo, as respostas europeias, sobretudo as devedoras desse modelo, não podem continuar a ser as mesmas. Precisamos pois de dirigentes com uma visão europeísta crítica, por maioria de razão se forem candidatos a líder parlamentar no PE.”

Uma escolha acertada ou disponível? - II

“Em abstracto, Vital Moreira é um bom candidato. Primeiro, porque é um intelectual prestigiado. Segundo, porque é um grande comunicador e muito duro no combate político. Terceiro, porque tem um pensamento estruturado sobre a Europa: elevará com certeza a qualidade do debate sobre o tema. Porém, apesar do seu estatuto formal de independente, tem estado sempre demasiado colado ao governo e à sua “linha dura” e, por isso, dificilmente conseguirá aplacar a tendência para a penalização do governo nas europeias, pelo contrário, deverá provavelmente potenciá-la.

Recordemos alguns aspectos fundamentais em que Vital tem estado muitíssimo colado ao governo. Na saúde, defendia não só a política de racionalização da rede (e bem) mas também que, tal como o governo fazia antes de mudar de ministro… (inflexão a que Vital se opôs), se fechassem os centros de saúde do interior antes de se providenciarem as alternativas. Na reforma da segurança social, bastou-lhe, tal como ao governo, que se mantivesse essencialmente como pública, sem dar nenhuma atenção à equidade na distribuição dos custos dos ajustamentos entre capital e trabalho. Na governação em geral, e na educação em particular, tem sido um dos mais ferozes adeptos da governação musculada e da ideia de que só é possível fazer reformas contra os funcionários (apelidados, na linguagem neoliberal que a terceira via adoptou para si, de representantes de interesses corporativos), além de alinhar na ideia do combate aos sindicatos que tem marcado a legislatura. Defendeu ainda o regime fundacional nas universidades: a porta aberta à privatização.

Por tudo isto, um ilustre militante socialista, desde que menos colado ao governo (como Alegre, Ferro, Cravinho), poderia contribuir melhor para estancar o eventual castigo por via da penalização do governo. Não será por acaso que alguns destes nomes foram inicialmente ventilados…”

Uma escolha acertada ou disponível? - I

Reproduzo em três postas sequenciais o meu artigo do Público, de 30/3/2009, intitulado “Uma escolha acertada ou a melhor disponível?”, e que versa sobre a candidatura de Vital Moreira como cabeça da lista do PS às europeias de 2009:

“Recentemente, foi apresentado o cabeça de lista do PS às europeias. As escolhas quanto a esta lista poderão ter especial relevo. Primeiro, porque sendo o partido incumbente, se houver uma significativa penalização do governo, então o PS poderá ser bastante castigado. A composição da lista, sobretudo o nome de topo, poderia minimizar uma eventual penalização. Segundo, porque, nomeadamente devido à inflexão centrista do PS, o partido tem estado a sentir uma acérrima competição das forças à sua esquerda e a composição da lista poderia ajudar a minimizar as transferências. Adicionalmente, porque se os dois fenómenos se conjugarem e a débâcle for grande, poderá gerar uma dinâmica de refluxo que contagie as legislativas. Foi referido que Vital de Moreira seria uma escolha acertada porque é independente e vem da esquerda, podendo por isso aplacar as duas prováveis tendências de refluxo. A situação é mais problemática. Mas recordemos primeiro a evidência sobre os comportamentos eleitorais nas europeias.

As “eleições de primeira ordem”, como as legislativas, são aquelas em que está em jogo algo determinante para o funcionamento do sistema político, o controle do executivo. As “eleições de segunda ordem”, como as europeias, são aquelas em que aquilo que está em jogo para o funcionamento do sistema político é relativamente menos importante. Nestas eleições, os eleitores têm menos constrangimentos e, por isso, podem mais facilmente votar no partido da sua preferência, independentemente de quaisquer considerações tácticas, ou votar em protesto. Pelo contrário, quer em legislativas, quer em europeias, mas substancialmente mais nas primeiras, as pessoas tomam em linha de conta as considerações tácticas, nomeadamente de forma a não desperdiçar votos em partidos que, provavelmente, não terão grande importância na formação do governo. Apesar da liderança do PS nas sondagens, sabemos que, segundo vários estudos, o governo e o seu líder são impopulares. Logo, as europeias seriam sempre muito difíceis, até porque, pela proximidade, poderão servir como “marcador” para as legislativas. Do que se trata é de uma estratégia de contenção de danos.”

URGENT PETITION TO KEEP UEL OPEN DURING G20 SUMMIT

Um amigo, o meu colega António Pedro Dores, chamou-me à atenção para um problema grave, o do Estado policial, relacionado com a cimeira do G20, bem como para a petição em curso para que a Universidade do leste de Londres possa estar aberta e possa alojar a cimeira alternativa durante a cimeira do G20:

“Dear friends

the University of East London (UEL) was supposed to host an alternative summit on April 1st in the context of the upcoming G20 meeting on April 2nd. Following the media and police hype about possible disruptions to the city, the University withdrew its support for the alternative summit.

Subsequently, management of the University decided to close down the university all together on April the 1st and 2nd, cancelling lectures and closing the library, effectively trying to turn the university into a wasteland in the very moment when the university should instead be up to the task of hosting critical debate and be a hub of creative energies.

As the text of the petition makes clear, this is not just about UEL, but about reclaiming universities and education in these times of crisis.

PLEASE FORWARD WIDELY -- PLEASE SIGN URGENTLY.


Open UEL now collective

segunda-feira, 30 de março de 2009

É preciso acabar com a irracionalidade competitiva dos mercados



É pouco provável que, até ao momento, os cosmocratas que reúnem em Davos, os Bilderbergers, a Comissão Trilateral, o G8 e quejandos, tenham decidido o que quer que seja que vá ao encontro dos anseios daqueles que procuram soluções para a crise e clamam por justiça e transparência nas democracias. Parece bastante mais plausível admitir que os objectivos imediatos dos donos do mundo visam apenas medidas correctivas do funcionamento do sistema financeiro global, de forma a impedir que os seus lucros venham a sofrer novos reveses e a sua hegemonia seja ameaçada. As justificações para a intervenção dos Estados nacionais nos processos de falência dos bancos, ou a ideia de que é preciso criar regras para o funcionamento dos offshores em vez de, pura e simplesmente, os desmantelar, constituem indícios preocupantes de que o parasitismo do capital sobre o trabalho está longe de morrer com esta crise.

Depois de todas as cimeiras e reuniões de emergência ocorridas desde o agravamento da crise em Outubro do ano passado, segue-se agora uma reunião do G20 na qual muitos depositam as suas esperanças para o surgimento de iniciativas capazes de sanar o sistema financeiro. Mas parece claro que as mudanças necessárias não se poderão resumir ao mero saneamento de activos tóxicos do sistema e a sucessivas injecções de liquidez – mais transfusões de sangue oferecidas aos vampiros, quando se percebeu já que o poço não tem fundo. Para mais, parece também consensual nos vários quadrantes de análise que a crise é, igualmente, uma crise de valores. Mas se o extermínio do parasitismo é possível com medidas concretas, ainda que possamos interrogar-nos sobre a coragem dos políticos para o fazer – e, pelo que se vê na liderança (?) europeia, permanecermos cépticos – , o altruísmo, a bondade, a honestidade, a solidariedade e a decência não se criam por decreto nem, muito menos, com os consensos minimalistas patrocinados por Durão Barroso.

Um modelo de desenvolvimento orientado para o "crescimento" com base na irracionalidade competitiva dos mercados é, sem dúvida, um cancro difícil de extirpar. Mas com ou sem inversão radical de valores, o agravamento das tensões parece inevitável e, a par com o aumento incontrolável da pobreza e do desemprego, é bastante preocupante o teor da missiva dirigida pelo Director de Estudos do LEAP/E2020 aos dirigentes do G20. Não nos esqueçamos que, tal como escreveu Daniel Bell na sua análise das contradições culturais do capitalismo, em meados da década de 70, «os indivíduos não suportam muita incerteza nas suas vidas», pelo que parece ser, precisamente, em circunstâncias como as que se vivem presentemente que «as instituições tradicionais e as instâncias democráticas de uma sociedade colapsam e que transbordam o irracional, as emoções de raiva e o desejo de um salvador político».

sábado, 28 de março de 2009

Crise: o que fazer? (II)

O agravamento da crise, acompanhado da incapacidade da UE em combatê-la eficazmente, é suficiente para levar o Estado português a uma situação de emergência financeira. Apenas uma questão de tempo.

Por isso, alguns economistas já vão assumindo como inevitáveis as reduções nos salários (começando pelos funcionários públicos) porque dão por adquirido que o cenário da descoordenação e da inércia na UE é o único possível. Dentro em breve vão sugerir um “governo de salvação nacional” para aplicar medidas gravosas, tal como as que estão a ser tomadas em vários países da Europa de Leste, na Grécia e na Irlanda. Medidas recessivas porque diminuem a despesa interna e agravam o desemprego, dessa forma aprofundando a espiral negativa existente. Neste cenário, indesejável mas provável, a revolta social tomaria conta da rua e a viabilidade da própria União estaria em causa.

Acontece que o cenário federalista de combate à crise, sendo o que melhor e mais rapidamente permitiria superá-la, não é sequer pensável pelos actuais governos da União. A ortodoxia torna os governos europeus cegos perante as soluções possíveis, incluindo os que se dizem socialistas. Impede-os de entender o que se passa e, portanto, de optar por um novo paradigma político. Exactamente como à entrada dos anos trinta do século passado nos EUA.

O que podemos fazer? A minha resposta é: obrigar os governos europeus a romperem com a constituição económica do Tratado da União. Como é que isso se faz? Explorando três dinâmicas cumulativas e interdependentes:

1) Debater a viabilidade das soluções alternativas. Sem ideias credíveis não seremos sequer ouvidos.

2) Exigir na rua a mudança. Sem a pressão dos movimentos sociais as novas ideias não conseguem audiência.

3) Apresentar uma alternativa política. A esquerda não pode refugiar-se numa ética de valores e numa prática de contrapoder. Tem de ir mais longe e assumir uma ética de responsabilidade, o que a obriga a apresentar um programa de governo exequível contemplando medidas de emergência consistentes com um modelo de desenvolvimento sustentável.

Neste quadro, à escala do nosso País, o próximo 1º de Maio deveria constituir um momento de forte interpelação política aos governos europeus. Será que os portugueses de esquerda saberão estar à altura do tempo que lhes foi dado viver?

Crise: o que fazer?

Um aspecto muito importante desta crise é a velocidade a que ela se aprofunda. O conjunto da União Europeia, os EUA e o Japão tiveram uma quebra abrupta do produto nos últimos seis meses. O arrefecimento do crescimento na China também foi importante. No mesmo período, o comércio internacional também diminuiu fortemente. Hoje, a União Europeia está no limiar da deflação com o nosso país na primeira linha.

Krugman já alertou (ver aqui) que a Zona Euro está mais desarmada que os EUA para enfrentar a crise e colaborar com Obama. É certo que temos na UE políticas sociais que permitem atenuar os efeitos da crise, embora o Estado de Bem-Estar ainda seja muito incipiente em Portugal. A pobreza e a desigualdade na distribuição do rendimento alcançam níveis que deviam envergonhar-nos.

O ponto é que a existência de uma moeda única sem políticas macroeconómicas à escala federal colocam a UE numa posição de bloqueio colectivo e, portanto, de incapacidade para relançar o crescimento, desse modo criando as condições de insustentabilidade financeira do Estado de Bem-Estar que diz querer manter. O estado global da União é já dramático, mesmo que por conveniência os dirigentes políticos não o assumam abertamente.

Face à actual crise, os governos da UE podem escolher entre:

a) concretizar uma política orçamental de grande volume, coberta por dívida nacional e federal; utilizar todos os mecanismos da política monetária disponíveis, incluindo a compra de dívida da própria UE pelo BCE; nacionalizar os maiores bancos para sanear o sistema de crédito de uma vez por todas. Tudo isto significa agir rapidamente e com grande coordenação ignorando o Tratado da União Europeia, ou …

b) manter o caminho que tem sido seguido, ou seja: investimento público a baixo nível e lenta execução, política monetária insuficiente e atrasada, crédito bancário racionado, deflação a instalar-se, agravamento do risco de bancarrota em vários países (dentro e fora da Zona Euro), não colaboração com os EUA numa política orçamental de grande escala, etc.

Estaremos todos conscientes do que isto significa?

quinta-feira, 26 de março de 2009

Tempos difíceis para se ser neoliberal


via Arrastão

Resultados esmagadores em todos os sectores, menos na banca onde, mesmo assim, existe uma maioria em favor do público. Estes resultados mostram bem o desfasamento entre o que querem as pessoas e o que têm feito os últimos governos. Mostram também como a prioridade à luta por serviços públicos de qualidade é um desígnio estratégico para a esquerda de hoje. Querem perceber a desilusão dos cidadãos com os "políticos"? Olhem para a política do centro à luz destes gráficos.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Temos de ir à raiz dos problema sociais

Sabemos que o desempenho dos indivíduos é, em larga medida, o resultado das suas circunstâncias sociais. As sociedades menos desiguais mostram como estas se podem tornar mais humanas. Por isso, apelo ao leitor que esteja atento. Os movimentos sociais e os partidos políticos que pugnam por políticas de maior igualdade das condições materiais estão a contribuir, sobretudo em épocas de crise, para que o leitor possa viver mais e melhor. A evidência empírica não mente. A política que importa tem de se basear nela. O resto do meu artigo mensal no Jornal de Negócios pode ser lido aqui.

Refiro um extraordinário livro que acabou de sair – The Spirit Level: Why More Equal Societies Almost Always Do Better. É o melhor estudo sobre o impacto das desigualdades de rendimento que eu já li. Vale bem a tradução. Até porque Portugal é abundantemente referido na completa análise comparativa feita. O sítio criado pelos autores e este trabalho do The Guardian (via Rui Tavares) constituem uma boa introdução. Esta relação entre as desigualdades de rendimento e o peso da população prisional é bem ilustrativa. O chamado Estado Penal é mesmo o «caminho para a servidão» das utopias liberais em que muitos continuam a insistir.

terça-feira, 24 de março de 2009

As coisas são mesmo mais complicadas

João Galamba, uma das pessoas que costumo ler com mais atenção na blogosfera, escreveu: «Por exemplo, João Rodrigues, do Ladrões de Bicicletas, sugere que o crescimento desmesurado do sector financeiro constitui uma espécie de usurpação da capacidade produtiva do trabalho pelo capital». Nunca defendi tal coisa e não é por acaso que João Galamba não se refere a algo que eu tenha escrito em concreto. Enfim, acho que isto é apenas o ponto de partida para uma simplificação e distorção que servem para construir uma reflexão genérica muito fácil sobre como as coisas são sempre mais complicadas do que os simplismos que «os outros» supostamente subscrevem.

Luta de classes? Lutas de classes e de fracções de classe. Certamente. Com a ironia da razão crítica exemplificada por Medeiros Ferreira e como motor da transformação das instituições da economia, motor que aliás nunca é neutro, para usar os termos de Joseph Raz, nos seus efeitos e na sua estratégia de justificação. Isto pressupõe a valorização da luta das ideias e o reconhecimento de que o futuro está sempre mais em aberto do que os deterministas de todos os partidos pensam.

Reabilitar Marx? Não se reabilita o que nunca se esqueceu. Mas Marx há muitos e isso já pode ser um bom ponto de partida. Ao contrário do que possa pensar João Galamba, eu acho que pode ser melhor deixar a teoria do valor-trabalho e as essências reprimidas em paz e sossego. Nenhuma análise dos capitalismos aqui feita depende delas.

Cruzar Marx com Keynes ou com Polanyi é o que eu e muitos outros aqui propomos. Talvez isto seja útil para pensarmos em alternativas. Institucionalismo radical é um dos nomes deste pensamento socioeconómico e político forçosamente eclético. Permite-nos compreender as variedades do capitalismo em mutação, primeiro passo para pensarmos os socialismos possíveis como processo, sublinho a ideia de processo, de socialização e democratização da economia que, como afirma Jorge Bateira, reconhece a necessidade da pluralidade e da plasticidade institucionais.

Não percebo o que é que isto tem de naturalização do que quer que seja. Acho aliás incrível que se possa afirmar que o que aqui se escreve pressupõe um regresso a um qualquer estado natural em economia. Além disso, recuso de forma simétrica o simplismo institucional do neoliberalismo e do socialismo de planificação central. Utopias que temos de evitar a todo o custo. São as lições da história.

Outra lição importante passa por perceber que o neoliberalismo não é simplesmente um «erro» ou um «desvio», mas sim um projecto intelectual robusto, simultaneamente utópico e pragmático, que forneceu às elites em dificuldades uma caixa de ferramentas para reformar o capitalismo em crise numa certa direcção que devemos poder criticar. Aqui não se tem escrito sobre outra coisa. Acho que o diagnóstico que João Galamba faz da crise dos anos setenta é demasiado tributário da narrativa neoliberal sobre os supostos falhanços da esquerda. Aliás, João Galamba nem sequer justifica esta parte da sua curiosa avaliação. Vejam o que escrevemos aqui ou aqui sobre isto.

A relação entre a financeirização do capitalismo, que pressupõe o reconhecimento de que temos de falar de lógicas (no plural) dos capitais (à Keynes e à Marx da distinção entre D-M-D’ e D-D’), a instabilidade financeira, a repressão salarial e o sobreendividamento, é hoje aceite por muitos à esquerda e à direita. Fez sempre parte da minoritária, mas combativa, tradição económica radical que criticou o predomínio da especulação sobre a empresa associado à hegemonia dos mercados financeiros liberalizados. Há discussões estimulantes sobre o que é que origina o quê, claro. Mais uma vez tudo se joga na política económica e nos arranjos da economia. João Galamba recusa esta discussão, mas parece não resistir a tirar conclusões (baseadas em quê?) sobre as impossibilidades do pleno emprego ou de uma distribuição mais equitativa dos ganhos de produtividade. O que causa o desemprego? Será a «rigidez do mercado de trabalho» ou os défices de procura?

É claro que podemos sempre experimentar a interacção perversa entre sobreprodução, deflação e sobreendividamento num contexto de degradação institucionalmente imposta das condições de trabalho, que só pode gerar desemprego e sofrimento. João Galamba parece imaginar que só se pode pensar nestes processos com um quadro «marxista» simples – proletariado e burguesia. João Galamba está errado. E o crédito nem sequer é a exploração do trabalho por outros meios...

Enfim, João Galamba parece esquecer, como muito a gente à esquerda, que os neoliberais agiram, sobretudo quando tiveram poder, como se reconhecessem a intuição fundamental de Kalecki sobre os efeitos políticos do pleno emprego e do aumento da margem de manobra do poder político democrático. Aqui está uma das questões centrais que o diagnóstico de João Galamba não enfrenta.

De resto, não podemos perder de vista a difícil distinção, que John O’Neill nos ensina a manter, entre derrota política, questão de poder, e derrota intelectual, questão de verdade e de validade. A esquerda socialista transformadora que me interessa perdeu e falhou e ganhou e acertou. E aprendeu, reviu, manteve e insistiu. Será sempre assim. Nunca se desiste.

As origens intelectuais do absoluto vazio programático de certa esquerda, escandalosamente visível em tempos de crise, passam por esta ter esquecido os materiais da economia substantiva e a distinção acima referida. A «obsoleta mentalidade de mercado» que dominou a social-democracia secou as fontes intelectuais da imaginação institucional na economia que é hoje tão necessária para um projecto de igualdade complexa (à Michael Walzer, já lá irei...) que tem de estar assente na melhor evidência disponível.

Sem qualquer pudor (II)

O Diário de Notícias relata passagens de uma intervenção do nosso Ministro dos Negócios Estrangeiros na abertura de um seminário sobre o impacto da crise na governação democrática.

Destaco em particular estas passagens:

"O que está em causa é o falhanço político em liderar essas forças [do mercado]. (...) Em acompanhar, com instrumentos políticos adequados, esta expansão das forças de mercado. Não são os princípios da economia de mercado, mas a ideologia que reduziu o papel do estado ao mínimo".

Diz o DN: "A actual crise financeira e económica vai obrigar também, na opinião de Luís Amado, a "uma redefinição do papel do estado", que perante o "enorme impacto social" que a crise vai ter, não tem capacidade para dar resposta às necessidades dos cidadãos."

De facto, custa a acreditar que esta mesma pessoa tenha dito à revista VISÃO (14 Fev. 2008) que "O Estado deve ser reconfigurado. Depois de corrigido o problema do défice, temos de repensar o estado no exercício das suas funções, uma a uma. Temos de encontrar um equilíbrio entre as funções de soberania e as funções sociais. Em algumas funções sociais, não vejo qualquer problema em que haja, garantido o sistema público, áreas de actuação privada."

Há um ano, sem qualquer problema, defendia que o Estado devia prestar serviços públicos através do mercado. Hoje, é contra um Estado reduzido ao mínimo, contra um Estado sem capacidade para acudir ao desastre social. Mudar o discurso é fácil, sobretudo quando não se tem qualquer pudor!

segunda-feira, 23 de março de 2009

As palavras são importantes



Este é um dos temas de um dos meus filmes preferidos - Palombella Rossa. Não percam estes excertos (infelizmente sem legendas).

Com uma muito ligeira edição, deixo aqui um comentário de Pedro Viana que aprofunda o que aqui escrevi sobre os usos e abusos da expressão rigidez em economia:

«O termo rigidez é empregue pelo impacto cognitivo negativo que tem em quem o ouve. Quem pretende manipular usando o discurso formata-o cuidadosamente, de modo a associar às suas ideias, termos, conceitos e metáforas consideradas positivas pela grande maioria dos seus ouvintes e o inverso para caracterizar as ideias adversárias.

Esta estratégia é tão velha como o Homem, mas nunca tantos recursos foram investidos nela como nos últimos 40 anos, quando o poder sócio-económico, receando perder o controlo após os libertadores anos 60 do século passado, investiu milhares de milhões de dólares (em particular nos EUA) na criação de "think-tanks" dedicados essencialmente a encontrar maneiras de re-formatar o discurso público, de forma a que os adversários das suas políticas (predadoras) aparecessem como contrários ao senso comum e contrários aos "valores do homem-comum".

A introdução de termos como rigidez do emprego ou alívio fiscal (tax relief) resultam desse esforço. De tal modo teve sucesso, que a grande maioria das pessoas (inclusive economistas) nem tem ideia que ao utilizar certos termos no seu discurso, está automaticamente a tornar o seu ouvinte (desde que igualmente ingénuo) mais propenso a aceitar certas políticas socioeconómicas em detrimento de outras.

Como já afirmei aqui, nos EUA uma das pessoas que mais tem contribuído para desmascarar esta intensa manipulação é George Lakoff».

Sempre a maldita ineficiência do Sector Público...


CTT entregam 35 milhões de euros ao Estado

Estes dividendos correspondem a cerca de 60% dos resultados líquidos da empresa, mesmo com uma quebra de 20% no último ano. Os restantes 40% serão reinvestidos na empresa.

A notícia torna a chamar a atenção para o debate entre provisão pública e privada. Não apenas o debate sobre a qualidade dos serviços prestados, a política de preços, visão estratégica sobre a economia (sobre as quais têm escrito vários ladrões, como o Jorge Bateira) mas também a questão, nada secundária, dos lucros destas empresas e a margem de manobra que podem proporcionar ao Estado na condução de políticas económicas e sociais.

Que margem de manobra poderia ter hoje o Estado português se a GALP e a EDP fossem ainda públicas? Tanto num caso como no outro, a capacidade de aliviar as dificuldades que a crise (e a política de preços que essas empresas adoptaram depois de privatizadas) colocam aos consumidores individuais e às empresas bem como a utilização dos resultados, valeria bem mais que a receita de curto prazo que o Estado arrecadou com a sua alienação.

O tempo que vivemos é propício para a colocação destas questões, que são das mais estratégicas para uma política de desenvolvimento. Que papéis para o Estado e para a iniciativa privada? Que política para o sector empresarial público? Que ligação entre esses sectores e o funcionamento de toda a economia? A política das últimas décadas não tem tido resultados brilhantes. É tempo de olhar para as alternativas.

sexta-feira, 20 de março de 2009

Os meninos de Ouro



Este anúncio está a ser exibido na Televisão Pública portuguesa. Todos os partidos já se manifestaram contra este atentado, menos um: o Partido Socialista. É de facto, um sinal dos tempos que o próprio PSD se bata pela protecção de um direito democrático fundamental, contra a cumplicidade de um Partido que continua a dizer-se de esquerda.

A Eduarda que ouvimos no anúncio é a mesma "jornalista" que escreveu o livro "Sócrates: O menino de Ouro do PS". Sem dúvida, o início de uma carreira promissora. O PS diz que não se pronuncia sobre assuntos editoriais da RTP ou da Antena 1. Um cinismo de cortar à faca. No entanto, a Televisão Pública responde perante o Estado pelo cumprimento de critérios mínimos de decência e respeito por liberdades e direitos fundamentais, nos quais se incluem (espero) aqueles que são consagrados pela Constituição da República Portuguesa. É por isso que uma mensagem racista seria (espero) impensável na Televisão Pública (ou na privada). Por isso, o silêncio do PS e do Governo é, obviamente, um apoio e uma responsabilidade por omissão.

É impossível não reparar que este anúncio surge no preciso momento em que José Sócrates se atira aos sindicatos que têm conduzido a contestação à sua política. Talvez tudo isto ajude a dar uma ideia do sindicalismo que José Sócrates gostaria de ter em Portugal. Um que não prejudique o trânsito, muito particularmente o livre trânsito da sua própria propaganda nos meios de comunicação social públicos, que deveriam ser de todos: Os que andam de carro e os que têm direito a manifestar-se, que são, como é evidente, as mesmas pessoas.

Acabo de receber a resposta do Provedor do Ouvinte da Antena 1 ao que presumo ter sido uma chuva de queixas, informando do seu próprio parecer e da decisão do Conselho de Administração da RTP, no sentido da retirada do anúncio. Pelos vistos, ainda há vergonha...

A economia para além da rigidez do manual

Uma das características mais saudadas do modelo norte-americano era a sua suposta flexibilidade e ausência de rigidez. Na discussão sobre políticas públicas, como em todas as discussões, há expressões que ajudam a fixar os termos do debate e a encaminhá-lo para determinadas direcções. É o que acontece com estas duas palavras, usadas na discussão sobre a legislação laboral e sobre as regras que enquadram outros mercados. Elas já contêm em si todo um programa. Quem é que pode defender a rigidez? No entanto, a legislação laboral é considerada rígida quando, entre outras coisas, reconhece certos direitos aos trabalhadores, impõe correspondentes obrigações aos empregadores, estrutura as relações laborais de forma a que os últimos não sejam capazes de impor alguns custos sobre os primeiros, ou quando suporta determinados mecanismos de participação colectiva e de determinação das normas salariais que minimizam os desequilíbrios estruturais entre as partes contribuindo, por exemplo, para um virtuoso processo de compressão salarial. O resto do artigo pode ser lido no esquerda.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Help I'm Alive (Acoustic) - Metric



Depois quatro anos de espera, os canadianos Metric lançam novo álbum. Parece que a espera valeu a pena.

As opiniões socialistas dos ladrões de bicicletas

«Em contracorrente ao longo das últimas décadas, socialistas com diferentes percursos, e muitos cidadãos sem partido, foram desenvolvendo um quadro conceptual que não só permite entender o que está em causa nesta crise mas também desenhar os contornos de uma alternativa ao neoliberalismo que a gerou» (Jorge Bateira).

«A acção colectiva no interior da empresa, e as relações com exterior, não podem ser e não são nunca, meramente contratuais. Os próprios contratos dependem, como se sabe, de alguma coisa não contratual a que habitualmente chamamos confiança» (José Maria Castro Caldas).

«Nos dias que correm, a crise económica internacional põe a nu as fragilidades da arquitectura de gestão macroeconómica saída de Maastricht. Como é sabido, esta arquitectura institucional caracteriza-se, por um lado, por uma forte diminuição dos graus de liberdade dos estados na condução de políticas económicas nacionais e, por outro lado, pela escassez de mecanismos de gestão económica ao nível supranacional que compensem a diminuição do espaço de manobra dos governos nacionais» (Ricardo Paes Mamede).

«O que mais importa é saber que o ponto das desigualdades espaciais e o do contributo dos territórios para o desenvolvimento não podem sair da agenda política. De uma agenda política de esquerda, dado que é por aí que passa um desenvolvimento inclusivo, capaz de conjugar as pessoas, os recursos e os vários contextos de vida com a modernidade, a inovação e, portanto, com a coesão territorial» (José Reis).

A utilidade das ideias

Vamos imaginar, entre outras coisas, que «os agentes conhecem a cada instante todo o fluxo de rendimentos futuros que vão auferir ao longo da sua vida». Agora vamos pensar a política económica como se isto fosse verdade e vamos povoar uma instituição imune a qualquer pressão democrática – o BCE – com economistas que acreditam em coisas destas. Carlos Santos, que tem vindo a explorar as «falácias neoliberais» da União Económica e Monetária, expõe as origens intelectuais do actual desastre. Juan Torres Lopez e Alberto Garzon Espinosa, num artigo sobre o fracasso dos bancos centrais independentes, identificam a utilidade destes arranjos e das ideias que lhes subjazem: «Os bancos centrais independentes só foram úteis para que os grandes financeiros e os banqueiros sem escrúpulos tenham tirado proveito nestes últimos anos». Os bancos centrais ditos independentes são a melhor expressão de uma ideia que é partilhada por todas as correntes neoliberais: a política democrática tem de ser limitada.

terça-feira, 17 de março de 2009

Opinião socialista

Só a opinião conta na condução dos assuntos humanos. Acho que devemos agir como se isto fosse verdade. Até porque, em última instância, se calhar até é. Em Portugal, essa opinião tem de ser cada vez mais socialista. O próximo número da Revista de Opinião Socialista (ops!) dá um bom contributo para isto. Não percam:

«Mergulhados numa espiral depressiva, precisamos mais do que nunca de ideias e de actores políticos inspirados por uma visão de denvolvimento do País que seja sustentável nos planos institucional, económico e social.

Com um dossier dedicado à Economia e às grandes decisões em tempo de crise, a revista ops! lança-se nas raízes, nas ameaças e nas oportunidades criadas pela crise. Contando com um editorial de Manuel Alegre, com o dossier coordenado por Jorge Bateira e uma entrevista a Alfredo Bruto da Costa, participam neste número diversos investigadores e actores políticos socialistas e independentes, como José Castro Caldas, Nuno David, João Correia, João Ferreira do Amaral, José Reis ou Elísio Estanque.

Este é um tempo de viragem, e por isso de grandes decisões. A crise e as suas soluções são temas de debate na próxima quarta-feira no Hotel Altis, ás 18h30, com Manuel Alegre, Henrique Neto, António Carlos dos Santos, Jorge Bateira e Nuno David.

Escrevem neste número Manuel Alegre, Jorge Bateira, Henrique de Melo, João Correia, Nuno David, João Ferreira do Amaral, José Castro Caldas, Elísio Estanque, Luis Tito, Ernesto Silva, Maria José Gama, Sérgio Pessoa, Pedro Tito Morais, Ana Cardoso, José Reis, Catarina Frade, Eduardo de Oliveira Fernandes, Maria Clara Murteira e Ricardo Paes Mamede».

segunda-feira, 16 de março de 2009

O problema está nos economistas da direita intransigente

A notável série de postas - o problema não está nos salários - de Nuno Teles está disponível em artigo aqui. Defintivamente, o problema não está nos salários, o problema está nos economistas, como Vítor Bento, que dizem que o problema está nos salários. Quando falo na cassete é neles que estou a pensar.

Debate

«Os especuladores são inofensivos se forem bolhas numa corrente empresarial incessante. Mas as coisas tornam-se preocupantes quando a empresa se transforma em bolhas num turbilhão de especulação. Quando o desenvolvimento do capital de um país se converte num subproduto das actividades de um casino, é provável que o trabalho esteja a ser mal feito» (John Maynard Keynes, 1936).

“O peso de político de Manuel Alegre"



“Na sondagem da TVI (27/02/2009) surgem diversas indicações curiosas e que merecem atenção. À pergunta sobre se, perante a actual crise, se deve re-editar o Bloco Central (aliança entre PS e PSD) a maioria do eleitorado responde que Não (43,3% contra 41,3% que afirma que sim). Entre o eleitorado PS, 52% respondeu Não contra 33,5% que respondeu Sim. Quanto a um possível cenário de alianças no caso de uma vitória do PS sem maioria absoluta nas legislativas os resultados mostram, primeiro, que o Bloco de Esquerda e o PSD são os partidos preferidos para acordos parlamentares, enquanto uma aliança com o PCP apenas obtém cerca de 14% e com o CDS apenas 8,5%. Segundo, que, entre o eleitorado do PS é o BE que obtém a preferência face ao PSD, em larga maioria (42,3% contra 25,6%)...”

Para continuar a ler no blogue "Boa Sociedade" da responsabilidade do meu colega e amigo Elísio Estanque

domingo, 15 de março de 2009

Não podemos voltar ao mesmo!



"No dia 28 de Março milhares de pessoas vão manifestar-se em Londres participando dessa forma numa campanha global para interpelar o G20 antes da sua cimeira de 2 de Abril sobre a crise financeira global.

Muito antes do colapso financeiro, o mundo já sofria com a pobreza, a desigualdade e a ameaça do caos climático. O mundo foi orientado por um modelo financeiro que criou uma economia alimentada pelo crescimento exponencial da dívida, ao mesmo tempo financeira e ambiental.

O nosso futuro depende da criação de uma economia baseada na distribuição justa da riqueza, em empregos dignos para todos e num futuro com baixo nível de carbono.

Não podemos voltar ao mesmo."

sexta-feira, 13 de março de 2009

O problema não está nos salários IV– Prescrição para o desastre

Vítor Bento, que já no passado Outono se manifestava contra a subida do salário mínimo, prescreve um congelamento ou mesmo redução dos salários como forma de Portugal escapar à crise. Parece piada... Num contexto de crise internacional profunda, com a procura internacional deprimida, é irresponsável avançar com este tipo de proposta. Porque não tenhamos ilusões, quando Vítor Bento fala de redução de salários, está a falar dos miseráveis salários pagos pelos grandes exportadores nacionais, como é o sector têxtil. Já nem discuto a relação subjacente, no mínimo discutível, entre custos salariais e competitividade de uma economia. Também não quero discutir a imoralidade de pedir tal ajustamento a quem ganha 500 ou 600 euros por mês no país mais desigual da Europa Ocidental. O que me parece evidente é que qualquer redução dos salários em Portugal teria como efeito imediato a redução da procura interna, única variável que, no presente, consegue ainda suavizar um pouco a abrupta queda das nossas exportações. Se esta crise, a maior desde 1929, já é grave, mais terrível se tornaria. O que precisamos é, pelo contrário, um combate à desigualdades efectivo que valorize os piores rendimentos e dinamize a procura.

O problema não está nos salários III – O simplismo

O facto do problema de competitividade estar situado na inflação e não nos salários reais não nega que haja um problema na divergência dos custos unitários de trabalho. Ele existe, mas a exposição de Vítor Bento, não é só manipuladora, como simplista. Ignora-se por completo a raiz do problema: a falta de coordenação de política económica dos países da moeda única. Até à chegada do Euro, um dos critérios de adesão era a convergência das diferentes taxas de inflação europeias. De facto, nos anos que precederam o euro assistiu-se a uma convergência das diferentes taxas de inflação. No entanto, tal critério foi abandonado no pacto de estabilidade, devido ao estreito entendimento de considerar que com a moeda única a única variável que poderia afectar a inflação seria o défice orçamental. Estavam enganados. A partir da criação do euro as taxas de inflação começaram a divergir nos países aderentes. O resultado foi, por um lado, a existência de taxas de juro reais próximas do zero ou mesmo negativas para os países com maiores taxas de inflação, uma vantagem competitiva face aos países, como a Alemanha, com taxas de inflação menores. Por outro lado, os seus custos unitários de trabalho nominais aumentaram face a estes países, perdendo competitividade.

Vítor Bento deveria defender, neste contexto, uma nova arquitectura económica na U.E., onde haja efectiva coordenação entre os diferentes países e um real orçamento europeu que corrija assimetrias e possibilite uma rede de protecção social a todos os europeus (nada de muito diferente do papel que os orçamentos de cada país têm na coesão nacional).

O problema não está nos salários II – A manipulação

Vítor Bento constrói o seu argumento com base nos custos unitários de trabalho. Este indicador de competitividade é construído através da divisão de todos os custos do trabalho (salários, contribuições para a Segurança Social, etc) pelo produto real. Ora, neste cálculo só o produto é deflacionado. Os custos do trabalho são tomados no seu valor nominal. Ou seja, imaginemos dois países com a mesma moeda, Portugal e Alemanha. Os dois tem crescimentos de 5% do PIB e nos dois os custos salariais estão alinhados com a taxa de inflação (os salários reais estão assim congelados). Portugal tem uma taxa de inflação de 10%, enquanto a Alemanha observa uma taxa de 5%. O resultado será um aumento acrescido dos custos unitários do trabalho de Portugal de 5% face à Alemanha. O problema não estará, neste caso, nos salários, mas sim nas diferentes taxas de inflação.

Foi exactamente isso que aconteceu nos últimos anos na zona euro. A inflação foi bastante diferente de país para país. Como podemos observar pelos gráficos, existe quase uma identificação entre a posição dos diferentes países no primeiro (custos unitários) e segundo gráfico (evolução da inflação). Foram os países com maiores taxas de inflação a exibir uma evolução mais pronunciada dos custos unitários de trabalho.





Por outro lado, se observarmos a evolução dos custos unitários reais, deflacionando os custos de trabalho, observamos uma queda destes. O que é que isso nos mostra? Uma crescente desigualdade na repartição dos ganhos de produtividade em favor do capital. O problema não está definitivamente nos salários.



Os gráficos foram feitos a partir dos dados da AMECO. Clicar para aumentar a imagem.

O problema não está nos salários I

Na semana passada, diversas publicações deram voz ao que Vítor Bento, presidente da SIBS, escreve no blogue da SEDES. Vítor Bento argumenta que, segundo o BCE, os custos unitários de trabalho em Portugal aumentaram mais 24% do que na Alemanha e mais 13% do que a média europeia (presumo que desde 2000). Segundo o economista, tal aconteceu “porque os aumentos salariais foram acima do que deveriam ter sido”. A resposta para o problema passará por “uma redução dos salários reais” (Visão, 5/03/09).

Não conheço o argumento de Vítor Bento em pormenor, já que o seu prometido livro ainda não está à venda. Quero acreditar que o seu argumento tem nuances. Contudo as suas declarações, alvo de destaque em inúmeras publicações, valem por si mesmas, e configuram um claro exercício de legitimação da continuação da austeridade assimétrica permanente de que tanto temos falado. É grave, quando proeminentes economistas adoptam um discurso manipulador, simplista e, sobretudo, desastroso para economia portuguesa. É que podem ser levados a sério...

A voz do dono


Jean-Claude Trichet reagiu a uma carta de Ribeiro e Castro sobre a mensagem de Natal do nosso primeiro-ministro sobre a descida dos juros, com a seguinte declaração "Posso confirmar-lhe que, em total conformidade com o Tratado, as declarações dos decisores políticos a nível nacional não influenciam as decisões do BCE".

Assunto arrumado. Pode Ribeiro e Castro dormir descansado. Na Europa, líder eleito não racha lenha. Sócrates fala sobre os juros e a distribuição de rendimentos, mas a arquitectura dos poderes europeus (que o PS ajudou a instituir) assegura que serão mais palavras vãs.

O que é de digno de registo já não é a arrogância de Trichet, compreensível em quem não vai a votos. O que merece atenção é a conveniência de tudo isto: José Sócrates faz mensagens de Natal para dizer que só o BCE pode resolver os problemas das famílias em dificuldades. O BCE escuda-se na sua invulnerabilidade.

Este pequeno arranjo torna possível um singular fluxo comercial: a exportação de responsabilidades. E, em tempos de crise e campanha eleitoral, esta arrisca-se a ser a grande vantagem comparativa deste Governo, quanto mais não seja porque se trata de uma exportação para a terra de ninguém.

Este novo fenómeno exige da esquerda duas exigências:

1. O fim da independência do BCE em relação ao Parlamento Europeu;

2. A implementação de medidas concretas e corajosas no plano fiscal, laboral e social para a redistribuição de rendimentos, contra a política da exportação de responsabilidades.

Veremos o que dizem os candidatos à esquerda sobre estes dois assuntos. Eu cá, depois deste Natal, estou em pulgas.

Por um novo europeísmo de esquerda

«A União Europeia (UE) contem em si um potencial ímpar de gestão democrática das dinâmicas de integração económica internacional que ocorrem no seu interior: a economia europeia, no seu conjunto, é um espaço relativamente autónomo (isto é, a esmagadora maioria das transacções comerciais e financeiras transfronteiriças têm lugar no espaço da União), o que permite um elevado grau de autonomia na definição de uma política económica orientada para o pleno emprego (contrariamente ao que acontece num país pequeno e fortemente aberto ao exterior, como Portugal); as estruturas institucionais dos países envolvidos, apesar de algumas diferenças que podem acentuar-se, são ainda relativamente próximas, o que facilita a gestão coordenada, ou até comum, das políticas públicas; não obstante alguns sinais de descontentamento, a integração europeia ainda beneficia de um apoio popular pouco habitual para um processo que envolve tamanha transferência de soberania. Por outras palavras, o processo de integração europeia contém em si uma promessa de regulação da globalização.

Por isso somos europeístas. Mas também por isso somos muito críticos do rumo tomado pela União Europeia nas últimas décadas. Mais de vinte anos após o impulso dado ao processo de integração europeia pelo Acto Único Europeu, é tempo de fazermos o balanço das promessas cumpridas e das que ficaram por cumprir. E no balanço que aqui fazemos a UE não fica bem no retrato. Contrariamente às esperanças depositadas por vastos sectores da esquerda europeia, é difícil escapar à conclusão de que a Europa é hoje uma peça fundamental da expansão da lógica neoliberal a vastos domínios da economia e das sociedades. Como afirma Paulo Pedroso, com um notável poder de síntese, “na sua versão europeia, a pulsão neoliberal é nacionalista na soberania, europeísta na (des)regulação dos mercados e devolucionista nas questões sociais”. Dado este arranjo institucional, e contrariamente às expectativas criadas, a integração europeia tem vindo a contribuir activamente para a destruição do modelo social que os partidos socialistas e a generalidade das forças de esquerda europeia ergueram ao longo do século XX.

É tempo dos europeístas de esquerda abandonarem a defesa incondicional da União Europeia que está inscrita nos Tratados, como se a única alternativa disponível fosse a autarcia anacrónica. Na realidade, esta forma simplista de encarar a questão europeia tem atrofiado a imaginação necessária para reformar a deficiente arquitectura do governo económico europeu. Sem uma reforma progressista, os processos de polarização social e regional em curso podem bem pôr em causa o próprio projecto de integração num contexto de crise económica aguda. Aos europeístas de esquerda exige-se por isso que distingam entre a Europa que temos e a Europa que queremos. Comecemos então pela primeira, para melhor definimos a segunda.»

O resto do texto (escrito por mim e pelo João Rodrigues) pode ser lido no próximo número da revista Finisterra, lançada hoje numa sessão pública na Livraria Parlamentar.

quinta-feira, 12 de março de 2009

João Mesquita

Amanhã, às 11h30, no Estádio Municipal de Coimbra, prestaremos homenagem a um grande, grande Amigo. Será a primeira das muitas vezes que, em conjunto, sentiremos a sua falta.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Media em tempos de crise

É sabido que a crise está a afectar gravemente o sector dos meios de comunicação social, muito dependente das receitas publicitárias e muito sujeito às aleatoriedades das estratégias de investimento e dos rendimentos bolsistas dos grupos económicos em que crescentemente se insere.

Não deixa por isso de ser surpreendente a notícia de que um jornal como o El País, a jóia espanhola do grupo PRISA, recusou no início deste mês publicar, no suplemento Babelia, o anúncio à edição espanhola do Le Monde diplomatique, espaço publicitário que é aliás comprado no El País pelo referido jornal há mais de quatro anos.

A justificação enviada pelo El País à administração da edição espanhola a 5 de Março foi apenas esta: «O anúncio contratado pelo Le Monde diplomatique para ser inserir na Babelia do próximo dia 7 de Março não vai ser publicado. O motivo é que a redacção do El País não deu autorização».

O que explica esta estranha decisão? Não pode deixar de se notar que no número de Março – cujo conteúdo seria publicitado no anúncio em questão – a edição espanhola do Le Monde diplomatique publica em manchete um artigo do jornalista Pascual Serrano, intitulado «La crisis golpea El País» (A crise golpeia o El País), em que analisa as dificuldades económicas atravessadas pelo grupo espanhol.

O grupo PRISA é detentor de um grande número de meios de comunicação social (imprensa, rádio, televisão, cabo, edição), sobretudo em Espanha e na América Latina, mas também em Portugal, onde desde 2007 detém 94,39% do capital da Media Capital e 99,94% do da TVI. No seu sítio Internet o grupo apresenta-se, aliás, como «um grupo global», «o primeiro grupo de meios de comunicação nos mercados de língua espanhola e portuguesa, líder em educação, informação e entretenimento».

O artigo de Pascual Serrano apresenta vários elementos sobre a crise no grupo PRISA: quebra de cerca de 80% no valor das acções em 2008; redução de 56,8% no seu rendimento bruto, no total de 83 milhões de euros; dívida de quase 5 mil milhões de euros, tendo que ser pagos até ao final de Março quase 2 mil milhões; suspensão do pagamento de dividendos a accionistas, algo que acontece pela primeira vez desde que passou a ser cotado em Bolsa, em 2000…. Apresenta também elementos sobre a grave situação do diário El País, dificuldades que associa, entre outros aspectos como a quebra de vendas, à estratégia do grupo de «procurar a qualquer custo um forte crescimento na América Latina, algo que sem dúvida conseguiu, mas pagando o preço de perder a sua solidez empresarial».

É difícil de acreditar que um jornal como o El País, que pretende ser uma referência em matéria de ética jornalística, reaja a uma situação de crise económica pensando que é possível ocultar a informação, nomeadamente dos seus leitores. Mas também é verdade que a comunicação é cada vez mais um espaço onde se misturam várias lógicas, com todo o peso das lógicas comerciais, económicas e financeiras. E que a mercadorização da informação e a remuneração do capital accionista tende a implicar uma opção pela venda dos leitores, ou da atenção dos leitores, aos anunciantes e não pela venda de notícias e demais informação aos leitores.

No quadro do debate sobre a necessidade de leis e regulações que de facto protejam o direito fundamental à informação, limitem a concentração da propriedade dos media e assegurem o pluralismo, é comum dizer-se que com a chegada da globalização neoliberal à comunicação social ficamos todos a perder. Não sabíamos que isso também podia querer dizer que um gigante da comunicação social podia perder as receitas publicitárias pagas por um jornal que, fora do mainstream da comunicação, teima em depender dos seus leitores. Tempos interessantes.

terça-feira, 10 de março de 2009

O valor das ideias

Na minha opinião, o valor das ideias, o blogue de Carlos Santos, é um dos melhores blogues de Economia e de economia (acho que está ao nível do que os dois economistas liberais mencionados nesta posta escrevem; jogo com o sentido do termo liberal no mundo anglo-saxónico, especialmente no outro lado do Atlântico, um lado que Carlos Santos parece conhecer melhor do que ninguém no nosso país). Algumas postas são literalmente para imprimir. Esta análise keynesiana, por exemplo, demole a enésima reaparição da falaciosa «Lei de Say» e recupera os Animal Spirits de Keynes para explicar as instáveis dinâmicas do investimento no capitalismo realmente existente.

A incorporação na análise económica de hipóteses plausíveis sobre o comportamento humano em contexto de incerteza radical é uma das heranças menos valorizadas e mais radicais de John Maynard. Vai à raiz das crises e da especulação. Lá se vai a hipótese da eficiência dos mercados com que tantos se enganaram ou foram enganados. Isto não se aprende na esmagadora maioria dos manuais - introdutórios, intermédios ou avançados - da nossa querida e policiada disciplina.

O Prémio Nobel da Economia George Akerlof e um dos mais importantes economistas das finanças comportamentais, Robert Shiller, destroem com todo o cuidado e respeito o edifício cientista, a ideologia, que passou por microeconomia e por macroeconomia nos últimos tempos. Usam resultados da psicologia e da economia comportamental e recuperam explicitamente as conclusões do Keynes do capítulo XII da Teoria Geral e de um dos seus melhores discípulos, Hyman Minsky, já aqui referido antes da crise o ter tornado de novo popular em círculos que não se podem dar ao luxo de não perceber o que se passa.

As coisas mexem-se nas margens da teoria convencional, no jornalismo económico e na condução das políticas. Hei-de recensear o Animal Spirits num dos próximos artigos que escrever. Algumas limitações e omissões importantes terão de ser assinaladas – da explicação do desemprego pelos salários ditos de eficiência à subestimação do papel da procura, passando pelo uso excessivamente elástico do conceito de Animal Spirits. Fica desde já a sugestão para um bom editor nacional. A introdução pode ser lida aqui.

Entretanto, não percam os artigos de Martin Wolf e de Robert Shiller no Financial Times. O início de uma reflexão colectiva sobre o futuro do capitalismo. Há liberais que não se querem mesmo dar ao luxo de não perceber o que se está a passar…

segunda-feira, 9 de março de 2009

Nos EUA, muitos economistas apoiam os sindicatos

Definitivamente, os economistas não são todos iguais. Vejam este abaixo-assinado. Ao contrário do que acontece com a maioria dos economistas portugueses envolvidos no debate público, que ainda falam como se tivessem engolido uma cassete de introdução à microeconomia ortodoxa, um heterogéneo grupo de economistas norte-americanos – onde se incluem os Prémios Nobel da Economia Kenneth Arrow e Robert Solow – revela estar muito mais atento à realidade socioeconómica do seu país.

Este grupo considera que a aprovação do Employee Free Choice Act, uma das promessas de campanha de Obama, é «crucial para reconstruir a nossa economia e reforçar a nossa democracia». Este projecto visa facilitar e proteger a formação e actuação dos sindicatos nos EUA: «Entre 2000 e 2007 o rendimento mediano do agregado familiar em idade para trabalhar caiu 2000 dólares – um declínio sem precedentes. Neste período, a totalidade do crescimento foi para um pequeno número de americanos ricos. Uma razão importante para esta mudança (…) está na erosão da capacidade de formar sindicatos e de negociar colectivamente». Já aqui várias vezes se defendeu que este padrão está também na base da actual crise. E, como argumenta James Galbraith, as políticas de redução das desigualdades são boas políticas para combater a crise.

De acordo com um estudo de Peter Temin e Frank Levy do MIT, que também subscrevem o abaixo-assinado, o aumento das desigualdades deve-se fundamentalmente ao processo político de mudança das instituições que enquadram o mundo do trabalho: transformações regressivas na repartição de direitos e obrigações. Muitos economistas gostam de falar no combate à rigidez ou até, suprema das latas, em liberdade, quando querem justificar um aumento do poder patronal. Acusam os que se lhes opõem de desconhecimento de noções básica de economia, a tal cassete, ou de «patrulhamento ideológico». São os economistas da direita intransigente. A sua hegemonia explica uma parte do actual desastre.

Entretanto, nos EUA, a luta só agora começou. Dela depende, em última instância, a mudança institucional. Neste contexto, é bom saber que há muitos economistas que estão com o mundo do trabalho.

domingo, 8 de março de 2009

Proteccionismo ou colapso industrial?

A coisa está mesmo negra. Segundo o INE, a produção industrial caiu 19,1% em Janeiro face ao período homólogo do ano anterior. Se nada for feito, Renato Roque terá muitas catedrais do silêncio para fotografar. Convém lembrar isto:

Nas actuais circunstâncias nacionais, é necessário reconquistar alguma margem de manobra para evitar que a actual crise conduza a um brutal e irreversível processo de destruição industrial, aprofundando tendências económicas que vêm de uma inserção internacional mal gerida que se entregou cegamente às forças do mercado global sem procurar uma inserção favorável ao progresso tecnológico e produtivo do país. Como defendeu recentemente João Ferreira do Amaral, isto passa por encontrar, à escala da UE, «um sistema para possibilitar que os Estados com défices persistentes na balança de pagamentos possam aplicar medidas excepcionais, derrogando, se necessário e temporariamente, as leis da concorrência e das ajudas de Estado para poderem combater esse défice».

Portugal, ao contrário do que se passa, por exemplo, com o Reino Unido, não tem política cambial. A desvalorização da libra e a redescoberta da política industrial estão a contribuir para atenuar os efeitos da crise na indústria e para reorientar a economia britânica para este sector depois de décadas de insistência neoliberal na monocultura financeira. Para além da suspensão coordenada das «leis da concorrência» e do aumento significativo dos fundos de apoio às periferias europeias, vai ser necessário introduzir, de acordo com Jacques Sapir (ver posta anterior), uma nova tarifa comunitária para proteger o emprego.

Como afirma Sapir: «Digam o que disserem os governos, o retorno ao proteccionismo torna-se inevitável. Longe de ser um factor negativo ele poderia permitir a reconstrução do mercado interno sobre bases estáveis, com uma forte melhoria da solvência tanto das famílias como das empresas. É por isso que ele será um elemento importante de uma saída sustentável da crise actual e deve ser colocado o mais depressa possível no centro de um debate sem totens nem tabus». Questão de defesa do emprego, de combate às desigualdades e de reforço de regras ambientais e sociais. Quem deseja a continuação de uma corrida para o fundo acompanhada do colapso industrial?

sábado, 7 de março de 2009

Factos e argumentos contra a histeria liberal

O número deste mês do Le Monde diplomatique – edição portuguesa confronta a histeria liberal. Um excelente dossiê sobre o proteccionismo opõe boas razões aos mitos e ficções ainda dominantes. Destaque para dois notáveis artigos de Jacques Sapir, economista da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris: regresso do proteccionismo como solução e os mitos da Grande Depressão de 1929.

Um dos artigos mostra como o comércio livre foi responsável pela transferência sistemática dos custos da globalização para os assalariados - deflação salarial generalizada, aumento da precariedade, das doenças laborais e do sobrendividamento - e para o conjunto da sociedade - problemas ambientais crescentes, encargos cada vez mais regressivos para compensar o aligeiramento da carga fiscal que recai sobre as empresas e sobre os rendimentos do capital e desigualdades crescentes.

No centro da actual crise, argumenta Sapir, encontra-se a combinação letal de abertura comercial irrestrita com os desvarios da finança liberalizada. Uma das conclusões: «Aumentar os salários sem tocar no comércio livre é uma hipocrisia ou uma estupidez». Hei-de voltar a este importante artigo. Entretanto, relembro o que escrevi aqui sobre o custo fixo da globalização. No sítio do Mdiplo encontram dois inéditos sobre os múltiplos instrumentos ditos proteccionistas e sobre as medidas de protecção em curso. O proteccionismo abarca um conjunto muito flexível de políticas públicas.

Destaque ainda para o artigo de Sandra Monteiro, directora da edição portuguesa e co-autora dos Ladrões: «Algures entre a ocupação absoluta e a desocupação absoluta é elidido o tempo de descanso regular que devia contrapor-se ao tempo do trabalho e torná-lo possível; é suprimido o corte com o universo do trabalho, anulando um distanciamento que favoreceria que o trabalho fosse encarado como fonte de desenvolvimento pessoal; é abolida a oportunidade de se parar em boas condições, reflectindo criticamente sobre si mesmo e sobre a sociedade e usando essa reflexão para a transformação pessoal e social (...) Na verdade, se nos deixarmos interpelar pela questão do sentido, descobrimos que somos todos deste bairro. Na perspectiva mais favorável, estaremos também inseridos numa comunidade. Teremos vínculos sociais, profissionais e familiares, redes afectivas e espaços de sociabilidade. Seremos capazes de distinguir e de apreciar o tempo que dedicamos ao trabalho, ao lazer… e a não fazer nada. Talvez assim possamos tentar saber quem somos quando trabalhamos, e quem somos quando paramos. Pode ser a coisa mais difícil que já tentámos fazer, é certo. Mas o resultado pode ser uma sociedade mais humana».

sexta-feira, 6 de março de 2009

A dívida não é igual para todos

(...) O engajamento directo das famílias com o sistema financeiro dá origem a uma profunda assimetria de poder. Se por um lado as famílias que recorrem ao crédito fazem-no numa situação de necessidade, agudizada pela estagnação salarial e pelas desigualdades, por outro, elas não dispõem dos recursos financeiros e/ou informais de poder que lhes garantam uma relação favorável com a banca, como aconteceu recentemente com os escandalosos termos com que a Caixa Geral de Depósitos, banco público, lidou com Manuel Fino, a quem adquiriu acções da Cimpor a um preço 25% acima do seu valor de mercado. Acresce ainda que, enquanto que os bancos beneficiam da sua especialização na recolha de informação e construção de garantias para os seus créditos, a maioria da população sofre de crónica iliteracia financeira geradora de vulnerabilidade face à complexidade dos produtos financeiros disponíveis. A comparação entre os vários bancos torna-se quase impossível, guiada por medidas grosseiras, como o spread, que escondem uma miríade de condições e comissões. O resultado é uma relação de crédito abusiva, usurária, com fortes efeitos na redistribuição do rendimento, já que penaliza os mais pobres e desfavorecidos.(...)

A totalidade do texto pode lida aqui.

Simplex para uns, complicadex para outros?


Já experimentou estar doente, ir ao médico privado (por ser beneficiário da ADSE) e pedir um atestado médico para não ter falta e ser pago no emprego? Agora os atestados dos médicos têm de ser levados ao médico de família do Centro de Saúde e ele é quem tem de passar outro atestado. Deve ir pessoalmente, não pode pedir a ninguém para ir por si.

Havia médicos que passavam atestados falsos. Solução: agora temos de faltar mais uma manhã para ir ao Centro e Saúde onde está outro médico que supostamente não passa atestados falsos. O que é que mudou? Diminuiu em alguma coisa a probabilidade de serem passados atestados falsos (e verdadeiros), aumentaram os ‘custos de transacção’ dos atestados em geral. É provável que o número de baixas, fraudulentas e não fraudulentas, tenha diminuído. Entretanto, complicadex – a vida tornou-se mais difícil.

Agora é assim: desconfiança nas pessoas, complicadex para cima. Avaliação, papelada, controlo, duplo controlo, triplo controlo. Por outro lado, simplex: registe a empresa num minuto, faça contratos instantâneos torne expedito isto e aquilo, acelere. Para certas coisas a suposta propensão humana para a aldrabice já não conta.

Haveria que ver em mais detalhe o que está a ser tornado simplex e o que está ser feito complicadex? Haverá uma lógica na distribuição do simplex e do complicadex?

quinta-feira, 5 de março de 2009

Leituras muito para além dos mitos e histerias liberais

A obsessão com o equilíbrio orçamental já era. Portugal pagou um preço elevado por alguns terem confundido causas com consequências. Na realidade, uma posição orçamental mais confortável é consequência do crescimento e do pleno emprego e estes só se alcançam com défices que reestruturem as economias e as tirem da estagnação ou da recessão. Na UE, a política económica de relançamento tem de ser coordenada devido às profundas ligações económicas existentes entre as economias nacionais. A coordenação é difícil no quadro das actuais regras. Ben Bernanke, presidente da Reserva Federal, disse anteontem que «o défice é o preço a pagar pelo crescimento». Nem mais.

A ideia de que os direitos de propriedade privada são a única forma de controlo dos activos de uma economia também já era. Nacionalizar bancos é agora uma questão de bom senso. O último baluarte do consenso liberal em processo de esboroamento é assim a ficção do comércio livre. Daí a histeria liberal. O argumento dos três dogmas liberais abatidos e a abater é apresentado por Ha-Joon Chang, economista da Universidade de Cambridge muito citado neste blogue, num curto, mas instrutivo, artigo publicado na última Prospect.

Chang sintetiza a reinterpretação da história económica em curso e as principais ideias que têm orientado o assalto intelectual contra a ficção do comércio livre ainda dominante. Questão de pragmatismo na prescrição – todas as possibilidades que funcionam estão algures entre a abertura irrestrita e a autarcia – e de realismo na descrição e análise do que se passou e do que se está a passar no campo das políticas industriais e comerciais concretas: criar margem de manobra. Falta então demolir alguns mitos históricos. Um dos principais, assinala Chang, é o de que a depressão dos anos trinta foi de alguma forma causada ou simplesmente acentuada pelo proteccionismo. A reacção proteccionista nos EUA não constituiu uma ruptura assim tão grande com práticas passadas. As coisas são mais complicadas e não se prestam a simplismos liberais.

Discute-se agora muito a necessidade de redesenhar as fronteiras entre o Estado e os mercados. Howard Davies, director da London School of Economics, aborda este assunto no FT. Para isso é preciso perceber que é o Estado que institui os mercados e define as suas possíveis configurações. Só as abordagens da economia política institucionalista estão em condições de analisar estes processos e as variedades sistémicas que são assim geradas. Ha-Joon Chang mostra-nos como se faz em artigo que saiu no Cambridge Journal of Economics (uma versão está disponível aqui). Chang também desenvolveu bons argumentos a favor da um robusto sector empresarial do Estado num estudo para as Nações Unidas.

Já agora deixo aqui a completa recensão de Ricardo Paes Mamede ao último livro de Chang. A edição do livro que aqui se coloca é brasileira. Os editores portugueses andam muito distraídos.

De derrames percebo pouco

Concordo com a avaliação de Marina Costa Lobo. A excessiva personalização da política reflecte e, talvez até aprofunde, a falta de debate sobre o que importa. O PS transformou-se no Partido de Sócrates. Discordo de Marina Costa Lobo quando afirma que Vital Moreira (VM) é «a pessoa mais indicada da área de influência do PS para combater o derrame de votos à esquerda do partido». Eu não sou cientista político e de derrames percebo pouco, mas aposto que para os sectores que conhecem a sua intervenção pública, VM surge naturalmente como o mais competente ideólogo do Partido de Sócrates, ou seja, o ideólogo do fim da tradição socialista no PS. Muitos professores, por exemplo, lembrar-se-ão da forma como VM se referiu aos seus justos protestos. Sim, as questões ditas nacionais acabam por contar e muito. Facilita-se por isso a escolha a muitos socialistas que estão hoje à esquerda do Partido de Sócrates.

João Cravinho ou Ferro Rodrigues apagariam melhor os traços das políticas públicas de «mimetismo mercantil» dos últimos quatro anos. VM defendeu-as com denodado empenho. Isto para não falar nas suas acríticas posições europeias. Infelizmente, os assuntos ditos europeus contam pouco. São os custos da captura do projecto europeu por vanguardas iluminadas. A crise global e as falhas da UE, em conjunto com a qualidade dos candidatos à esquerda, onde se irá travar o debate que importa, podem fazer com que os cidadãos ganhem uma consciência mais aguda do que está em jogo. De qualquer forma, isto está tudo ligado e a distinção entre questões nacionais e europeias é já muito difícil de estabelecer na teoria e na prática políticas.