quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Perguntas vitais

«Em 30 anos, o SNS catapultou um país com números do terceiro mundo para indicadores de referência que nos colocam à frente de alguns países escandinavos. Em que área da economia, ciência ou investigação é que isso acontece? Mesmo no privado? Que empresa portuguesa é que pode dizer que está entre a elite mundial na sua área?». Pedro Sales, certeiro como poucos. Por isso é que tão importante manter e reforçar a provisão pública dos serviços de saúde. A experiência mostra que é possível, sem «mimetismos mercantis», alcançar ganhos de eficiência notáveis no serviço público. A estratégia em curso, de garantir financiamento público (embora se obrigue os utentes a desembolsar cada vez mais através de taxas moderadoras em constante expansão) e expandir a provisão privada, defendida por Vital Moreira e pelo governo «socialista», vai levar a prazo à destruição do SNS. As atribuladas experiências de gestão privada de hospitais públicos (são necessariamente complexos e opacos os desígnios destas engenharias mercantis) vão mostrando que não é assim que se garantem ganhos de eficiência e aumentos da qualidade do serviço. O que o governo está a fazer, na saúde como em outras áreas, é usar recursos que são de todos para dar músculo ao sector privado, reforçando o poder dos grupos económicos rentistas. Isto criará mais tarde as condições políticas para novas e mais ambiciosas vagas privatizadoras. Por isso é que este abaixo-assinado continua a ser tão importante.

O espectro de Keynes continua a perseguir a direita liberal


As várias direitas liberais da blogoesfera andam assustadas com a insurgência keynesiana em curso. Assustadas é o termo certo porque escasseiam argumentos. O curso da política monetária ou o pacote de estímulos fiscais, agora apoiados pelo FMI, sublinham aquilo que os que conhecem um pouco da história dos EUA já sabiam: o keynesianismo (na sua versão progressista do New Deal ou na sua envergonhada versão militarista e regressiva neoconservadora), assim como o proteccionismo, sempre foram usados quando foi preciso tirar a economia da crise e colocá-la numa trajectória de crescimento (lembram-se dos défices de Reagan? E da experiência monetarista de Volcker que durou apenas dois anos?). A ideologia reaccionária da futilidade, perversidade e risco (termos de Albert Hirschman) da política económica sempre foi para exportação ou para uso académico. Mas mesmo o domínio intelectual das concepções neoliberais, financiado pela generosidade capitalista (para uma próxima posta), está ameaçado. Quem tiver paciência pode ler a «comunicação presidencial» do Prémio Nobel George Akerlof ao encontro da American Economic Association de 2007: como uma abordagem mais realista ao comportamento dos agentes económicos ajuda a recuperar as principais ideias dos modelos keynesianos. Quem tiver lido a Teoria Geral no original, e não nas suas versões abastardadas de manual, sabe que há ali muita sabedoria sobre o comportamento dos agentes económicos, por exemplo, nos mercados financeiros. Muitos especuladores têm confirmado isto ao longo dos anos. Além disso, alguns dos desenvolvimentos recentes da finança comportamental corroboram-no. Keynes está de volta. Habituem-se.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

L'esprit du temps?

A reacção de Vital Moreira à resposta crítica da esquerda francesa, suportada por este contra-relatório redigido por economistas de esquerda, aos diagnósticos e propostas do relatório Atali de aprofundamento da liberalização da economia francesa apenas mostra duas coisas: (1) como o «socialismo moderno» vai perdendo todos os traços distintivos que o separavam da direita (a francesa tem Sócrates como modelo) a partir do momento em que aderiu à crença de que a concorrência mercantil é o alfa e ómega de toda a vida económica; (2) como os dois movimentos, cada vez mais convergentes até na retórica, levam alegremente a União para o famigerado modelo anglo-saxónico em crise. A única questão interessante é saber se esta deriva irá dar origem a uma recomposição do espaço político à esquerda. Esta é a tarefa em toda a Europa. A Alemanha aponta o caminho.

Zeitgeist?

O Partido da Esquerda (Die Linke) obteve um resultado histórico ao conseguir eleger deputados nas eleições regionais em dois estados na parte ocidental da Alemanha (5,1% em Hessen e 7,1 na Baixa Saxónia). É agora um partido com implantação nacional. Como assinalava, na semana passada, esta detalhada reportagem do sempre atento, embora também enviesado, Financial Times (o melhor barómetro daquilo que preocupa os defensores do status quo neoliberal), o crescimento da esquerda alemã é parte de um forte contra-movimento que está a contestar as crescentes desigualdades e a duradoura compressão dos salários. Diz-se que o SPD, cada vez mais pressionado à esquerda, teve de repudiar parcialmente a famigerada agenda 2010 que reduziu fortemente os direitos dos trabalhadores alemães e que, graças a essa viragem, conseguiu alcançar bons resultados. Aumento das despesas sociais e salário mínimo são alguns dos novos temas na agenda política. A seguir com atenção. Para ver se aprendemos alguma coisa. Para ver se a ala esquerda do PS - que oscila entre a excessiva discrição ou, como bem sublinha Daniel Oliveira, a inconsistência - aprende alguma coisa.

A história repete-se?

A ideia de que a evolução do sistema capitalista é marcada pela sucessão de ciclos longos, caracterizados pela alteração de ritmos de crescimento que duram várias décadas, faz parte de uma tradição da ciência económica que tem pouco lugar nos curricula académicos dos dias de hoje. E, no entanto, apesar das muitas polémicas - ou precisamente por causa delas - é um tema que está longe de ter esgotado o seu interesse e o seu potencial de interpretação do mundo em que vivemos.

Na tradição de Schumpeter (um nome demasiado citado por gente que nunca o leu), Carlota Perez publicou em 2002 um livro intitulado Technological Revolutions and Financial Capital: The Dynamics of Bubbles and Golden Ages, onde procura relacionar as grandes alterações tecnológicas e os comportamentos dos mercados financeiros.

A tese de Perez consiste, essencialmente, na noção de que os colapsos financeiros estão associados a uma sequência de fases de desenvolvimento que se iniciam com a introdução de constelações de novas tecnologias e novos materiais, que transformam radicalmente o funcionamento da economia e de toda a sociedade (vapor, caminhos-de-ferro, aço, electricidade, motor de combustão, petróleo, matérias sintéticas, microprocessadores, ...).

Quando tais constelações de inovações radicais surgem, poucos dão conta da sua presença e do seu potencial. A maioria do sistema económico continua a produzir como dantes e são poucos os investimentos atraídos para o desenvolvimento dos novos domínios. Mas à medida que as novas tecnologias se aperfeiçoam, que diminui o seu preço, que são adoptadas por alguns sectores pioneiros e que dão origem a negócios de sucesso, todas as atenções se viram para elas.

E do desdém, a pouco e pouco, nasce a euforia: muitos querem ser os Bill Gates da próxima geração, ainda mais são os que começam a apostar nas acções da próxima Google. Em breve, a especulação atinge proporções nunca vistas e o preço dos activos financeiros distancia-se cada vez mais dos lucros da esfera real da economia. A acumulação de riqueza na esfera financeira gera não só mais instabilidade, mas também uma pressão crescente sobre a esfera produtiva - exigindo-se lucros impraticáveis a todo o custo (o que, tipicamente, inclui despedimentos em massa, adiamento de investimentos com retornos de longo prazo, práticas fraudulentas, etc.). Com os especuladores habituados aos elevados lucros proporcionados pelas apostas certeiras nas tecnologias vencedoras, a espiral do casino não pára, alargando-se as apostas ao preço futuro das casas, das obras de arte, das matérias-primas e de tudo o que for passível de especulação. O resultado é sempre o mesmo (foi assim em 1797, em 1847, em 1893, em 1929, em 2000, ...) - o colapso das bolhas especulativas e as crises financeiras (concentradas num só grande evento - como em 1929 - ou dispersas numa sucessão de episódios - 1987, 1992, 1997, 1998, 2000, 2007, ...), que destroem em poucas horas poupanças de vidas inteiras e produzem efeitos recessivos sobre as economias reais (com aumento do desemprego e da incerteza).

A história mostra que estes períodos de crise são momentos de viragem. As tensões estruturais (desigualdade, instabilidade, incerteza, desemprego) tornam-se insustentáveis, levando o próprio sistema a sentir necessidade de repor as condições político-institucionais para o crescimento económico. O resultado deste processo é essencialmente indeterminado: a forma como as tensões são resolvidas (ou pelo menos atenuadas), e o tempo que demoram a sê-lo, dependerão dos interesses em jogo, da lucidez dos principais actores envolvidos, do seu poder relativo, bem como da eficácia das forças sociais relevantes. A mesma crise pode estar na origem de uma Alemanha hitleriana ou de um ‘New Deal’ americano. Em suma, a história repete-se, mas estranhamente nunca sabemos o fim da mesma.

Se tivesse de apostar, alinharia com Michel Husson (ver este post do João) e diria que o tempo das crises está para durar - por muito que as soluções para as evitar estejam à vista de toda a gente.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Ecos da mini-remodelação (4): a questão

«A grande questão que está colocada, mais do que responsabilidades particulares, estilos próprios, é se o primeiro-ministro vai alterar, se o Governo vai alterar a politica de saúde que tem provocado tanto descontentamento, tanta revolta por parte das populações atingidas no seu direito fundamental à saúde», disse ontem o secretário-geral do PC, Jerónimo de Sousa.

Ecos da mini-remodelação (3): é preciso ter lata

«Circunstâncias diversas complexas, mas cumulativas, estão a minar a relação de confiança que deve existir entre os cidadãos e o Serviço Nacional de Saúde (SNS), instituição ao meu cargo, e um dos mais válidos instrumentos de equidade social criados após o 25 de Abril», queixou-se António Correia de Campos na sua carta de demissão.

Ecos da mini-remodelação (2): então podemos estar descansados

«Para além do português, o novo ministro [da Cultura] fala alemão, inglês, francês, espanhol e italiano e é Grande Cavaleiro da Ordem da Liberdade», lê-se no site da TSF.

Ecos da mini-remodelação (1): Diz-me com quem andas...

O novo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Carlos Lobo, foi consultor da Zona Franca da Madeira.

Os preços dos imóveis continuam a cair nos EUA


Talking Heads, "Burning Down the House".

A desigualdade mata II

Graças ao maradona, este post originou algumas reacções na blogoesfera ultraliberal. São eloquentes q.b. Esta e esta são de leitura obrigatória. Nenhuma aborda a questão levantada pelo gráfico: o aumento da desigualdade nos EUA durante os últimos trinta anos reflectiu-se num aumento da diferença na esperança média de vida entre ricos e pobres. Paulo Pinto Mascarenhas, ignorando também o problema da desigualdade, desafia-nos a apresentar um gráfico que compare o aumento da esperança de vida entre a «Europa social» e os EUA. Aqui vai. Escolhi os quatro países mais populosos da Europa Ocidental. Só a Itália fica atrás dos EUA.

Dados OCDE

Devo confessar que este tipo de comparação serve de pouco. Tem razão Miguel Madeira quando levanta o problema de ser difícil a comparação de países com pontos de partida diferentes. Ainda assim, a minha escolha parece ser razoavelmente honesta. Mais relevante nesta discussão é este artigo do catalão Vincent Navarro (o maradona que lhe perdoe o demagogo e desavergonhado título). Ficamos a saber que diferença de esperança média de vida entre os muito ricos e os muito pobres é de 7 anos na União Europeia (a 15), duplicando para 14 anos no caso dos EUA. O artigo explica muito bem como a desigualdade produz o fosso na esperança média de vida. Obrigatório.

FMI?

Durante duas décadas as políticas do Fundo Monetário Internacional consistiram na aplicação intransigente da última tralha ideológica que passava por macroeconomia ortodoxa por esse mundo fora. Cortes nas despesas e liberalização que o «mercado» faz o resto. Com os resultados catastróficos habituais. Keynes, que imaginou o FMI como pilar de uma ordem económica mundial progressiva, dava voltas na campa. Agora a crise já não é na periferia ou na semi-periferia, mas atinge o centro da economia mundial. Aqui a ortodoxia fica mesmo nos departamentos de economia. O FMI veio agora repudiar décadas de pacotes de «estabilização» ao dar o seu aval à política de vigorosos estímulos fiscais proposta para a economia norte-americana. Estamos muito longe da ideia neoliberal de que «a melhor política económica é ausência de política económica».

Sobre isto vale a pena ler este artigo de opinião no Jornal de Negócios.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Mirandismos em crise


Os liberais intransigentes têm muito que explicar. Afinal de contas a crise vem pôr em causa as suas crenças mais profundas. Começou o trabalho para salvar a fé. Duas estratégias insustentáveis, bem visíveis nesta posta de João Miranda no blasfémias reconstruído: (1) culpar o poder político (a Reserva Federal); (2) declarar que a crise financeira é inevitável e natural como as estações. A segunda estratégia só pode ser mantida graças ao desconhecimento da história económica. Compare-se o período que vai dos anos quarenta aos anos setenta, caracterizado por controlos de capitais, forte presença pública na banca e regulamentação apertada, e o período de reforma financeira neoliberal, a partir dos anos setenta, e tira-se uma conclusão que tantos estudos sublinham: no primeiro período houve muito menos crises financeiras. Mais: a Índia e a China, por exemplo, puderam evitá-las no segundo período, ao contrário de muitos países em desenvolvimento, porque, apesar de tudo, mantiveram um sistema financeiro e cambial que está muito longe das prescrições dos «fundamentalistas de mercado». A primeira estratégia obscurece as responsabilidades de um sistema financeiro crescentemente liberalizado. Sublinhar apenas que os cortes de taxas de juro que a Reserva teve de efectuar nos primeiros anos do milénio se destinaram a evitar mais uma aguda crise de mercado. Depois é preciso assinalar que a criação de moeda é também um processo endógeno à finança, relacionado com as operações dos bancos nas suas inovadoras actividades de concessão de crédito e com a existência de abundante liquidez na economia mundial em busca de valorização (a Reserva tem limitada influência sobre estes processos). Além disso, estes processos de mercado sempre mereceram o aplauso de Greenspan e Bernanke (economistas com fortes influências dos libertários de direita) e dos neoliberais de todos os partidos. Esta crise é interna ao mercado e mostra as suas limitações. De qualquer forma, quem confia tanto na omnisciência dos agentes de mercado tem de explicar como é que os operadores privados foram «enganados» pelo poder político e participaram em movimentos de «sobre-investimento» (João Miranda) e em processos especulativos que se revelaram tão insustentáveis, perigosos e opacos. Há tanta coisa para rever.

A economia tem de ser de esquerda II

A esquerda que não se acomodou sabe que o mercado, independentemente da forma como está estruturado, é um mecanismo profundamente incompleto e com inúmeras falhas. Não se trata de o abolir. Tal não só não é possível, pelo menos não em sociedades com uma intensa e complexa divisão social do trabalho, como nem sequer é desejável. Trata-se antes de definir politicamente as suas fronteiras sempre contestadas e as regras que quem nele opera tem de aceitar. Hoje, por exemplo, é claro que a liberdade excessiva da finança de mercado impõe fardos e obrigações indesejáveis ao conjunto da comunidade. Assim, é preciso aumentar as obrigações da finança para que a nossa liberdade possa aumentar. É o que faz, por exemplo, esta proposta sensata. Mais propostas destas serão necessárias. Traçar linhas entre instituições e redefinir politicamente quem tem direitos e quem tem obrigações. No fundo, toda a economia é política porque toda a economia é um sistema de interdependências que têm de ser geridas.

domingo, 27 de janeiro de 2008

A economia tem de ser de esquerda

O esquerda.net tem vindo paulatinamente a afirmar-se como um dos melhores sítios de informação e análise à esquerda. Este excelente dossier sobre a crise financeira mostra isso mesmo: uma boa combinação de artigos informativos e propositivos, com abertura e pluralismo. Afinal de contas as tradições económicas à esquerda - tributárias de Marx ou de Keynes - exibem muitos pontos em comum que devem ser hoje particularmente sublinhados. Leia-se este artigo do excelente economista marxista Michel Husson: «Para sair suavemente da situação actual será necessário de facto que as principais economias se reorientem para a procura salarial, o que suporia uma repartição dos rendimentos mais favorável aos assalariados. Mas os capitalistas dispõem, graças à mundialização, de uma relação de forças de tal forma favorável que não têm nenhuma razão para enveredar espontaneamente por esta via».

As propostas keynesianas do Prémio Nobel Joseph Stiglitz ganham agora uma nova urgência: «Devíamos começar por reforçar o sistema de seguro-desemprego, porque o dinheiro recebido pelos desempregados será gasto imediatamente (. . .) A assistência federal deveria vir na forma de apoios à reconstrução das infra-estruturas mais importantes. Mais apoio federal para os orçamentos de educação dos estados também reforçaria a economia no curto prazo e promoveria o crescimento no longo prazo. O mesmo acontece com os gastos na promoção da conservação de energia e da redução de emissões [de carbono]».

Em comum a defesa de que o «capitalismo purificado» não tem como sair espontaneamente da crise, resultado dos seus desenvolvimentos internos, sem causar devastação económica e sofrimento social evitáveis e assimetricamente distribuídos.

Estímulos igualitários

Barbara Ehrenreich é uma das jornalistas mais atentas à fracturada sociedade norte-americana. Em artigo na The Nation escrutina os «estímulos» que estão agora a ser propostos. Em momentos de crise faz todo o sentido canalizar apoios públicos para os mais pobres que exibem uma maior «propensão ao consumo» capaz assim de sustentar a procura em queda. A prova de que estratégias igualitárias fazem todo o sentido económico. No entanto, a autora defende que é imperioso não ficar por aqui e enfatizar a dimensão moral das imensas necessidades humanas não satisfeitas numa sociedade capitalista tão desigual. A crise deve abrir a possibilidade para se discutir de novo o crescente divórcio entre mercados em expansão, capazes de reconhecer apenas preferências individuais suportadas por dinheiro e as necessidades não satisfeitas dos sectores mais pobres. É preciso mudar de modelo económico e repensar as linhas que separam aquilo que deve ser provisionado pela comunidade política e assegurado a cada membro e o que pode ser deixado às forças do mercado.

sábado, 26 de janeiro de 2008

A desigualdade mata

Um estudo do Economic Policy Institute mostra como o aumento da esperança média de vida nos EUA beneficiou sobretudo os mais ricos. A diferença na esperança de vida entre a metade da população mais pobre e a mais rica passou de 1 ano em 1972 para 6 anos em 2001!

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

A esquerda do lado da oferta repensa as prioridades?

A esquerda do equilíbrio orçamental como fim último da política económica e das transformações mercantis da provisão pública parece que está a começar a revisitar os méritos da instituição de reformas estruturais (ainda que tímidas) que encurtam a rédea da finança capitalista e de intervenções conjunturais que reabilitam a política económica keynesiana. Talvez a crise possa afinal reverter o plano inclinado do «socialismo moderno». Optimismo da vontade.

Mega fraude na société Générale

Jérôme Kerviel é o nome de que se fala em França. Este homem, funcionário de um dos maiores bancos franceses, a Société Générale, cometeu uma fraude de tal forma astronómica que obrigou já os responsáveis da instituição financeira a anunciarem um aumento de capital de 5,5 mil milhões de euros. Em comparação com Kerviel, Nick Leeson, que deixou na bancarrota o Barings Bank, é um aprendiz.
A fraude foi cometida através de actividades de cobertura de futuros sobre índices bolsistas. Perante a queda vertiginosa dos mercados, este homem de 30 anos não conseguiu disfarçar por mais tempo as perdas. A grande questão agora é perceber o que o levou a cometer esta fraude porque segundo diz o banco o seu empregado pouco ou nada ganhou com o assunto.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Certificados de aforro: mais um frete à banca?

É a última grande novidade deste governo: a emissão de uma nova série de certificados de aforro, que acaba com o poder atractivo destes produtos de poupança face à concorrência privada. Na nova série (C), a taxa de remuneração base continua indexada à Euribor mas vai ser mais baixa logo que os juros comecem a cair (devido à nova fórmula de cálculo); e o prémio de permanência (que era a grande vantagem dos certificados) é completamente revisto, não só alargando-se o prazo necessário para atingir a taxa máxima (de quatro para nove anos), como impedindo que o aforrador possa manter essa taxa máxima por mais do que um ano.
Por outro lado, relativamente aos certificados actuais, que as pessoas (na maioria idosos) já subscreveram, o Governo também não se coibiu de reduzir a taxa de remuneração, violando os direitos adquiridos pelos aforradores que, quando compraram certificados, fizeram-no com base num conjunto de condições. Há muito tempo que se diz que as actuais condições remuneratórias dos certificados de aforro eram demasiado vantajosas, saindo muito caro aos cofres do Estado. Até pode ser verdade. Mas também é verdade que quem beneficia directamente com esta descaracterização dos certificados são os bancos e outras instituições financeiras que comercializam produtos semelhantes (até o nome é igual em alguns casos) e que a partir de agora passam a ser mais rentáveis do que os do Estado.

Sócrates fez tudo o que pôde mas não conseguiu a recessão

O mesmo organizador da conferência The Economist realizada esta semana (ver poste anterior) diz ainda outra grande verdade que só não vê quem não quer. O musculado programa de consolidação orçamental, imposto pelo pacto de estabilidade e crescimento, que o Governo português adoptou tem pesados custos no desempenho económico. Em entrevista ao Jornal de Negócios, Nenad Pacek diz que José Sócrates tem razões para estar satisfeito. Porquê? Porque "quando se tenta reduzir o défice orçamental na magnitude conseguida pelo Governo português, normalmente não se consegue escapar a uma recessão. E o Governo português conseguiu-o. O crescimento foi muito moderado, é verdade, mas tendo em conta as circunstâncias trata-se de um êxito considerável". Agora, imaginem como teria sido se a Europa e Portugal não seguissem a cartilha liberal do pacto de estabilidade.

O plano B da The Economist para Portugal

Portugal deve ter um plano B caso a sua economia seja contaminada pela crise económica dos Estados Unidos e na União Europeia mesmo que isso implique mandar a a consolidação orçamental para as urtigas. Basicamente é isto que Nenad Pacek, o organizador da conferência a "The Economist" que se realizou esta semana em Portugal. "Se houver um abrandamento profundo da economia, talvez seja sensato prever nesse 'plano B' um acréscimo temporário de gastos públicos e de estímulos orçamentais".
O homem não tem medo das palavras e diz mais à frente, em entrevista ao Jornal de Negócios: "Se a conjuntura se deteriorar fortemente, e esse é um cenário que não pode ser descartado, o único instrumento que o Governo tem em mãos é a política orçamental e fiscal". Pacek dá como exemplo a redução de impostos e o lançamento de um "programa de obras públicas para manter a procura dinâmica". E finalmente, chega à blasfémia: "Não veria nada de errado se, por exemplo, o Governo em 2008, por causa da conjuntura externa, decidisse esquecer o limite [do défice orçamental] de 3% [do PIB] e o deixasse chegar aos 4%, desde que se tratasse de uma medida temporária".
Perante a perplexidade da jornalista, Nenad Pacek recorda que "esta é uma resposta normal em tempos de crise". A jornalista acrescenta que "é a velha receita keynesiana" ao que o economista pivot da conferência The Economist responde com naturalidade: "sim, e é uma boa receita. Os Estados Unidos estão a tentar fazer o mesmo". Se fosse um português a dizê-lo (como os ladrões têm feito aqui exaustivamente) punham-lhe o carimbo de "esquerdista e radical irresponsável" e ninguém o levava a sério. Mas assim pode ser que alguém dê ouvidos a este sensato conselho.

A especulação é a juventude do mundo

Aparentemente agora até um jovem e modesto corretor, para quem o «futuro são os próximos dez minutos», pode causar estragos de cinco mil milhões de euros. São insondáveis os caminhos da finança de mercado.

Davos farpado

O fórum económico mundial de Davos é um dos lugares privilegiados de encontro do que Philip Mirowski chamou recentemente o «colectivo intelectual neoliberal». Intelectuais públicos, homens de negócio privados, cujas actividades têm óbvio impacto público, e dirigentes políticos de todas as escalas socializam protegidos por arame farpado. Alguns artistas bem intencionados desempenham o habitual papel do idiota útil. São as redes sociais que lubrificam os mercados e que vão corroendo a separação público/privado de que o liberalismo fazia gala. Henry Mintzberg, um guru da gestão, resumiu bem a coisa: «Davos, onde as pessoas que passaram 51 semanas a criar os nossos problemas tiram uma semana de folga para tentar resolvê-los» (Financial Times). Só discordo da última parte: «para tentar resolvê-los».

Aprender com os especuladores

George Soros é um dos mais conhecidos especuladores, agora transformado em filantropo e crítico do «fundamentalismo de mercado», ou seja, crítico da crença de que os mercados tendem para o equilíbrio se dermos rédea solta aos impulsos egoístas dos indivíduos. Hoje, o Público tem um artigo escrito por si que vale a pena ler (aqui está uma versão em inglês já que a tradução não só não está disponível como é péssima). Soros diz que estamos perante a crise «mais grave dos últimos sessenta anos». Sublinho os seguintes pontos: (1) a importância da ideia keynesiana da «reflectividade» (sim, não é ele o autor da ideia) para explicar as dinâmicas desestablizadoras dos mercados financeiros alimentados a crédito o que origina, em contexto de incerteza inevitável sobre o valor fundamental dos activos, uma interacção perversa, e que se alimenta mutuamente, entre a valorização dos activos e a disponibilidade de crédito; (2) esta interacção alimenta inovações financeiras que prolongam o ciclo de crédito e que aumentam a fragilidade financeira do sistema e a sua opacidade; (3) a desregulamentação e a liberalização financeiras geraram um incremento da especulação (de que Soros muito beneficiou diga-se), ou seja, aumentaram os canais para o comportamento que consiste em deter activos com o único objectivo de os revender mais tarde; (3) neste contexto as possibilidades da política monetária sustentar os mercados estão muito diminuídas e esta pode até ter efeitos perversos. Fundamentalismo de mercado e desregulamentação. As causas profundas dos desequilíbrios profundos na economia global. Se a política económica não tiver em conta estes dois elementos servirá para muito pouco. Reduza-se a taxa de juro, use-se o défice e, ao mesmo tempo, ataque-se o problema de fundo e as suas causas estruturais: a hegemonia da finança de mercado, os padrões de distribuição gerados e a ideologia que os legitima.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

A economia da turbulência

A importância dos mercados financeiros é de tal ordem que as causas da recente crise parecem estar neles encerradas. No entanto, se é certo que estes hiperbolizam os efeitos das fases ascendentes e descendentes da economia real, é nesta última que devemos encontrar as respostas para a crise. Robert Brenner é dos poucos a arriscar uma explicação para a euforia financeira das duas últimas décadas e para a consequente multiplicação das crises financeiras. Autor em 1998 de um número especial da New Left Review dedicado à história económica do pós-guerra, Brenner foi considerado, pelos editores da revista (algo exageradamente diga-se), como o herdeiro do trabalho iniciado por Marx no século XIX.

Para este autor, a economia mundial sofre, desde os anos setenta, de excesso de capacidade produtiva, reflectida em menores taxas de lucro médio da indústria e nas fracas taxas de crescimento económico e investimento dos últimos trinta anos nas principais economias mundiais (EUA, Japão, Alemanha) quando comparados com as décadas «gloriosas» de crescimento que se seguiram à 2º Guerra Mundial. Nos anos oitenta a resposta a este problema tomou duas direcções diferentes. Por um lado, verificou-se uma enorme ofensiva contra os direitos dos trabalhadores (aumento do desemprego e estagnação salarial) de forma a desequilibrar a repartição do rendimento entre capital e trabalho, favorecendo o primeiro. Por outro lado, como estimulo à actividade económica, os Estados contraíram enormes quantidades de dívida pública neste período. Uma tendência revertida nos anos noventa quando os défices públicos foram sendo substituídos por défices dos agentes privados impulsionados por preços especulativos de determinados activos - primeiro das acções «tecnológicas», mais recentemente dos activos imobiliários.

Contudo, estes estímulos não resolveram os problemas de excesso de capacidade produtiva. A sobreacumulação de capital não só persiste como foi agravada. As taxas de lucro continuam longe dos níveis dos anos cinquenta e sessenta. Assim, quando as bolhas especulativas implodem os problemas estruturais da economia mundial emergem com mais força. É muito cedo para afirmar se esta crise financeira é o fim da economia especulativa sob o domínio da finança que manteve a economia mundial à tona durante as últimas décadas, mas, se o diagnóstico de Brenner for correcto, devemos esperar que a gravidade e frequência destas crises aumente.

Deixo duas referências ao trabalho de Brenner: The Economics of Global Turbulence (o tal número especial da New Left revisto e editado em livro) e o The Boom and Bubble (sobre o resurgimento económico dos EUA durante os anos noventa). Este artigo analisa a actual crise.

Reformas

As actuais reformas do sistema de pensões em Portugal aguçou o interesse da banca e das seguradoras neste importante mercado onde esperam substituir a Segurança Social. Primeiro foi o BES a avisar para a redução futura das pensões e propor o seu complemento de reforma. Agora é a vez da AXA, uma das grandes seguradoras mundiais, a vincar como a reforma média dos portugueses está 109 euros abaixo do que precisam para as suas despesas básicas.
Onde o Estado desaparece, o mercado emerge...mas só para quem pode.

Teixeira dos Santos ou o ‘optimismo balofo e gratuito’


Andava o governo português todo pimpão a dar ares que contava para alguma coisa na «Europa» e agora os governos dos países que realmente contam - Itália, Alemanha, França e Reino Unido - reúnem-se a sós para discutir a crise financeira e os ventos nefastos oriundos do capitalismo norte-americano que a União até agora tem aceite com tanto prazer que até lhes vai abrir ainda mais a janela em Tratado. De Lisboa. Teixeira dos Santos mostrou o seu desagrado. Concordo inteiramente. Mas reparem: que contributo pode o actual governo português dar? Apelar ao cumprimento da «meta» do défice orçamental? Dizer, como Teixeira dos Santos, que a «análise objectiva» da situação concreta indica que não há problema e que tudo se resolverá no melhor dos mundos, «bastando» para isso que os «desequilíbrios» na economia norte-americana se corrijam? Automaticamente? Como que por uma mão invisível? Não sei. Só sei que a ideologia do controlo do défice como objectivo último da política económica vai ter que sofrer um grande abanão. Estas reuniões mostram acima de tudo como a actual arquitectura do «governo económico» da UE e as suas opções de política económica são um obstáculo a uma resposta adequada à crise que aí vem e que, na realidade, nunca chegou a abandonar Portugal. O BCE entretanto parece que vai acordar. Um dia. Vai ser uma grande viragem. E muitas mais serão necessárias. A crise tende a corroer as ortodoxias que lhe preparam o terreno. Ainda bem. Porque há alternativa.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

'A catástrofe eminente e os meios de a conjurar'


Os sinais de recessão avolumam-se e o «pânico» generaliza-se entre os especuladores. A crise financeira, que marca o fim de um longo período de euforia, está associada à ruptura das convenções que tinham sustentado as dinâmicas colectivas de crescimento dos preços dos activos que agora se revelam insustentáveis. Isto faz com que, na ausência de referências que polarizem a suas expectativas, os agentes entrem num período de desconfiança absoluta em relação à pertinência das dinâmicas financeiras anteriores e com que surjam, de novo, as lógicas autoreferenciais e miméticas típicas dos mercados financeiros. Só que agora num sentido descendente. Numa situação de ruptura da convenções, em que as forças da desconfiança emergem, o comportamento mais «razoável» é procurar «sair» do mercado o mais rapidamente possível, o que se traduz na generalização da chamada «fuga para a qualidade», isto é numa fuga para activos que são considerados absolutamente seguros. Aqui entram os títulos da dívida pública, «a espinha dorsal dos mercados financeiros», segundo o FMI. Aqui entra a Reserva Federal (Ben Bernanke é supostamente um dos mais reputados investigadores da «grande depressão») que com um corte abrupto e inesperado das taxas de juro procura criar novos «pontos focais» que evitem a emergência da crise aguda como nova convenção do «mercado». Paradoxalmente pode ter o efeito contrário no curto prazo. Já imaginaram o que aconteceria se não existisse dívida pública ou o que, o agora famoso, Hyman Minsky chamou «Big Government» e «Big Bank»? Temo é que não sejam grandes o suficiente. . .

Nota. Abram a Teoria Geral de Keynes no capítulo 12. Acho que está lá o essencial sobre a «psicologia» dos mercados financeiros e algumas boas ideias para começar a tornar, a prazo, o destino das economias menos dependente das suas alternâncias de euforia e pânico: «A criação de um elevado imposto sobre as transferências para todas as transacções talvez fosse a mais salutar das medidas capazes de atenuar, nos Estados Unidos, o predomínio da especulação sobre a empresa».

Regulação e a palavra «suja» começada por N

A conversão do «novo trabalhismo» às virtudes de uma paisagem económica marcada pelo domínio da finança de mercado, assente na poderosa City londrina, foi um dos mais mais eloquentes símbolos da extensão da vitória neoliberal nos anos noventa. Antes da actual crise, a regulação «ligeira» e um regime fiscal favorável faziam as delícias dos especuladores que afluíam para Londres aos magotes. O governo britânico «explicava» pacientemente ao resto da União Europeia e do mundo as virtudes deste sistema e bloqueava quaisquer veleidades regulatórias ou fiscais harmonizadoras. «Socialismo moderno» no seu melhor. Os neoliberais de todos os partidos aplaudiam o dinamismo da «economia» e viam as crescentes desigualdades como um preço a pagar ou como uma virtude a nutrir. As dinâmicas concorrenciais entre espaços nacionais pareciam ir acentuando o plano inclinado. E depois veio a crise e a comprometedora corrida ao Northern Rock a revelarem aos mais desatentos ou esquecidos o que acontece quando a finança anda demasiado solta e a «especulação» leva a melhor sobre a «empresa» (Keynes). Agora vem o tempo de revisão das crenças. Fala-se com mais intensidade de uma agência europeia de regulação. De maior controlo da finança. O «modelo britânico» começa a ser olhado com suspeição. O «novo trabalhismo», no entanto, permanece tão obcecado em livrar-se de qualquer traço socialista que a solução mais óbvia para o problema do Northern Rock - a nacionalização - é substituída por uma confusa ajuda pública aos investidores privados - «nacionalização sem os seus benefícios» (Financial Times).

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Escapismo musical...



"Vampire Weekend", o grupo do momento.

Universal e Gratuito

Na ânsia de reestruturar e racionalizar recursos, o actual ministro da Saúde (que no hiato das suas funções governativas foi funcionário do Grupo Mello-Saúde) não só colocou populações inteiras em desespero, como, pouco a pouco, vai transformando o nosso serviço nacional de saúde num caos. Entre o aumento das taxas moderadoras, o encerramento de urgências e consequente entupimento de hospitais - caso de Santa Maria da Feira - e as condições degradantes endémicas de certos serviços - caso do Hospital de Faro, cujos problemas o Ministro atribuiu hoje à «sazonalidade» - o acesso a cuidados de saúde públicos em Portugal tornou-se cada vez mais difícil.

O resultado é o lento asfixiamento do serviço nacional de saúde público, universal e gratuito. Quem pode pagar passa a recorrer a cuidados privados; quem não pode recorre a um medíocre sistema assistencialista de saúde. O mercado ocupa o lugar deixado vago. E, depois, já sabemos, devido à aberrante assimetria de poder presente neste mercado, caminhamos a passos largos para um sistema ineficiente «à americana», onde elevados gastos não têm qualquer correspondência na qualidade de cobertura dos serviços de saúde. A única forma de preservar o SNS é, pois, garantindo um serviço de qualidade, de fácil acesso, em que todos, ricos e pobres, sintam confiança.

Não foi por acaso que surgiu esta onda de contestação ao ministro da saúde. As populações, sobretudo aquelas que assistem há anos a um progressivo desaparecimento de serviços públicos, não estão dispostas a perderem o bem público que mais valorizam. Esta petição, sucinta quanto baste, é uma boa forma de mostrarmos como esta é uma luta de todos nós.

Recessão

A extensão e implicações da presente crise financeira estão longe de ser totalmente conhecidas. As bolsas europeias estão hoje a cair abruptamente. Ainda não é um crash, mas esperemos para ver como "acordam" os norte-americanos. Uma coisa é certa, esta depressão dos preços das acções reflecte a previsível estagnação (recessão?) da economia mundial. Por cá, as expectativas do governo quanto a uma recuperação da economia portuguesa graças à procura externa confirmam-se irrealistas.

domingo, 20 de janeiro de 2008

Ironias da história económica

O «complexo Wall-Street-Tesouro» dos EUA, directamente, ou por intermédio do FMI e do Banco Mundial, tudo fez para que os países em vias de desenvolvimento aderissem ao malfadado «consenso de Washington». Isto foi nos anos oitenta e noventa, o período dourado do neoliberalismo. As privatizações maciças, e tantas vezes desastrosas, eram um dos principais pilares de um consenso que entretanto se esboroou. Felizmente nem todos os governos seguiram essa receita e muitos dos que a seguiram já a ultrapassaram. Aprenderam com as crises económicas recorrentes. E agora, como já aqui o Nuno Teles tinha notado, estamos perante uma dessas deliciosas ironias da história económica: são os governos dos países emergentes que utilizam as suas colossais reservas para, através de fundos de investimento detidos pelo Estado, «salvar» os colossos financeiros privados de Wall-Street. Estes fundos estão a crescer (embora o seu peso seja ainda diminuto) e as suas justificações são variadas: desde puras estratégias de rentabilização de activos até instrumentos da reabilitada política industrial. Sobre os «fundos soberanos» e o emergente «capitalismo de Estado» vale a pena ler agora o excelente artigo de Andrew Leonard (via blogoexisto) e a sempre atenta, e quando a crise aperta pragmática, The Economist.

sábado, 19 de janeiro de 2008

Quando é que a União Europeia aprende?

Aprofunda-se a crise económica nos EUA. As coisas estão mesmo negras. O poder político, em despero de causa, faz o que pode neste contexto: mobiliza, com a autonomia que caracteriza a potência hegemónica, os instrumentos de política económica. A Reserva Federal corta decididamente as taxas de juro e agora, no seguimento de várias propostas focadas na promoção da procura, anuncia-se um «estimulo fiscal» temporário de 140 mil milhões de dólares. Os EUA são assim: quando a crise do modelo neoliberal aperta, as receitas ortodoxas de política económica são mesmo só para os outros. Mais uma vez: quando é que a UE aprende? É que não se não é keynesiano quem quer, mas sim quem pode, a Europa pode, mas não quer. Até quando?

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Um caso interessante

Portugal é um caso interessante: numa época de instabilidade financeira, o nosso país foi dos poucos que não passou por uma crise bancária digna desse nome. Tem razão Saboteur quando diz que a «prova final de que Vítor Constâncio fez um bom trabalho, fazendo aquilo que a banca e o capital financeiro esperam que ele faça, é o facto de não ter havido nenhuma corrida ao BCP, apesar de se ter descoberto e tornado público que o Banco viveu os últimos anos de esquemas pouco claros». A presença pública forte na banca terá ajudado a esta estabilidade sistémica. Está tudo bem? Não. É preciso que o Banco de Portugal exerça muito maior vigilância sobretudo agora que a turbulência alastra. Isto é questão de regras. Mas também de atitude: a complacência é filha da ideologia da bondade ilimitada da iniciativa privada. Isto tem de ser superado. Mais «idoneidade» também ajudaria no sector privado, assim como no público. Mas esta não se decreta. E dificilmente se cultiva quando, para falar como se fosse economista ortodoxo, os incentivos existentes tornam o seu «preço» muito elevado e são muitas as oportunidades para comportamentos pouco virtuosos. Mas claro que neste campo, e por muitos grandes que sejam os constrangimentos, há acções individuais que podem fazer a diferença: afinal de contas alguém decidiu denunciar o que se passava no BCP. É mesmo difícil de perceber a relação entre o comportamento, virtuoso ou não, e as «regras do jogo». No final (provisório) acho que Medeiros Ferreira resume o fica para além da espuma: «o primeiro grande banco privado nascido neste regime democrático precisou do aval do Estado para sair da sua primeira grande crise vinte anos depois». Mas ainda há muito para esclarecer.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Desigualdades salariais

«E o que nos dizem a isto os defensores do status quo? Que os gestores, para serem de qualidade, têm de ser bem pagos. E que os gestores portugueses têm de ser bem pagos porque a qualidade não abunda. Sim, é contraditório. Sim, é circular. A conclusão é que os gestores portugueses têm de ser bem pagos porque sim (. . .) Na Alemanha, o governo conservador de Angela Merkel fala em intervir para tabelar os salários dos gestores. Mas em Portugal é melhor nem nos interrogarmos: é insólito». Rui Tavares. O insólito é, em parte, o resultado do domínio de uma opinião medíocre fascinada com o poder do dinheiro: «Temos às vezes a impressão errada de que a maioria da opinião publicada em Portugal é conservadora. Infelizmente, é pior do que isso: limita-se a ser uma reacção instintiva de protecção do status quo».

Onde é que os liberais traçam a linha?

A crise, sempre a crise, a revelar a natureza utópica dos projectos neoliberais. Martin Wolf, editorialista do Financial Times (FT) e insuspeito de simpatias socialistas, tem sido muito citado neste blogue. Isto deve-se ao facto de ser hoje um dos mais atentos observadores, dentro das correntes de opinião que se exprimem em jornais como o FT, das complexas dinâmicas que estão a redefinir a relação entre Estado e mercados. Em artigo recente, Wolf reconhece implicitamente que os processos de liberalização financeira foram responsáveis pelas mais de 100 crises bancárias ocorridas nas últimas três décadas. Isto obriga-o a identificar as especificidades do sector financeiro e a necessidade de um controlo público muito superior ao existente: (1) «são quase o único sector capaz de devastar a totalidade da economia»; (2) «em nenhum outro sector a incerteza é tão relevante»; (3)« é muito difícil para os que estão no exterior observar a qualidade da tomada de decisões, pelo menos no curto prazo». E não há sofisticação e inovação financeiras que resistam a isto, como aliás as sucessivas crises financeiras nos EUA mostram. Um dos seus principais pontos chama imediatamente a atenção: «temo que a combinação de fragilidade do sistema financeiro com as remunerações gigantescas que gera para os insiders [ver caso BCP] irá destruir algo muito importante - a legitimidade política da própria economia de mercado - um pouco por todo o lado». Esperemos que, pelo menos, mine a legitimidade de algumas das suas variedades. Como bom liberal, Wolf sabe que é altura do Estado «intervir» para pôr ordem nas aberrações do «mercado»: é preciso alterar os incentivos dos gestores que geram os comportamentos de risco e isto exige intervenção dos poderes públicos. O problema é onde traçar a linha. Aqui entra a dinâmica política: é preciso traçá-la o mais longe possível por forma a terminar com a preponderância nefasta da finança de mercado. Acabar com off-shores, limitar a especulação disfarçada de «inovação financeira», limitar as práticas predatórias dos bancos, reconhecer e reforçar a presença pública no sector financeiro. Pesada agenda para superar o neoliberalismo, essa «expressão ideológica da hegemonia da finança». A linha de Wolf ficará um pouco mais atrás. Não sei bem onde. Nem ele. Nem ninguém.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

O mercado faz mesmo mal à saúde

Pelo Margens de Erro tomei conhecimento deste estudo que traduz bem os custos de um sistema privado de saúde. A liberal The Economist, sempre tão confiante na bondade do mercado, apresenta-o esta semana com inusitada circunspecção. Os EUA gastam mais em cuidados de saúde (em % do PIB) do que qualquer outro país. E são, entre os países ricos, aquele onde as «mortes evitáveis» entre os homens menos caíram entre 1997 e 2003. Se a sua performance estivesse alinhada com a média ter-se-iam evitado 75000 mortes por ano. As consequências nefastas da extensão do mercado a todas as esferas da vida social não têm preço.

A economia não tem uma bola mágica, mas pode ter uma agenda

«Segundo a imprensa económica, a maioria dos economistas prevê agora uma recessão. Os economistas não prevêem recessões. Quase todos falharam as recessões de 2001 e de 1990-91. As previsões dos economistas funcionam como um indicador atrasado que mostra que já podemos estar de facto numa recessão. As previsões dos economistas acompanham uma bateria de indicadores (...) que mostram que a economia entrou provavelmente numa recessão. O facto de até os economistas reconhecerem o estado calamitoso da economia apenas fecha o argumento». Dean Baker do Center for Economic and Policy Research em artigo no The Guardian. Vale a pena ler o resto, nomeadamente as suas propostas para um relançamento da economia norte-americana em bases mais sustentáveis do ponto de vista social e ambiental. Keynesianismo de esquerda. Para acabar com a hegemonia da direita na condução da política económica. É preciso «pensar o impensável». Título de um excelente livro sobre o poder das ideias, produzidas e difundidas pelos chamados think-tanks, na construção de três décadas de neoliberalismo. Esta hegemonia só pode ser revertida por uma agenda progressista forte. A crise económica por si só não gera soluções políticas. Intelectuais públicos como Dean Baker sabem isso. Aprender, aprender sempre, com a direita gramsciana.

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Redução da pobreza?

Com as sondagens a indicarem o Governo do partido em queda, Sócrates chamou hoje as televisões para clamar pelo progresso social dos seus anos de governação. Segundo dados do INE, a taxa de risco de pobreza - população que vive com menos de 366 euros por mês - reduziu-se de 20% em 2004 para 18% em 2006. Espera . . . 2006? Sim, o Governo Sócrates argumenta que com um ano de governação diminuiu a pobreza em Portugal. Como? Segundo Sócrates graças ao complemento solidário para idosos - a única política social que poderia, de facto, ser invocada. Mas se tivermos em conta que, durante 2006, este complemento abrangeu somente 20 mil idosos (0,2% da população nacional), dificilmente lhe poderá ser creditada uma redução de 1% da taxa de pobreza. Isto para não falar do facto dos inquéritos do INE terem sido feitos entre Maio e Julho de 2006, ainda o ano ia a meio.Mas então como explicar a pequena redução da taxa pobreza de 2005 para 2006? A explicação é puramente estatística. A taxa de pobreza é calculada através da contabilização de todos aqueles que vivem com menos do que 60% do rendimento mediano. Em 2006 este aumentou, segundo os dados do Eurostat, uns medíocres 1,7% , bem abaixo da taxa de inflação. Ora, se tivermos em conta que os aumentos de que os pensionistas beneficiaram - larga maioria da população normalmente contabilizada como vivendo na pobreza - foram, em 2006, à volta dos 3%, observamos que existiu uma convergência do rendimento dos pensionistas com o rendimento mediano nacional. Logo, é natural que a taxa de pobreza caia. Não graças a uma melhoria das condições de vida, mas devido à estagnação do rendimento dos portugueses.

Nota: É comum confundir-se medianas com médias. Quando se fala de rendimento mediano nacional falamos do rendimento que divide 50% da população nacional. Ou seja, um português que tenha um rendimento superior a este estará automaticamente nos 50% "mais ricos".

O que vem dos EUA?

Vale a pena ler este artigo de Joseph Stiglitz: «O governo Bush espera retardar uma vaga de despejos - passando para o próximo presidente os problemas da economia, como está a fazer com o lodaçal iraquiano. As suas possibilidades de êxito são escassas. Para os Estados Unidos hoje, a verdadeira interrogação é se haverá uma depressão breve e estrepitosa ou uma desaceleração prolongada, mas menos profunda». Entretanto, Barney Frank, presidente democrata da comissão de serviços financeiros do Congresso, escreve no Financial Times sobre as consequências negativas de uma «experiência de trinta anos de desregulamentação radical»: desigualdades abissais, sem precedentes desde os anos vinte, e crise financeira. Assim se mostra como, apesar de todas as cautelas, a realidade lá se vai encarregando de mostrar que é urgente uma «nova maré de regulação». Entretanto, Chris Hayes identifica, em artigo na The Nation, os efeitos positivos que a campanha combativa de John Edwards está a ter no debate político norte-americano. Pode não ganhar, mas as suas ideias fortes sobre acesso universal aos serviços de saúde, ambiente, desigualdades ou salário mínimo parecem estar a afastar os democratas da perniciosa herança neoliberal dos «novos democratas» de Bill Clinton.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

A esquerda que conta II

«Obviamente, o ‘acordo tácito’ geral para que o Tratado de Lisboa não seja referendado representa um significativo passo atrás. A imagem que fica é a de uma Europa que tem medo dos cidadãos, que, perante determinadas opções, só concebe um ‘voto correcto’ e, quando isso não acontece, ‘muda-se de povo’: não o escutaremos (. . .) a questão que se coloca é porque é que, logo quando assumiu a Presidência da UE, quando todos os dados relevantes eram já conhecidos, o primeiro-ministro não disse publicamente aos líderes europeus que tinha um compromisso com os portugueses? Não teria sido desejável que o tivesse feito nessa altura, em nome não só daqueles que o elegeram, mas também de uma Europa dos cidadãos?». Excertos de um excelente artigo de André Freire no Público que os vanguardistas do bloco central deveriam ler com atenção.

Movimentos na teoria com impactos políticos - a economia como engenharia social

Um desenvolvimento interessante no que podemos designar por estudos económicos - área «pós-disciplinar» que reúne economistas, sociólogos, antropólogos e estudantes da ciência em geral - diz respeito à discussão dos efeitos que a teoria económica pode ter sobre a realidade que supostamente se limita a descrever. Na formulação mais extrema no debate, compilado neste livro, defende-se que a teoria económica dominante, assente no modelo do agente económico racional e na expansão de arranjos mercantis - teria a capacidade para moldar a realidade à imagens dos seus pressupostos teóricos: a teoria económica é «performativa» porque desenvolveu instrumentos capazes de, tal como em qualquer engenharia, construir sistemas e mecanismos que tornariam verdadeiros os seus pressupostos. O homo economicus não existe, mas pode ser construído.

Michel Callon é o proponente desta provocadora e muito problemática tese, segundo a qual o «critério de sucesso teria substituído o de verdade» numa ciência que seria agora «90% engenharia e 10% teoria». Os famosos desenhos de leilões, a definição de regras para novos mercados ou a criação de instituições e mecanismos híbridos seriam exemplos deste processo. A teoria dos jogos e a economia experimental seriam as áreas da ciência económica implicadas. Os economistas envolvidos têm obviamente interesse em acompanhar esta ideia porque a sua «utilidade social» parece sair reforçada aos olhos da «opinião pública», sempre ansiosa por saber «para que é que serve a teoria».

E, no entanto, os estudos de caso realizados parecem dizer que a construção de mercados é um processo bem mais complexo e que a participação da teoria é muito menos importante do que muitos economistas gostariam. Na realidade, a teoria «pura» serve de muito pouco no processo concreto de construção de um mercado. Aqui estamos no reino de todas as «impurezas» políticas, sociais e culturais. O que não quer dizer que a teoria não possa ter efeitos. Destacaria dois: (1) a economia produz discursos que influenciam a forma como as pessoas olham para o mundo; (2) a economia influencia, de formas múltiplas, o desenho de instituições que impõem certos padrões de interacção que nunca são neutros nos valores promovidos.

Uma coisa é certa: com este debate desaparece a ideia de que o mercado é uma instituição de geração espontânea. A economia é, pelo menos, uma ideologia que ajuda a legitimar muitos dos processos que impõem a mercadorização da vida social. Por outro lado, ganha peso a ideia de que o mercado é uma tecnologia de afectação de recursos que pode ser moldada, através do recorte particular dos direitos e obrigações que cada agente enfrenta, para alcançar propósitos socialmente desejáveis. O que não quer dizer que se deixe de poder falar de propriedades «essenciais» desta instituição ou de defender que, em capitalismo, existem assimetrias que fazem com que certos interesses sejam sistematicamente privilegiados.

domingo, 13 de janeiro de 2008

A esquerda que conta

«O problema é que a Europa nunca será mais do que um negócio se os europeus não forem chamados a decidir» (Nuno Ramos de Almeida). «Mas creio que a UE ainda vai pagar caro este despudor que foi a assunção de que este novo tratado foi feito para escapar aos referendos. Isto é uma artimanha! Como artimanha, os cidadãos dão-se conta de que estamos num mundo sofístico, que torna a realidade muito mais difícil de domesticar em caso de crise» (José Medeiros Ferreira em entrevista ao Público). A esquerda que conta só pode ter como projecto uma UE democrática. Até porque só uma UE democrática pode evitar a tentação nacionalista em época de crise do modelo neoliberal.

O destino da terceira via

Era previsível, demasiado previsível: Tony Blair foi convidado para «trabalhar» como consultor estratégico da J. P. Morgan, um dos maiores colossos da finança mundial. Diz-se que irá ganhar um milhão de libras por ano. É a recompensa para quem sempre se mostrou, enquanto governante, «extraordinariamente relaxado» com a acumulação de riqueza em poucas mãos. A economia e a sociedade britânicas que apanhem os cacos de um regime macroeconómico essencialmente assente no endividamento e na especulação financeira. O «socialismo moderno» acaba sempre no bolso de uma qualquer multinacional. Na Grã-Bretanha, na Alemanha ou, daqui a alguns anos, em Portugal.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

mas Sarkozy só quer a felicidade

Como assinala Sérgio Aníbal, um dos nossos jornalistas económicos de referência, Sarkozy, em abrupta queda de popularidade, decidiu romper com a ideia, subjacente ao PIB, de que «o que não se conta não conta» e encomendar a Amartya Sen e Joseph Stiglitz, dois dos principais economistas da actualidade e cuja obra rompe com todas as ideias feitas do senso comum neoliberal, «o cálculo de uma medida de crescimento que leve em conta a qualidade e não apenas a quantidade». Muito pertinente. No entanto, como vários economistas têm afirmado, e Sérgio Aníbal não se esquece de nos lembrar, esta iniciativa é contraditória com os esforços de Sarkozy para instituir em França um ‘regime norte-americano’ com semanas de trabalho cada vez mais longas e indivíduos cada vez mais focados no consumo e na acumulação de activos. Sobretrabalho, sobreconsumo e sobreendividamento . A melhor receita para a infelicidade.

A França deprime-se porque é desigual...

Ao contrário do que muitas vezes se pensa, a França é um país com uma das taxas de sindicalização mais baixas do mundo desenvolvido e com uma das maiores diferenças, antes de impostos, entre o salário médio dos quadros superiores e profissões intelectuais e o salário médio dos trabalhadores menos qualificados (2,38). Só é ultrapassada pela Eslovénia (2,56) e, claro, por Portugal (3,33) onde a preocupação fundada com os efeitos nefastos das desigualdades é apelida de «populista». Na Suécia e na Dinamarca, economias altamente competitivas, com elevados níveis de sindicalização e com uma tradição de concertação social e de fixação dos salários mais ou menos centralizada, as desigualdades salariais são muito inferiores (1,83 e 1,79 respectivamente). Em países à partida menos desiguais é muito mais fácil financiar um estado social generoso que protege as pessoas contra os «ventos frios» do mercado. Estas coisas só se podem ler na Alternatives Economiques, a melhor revista de informação económica de esquerda.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Onde está a ala esquerda do PS?

Manuel Alegre quer ser consultado e ouvido. Quer também que a AR tenha uma temperatura amena. E pouco mais. Sócrates satisfez-lhe os dois primeiros desejos e a AR tem ar condicionado. Está tudo bem portanto. Os compromisso que deveriam contar para um socialista democrático podem ser esquecidos. Onde está o patriotismo de esquerda que animou a sua campanha presidencial? Onde está a ideia de que isto ainda é um país independente que deve poder decidir o seu futuro colectivo sem se submeter a pressões externas?

Democracia limitada para um mercado sem fim


A decisão, tomada pelo PS, de não convocar um referendo sobre o Tratado Constitucional reciclado, assim violando mais uma vez os seus compromissos eleitorais, fez-me lembrar uma frase de F. Hayek, o Papa de todas as utopias liberais: «Duvido que um novo mercado alguma vez tenha emergido numa democracia ilimitada e parece-me provável que a democracia ilimitada terá tendência para o destruir onde quer que ele tenha emergido». De facto, poucas decisões dizem tanto sobre as derivas do projecto de integração europeia. E são estes vaguardismos neoliberais anti-democráticos que estão a corroer as suas imensas potencialidades. O sonho de Hayek realiza-se pela mão da social-democracia: uma democracia de fraco alcance protege um poder apostado na expansão do mercado.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Estado Social Europeu

Embora situado no espectro ideológico oposto, Hugo Mendes serve-se de argumentos mais sofisticados, mas similares, aos usados pelo Insurgente Migas, debatidos no post abaixo. Desta vez é a União Europeia o exemplo oferecido pelo Hugo para defender que não existe qualquer processo neoliberal de erosão do Estado Social. Diz o Hugo que: «o peso dos gastos nas áreas sociais é mais alto hoje no total dos gastos públicos do PIB». Primeiro, segundos os dados fornecidos pelo Hugo não me parece que haja um aumento, quanto muito não existe uma queda. Depois, como apontei no caso dos E.U.A, este não pode ser O critério de avaliação do Estado Social. O critério deve ser qualitativo e não quantitativo: devemos olhar para quais são os direitos e garantias de que beneficiam os cidadãos, sua evolução, e qual o enquadramento institucional das despesas sociais - veja-se o caso do norte-americano Medicare no post abaixo.

Durante o governo de Durão e Bagão (2001-2003) assistiu-se a um ataque a alguns dos principais instrumentos do Estado Social em Portugal, nomeadamente na atribuição do subsídio de desemprego e do rendimento mínimo garantido. Ora, segundo os dados que o Hugo fornece a despesa social durante este governo aumentou. Quer isto dizer que o Estado Social português foi robustecido? Não, o que aconteceu é que devido à estagnação económica a que nos condenou uma política orçamental desastrosa imposta pela U.E., o número de portugueses desempregados e/ou em situação de necessidade aumentou, resultando num aumento da despesa.

O breve exemplo português pode ser generalizado ao contexto europeu das últimas décadas. De facto, o programa neoliberal de liberalização dos mercados, privatização da economia e contenção orçamental resultou num novo de regime de crescimento medíocre, onde só determinados sectores, como o financeiro, e os muito ricos parecem prosperar. O outro lado da moeda foi o desemprego estrutural e o aumento das desigualdades sociais. Ora, com um crescimento medíocre e um número crescente de cidadãos a recorrem aos apoios públicos, é natural que a despesa social se tenha mantido num nível aparentemente estável, muito embora alguns dos arranjos do Estado Social tenham sido progressivamente desmantelados.

Estado Social Norte-americano

Migas, do Insurgente, argumenta que não tenho razão quando, neste post, referi o desmantelamento do Estado Social empreendido durante os anos Clinton. O argumento é simples: a despesa social nos E.U.A. não só não diminui, como tem vindo a aumentar nos últimos anos - até tem um gráfico (com a despesa a preços correntes . . .) como ilustração. No entanto, o argumento não resiste a um olhar mais atento à realidade norte-americana. No documento de onde Migas retirou o seu gráfico - por sinal, um dos principais think-tanks conservadores norte-americanos, a Heritage Foundation -, existe um outro, com preços constantes, que mostra a evolução da despesa no sector objecto da reforma de Clinton: o apoio financeiro às famílias mais necessitadas. A quebra dos apoios é abrupta. Por outro lado, é fácil perceber porque aumentaram as despesas sociais globais: as despesas com o Medicare (programa de saúde de apoio aos mais idosos) são galopantes. Quer isto dizer que os Estado Social está a crescer nos EUA? Não. O Medicare é, ao contrário dos nossos (europeus) sistemas de provisão públicos de cuidados de saúde, um sistema onde o Estado financia as despesas privadas dos utentes. Um sistema ineficiente (não cobre toda a população idosa), condenado à falência e que serve sobretudo para encher os bolsos das poderosas empresas privadas de saúde.

P.S.: Não resisto a dar conta de uma das conclusões do estudo de onde Migas retirou o seu gráfico. Para os autores, o sistema de segurança social é uma das causas desse desatre nacional que foi o aumento do número de divórcios nos EUA desde os anos sessenta. Ao permitir a emancipação dos seus cidadãos é bem provável que a conclusão seja verdadeira. Ainda bem!

A paz da Soeiro

«Já tem sido ventilada a manutenção de um diferendo e de um mal-estar entre o líder histórico da CGTP e os actuais dirigentes do PCP, os quais veriam com bons olhos este partido a recuperar um domínio maior sobre as decisões da central sindical ( . . .) A novidade é que Carvalho da Silva não está disponível para ver cerceada a autonomia de acção da CGTP, ao nível quer da sua actuação quer do colectivo da sua direcção» (Público). Esta é uma luta decisiva. Se a linha de Carvalho da Silva perder, o movimento sindical recuará anos. Há muita gente interessada nisto. A direcção do PCP poderá encontrar aliados inesperados para os seus propósitos.

Uma sociedade fracturada pelas utopias liberais

Vale a pena ler o diagnóstico que consta do Livro Branco das Relações Laborais. Para além dos pontos referidos por Eugénio Rosa, destacaria ainda a radiografia de um país inseguro e crescentemente desigual: (1) «a expansão do emprego tem sido feito à custa do emprego com contratos a termo»; (2) os trabalhadores com contrato a termo «auferem em média 73% do salário dos trabalhadores com contratos sem termo», o que significa que toda a desregulamentação laboral é apenas uma forma de comprimir o crescimento da massa salarial e de degradar ainda mais a posição do conjunto dos trabalhadores; (3) vários indicadores «confirmam o aumento das desigualdades salariais entre os trabalhadores no período de 1995 e 2005» com os resultados gloriosos, em termos de performance económica, que se conhecem; (4) «A comparação da situação com a de outros países mostra que, em conjunto com a Lituânia, Portugal tem o maior nível de desigualdades de rendimentos entre os Estados membros da UE27». Este último dado aponta para um dos nossos maiores bloqueios. A fractura social atrofia e bloqueia, mais do que qualquer outro elemento, a iniciativa, o desenvolvimento de relações de confiança que «economizam nos custos de transacção», a afirmação do mérito que faz com que as pessoas se respeitem por aquilo que são e fazem e não por aquilo que têm, a aceitação de reformas com repercussões positivas no longo prazo ou a resolução de problemas de acção colectiva. É por essas e por outras que mais igualdade pode significar mais crescimento.

Para fugir aos lugares comuns de quem vê o trabalho como mercadoria

Vale a pena ler o estudo de Eugénio Rosa sobre a situação laboral em Portugal, a partir de dados que constam do Livro Branco das Relações Laborais. Os problemas estão há muito identificados, mas nunca é de mais repetir: (1) os patrões portugueses têm baixíssimos níveis de qualificação; (2) as regras que enquadram o «mercado de trabalho português», como o Nuno Teles já aqui sublinhou, são muito pouco «rígidas», o que significa que as dinâmicas de destruição e criação de postos de trabalho são extremamente intensas; (3) uma parte significativa dos «recibos verdes» corresponde a situações de assalariamento; (4) o aumento do número de desempregados é acompanhado pela diminuição dos que estão estão a receber subsídio de desemprego, situação paradoxal que ilustra bem a sensibilidade social da esquerda sem «preconceitos ideológicos».

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Até amanhã camarada

«Um historiador deve estar decidamente interessado, muito além do permitido pelos teleologistas, na qualidade de vida, nos sofrimentos e satisfações daqueles que vivem e morrem em tempo não redimido» (E. P. Thompson). No próximo dia 9 de Janeiro, quarta-feira, às 14h30, no Auditório Silva Leal (ISCTE), discute-se a tese de doutoramento do José Neves, intitulada «Comunismo e Nacionalismo em Portugal - Política, Cultura e História no Século XX». História das ideias, história política, cultural e social. História «em tempo não redimido». Nada mais, nada menos. Aprender sempre.

Não se habituem!

Ficámos a saber que o Ministro Mariano Gago decidiu aparecer, «sem aviso prévio do convite que lhe foi dirigido pelo Presidente da Assembleia», na Assembleia Estatutária do ISCTE «alegadamente para esclarecer dúvidas» (Miguel Vale de Almeida). Pois. A verdade é que anda muita gente muito nervosa com o bom senso que as universidades têm mostrado face às mal planeadas engenharias mercantis do governo: «as universidades de Lisboa, Nova de Lisboa, Técnica de Lisboa, de Coimbra e do Minho decidiram adiar para Junho a decisão» sobre a passagem a fundação de direito privado. Mal vão por isso as instituições públicas de excelência - «O ISCTE tem projecção internacional, tem muita publicação científica, centros de investigação com classificação de Excelente e fez tudo isso enquanto instituto público» (Eduarda Gonçalves) - que têm à sua frente gente que se limita a ser correia de transmissão de ministros desesperados. Gente que não olha a meios para atingir os seus fins. A democracia universitária está em perigo. Não se habituem a estas interferências.