domingo, 31 de dezembro de 2023

2024


Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes.
 

Do artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa de 1976, com desejos de um excelente 2024.

sábado, 30 de dezembro de 2023

Da incultura económica


Seja qual for o debate, quando alguém invoca a “falta de literacia financeira”, de uma coisa podeis estar certos: não tem qualquer cultura económica. Sim, demasiados liberais agem como se só tivessem lido um tóxico manual de introdução à economia à la Mankiw.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Fedor ideológico


Olhem, o pequeno grande ditador da distribuição quer usar o seu brinquedo ideológico também herdado, a fundação pingo doce, para comprar ainda mais influência político-ideológica. São cada vez mais os que assim procedem: por exemplo, há dois milionários que financiam a IL indiretamente, pagando 70% das avultadas despesas do menos liberdade, quase 400 mil euros, em 2022. O ar ideológico fede, realmente.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Os liberais sabem mais?


Infelizmente, ao homenagear Jacques Delors, a iniciativa liberal até dizer chega revela saber mais sobre a história recente da economia política da integração europeia do que grande parte da esquerda portuguesa.

Tal como Jacques Delors, Jean-Pierre Chevènement foi Ministro na primeira presidência de François Mitterrand. Ao contrário de Delors, foi contra a viragem liberal austeritária, feita em nome da permanência no Sistema Monetário Europeu, tendo sido derrotado. Permaneceu soberanista, recusando o euro-liberalismo que Delors contribuiu para instituir à escala europeia de forma decisiva, entre 1985 e 1995.

Sem deixar de assinalar a sua seriedade, Chevènement considerou hoje que Delors, enquanto arquiteto da integração que a IL tão justamente aprecia, “infundiu na política francesa uma dose de neoliberalismo superior à que teria sido possível impor pela via legal normal”. 

 

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

De Delors a Schäuble


Faleceram Jacques Delors e Wolfgang Schäuble. 

Poucas figuras encarnam melhor do que Delors a abdicação da social-democracia europeia perante o neoliberalismo nas décadas de 1980 e 1990: da viragem para a austeridade, enquanto ministro das Finanças francês, em 1983, a Presidente da Comissão Europeia, entre 1985 e 1995, sendo o principal responsável político pelo infame relatório Delors, o do caminho para a UEM. 

O programa político neoliberal de reconfiguração dos Estados é aí muito claramente enunciado: “de algum modo as forças de mercado podem exercer uma força disciplinadora”, mas desde que reforçadas por “constrangimentos de política” desenhados explicitamente para o efeito – proibições de “intervenções governamentais diretas nos salários e nos preços”, de “acesso ao crédito direto do banco central e a outras formas de financiamento monetário” ou a imposição de “limites aos défices orçamentais”. 

Estes “constrangimentos de política”, onde pontifica um banco central dito independente e orientado para a “estabilidade de preços”, transformariam os salários diretos e indiretos na variável de ajustamento principal, visto que as diferenças de competitividade entre regiões se resolveriam através de “flexibilidade salarial e de mobilidade do trabalho”, numa corrida entre modelos institucionais nacionais arbitrada, em última instância, pelas frações mais extrovertidas do capital. 

Sim, Delors foi construtor do mercado único, da moeda única e logo da política anti-socialista única. O resto foram os Schäuble e as troikas. E, claro, foi esta realidade austeritária que permitiu a ascensão dos novos rostos do fascismo.

Inflação: um resumo do que mudou em 2023

 
(12 minutos de leitura)

No ano passado, a inflação esteve entre as candidatas a palavra do ano. Após o início da invasão russa da Ucrânia, o nível geral de preços aumentou de forma significativa um pouco por toda a Europa e esteve associado a uma forte redução do poder de compra da maioria das famílias. No fim de 2022, discutia-se se a inflação teria vindo para ficar e que tipo de política económica é que devia ser adotada para lidar com o fenómeno. Um ano depois, estamos em condições de avaliar o que se confirmou, o que falhou e que lições é que podemos retirar. 

1. A inflação veio para ficar?

Em 2021 e 2022, o debate sobre a inflação dividiu-se em dois campos: o dos economistas que viam o fenómeno como transitório e o dos que o encaravam como um ponto de viragem face ao contexto das últimas décadas. Para os segundos, a persistência (e potencial aceleração) do surto inflacionista era justificação para restringir a política orçamental e monetária. A contração da atividade económica – e o aumento do desemprego – seriam um mal necessário para travar a inflação, como explicaram alguns dos economistas mais destacados, como Larry Summers, ex-secretário do Tesouro dos EUA, ou Olivier Blanchard, antigo líder do FMI. Por cá, esta ideia foi defendida por Ricardo Reis, professor na LSE.

Os dados do último ano parecem confirmar a hipótese dos primeiros e desmentir os segundos. Nos EUA e na Zona Euro, a taxa de inflação atingiu um pico no final do ano passado e, ao longo deste ano, diminuiu de forma significativa sem que o desemprego tenha aumentado substancialmente. Esta descida foi mais rápida do que era esperado pelas instituições europeias, sendo que a taxa de inflação já se encontra atualmente muito próxima do valor definido pelo Banco Central Europeu como objetivo a atingir a médio prazo (2%). Independentemente do que se achar sobre esse limite, a verdade é que a inflação já não constitui um problema do ponto de vista do mandato do banco central.

Em Portugal, a evolução foi semelhante: depois de atingir um pico por volta de outubro do ano passado, a taxa de inflação tem vindo a descer de forma consistente. Atualmente, Portugal regista uma taxa de inflação de 1,5%. Ou seja, a inflação na economia portuguesa já se encontra abaixo da meta definida pelo BCE, o que significa que, mesmo do ponto de vista do banco central, já não haveria justificação para a sujeitar a uma política monetária restritiva.

2. O que explica a descida da taxa de inflação?

Se olharmos para os dados disponíveis sobre a evolução das componentes da inflação, o principal contributo para a redução da taxa de inflação foi a descida dos preços da energia. É isso que se verifica na Zona Euro: em novembro, a taxa de variação homóloga dos preços dos produtos energéticos foi de -11,5%.

Em Portugal, novamente, os dados publicados pelo INE apontam no mesmo sentido. A variação homóloga dos preços dos produtos energéticos em novembro deste ano foi de -12,39%. Estes dados apoiam a hipótese de que a evolução dos preços da energia teve um contributo decisivo para a trajetória descendente da taxa de inflação total.

De uma forma geral, o que explica a descida da taxa de inflação é o mesmo tipo de fatores que esteve na origem da sua subida inicial: os constrangimentos do lado da oferta verificados no ano passado, desde a política “zero-covid” na China, que atrasou a reabertura de cadeias de produção de que muitos países dependiam, à invasão russa da Ucrânia, que perturbou as exportações de combustíveis fósseis para o resto do mundo e fez disparar os preços energéticos nos mercados internacionais.

O índice usado pela Reserva Federal dos EUA para medir o nível de pressão a que as cadeias de distribuição internacionais estão sujeitas, que atingiu valores máximos em 2022, voltou a descer ao longo de 2023 e essa descida foi acompanhado pela da taxa de inflação. Por outras palavras, à medida que os problemas registados na produção e na distribuição de matérias-primas essenciais (com destaque para a energia) se vão mitigando, os custos das empresas deixaram de aumentar a um ritmo tão acelerado e a pressão sobre os preços dissipou-se.

3. E a política monetária?

As taxas de juro continuaram a aumentar substancialmente ao longo deste ano, tornando o crédito cada vez mais caro, dificultando o investimento e agravando a perda de poder de compra para quem tem empréstimos à habitação com taxas variáveis. No caso do BCE, a subida iniciada no ano passado não tem paralelo em termos de ritmo e os seus impactos têm-se feito sentir em Portugal, onde a crise da habitação se agravou com o aumento dos juros e das prestações e muitas pessoas se viram forçadas a entregar a casa ao banco.

O impacto da política monetária nos preços é discutível. A redução da taxa de inflação é explicada, em grande medida, pela redução dos preços da energia, tanto pelo impacto direto no Índice de Preços no Consumidor como pelo impacto indireto nos custos de todas as atividades que utilizam produtos energéticos no seu processo produtivo. A subida das taxas de juro pode ter reduzido a procura de petróleo ou gás, mas também constituiu um obstáculo aos investimentos necessários para resolver os problemas da oferta e já há sinais de que o investimento em energias renováveis está a ser prejudicado pela política monetária restritiva. De resto, uma análise publicada pelo Roosevelt Institute mostra que, na economia norte-americana, os preços de vários produtos diminuíram apesar da procura por estes ter aumentado, contrariando o pressuposto dos bancos centrais.

No entanto, a política monetária tem como principal objetivo comprimir a procura agregada. A própria presidente do BCE explicou que a ideia era produzir “um aperto suficiente” na economia. Nesse aspeto, a contração das economias da Zona Euro no final deste ano e as perspetivas de uma recessão sugerem que os efeitos da austeridade monetária se estarão a fazer sentir.

A experiência histórica aponta nesse sentido, como mostrou um artigo publicado em 1997 por três economistas influentes, incluindo Ben Bernanke, ex-presidente da Reserva Federal dos EUA: “os nossos resultados sugerem que uma parte importante dos efeitos de um choque petrolífero na economia não resulta da alteração dos preços do petróleo em si mesma, mas sim da política monetária contracionista adotada”.

4. A descida do IVA foi útil?

O IVA zero foi uma das principais medidas do governo português para apoiar as famílias. A redução da taxa de IVA de 6% para 0% num conjunto de 46 bens alimentares considerados essenciais tinha como objetivo reduzir o preço cobrado e o primeiro-ministro até se deslocou a dois supermercados para “fiscalizar” a aplicação da medida. Contudo, a análise do Banco de Portugal concluiu que os preços dos produtos abrangidos pela redução do IVA terão diminuído apenas 3,5% face à média da União Europeia. Ou seja, a redução do imposto não se refletiu integralmente nos preços e uma parte terá sido absorvida pelas empresas.

Não se pode dizer que seja surpreendente: a evidência empírica já sugeria que as empresas se apropriam de boa parte das descidas do IVA e que a repercussão nos preços é muito reduzida. Um estudo em que se analisaram todas as alterações do IVA nos países da UE entre 1996 e 2015 concluiu que os preços tendem a subir bastante mais quando o IVA aumenta do que o que descem quando este diminui.

Além da transferência de rendimento para as grandes empresas da distribuição, que já tinham registado lucros extraordinários no ano passado, há outros problemas. Se o impacto nos preços dos alimentos foi reduzido, o contributo para a redução da taxa de inflação total do país foi ainda menor. E o Banco de Portugal sugere que o benefício desta medida foi maior para os mais ricos, que têm níveis de consumo tipicamente mais elevados que os mais pobres.

5. O que é feito da espiral inflacionista?

Ao contrário do que foi repetido à exaustão ao longo do ano passado, o crescimento dos salários não agravou o surto inflacionista. Pelo contrário: a subida relativamente mais expressiva dos salários nominais ao longo do ano foi compatível com uma diminuição significativa da taxa de inflação. A espiral inflacionista nunca chegou, como já se antecipava neste e noutros espaços.

Para justificar a austeridade monetária dos últimos dois anos, alguns economistas defenderam que não eram necessárias medidas de reforço dos rendimentos porque o poder de compra recuperaria “naturalmente” após a crise. Ricardo Reis escreveu que “faz parte do processo normal inflacionista as margens aumentarem”, uma vez que “os preços sobem mais depressa do que os salários” no início do processo e que “naturalmente, nos próximos dois anos, os salários vão subir mais do que os preços, e as margens das empresas vão descer”.

É certo que, face a um choque inflacionista, é expectável que as empresas tentem pelo menos manter as suas margens e que os trabalhadores tentem manter os seus salários reais. No entanto, o desfecho desse conflito distributivo não tem nada de "natural", como afirma Reis, já que depende das relações de forças e do poder relativo de cada parte. Em Portugal, apesar dos aumentos salariais registados em alguns setores, o salário médio real ainda não recuperou inteiramente as perdas associadas à inflação.

A subida dos salários nominais tem sido sobretudo registada em setores que são caracterizados por remunerações médias relativamente mais baixas, em parte devido ao aumento do Salário Mínimo Nacional, e talvez pelo facto de, em alguns desses setores (como o turismo ou os serviços de restauração e hotelaria), os salários se aproximarem do limite de subsistência. Nestes setores, num contexto de forte subida dos custos, os aumentos nominais são uma condição necessária para continuar a atrair a força de trabalho necessária, mas dificilmente poderão ser vistos como resultado de maior poder reivindicativo dos trabalhadores.

A parte do rendimento total captada pelo trabalho – ou seja, a fatia do bolo que cabe aos trabalhadores –, que já se reduzira em 2022, deverá voltar a descer este ano. Esta tendência indica-nos que os custos da crise não foram repartidos de forma equitativa e que, enquanto boa parte das empresas se tem conseguido proteger da subida dos preços, os custos foram maioritariamente imputados aos trabalhadores. Depois de um aumento artificial no ano da pandemia (devido à quebra do produto), o peso dos salários no PIB continua bastante abaixo do valor anterior à adesão do país ao Euro e mesmo do nível pré-Troika. Num contexto em que a taxa de sindicalização se encontra em mínimos históricos, a negociação coletiva continua a ser muito pouco expressiva e a política salarial do governo impôs cortes reais a boa parte dos funcionários públicos, são dados pouco surpreendentes.

6. O que se tem passado do lado dos lucros?

Em 2022, as grandes empresas da energia e da distribuição registaram lucros extraordinários à boleia da inflação. Além disso, os dados sugerem que, num cenário em que os salários reais caíram acentuadamente, as empresas saíram por cima no conflito distributivo. Na Zona Euro, a parte do rendimento produzido recebida pelo capital atingiu o valor mais alto desde 2007. Alguns estudos empíricos publicados este ano apontam para que tenha mesmo havido um aumento das margens das empresas nos casos dos EUA e de França.

Entre os economistas que se opunham à tributação extraordinária destes lucros, como Ricardo Reis (aqui), António Nogueira Leite (aqui) ou Carlos Guimarães Pinto, deputado da IL (aqui), o principal argumento era o de que era preciso deixar as empresas reinvestir os lucros de forma a aumentar a sua capacidade produtiva e diminuir os constrangimentos da oferta.

O que este ano mostrou é que as coisas não são assim tão simples: embora o investimento tenha aumentado, uma parte importante foi canalizada para a exploração de novas reservas de combustíveis fósseis, em total contradição com a urgência de redução de emissões de carbono. Além disso, os lucros extraordinários serviram para as empresas atingirem recordes de distribuição de dividendos aos acionistas – tipicamente mais ricos – acentuando as desigualdades. Nos países em que as empresas de energia foram privatizadas, os investimentos não se guiam necessariamente por critérios de bem-estar coletivo – que incluiriam a redução da dependência de combustíveis fósseis e a promoção de energias renováveis –, mas sim pelos incentivos do mercado, pouco sensível aos impactos das alterações climáticas na vida das populações.

Em 2023, existe um setor que saiu claramente beneficiado: o financeiro. A subida das taxas de juro tem rendido bastante aos bancos: em Portugal, os cinco principais bancos tiveram lucros recorde de 2 mil milhões na primeira metade do ano, beneficiando do enorme aumento dos juros que cobram pelos empréstimos, face aos juros muito baixos que pagam pelos depósitos. Em vez de tributar de forma mais significativa estes ganhos extraordinários ou de definir regras para a atuação do setor – inclusivamente através do exemplo dado pelo banco público (CGD) –, o governo português optou por aprovar apoios ao pagamento dos juros para as famílias com menos rendimentos. Embora os apoios sejam importantes para essas famílias, não só não resolvem o problema como consistem numa transferência de dinheiro público para subsidiar os lucros da banca.

7. A Economia aprendeu as lições?

A evolução da taxa de inflação ao longo dos últimos dois anos dá força à ideia de que o surto inflacionista teve origem em preços que a economista Isabella Weber e os seus co-autores classificaram como “sistemicamente importantes” – ou seja, preços de produtos que são utilizados na maioria dos processos produtivos, como os bens energéticos – e não num excesso de procura, que se teria traduzido numa evolução mais homogénea dos preços de todos os produtos. O aumento dos preços da energia traduziu-se numa subida dos custos da maioria das empresas dos restantes setores e refletiu-se gradualmente nos preços praticados, além de ter permitido a empresas com maior poder aumentar as margens; depois de este choque se dissipar, a pressão sobre os preços reduziu-se.

Face aos dados do último ano, Joseph Stiglitz, nobel da Economia, diz que estamos perante uma “vitória da equipa da inflação transitória”, lembrando que os estudos empíricos realizados têm desmentido a tese da inflação permanente. Para Stiglitz, “é claro que os banqueiros centrais vão dar palmadinhas nas costas. Mas eles tiveram pouco papel na recente desinflação. O aumento das taxas de juro não resolveu o problema que enfrentámos. A desinflação ocorreu apesar das ações dos bancos centrais e não por causa delas.”

James Galbraith vai mais longe e afirma que o falhanço da teoria neoclássica em compreender o fenómeno da inflação é apenas “o último episódio de uma longa série de fracassos”, pelo menos desde a última crise financeira. Galbraith argumenta que este falhanço não se deve apenas à dificuldade em analisar um fenómeno indiscutivelmente novo, mas também à formação e às posições políticas dos economistas mais influentes, tipicamente hostis ao poder reivindicativo do trabalho e a medidas que prejudiquem os lucros privados.

Apesar de esse ser o cenário dominante na disciplina, há exceções relevantes. Nos últimos dois anos, economistas como Isabella Weber, Servaas Storm, Matías Vernengo ou os próprios Stiglitz e Galbraith desenvolveram um diagnóstico muito mais certeiro sobre a inflação atual. A investigação destes autores contribui para compreender as verdadeiras causas e consequências do atual surto inflacionista e para avaliar as alternativas de resposta da política económica.

Embora o atual surto inflacionista se esteja a dissipar, as economias ocidentais continuam vulneráveis a choques da oferta causados pelas alterações climáticas – que já têm afetado a produção de produtos alimentares, como o azeite ou as laranjas do Algarve – e pela dependência de cadeias de distribuição internacionais – veja-se o caso da Autoeuropa, forçada a interromper a produção devido às cheias na Eslovénia, onde se produzem algumas das peças necessárias. A recente tensão no Canal do Suez, que levou à reorientação do transporte marítimo de mercadorias para rotas com maiores custos, reavivou a preocupação com o risco de novas pressões inflacionistas.

Face à emergência climática e às tensões geopolíticas, há lições a retirar sobre o tipo de medidas a adotar pelos Estados para se prepararem para choques da oferta semelhantes. Além de medidas como a constituição de reservas estratégicas de matérias-primas para mitigar oscilações dos seus preços ou a aplicação de impostos sobre lucros excessivos e outras medidas de regulação das margens de lucro, a presença e a participação do Estado nos setores estratégicos da economia é indispensável.

8. O que é que podemos esperar no próximo ano?

Ao longo deste ano, tornou-se claro que o problema com que nos deparamos não é a inflação em si, mas sim a crise do custo de vida que resulta da posição estruturalmente frágil dos trabalhadores e das opções políticas predominantes. Embora os receios sobre uma suposta espiral inflacionista se tenham revelado infundados, a verdade é que os responsáveis europeus continuam a colocar o foco na evolução dos salários. A presidente do BCE, Christine Lagarde, disse recentemente que é o crescimento salarial que justifica a manutenção das taxas de juro elevadas. Por cá, o governador do Banco de Portugal, Mário Centeno, tem recomendado “temperança” e “prudência” nas negociações salariais.

O discurso dos responsáveis europeus não bate certo com a realidade da economia portuguesa, onde o crescimento salarial está longe de ser exuberante e a taxa de inflação tem diminuído de forma consistente. No entanto, o discurso é coerente com as opções políticas que estão na base da união monetária. Sem possibilidade de influenciar a política monetária e com limites à atuação das políticas orçamental e industrial, os salários reais são sempre vistos como a única variável de ajustamento para fazer face a crises.

A austeridade monetária tem como principal objetivo restringir a procura agregada e, com isso, o crescimento das economias. A isso juntam-se as restrições orçamentais, que deverão regressar em breve e que bloqueiam o investimento público necessário para a transição energética. Neste cenário, não é surpreendente que as principais projeções macroeconómicas apontem para um cenário de abrandamento – ou mesmo recessão – das economias europeias.

Além disso, há bons motivos para pensar que a atual política monetária europeia é especialmente prejudicial para os países da periferia do Sul – Portugal, Itália, Espanha e Grécia. O aumento das taxas de juro por parte do BCE dificulta o recurso a crédito e aumenta os custos de financiamento dos países, pelo que é expectável que reduza tanto o investimento privado como o público. Como a periferia da Zona Euro tem maiores necessidades de investimento, a política monetária pode acentuar a divergência estrutural face ao centro da região, além de aumentar a dependência destes países face às decisões do BCE (que determinam, em grande medida, a variação dos juros da dívida pública).

No início da pandemia, a articulação que existiu entre a política monetária e a política orçamental em torno de objetivos socialmente úteis, como a manutenção do emprego e dos rendimentos e a resposta contracíclica à crise, mostrou que não existem bons motivos para deixar este tipo de decisões nas mãos de “técnicos” não-eleitos. No entanto, a atuação expansionista da política monetária para responder à crise pandémica foi substituída, nos últimos dois anos, por um regresso à austeridade monetária. Os bancos centrais parecem empenhados em fechar a janela de oportunidade para uma política económica progressista aberta com a pandemia. Cabe-nos evitá-lo.

terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Era...


Fez ontem cinquenta anos que Zeca Afonso lançou Venham mais cinco. A música favorita do músico de eleição.

segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Este Natal, sabe bem pagar tão pouco?


Os trabalhadores do comércio estiveram ontem em greve. Alguns supermercados em Lisboa ficaram fechados e outros estiveram a funcionar com bastante menos pessoal, face à paralisação convocada pelo sindicato em defesa de melhores salários e respeito pelos horários de trabalho.

Há alguns dados que nos ajudam a perceber a importância desta greve. No ano passado, empresas como a Jerónimo Martins (dona do Pingo Doce) ou a Sonae (dona do Continente) estiveram entre as que registaram maiores lucros à boleia da inflação. A crise do custo de vida provocada pela subida acentuada do preço dos bens alimentares trouxe ganhos extraordinários aos grandes supermercados, à semelhança do que aconteceu no setor da energia. Apesar desses resultados, o setor continua a depender dos baixos salários pagos aos trabalhadores e as empresas da grande distribuição são também as campeãs da desigualdade salarial em Portugal.

Na Jerónimo Martins, o CEO recebeu €3,7 milhões, o que representa um valor 186 vezes (!) superior à média dos salários dos trabalhadores da empresa. Na Sonae, a CEO recebeu 82 vezes mais que os trabalhadores. O aumento da desigualdade é, de resto, uma tendência da economia portuguesa: em apenas 10 anos (2012-2022), os CEO das empresas cotadas viram as suas remunerações aumentar 47%, enquanto o vencimento médio bruto anual dos trabalhadores recuou 0,7%. O fosso salarial nestas empresas quase duplicou.

Esta enorme desigualdade de rendimento não tem qualquer relação convincente com o mérito ou a produtividade de cada um. É simplesmente o resultado das relações de poder dentro (e fora) das empresas. Esta greve é um lembrete sobre a importância dos profissionais que estiveram na linha da frente durante a pandemia mas que parecem ter sido rapidamente esquecidos. Merecem a nossa solidariedade.

sábado, 23 de dezembro de 2023

Feliz Natal


Tal situação não tem a ver apenas com a física ou a biologia, mas também com a economia e o nosso modo de a conceber. A lógica do máximo lucro ao menor custo, disfarçada de racionalidade, progresso e promessas ilusórias, torna impossível qualquer preocupação sincera com a casa comum e qualquer cuidado pela promoção dos descartados da sociedade. Nos últimos anos, podemos notar como às vezes os próprios pobres, confundidos e encantados perante as promessas de tantos falsos profetas, caem no engano dum mundo que não é construído para eles.

Papa Francisco, Exortação Apostólica Laudate Deum.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Livros lidos em 2023 e que serão úteis em 2024


Esta pancarta ilustra bem o ponto central de Clara Mattei, historiadora da economia política, num livro importante - The Capital Order: How Economists Invented Austerity and Paved the Way to Fascism -, saído no final do ano passado. 

De facto, ao forjarem as políticas de austeridade, no início dos anos 1920, os economistas liberais não se limitaram a criar as condições objectivas para o fascismo, já que uns, em Itália e não só, foram participantes activos na passagem do fascismo de movimento a regime e outros foram os seus mais ou menos envergonhados apologistas: de Pareto a Pantaleoni e seus discípulos, passando por Einaudi, correspondente italiano da The Economist, cujos artigos foram aí sistematicamente elogiosos da política económica fascista de austeridade.

Recorrendo a ampla evidência textual, fruto de trabalho de arquivo e do engajamento com obras de economistas relevantes, Mattei indica como a austeridade foi uma reação de classe antidemocrática, movida pelo medo do empoderamento da classe trabalhadora, que requereu todo um trabalho de argumentação económica, articulado com várias formas de violência política estatal. 

Ao desenvolver o seu argumento historicamente informado, Mattei fornece uma útil elaboração conceptual das três formas articuladas de que a austeridade se revestiu e reveste: (1) austeridade orçamental, ou seja, cortes na despesa pública associada ao bem-estar e consolidação de um Estado fiscal regressivo; (2) austeridade monetária, ou seja, políticas deflacionárias, assentes na elevação da taxa de juro; (3) austeridade nas relações laborais, ou seja, todo o esforço regulatório e de política económica para garantir a disciplina e a hierarquia nas relações laborais, ou seja, para garantir direitos dos patrões e correlativas obrigações dos trabalhadores.

Num contexto marcado por iniciativas liberais, dentro e fora do governo, até dizer chega, trata-se de um livro de história que merece ser traduzido; bem traduzido, claro.      

Recupero esta breve nota de leitura aqui publicada por duas razões. Em primeiro lugar, por causa da perigosa economia política liberal até dizer chega que é sempre necessário derrotar. Em segundo lugar, porque Clara Mattei será uma das oradoras convidadas do 7º Encontro Anual da Associação Portuguesa de Economia Política, que se realiza no ISEG entre 25 e 27 de janeiro de 2024.

  

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Atitudes e ecos


O ECO funciona como eco do patronato mais medíocre. Só isso pode justificar tal perdócio. Têm uma revista e tudo. Deve ser comprada por empresas para distribuírem gratuitamente, não sei, nem me interessa. Nem dada. 

No primeiro número, que folheei com tempo na papelaria, somos presenteados com um artigo de duas páginas de Paula Amorim, dizendo que é tudo uma questão de “atitude”. A encarnação do capitalismo rentista, de herdeiras e fóssil, promotora do porno-riquismo, queixa-se do Estado que persegue empresários, um horror totalitário, e exige “menos carga fiscal”, em mais um texto previsivelmente medíocre e que comprova a escassa qualidade da empresa de relações públicas que a assessora. 

É que tanto faz, basta-lhe o poder de transferir custos sociais para terceiros, recebendo super-lucros, graças a uma privatização irresponsável e que beneficiou o seu pai, pagando os impostos que bem desejar. E ainda se julga no direito de nos dar lições sobre “criação de valor”, quando são os trabalhadores que criam tudo o que tem valor, como imagino que no fundo desconfie. 

E é para isto que existem os ecos.

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

E já só há o Estado a que isto chegou


Qualquer mudança pressupõe a superação da forma neoliberal de Estado, indissociável daquele modelo de capitalismo e da integração europeia, sem a qual, de resto, ambos são incompreensíveis. Esta forma neoliberal é, simplesmente, incompatível com a mudança de modelo, quer por falta de instrumentos de política, quer pelos enviesamentos de classe que tal situação gera. Uma nova forma de Estado exigirá, certamente, um investimento na capacitação técnica para o planeamento, deliberadamente desmantelada nas últimas décadas, mas não poderá ficar refém da ilusão tecnocrática de que o Estado e as suas políticas, qual caixa negra de ferramentas, pairam acima das forças sociais em presença na formação portuguesa. Na realidade, temos a obrigação de saber que o Estado é em simultâneo um campo central do conflito social e um seu árbitro sempre parcial.

O resto do ensaio, escrito em co-autoria com Nuno Teles, pode agora ler sido no setenta e quatro. Foi originalmente publicado na revista Manifesto, em plena pandemia, e foi republicado no âmbito de uma parceria entre estas duas publicações alternativas.

sábado, 16 de dezembro de 2023

Nacionalizar o PISA para relativizar a pandemia

Como já aqui assinalado, a edição de 2022 do PISA, a mais relevante aferição internacional das literacias dos alunos a Matemática, Leitura e Ciências, ficou marcada pelo impacto generalizado e «sem precedentes» da pandemia (termo a que recorreu a própria OCDE). Não tendo os alunos portugueses ficado imunes a esse impacto, registando também descidas significativas nos resultados, o comentariado de direita (ou próximo dela) assumiu uma tarefa: relativizar o impacto da pandemia, para tentar estabelecer, à força, uma relação entre a queda de Portugal e a política educativa.

«Os nossos alunos de 15 anos pioraram mais do que a média dos outros países da OCDE em todos os domínios», escreveu Miguel Herdade. «A queda portuguesa não é um caso isolado, mas quando comparamos com a média da OCDE, a nossa queda é 6 pontos superior a Matemática e 5 pontos superior em Leitura e Ciências», referiu Pedro Freitas. «Apesar de o trambolhão nos resultados ser generalizado, o que reflete a catástrofe educacional da pandemia, em Portugal foi pior», garantiu Susana Peralta. «A queda dos alunos portugueses foi mais acentuada do que a queda média da OCDE: -15 pontos em Leitura e -20 pontos em Matemática. Esta constatação sugere que algo correu pior em Portugal», remata Alexandre Homem Cristo. Com nuances, o coro foi uníssono.

Importa lembrar, desde logo, que os resultados de Portugal no PISA de 2022 estão alinhados com os da OCDE. A Matemática, o mesmo valor obtido à escala daquela organização (472 pontos). A Leitura, Portugal (477) com um ponto acima da OCDE (476). A Ciências, um ponto a menos para Portugal (484). O que significa que, na média das três literacias, Portugal e a OCDE registam exatamente o mesmo valor em 2022: 478 pontos.


Em termos de variação dos resultados entre 2018 e 2022, por outro lado, não basta dizer, como Alexandre Homem Cristo, que a queda de Portugal é de 15 valores a Leitura e 20 a Matemática. Importa referir, nesse contexto, e para não escamotear o impacto da pandemia, quanto desce a OCDE (cuidado que teve Pedro Freitas). E perceber, assim, que as diferenças face à organização (-5,9 pontos a Matemática e -5,3 pontos a Leitura) não são estatisticamente significativas, como se constata na página da OCDE e assinala o João Marôco (que daí infere, contudo, a conclusão inversa). Ao contrário do que sucede com países como a Alemanha, França, Finlândia e Países Baixos, entre outros à escala da UE, cujas diferenças permitem falar, aí sim, em quedas relevantes face à da OCDE.

Cortejos fúnebres


António Nogueira Leite, Daniel Bessa e João Moreira Rato integram o cortejo fúnebre da economia portuguesa; Margarida Rebelo Pinto o cortejo fúnebre da literatura portuguesa; Pedro Granger o cortejo fúnebre da representação portuguesa; Manuel Luís Goucha o cortejo fúnebre da televisão portuguesa; Luís Filipe Pereira o cortejo fúnebre da saúde portuguesa; Jorge Bravo o cortejo fúnebre da segurança social portuguesa; Fernando Santos o cortejo fúnebre do futebol e do fisco portugueses...

Querem “complementaridade das iniciativas e ofertas pública, privada e social na provisão das necessidades colectivas, designadamente nos domínios da saúde, educação e habitação”, código neoliberal para os que querem que o Estado financie ainda mais a entrada do capitalismo privado nestas áreas, mecanismo para todas as formas de corrupção e de venalidade. Tudo se compra e tudo se vende, como sabemos há muito.

Em coerência, todos apoiam agora Montenegro, todos estão objetivamente dispostos a levar a extrema-direita para o poder. 

sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

Não foi embora


Corria o ano de 1986, em Coimbra, e a minha mãe levou-me ao primeiro desfile do 1º de Maio de que me recordo: “está na hora, está na hora, do Cavaco se ir embora”, gritei então pela primeira vez. Não foi embora. Um ano depois, o PSD obteria a sua primeira maioria absoluta: “paz, pão, povo e liberdade; todos sempre unidos no caminho da verdade” foi a enganadora expressão musical da hegemonia neoliberal em construção. 

Só seria derrotado dez anos depois, graças a Jorge Sampaio e ao desgaste de tantos anos no poder, com traços autoritários crescentes. Foi a sua única derrota eleitoral, na primeira tentativa para chegar à Presidência da República. À segunda tentativa, teríamos mais dez anos de Cavaco Silva. 

Deixou como legado uma economia política medíocre, mas ainda hoje por superar: da abertura do mais intenso ciclo de privatizações na Europa Ocidental, que reduziu o setor empresarial do Estado a quase nada, destruindo empresas estratégicas no processo (Cimpor, PT...), à liberalização financeira, geradora de instabilidade, culminando na adesão ao Sistema Monetário Europeu, antecâmera do rígido euro. 

As “reformas da década”, título de um livro que publicou em 1995, são todo um programa de iniciativas liberais concretizadas, onde não podia faltar o aumento explícito da liberdade patronal e, correlativamente, a diminuição da liberdade laboral, a atenuação do que designou então por “proteccionismo exacerbado em prol do trabalhador por conta de outrem”. O aumento das desigualdades tem sempre origem na redistribuição regressiva das liberdades nos espaços onde se trabalha e, logo, onde se cria valor.

O resto da crónica pode ser lido no setenta e quatro.

Amanhã em Lisboa


quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Um minuto de silêncio


Alguém que traduza, por favor.

Adenda, obrigado:

Se eu devo morrer,
você deve viver
para contar a minha história
para vender minhas coisas
para comprar um pedaço de pano
e algumas cordas,
(deixe-o branco com uma cauda longa)
para uma criança, em algum lugar em Gaza
enquanto ela encara o céu nos olhos
esperando seu pai que partiu em chamas
e não se despediu de ninguém
nem mesmo de sua carne
nem mesmo de si –
vê a pipa, minha pipa que você fez, voando acima
e imagine por um momento que um anjo está lá trazendo de volta o amor
Se eu devo morrer
deixe que isso traga esperança
deixe que isso seja um conto

Refaat Alareer,
poeta palestino assassinado por Israel

A direita quer que o mercado crie riqueza para quem?

O líder parlamentar do PSD, Joaquim Miranda Sarmento, diz que a economia portuguesa é pouco competitiva e que "somos pobres no contexto europeu". Apesar de reconhecer que "não há fórmulas mágicas", Miranda Sarmento diz que "a única maneira que temos de melhorar é com crescimento económico" e aponta um caminho: reduzir a taxa de imposto sobre as empresas (IRC) para que o país possa crescer no contexto europeu. No fundo, "temos de deixar o mercado funcionar para criarmos riqueza", explica.

A direita tem repetido à exaustão que os cortes de impostos para as empresas estimulam o crescimento económico. A ideia é relativamente intuitiva: menos impostos sobre as empresas permitir-lhes-iam aumentar o reinvestimento dos lucros, contribuindo não apenas para reforçar a sua capacidade de produção, mas também para fomentar a inovação e os ganhos de produtividade. Para o conjunto da economia, estes efeitos teriam como resultado maior dinamismo e crescimento.

Apesar de ser uma ideia frequentemente repetida no debate público, não é isso que nos diz a evidência empírica. Os economistas Sebastian Gechert e Philipp Heimberger publicaram recentemente o estudo "Os cortes de impostos para as empresas estimulam o crescimento económico?", no qual analisam dezenas de estudos empíricos que usam diferentes indicadores, diferentes horizontes temporais e que reportam resultados muito diversos. A conclusão dos autores é que, ao contrário do que boa parte dos economistas insiste, não há evidência empírica que nos permita afirmar que esses cortes promovem o crescimento dos países que os aplicam.

Além disso, Miranda Sarmento refere-se à taxa máxima estatutária de IRC (31,5%). Ao fazê-lo, insiste numa meia-verdade que se tem tornado habitual no debate público. O problema deste argumento é que é muito difícil (para não dizer impossível) encontrar uma empresa que pague mesmo essa taxa de imposto. A taxa geral de IRC é de 21%. Para uma empresa atingir a taxa máxima de IRC, teria de ser sujeita não apenas à derrama municipal, que varia entre 0% e 1,5% consoante o município em questão, como também à derrama estadual, que pode ir dos 3% aos 9% e que se aplica apenas a empresas que apresentem um rendimento coletável superior a €1,5 milhões, que perfazem... menos de 1% do tecido empresarial português.

É por isso que o dado mais relevante é o da taxa efetiva de imposto: a taxa que corresponde ao que a maioria das empresas paga efetivamente depois de se considerarem os vários benefícios fiscais e deduções. Estes dados são calculados pela Autoridade Tributária para cada ano. Se olharmos para os relatórios publicados pela AT, o que vemos é que a taxa efetiva de imposto é substancialmente inferior à taxa máxima, correspondendo a pouco mais de metade do seu valor (18,9%). O que isto significa é que a maioria das empresas paga bastante menos impostos do que se poderia supor quando se olha apenas para a taxa máxima estatutária.

É verdade que não há "fórmulas mágicas" para resolver o problema da estagnação da economia portuguesa nos últimos vinte anos. Mas dificilmente se encontram respostas sem começar por identificar as verdadeiras raízes do problema: o perfil de especialização assente em setores pouco produtivos, favorecido pelas forças de mercado no contexto da integração europeia e da perda de instrumentos de intervenção pública na economia (como discutido aquiaqui ou aqui).

Além de não resolver estes problemas estruturais, a redução da tributação serve essencialmente para beneficiar os acionistas das empresas, enquanto o Estado abdica de receita fiscal com que se podem financiar os serviços públicos, limitando a função redistributiva dos impostos. De resto, a taxa de IRC já foi substancialmente reduzida nos últimos trinta anos A direita quer apenas continuar a corrida para o fundo e concentrar ainda mais a riqueza criada. As fórmulas mágicas que oferece não fazem falta.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Da economia política das iniciativas liberais


ANA pagou em dez anos concessão dos aeroportos que vai durar meio século. Lucros do contrato de concessão já pagaram investimento de 1200 milhões de euros. ANA explica resultado com a qualidade da gestão. 

A ruinosa economia política das iniciativas liberais ilustrada pela enésima vez, agora por um jornalista, Manuel Carvalho, que sempre a apoiou. O resultado explica-se, como é óbvio para todos, pela qualidade da infraestrutura que o Estado concessionou sordidamente à Vinci. Esta última é dirigida em Portugal por um vende-pátrias chamado José Luís Arnaut, da escola de Durão Barroso, Passos Coelho e Luís Montenegro.

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Um jornal no centro do debate


A construção político-mediática do «centro» como lugar onde teriam de desaguar inevitavelmente os partidos candidatos às eleições está, outra vez, em quase todas as bocas. «Sem ganhar o centro», «sem conquistar o eleitorado moderado» não se ganham eleições, repete-se até à exaustão, com algumas, mas não muitas, variações. Por vezes acrescenta-se «não em Portugal», como que para reforçar uma especificidade que credibilizaria a teoria e isentaria de fazer comparações com outras geografias. Quando uma ideia satura quase todo o espaço do debate é aconselhável desconfiar. Qual a sua função e que forças beneficiam dela?

Sandra Monteiro, O centro neoliberal, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Dezembro de 2023.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Tweets bonitos sobre direitos humanos


«Parece paródia mas não dá vontade de rir. Em Gaza matam-se crianças à velocidade de mil por semana. Neste momento passa-se fome coletiva. Os EUA votaram sozinhos na UN contra um cessar fogo humanitário. Mas escrevem tweets bonitos sobre direitos humanos»

Daniel Carrapa (twitter)

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

O PISA é bem mais que uma conversa doméstica


«"Sem precedentes". É assim que a OCDE qualifica a queda generalizada dos resultados na edição de 2022 do PISA (Programme for International Student Assessment), face aos valores médios alcançados pela organização em 2018. São menos 15 pontos a Matemática e menos 10 pontos a Leitura, numa escala de 0 a 1000, quando as pontuações da OCDE nunca oscilaram mais do que 4 pontos nestes domínios, em edições consecutivas do PISA, desde 2020. A literacia em Ciências é a única a não se alterar significativamente.
Portugal acompanha esta tendência de queda significativa de resultados ao nível da OCDE, entre 2018 e 2022, com uma diminuição de 20 pontos a Matemática (-16 na OCDE) e 15 pontos a Leitura (-11 na OCDE). Apenas a Ciências Portugal reduz menos o seu resultado face à quebra do valor médio registado à escala daquela organização (-8 pontos, que comparam com os -12 pontos da OCDE). Seja como for, em qualquer dos casos, e como assinalado no relatório nacional, estamos perante diferenças sem significado estatístico. Ou seja, não relevantes.
(...) Por isso, querer interpretar a quebra dos resultados de Portugal no PISA 2022, ignorando que essa descida ocorre em linha com a quebra registada na OCDE, em resultado do impacto da pandemia, é como esperar que alguém que se mudou para uma casa no centro da aldeia tivesse, por milagre, sido poupado a uma avalanche que sobre ela se abateu.
»

O resto da crónica pode ser lido no Setenta e Quatro

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Manifestação pela Palestina, amanhã em Lisboa


Promovida pela CGTP-IN, pelo Conselho Português para a Paz e a Cooperação (CPPC), pelo Movimento pelos Direitos do Povo Palestino e pela Paz no Médio Oriente (MPPM) e pela Associação Projeto Ruído, a manifestação parte do Martim Moniz às 15h00, com destino ao Largo José Saramago.

Cavaco Silva e as armadilhas do neoliberalismo

Cavaco Silva e Ronald Reagan (24 de fevereiro de 1988)

Cavaco Silva regressou ao debate público com um artigo de opinião em que visa a expressão das “contas certas”, que se tornou dominante no debate sobre a política orçamental em Portugal. Para o ex-primeiro-ministro e ex-Presidente da República, “é [...] normal que os cidadãos não especialistas na matéria tenham colhido a ideia de que 'contas certas' é um objetivo primordial da política orçamental”, mas esta é “uma armadilha do poder socialista para iludir os portugueses”, que obscurece o que deveriam ser os objetivos da política orçamental: “a satisfação das necessidades sociais, […] a equidade na distribuição do rendimento e da riqueza, o combate ao desemprego, a estabilidade de preços e o crescimento económico”.

O artigo foi divulgado por toda a imprensa e foi lido com alguma surpresa, sobretudo nas redes sociais, não tanto pela crítica à governação do PS, mas pelos termos em que esta é feita. Poucos estariam à espera de ver Cavaco a defender a ideia de que o equilíbrio orçamental não deve ser um fim em si mesmo. No entanto, há truques que não escapam a uma leitura atenta.


De onde veio a obsessão com as contas certas?

Há uma crítica imediata a fazer a este artigo que passa por recordar o papel que Cavaco desempenhou na eternização da obsessão com as chamadas “contas certas”. É difícil não encontrar contradições entre a crítica atual de Cavaco à estratégia de consolidação orçamental e a posição que a direita – e o seu partido – adotou durante o programa de ajustamento da Troika e o governo de Passos Coelho, para quem as contas certas eram um objetivo inquestionável e uma “questão de regime”.

O próprio Cavaco Silva, no discurso de tomada de posse do governo do PS, sublinhou que o “superior interesse nacional” passava por “preservar a credibilidade externa”, deixando claro que “exige-se ao Governo que agora toma posse que respeite as regras europeias de disciplina orçamental”. Além disso, citou um “aviso muito sério” do Conselho de Finanças Públicas que dizia que “uma política virada para o curto prazo e assente num grau minimalista de consolidação orçamental não só não cumpriria as atuais regras europeias como teria implicações negativas sobre o endividamento do País e a produtividade”. Em 2015, para Cavaco, as contas certas eram um imperativo que se impunha e o problema estava no risco de uma consolidação orçamental “minimalista”; uns anos depois, a consolidação orçamental que defendeu já é vista como uma “armadilha para iludir os portugueses”.


Quem paga as contas certas?

Uma parte dos problemas de Cavaco – e da direita portuguesa – prende-se com o facto de o PS ter abraçado a estratégia orçamental que a direita defendia, esvaziando o seu discurso. Desde que chegou ao poder, a prioridade de António Costa foi sempre a manutenção das chamadas “contas certas”: redução dos défices, numa primeira fase, e obtenção de excedentes, posteriormente. Para o conseguir, sacrificou o investimento público, que se manteve em níveis historicamente baixos ao longo de todo o período.

Houve sempre uma enorme diferença entre as promessas feitas pelo governo no início de cada ano e o valor realmente executado no fim. Entre 2017 e 2023, face aos valores orçamentados, ficaram por aplicar 5802 milhões de euros (isto se aceitarmos a previsão do próprio governo sobre a execução do investimento neste ano, que também pode não se concretizar). Não foi por falta de necessidades: no Serviço Nacional de Saúde, o desinvestimento degrada o serviço público e promove a contratação de serviços aos privados; nos transportes, a falta de investimento tem levado ao encerramento de várias linhas ferroviárias e à supressão sistemática de comboios ou autocarros; na habitação, o país continua a ter um dos mais reduzidos parques habitacionais públicos da União Europeia.

Essa estratégia tem custos para o país: além de se refletir cada vez mais na degradação dos serviços públicos, também tem impactos negativos para o conjunto da economia através da redução das despesas “amigas do crescimento”, que reforçam as infraestruturas do país e contribuem para o aumento da produtividade. Mas essa opção não se afasta substancialmente do que a direita tinha para oferecer ao país. Cavaco Silva, de resto, confirma-o quando aponta como um dos problemas fundamentais o “monstro da despesa pública”, num país em que esta era inferior à média da Zona Euro em quase todas as categorias antes da pandemia.


Os "especialistas" e as contas erradas

No entanto, o problema de fundo do artigo prende-se com a recomendação que deixa para a definição da política orçamental. Cavaco sugere que “o valor desejável para o saldo orçamental em cada ano, sendo uma restrição, deve ser determinado antes de o Governo elaborar a sua proposta de Orçamento, não por políticos, mas por um comité independente de especialistas”, que teria “em devida conta” os níveis de dívida pública e externa, a “evolução da situação económica e social do país”, as previsões económicas internacionais ou as regras orçamentais europeias.

No Twitter, a sugestão foi sublinhada por Miguel Poiares Maduro, ex-ministro do PSD, para quem estas “formas de disciplina da política” vão ser “tema fundamental da democracia nos próximos anos”. Poiares Maduro explica que a ideia é deixar “à técnica a delimitação desse espaço [orçamental] político” e que “é a lógica do BCE aplicada ao OE [Orçamento do Estado]”.

A comparação é ajustada: retirar ao Parlamento a possibilidade de definir o tipo de política orçamental que o país deve prosseguir, entregando-o a organismos não-eleitos, assemelha-se ao que já se verifica hoje no que diz respeito à política monetária. Na prática, seria mais um passo no sentido de restringir o espaço da deliberação democrática. Em vez de as decisões sobre a política orçamental do país serem tomadas pelos representantes democraticamente eleitos, passariam a ser entregues a um comité de “técnicos” que definiria o saldo orçamental e deixaria à democracia apenas a possibilidade de deliberar dentro desse limite.

A proposta de Cavaco tem raízes na tradição ordoliberal, que defendia a necessidade de criar uma ordem jurídica que impusesse limites à intervenção dos poderes públicos na economia para proteger a livre concorrência. É a visão na qual assentaram as regras orçamentais europeias, que restringiram o espaço da política orçamental dos países do Euro sob a promessa de assegurar convergência e crescimento sustentado. Mas as restrições ao investimento público necessário para a requalificação das economias periféricas acentuaram a sua vulnerabilidade face aos países mais ricos. Além disso, os pressupostos sobre os quais essas regras assentavam – o de que o peso do Estado é um entrave ao crescimento económico ou o de que o rácio da dívida pública não pode passar de um determinado nível – têm sido desmentidos pela evidência empírica.

Os problemas estendem-se à própria noção de domínio “técnico” e “apolítico”. Cavaco Silva defende a utilização do saldo estrutural como variável decisiva para definir a política orçamental. Isso já acontece atualmente no contexto europeu: as regras orçamentais da UE focam-se no saldo estrutural, isto é, o saldo das receitas e despesas de um governo quando se excluem medidas extraordinárias e efeitos do ciclo económico. Para calcular os efeitos cíclicos, a Comissão Europeia mede a diferença entre o PIB registado num país e o seu PIB potencial, que seria o produto obtido se a economia estivesse no seu equilíbrio de médio prazo, descontando as fases do ciclo. Por fim, para calcular este produto, a Comissão calcula a taxa de desemprego natural (a taxa que se registaria neste equilíbrio de médio prazo e que seria o reflexo de aspetos estruturais da economia, como a “rigidez” da proteção laboral, do subsídio de desemprego, etc.).

O problema é que todo o cálculo assenta em pressupostos frágeis e tem revelado enviesamentos sistemáticos. Alguns estudos recentes (aqui ou aqui) mostram que as estimativas da taxa de desemprego natural feitas pela Comissão Europeia são pró-cíclicas: dependem mais das fases de expansão e recessão económica do que de fatores estruturais do mercado de trabalho.

Se olharmos para o caso português, é isso que vemos: a estimativa da taxa "natural" de desemprego da Comissão Europeia para Portugal tem seguido uma tendência relativamente alinhada com a da taxa de desemprego real. 

Qual é o grande problema disto? Se se sobre-estimar sistematicamente a taxa de desemprego natural, como parece ser o caso, o PIB potencial será sistematicamente menor (uma vez que corresponde a um nível de produto atingido com menor nível de emprego dos recursos disponíveis). Logo, a diferença entre o PIB potencial e o real – o tal efeito do ciclo – é inferior ao que se esperaria, o que faz com que o défice estrutural calculado seja maior, indicando uma situação orçamental mais negativa e, por isso, um reforço das restrições impostas pela Comissão à despesa pública.

As estimativas da Comissão dizem que a economia se encontrava acima do potencial entre 2017 e 2019, o que seria sinal de um mercado de trabalho sobre-aquecido e de pressões inflacionistas. Só que a taxa de inflação em Portugal… diminuiu neste período. Todo o argumento é absurdo: não só não é credível que o suposto nível "natural" de desemprego na economia portuguesa tenha passado de 14% para 6% em poucos anos, como não há nenhuma justificação sólida para que consideremos os atuais 6% de desemprego demasiado baixos.

É preciso ter em conta que nenhuma destas variáveis é observável: todas são conceitos cuja medição envolve várias hipóteses, é alvo de enorme controvérsia e nem as principais instituições chegam a acordo sobre a melhor forma de as medir. Mas as suas consequências são bastante visíveis. Talvez não seja boa ideia deixar a política orçamental a estes “especialistas”.


A política económica não é da nossa conta?

Os objetivos da política económica deviam mesmo ser os que Cavaco Silva refere no seu artigo: satisfação de necessidades sociais, combate ao desemprego e às desigualdades e promoção do crescimento económico. Na verdade, esta foi a visão que vigorou após a 2ª Guerra Mundial e até à década de 1970, inspirada por Keynes, que tinha ideias claras sobre o assunto: “cuide-se do emprego e o orçamento cuidará de si próprio”.

O neoliberalismo substituiu-o pela defesa do Estado mínimo e pelo imperativo dos saldos orçamentais equilibrados, não apenas à direita mas também no centro-esquerda, que a seguiu um pouco por todo o mundo ocidental, de Tony Blair no Reino Unido a Bill Clinton nos EUA, passando por Portugal.

Foi este novo paradigma que sustentou a ideia de que os bancos centrais deveriam ser “independentes” – do poder democrático, entenda-se, e não de interesses privados do setor financeiro – e de que essa independência garantiria os melhores resultados. A pandemia desfez este mito: a articulação entre a política orçamental, dos Estados, e a política monetária dos bancos centrais para responder à crise mostrou que não há nada de técnico ou apolítico neste tipo de decisões. Mas existe uma direita que, não satisfeita com a perda de soberania monetária, quer também retirar à democracia a capacidade de influenciar a política orçamental. É difícil ignorar o aviso.