segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Desejo

Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

Como já é tradição neste dia, lembro o artigo 1º da nossa Constituição. Tenham um bom ano de 2019.

Crítica da macroeconomia convencional


O vídeo de hoje fala da necessidade de rejeitarmos a visão da economia como um agregado de comportamentos dos agentes económicos. Esta visão é errada porque um sistema é mais que a soma das partes, é uma organização das partes através de inúmeras relações de causalidade não lineares de elevada complexidade. Tem propriedades que lhe são específicas; é um sistema social dinâmico, aberto aos restantes sistemas da sociedade, também ela aberta ao resto do mundo. Por isso, é um sistema com História.

Ver a economia neste termos implica ver mercados institucionalizados e inculturados. Implica também a rejeição dos pressupostos fantasiosos da Economia convencional e a passagem a uma metodologia realista e científica no quadro da Economia Política. A abordagem convencional que explica a macro-economia através de uma micro-economia de agentes, vistos como átomos sociais que se comportam segundo a racionalidade do pensamento neoclássico, é uma abordagem errada. Mas é isto, e só isto, que se ensina nas faculdades de economia.


O vídeo também alude a uma implicação política desta crítica à macroeconomia convencional. O desemprego tem de ser visto como um indicador do funcionamento do sistema económico e as políticas de redução do desemprego devem atacar as causalidades sistémicas que o geram. Keynes viu bem esta dimensão e, por isso, insistia na necessidade de uma política orçamental dirigida à procura efectiva destinada a criar empregos numa conjuntura em que o sector privado tem receio de gastar. O desemprego deve ser visto como um problema macroeconómico e a abordagem através das políticas activas de emprego, não sendo completamente inútil, falha o alvo em questão porque é uma abordagem micro.


A macroeconomia dominante desvaloriza a política orçamental. Dadas as limitações metodológicas dos seus modelos, e os óculos ideológicos que lhe convém usar para que os seus praticantes tenham 'sucesso', não só não fez propostas adequadas para uma recuperação efectiva da crise de 2007-8, como continua a dizer disparates a propósito da crise que está em gestação. Designadamente, que os governos não dispõem de margem de manobra porque já estão muito endividados, ou porque os bancos centrais já têm demasiada dívida no seu balanço. Ao que parece, a macroeconomia convencional já esqueceu o que significa um governo com soberania monetária, e ignora o poder de intervenção de um banco central que, por definição, não é uma empresa que precise de recorrer ao reforço do capital social para evitar a falência.

A macroeconomia convencional é uma construção intelectualmente falida. Ou, como diz Lars Syll, uma perda de tempo.

Leonard Cohen - The partisan



quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Sem deixar a pista fria

Não foram apenas os civis que estranharam tamanha previsão das polícias nacionais de que dois milhões de portugueses se iriam manifestar nas ruas de 17 localidades do país, vestindo os Coletes Amarelos. Também a maior associação sindical da PSP, a ASPP, critica a forma como essa avaliação foi feita.

Num artigo no jornal Contacto, aponta-se o dedo à mobilização de 19 mil polícias e guardas republicanos, num contingente próximo da proporção da verificada em França após o descalabro no Arco do Triunfo. Na dúvida não houve dúvida: jogou-se pelo seguro, diz o presidente da ASPP. Mas este tipo de jogada tem riscos e custos:
Para a ASPP estão em causa duas coisas fundamentais: "Por um lado, a segurança do país, quem faz um erro deste tamanho, pode perfeitamente achar que não há perigo de terrorismo e haver; por outro lado, existe um erro da utilização abusiva de meios, os 19 mil polícias que foram mobilizados não recebem mais um euro que seja, e foram mobilizados e obrigados a trabalhar para nada. Quando nós, os polícias, cometemos um erro somos alvo de uma série de procedimentos disciplinares, às vezes chegamos a ser punidos quatro vezes. Quem cometeu este erro, tem de ser responsabilizado".
E a ASPP por isso vai escrever ao primeiro-ministro António Costa.

sábado, 22 de dezembro de 2018

Coletes amarelos: Fracasso apesar do "apoio" da PSP

A iniciativa que tentava reproduzir os acontecimentos em França com os coletes amarelos redundou em fracasso. E isso aconteceu apesar da promoção feita, consciente ou inconscientemente, pela própria Polícia de Segurança Pública (PSP).

Com vários dias de antecedência, o comando da PSP informou a agência Lusa em que previa "manifestações de grande dimensão em todo o país".  

"Vamos ter manifestações de grande dimensão em todo o país e mandam as regras do bom senso ter pessoal operacional", disse à Lusa o porta-voz da Direcção Nacional da PSP, intendente Alexandre Coimbra, adiantando que a preocupação neste momento se prende com a dimensão do evento e não com qualquer informação de possíveis confrontos.  

Como se já não bastasse, a PSP informou a comunicação social de que iria chamar os seus agentes que estivessem em folgas e créditos de tempo, dando uma imagem de emergência. Era preciso mobilizar 20 mil polícias, algo semelhante à proporção da mobilização da polícia francesa.   Como foi dito, era um "dispositivo adequado", mas pedia-se que tudo fosse pacífico.

Dois dias antes do dia de protesto, a PSP - de novo - divulgou o mapa das manifestações programadas, com locais e horas previstas. Previa-se que as tais manifestações de grandes dimensões ocorressem em 17 pontos do país: Lisboa, Porto, Aveiro, Braga, Viseu, Viana do Castelo, Setúbal, Coimbra, Santarém, Castelo Branco, Bragança, Évora, Faro, Guarda e Leiria. Também foram formalmente comunicadas manifestações nas regiões autónomas dos Açores e da Madeira. Com base nessa informação, o JN até fez uma infografia:


Publicado no JN


Houve mesmo sites que usaram uma expressão equívoca, mas que até correspondia à realidade: "PSP divulga locais de manifestações".

E não fez só isso: previu que a maior manifestação seria no Marquês de Pombal em Lisboa, onde estão previstas “centenas de pessoas” e - pasme-se! - que é de lá que deverá partir um desfile em direcção à Assembleia da República durante a manhã. O que nunca veio a acontecer, talvez por desorganização.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Um debate sóbrio sobre a legalização da canábis

"No caso do Canadá, o governo de Justin Trudeau optou pela legalização da canábis, desde a sua produção até ao consumo, explicitando os objectivos dessa opção e estabelecendo um quadro regulatório claro e coerente com aqueles objectivos. 

O novo quadro legal visa reduzir o crime e a violência associados ao mercado negro, minimizar os efeitos perversos das substâncias adulteradas (um problema crescente nos últimos anos), reduzir os custos relacionados com a repressão e obter recursos adicionais através da taxação da produção e da venda do produto. A legalização foi acompanhada do agravamento das penas por venda ilegal (principalmente junto de menores) e por condução sob o efeito da substância. O governo decidiu ainda usar parte das receitas fiscais obtidas com a legalização para reforçar as campanhas de informação e sensibilização para um uso responsável de canábis, mas também do álcool, do tabaco e de outras drogas. 

O exemplo canadiano merece atenção não apenas pela abordagem global à produção, distribuição e utilização da canábis, mas também pelo processo político envolvido. Pouco depois das eleições de Outubro de 2015, o primeiro-ministro Trudeau nomeou uma unidade de missão para analisar e propor diferentes vias para a legalização. Cerca de um ano depois essa equipa produziu um relatório com várias recomendações. O documento foi então disponibilizado para discussão alargada, tendo a proposta final de legislação sido colocada à votação três anos após o lançamento da iniciativa, num processo que se revelou aberto, ponderado e participado. 

Portugal pode e deve olhar com atenção para este exemplo e seguir-lhe as pegadas. Apesar dos passos que já foram dados, a legislação actualmente em vigor não resolve os problemas relacionados com o mercado negro e a criminalidade organizada, os riscos associados a produtos adulterados, a perda de receita fiscal potencial, as importações desnecessárias e, acima de tudo, a uma abordagem pouco clara, incoerente e inconsequente sobre o consumo de canábis. Estamos em condições de dar um passo em frente neste debate. Assim haja vontade."

O resto do meu artigo no DN está disponível aqui.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Histeria e farsa (Parte 2)


Em debate recente na SIC Notícias, o deputado do PSD Leitão Amaro afirmou que a proposta de Lei de Bases da Saúde apresentada pelo governo se inscrevia na lógica de «sovietização do sistema», de «obsessão soviética» com o regime público, que faria o país «andar trinta anos para trás». Na mesma linha, Assunção Cristas considerou a proposta «orientada ideologicamente e prisioneira das amarras dos partidos mais à esquerda». Para compor o ramalhete, o António Costa do ECO acusou a ministra da Saúde de ter «uma agenda ideológica, cega: (...) acabar com a saúde dos privados».

Face a estas declarações, alguém mais desprevenido poderia julgar que se está perante a proibição iminente da saúde privada em Portugal e, consequentemente, o encerramento das clínicas e hospitais particulares existentes. O que vale é que já assistimos a este filme e ao respetivo nível de elegância argumentativa. Foi há cerca de dois anos, quando o Governo decidiu deixar de financiar os contratos de associação com escolas privadas nos casos de redundância face à oferta pública de ensino. Também então se rasgaram vestes contra a «obsessão ideológica», o «ataque soviético» em curso ou o «totalitarismo de Estado», sugerindo-se que o governo ia acabar com o ensino privado em Portugal.

Este paralelismo não surge do acaso. O que está em causa nesta proposta de Lei de Bases não difere muito, na sua essência, do que estava em causa nos contratos de associação: o princípio da supletividade como critério de provisão pública e enquadramento das relações entre o Estado (SNS) e o setor privado e da economia social. Ou seja, como refere a proposta apresentada pelo governo, a ideia de que - tendo em vista «a prestação de cuidados e serviços de saúde a beneficiários do SNS» - o Estado pode celebrar «contratos com entidades do setor privado, do setor social (...), condicionados à avaliação da sua necessidade». Tal como nos contratos de associação, trata-se da afirmação de princípios de serviço público (cobertura, universalidade, gratuitidade e equidade no acesso) e da cooperação entre os diferentes setores.

Ora, não estando em questão a alegada «perseguição» e «extinção» do setor privado, o que levará a direita política e económica a opor-se ao princípio, razoável, da supletividade? É aqui que entra a farsa, valendo a pena regressar ao texto da Lei de Bases da Saúde de 1990, aprovado apenas com os votos do PSD e do CDS e que se encontra em vigor. Nele se defende, explicitamente, o apoio ao «desenvolvimento do sector privado da saúde e, em particular, as iniciativas das instituições particulares de solidariedade social, em concorrência com o sector público». Aliás, quando Leitão Amaro se refere à posição do PSD, dizendo que «o Estado deve ter um papel central e primário na gestão, produção, regulação, avaliação, fiscalização e financiamento do SNS», é essencialmente do Estado-financiador-do-privado que fala, seguindo a lógica de que «é indiferente quem presta o serviço» e o quadro da desejada indistinção entre o «sistema nacional de saúde» e o SNS. Uma lógica convergente, de resto, com a proposta de Rui Rio relativa à generalização da ADSE, tendo em vista criar uma espécie de «cheque-saúde», que constituiria uma segunda forma de financiar o setor privado através de recursos públicos, enfraquecendo ainda mais o SNS.

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Snacks de Economia Política


A investigação em vários campos da Ciência Social tem mostrado que o ensino da Economia, sobretudo no que toca à forma como entende o ser humano, o seu comportamento e a sua racionalidade, torna os alunos mais propensos a um comportamento egoísta e até imoral.

Um académico e investigador do fenómeno da corrupção escreveu uma carta à Real Academia das Ciências da Suécia pondo em causa o seu apoio ao Banco da Suécia na atribuição do chamado prémio Nobel da Economia. Nessa carta afirma o seguinte:
Vários relatórios de investigação, independentes, mostram que aqueles que estudam Economia são mais propensos à corrupção, e outras formas de comportamento eticamente condenáveis, do que aqueles que estudaram outras matérias.
É disto que falo no primeiro vídeo de uma série que espero poder editar semanalmente. Um modesto contributo para a divulgação de um olhar crítico sobre o pensamento dominante na Economia, na perspectiva de uma Economia Política na tradição do Institucionalismo Original, o de Thorstein Veblen.

Quem está a financiar a greve dos enfermeiros?

Fonte: Dados trabalhados a partir da plataforma PPL, usada para captar o financiamento para a greve

Não se sabe bem e essa é a questão que se quer discutir.

Não está em dúvida a luta. Os enfermeiros têm sido um grupo profissional flagelado desde 2009. As suas deficientes condições de trabalho explicam uma emigração histórica que se agravou com o governo PSD/CDS e que ainda não foi estancada. Em defesa das suas condições de trabalho e de retribuição, este grupo profissional tem vindo a lutar e está disposto a uma luta prolongada, que, aliás, é do interesse do Serviço Nacional de Saúde e do interesse nacional. E se essas lutas encontram formas de solidariedade que lhes permite intensificar a luta, pois melhor.

Mas convém criar mecanismos de transparência para evitar que lutas justas se transformem em lutas financiadas por intenções não declaradas.

É esse o caso da luta dos enfermeiros? Não se sabe, mas há sinais que convirá aclarar.

A greve em curso segue-se a outras em que havia uma unidade dos diversos sindicatos dos enfermeiros. Foi o caso da greve de dois dias em Setembro de 2018 e, face as insuficientes respostas do Governo, nos dias 10, 11, 16, 17 18 e 19 de Outubro. Na sequência dessa greve, dois sindicatos, entre os quais, o recém-criado Sindepor - Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal (o sindicato nasceu em Julho de 2017, tem sede em Évora, está filiado na UGT, porque - dizem os seus dirigentes - é lá que está o sindicalismo moderno), convocou uma nova greve sem unidade sindical ("algumas alianças revelaram-se inconsequentes e pouco produtivas", afirmou o seu presidente).

A greve foi convocada de 22 de Novembro a 31 de Dezembro apenas às cirurgias e nos três principais hospitais públicos (centro hospitalar e universitário de S. João no Porto, de Coimbra e de Lisboa Norte). É feita por umas centenas de enfermeiros afectados aos blocos cirúrgicos, enquanto os restantes enfermeiros são chamados a apoiá-los nos dias em falta. Para cobrir esse custo, foi criada uma campanha de angariação para um fundo de greve, que - de 10/10 a 21/11/2018 - conseguiu dotar-se de 360 mil euros.

A campanha de angariação propunha-se conseguir 300 mil euros. Após 17 dias, a 27/10/2018, faltava ainda metade dessa quantia. Mas numa semana, conseguiu-se reunir a outra metade. E de 2/11 a 21/11, conseguiu-se mais 60 mil euros. Foi o facto de se ter excedido a verba prevista que levou os organizadores a alargar para cinco o número de hospitais afectados.

Esta capacidade de reunir 150 mil euros numa semana e mais 60 mil acima da meta suscitou, porém, estranheza sobre quem poderia ter apoiado a greve de forma tão rápida. E este facto importante nunca foi devidamente explicado. Foram os enfermeiros que se mobilizaram?

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Esta economia política até quando?

“Não temos parceiro preferencial”. Foi assim que o PS se posicionou na questão da habitação, antes de viabilizar propostas fiscais da direita, favoráveis aos interesses dos senhorios, de resto estranhamente convergentes com as suas, já criticadas neste blogue por Ana Santos. Na questão do sistema bancário, em que nós pagamos, mas o capital estrangeiro e os eurocratas mandam cada vez mais, o PSD tinha sido também o parceiro preferencial.

As novas e perversas formas que o decisivo nexo finança-habitação vai assumindo na economia política nacional continuam a ser a base material do bloco central. Infelizmente, isto não se fica por aqui: basta pensar nas áreas absolutamente cruciais das relações laborais, onde a herança da troika foi no fundo aceite, ou da saúde.

Nesta última, e a acreditar no Expresso, a Ministra da Saúde, que tinha ideias para uma Lei de Bases mais ancorada à esquerda, limitadora do predador capitalismo da doença, terá sido obrigada a manter portas entreabertas aos grupos económicos para agradar ao PSD. Segundo o Expresso, “multiplicaram-se as pressões: privados, notáveis do sector da Saúde (do PSD e do próprio PS) fizeram saber do seu descontentamento [notáveis do bloco central quer dizer gente que ganha dinheiro com a transformação política da saúde em negócio] (...) Até Marcelo foi chamado a intervir”.

 Esta economia política até quando?

domingo, 16 de dezembro de 2018

Antevisão do horror


Um artigo de Gabriel Stargardter do final de novembro trouxe à memória a operação das forças de segurança das Nações Unidas num bairro pobre do Haiti, em 2005, comandada pelo general Augusto Heleno e que envolveu o general Azevedo e Silva (que são, respetivamente, o assessor principal para as questões da segurança e o ministro da defesa do próximo governo brasileiro). O ataque, que durou sete horas e no qual foram disparadas 22 mil balas, foi classificado por diversas organizações de direitos humanos como um «massacre», causando dezenas de mortes, incluindo mulheres e crianças. Tudo leva a crer que a abordagem então adotada constitua a estratégia de Jair Bolsonaro para as favelas do Brasil, confirmando os piores cenários.


Brasil: gangues na mira do general que comandou um raide mortal no Haiti
Gabriel Stargardter (Reuters, 29 novembro 2018)

«Há treze anos, um general brasileiro chamado Augusto Heleno enviou centenas de militares das Nações Unidas para uma favela haitiana, no encalce de um poderoso bandido. Numa batalha que durou sete horas, os capacetes azuis dispararam mais de 22 mil balas no bairro de Cité Soleil, em Port-au-Prince. O alvo, um "senhor da guerra" conhecido por Dread Wilme, foi morto.
A operação, denominada "punho de aço", constituiu o ponto alto da missão de Heleno para restaurar a ordem no Haiti, depois do derrube do presidente. O general considerou o ataque um sucesso, mas diversas organizações de direitos humanos classificaram a operação como um "massacre", sublinhando que dezenas de pessoas foram mortas no fogo cruzado, muitas das quais mulheres e crianças.
Este episódio, já praticamente esquecido fora do Haiti, pode muito bem ser o guião da estratégia do próximo presidente do Brasil, o ex-capitão do exército Jair Bolsonaro, que cooptou Heleno como assessor principal para as questões da segurança, pretendendo que ele e outros militares que estiveram no Haiti dominem as favelas do Brasil, recorrendo aos métodos adotados nos bairros pobres de Port-au-Prince.
O Brasil atingiu no ano passado o número recorde de 64 mil assassinatos, o mais elevado à escala mundial, e Bolsonaro prometeu combater sem misericórdia os marginais. “Estamos em guerra. O Haiti também estava em guerra”, disse Bolsonaro numa recente entrevista a um canal de televisão. No Haiti «a regra era: se encontrares alguém com uma arma, primeiro disparas e depois esclareces o que aconteceu. E assim se resolve o problema”.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Os sintomas e a doença


«O instituto alemão Das Progressive Zentrum publicou uma pesquisa baseada em entrevistas porta-a-porta em zonas da Alemanha e França, acerca das motivações das suas populações para votarem em partidos de extrema-direita nas eleições de 2017. A grande maioria dos inquiridos não manifestou inclinações xenófobas, racistas ou discriminatórias contra refugiados, mas sim preocupações extremas com a precariedade do trabalho, a insegurança de rendimento ou a degradação das infra-estruturas e dos serviços públicos. E criticaram asperamente os agentes políticos e a comunicação social por não incluírem estes temas nas suas agendas. (...) O combate à extrema-direita só pode fazer-se anulando as condições que a tornaram atraente: recuperando instrumentos de soberania perdidos, evitando os efeitos nefastos da globalização, restabelecendo a natureza universal dos serviços públicos, investindo nas infra-estruturas, devolvendo estabilidade às camadas intermédias da população, fomentando o pleno emprego e o fim da precariedade, eliminando a pobreza e combatendo as desigualdades. Toda a esquerda deverá ser desafiada para este programa de emergência. Só assim estará à altura das suas responsabilidades históricas na luta contra a ascensão da extrema-direita.»

Adelino Fortunato, A ascensão da extrema-direita

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Vale a pena pensar

Vale a pena pensar no significado desta contestação, dificilmente redutível a agendas da direita neoliberal ou a reivindicações sectoriais específicas, do Serviço Nacional de Saúde (SNS) à educação pública. Parte do descontentamento resulta de uma dupla intuição: reivindica-se mais, não porque se discorda mais da actual solução governativa do que da anterior, mas porque é maior a esperança de obter resultados (veja-se o recente caso da integração de precários na RTP – Radiotelevisão Portuguesa); e reivindica-se mais porque, à medida que se aproxima o fim de uma legislatura duplamente inédita – capacidade de influência das esquerdas em contexto económico internacional favorável – se pensa que o que não for conseguido agora dificilmente o será noutro contexto. Desta dupla intuição nascerão, porventura, reflexões sobre as limitações estruturais ao desenvolvimento do país decorrentes da arquitectura dos tratados europeus e do euro, ou ainda sobre a integração em instâncias da globalização neoliberal como a Organização Mundial do Comércio (OMC), numa altura em que o dogma da liberalização comercial abre brechas onde menos se esperava.

Sandra Monteiro, A Justiça social e os seus responsáveis, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Dezembro de 2018.

Contrastem o editorial de Sandra Monteiro com o hábito de pensamento arreigado em tantos editoriais da imprensa convencional, enquadrando a contestação laboral pelo prisma político-partidário, como se os trabalhadores não tivessem razões que valeria a pena considerar, capacidade de acção colectiva autónoma a que valeria a pena atentar. Porque será que um editorial de um jornal de negócios jamais enquadraria a acção colectiva patronal, as greves do capital, perdão, a acção e reacção dos mercados, por um prisma político-partidário?

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

As confusões de Macron

[Nota prévia: Quem seja dado a teorias da conspiração, diria que o atentado de Estrasburgo surge num momento de particular tensão para o governo francês, que, num estado de improvisação e desespero, bem precisaria de um inimigo externo para unir os franceses...]

Atente-se às medidas anunciadas segunda-feira à noite pelo presidente Macron, supostamente para - usando a estranha expressão de noticiários nacionais - "apaziguar a rua". Ora, o que é mais escandaloso é que, medidas que deveriam atenuar a desigualdade social reinante em França, acabam por representar um apoio público ao actual status quo, gerador deste caldo explosivo.

O salário mínimo vai aumentar 100 euros, mas esse aumento não será tributado e será "sem custos suplementares para os empregadores". Trata-se de uma antecipação de 70 euros nos aumentos já previstos, embora adoptado como prémio de actividade (figura existente desde 2016, criada pelo governo Hollande, orientada para os trabalhadores mais pobres, aqueles que ganham entre metade e 1,2 vezes o salário mínimo, atribuída em função dos rendimentos do agregado). Representará uma prestação social cujo impacto em termos líquidos vai depender dos rendimentos globais do agregado familiar. Esta foi a forma escolhida para que a medida não tivesse efeito de contágio na estrutura salarial geral. Não é um aumento salarial!  Não terá efeito na reforma nem na remuneração de referência do subsídio de desemprego e vai subir mais lentamente que a inflação. Só isso diz muito do que se defende. E mesmo assim, o governo embrulhou-se todo em contradições sobre o seu montante, dando a entender que nada fora devidamnte estudado. Mas a verificar-se, tratar-se-á de uma ajuda pública às empresas e um incentivo indirecto à contratação a baixo valor. No Parlamento, o primeiro-ministro fez o número de como as medidas anunciadas estivessem planeadas: "Quando foi que o SMIC aumentou 100 euros?"

Hoje, no CIUL, em Lisboa


Fim da linha?


Parece que a social-democracia na UE chegou ao fim da linha quando o “guião” para os trabalhos da sua conferência, realizada no passado fim-de-semana em Lisboa, resultou do trabalho de uma “comissão independente para a igualdade sustentável”. A força do hegemónico consenso de Bruxelas e da sua novilíngua revela-se nos nomes das coisas.

Parece que a social-democracia chegou ao fim da linha quando ainda decide participar na farsa da “eleição” do Presidente da Comissão Europeia e com Frans Timmermans como “candidato”, ou seja, com a versão em negócios estrangeiros de Dijsselbloem, ambos membros de um agora merecidamente pequeno partido holandês, indicando portanto aos outros o seu provável futuro.

Parece que a social-democracia chegou ao fim da linha, graças sobretudo à integração europeia irremediavelmente neoliberal, quando a grande esperança no regresso às suas raízes, Jeremy Corbyn, escreve um artigo para o ilegível The Guardian, onde toma o comércio internacional “sem fricções” como uma referência para o Brexit, o que está em flagrante contradição com certos aspectos do seu programa, incluindo as ajudas de Estado aí afloradas, parte de uma necessária política industrial. Espero que seja tudo táctica para trabalhista europeísta, uma contradição nos termos, ver. Veremos. Entretanto, Brexit só há um e é duro, como agora se diz de forma manipuladora, aliás como dura será sempre a luta democrática contra a lógica pós-democrática do mercado único.

Parece que a social-democracia chegou ao fim da linha quando Geórgios Papandreou, o da pasokização, lidera um apelo a Corbyn, publicado no The Guardian, para que cometa suicídio político, lutando pela manutenção do Reino Unido na UE, travando o Brexit. Só por cinismo se compreende que Assis subscreva tal apelo. Afinal de contas, a UE é o fim da social-democracia, o fim de Corbyn. E por falar em cinismo euro-liberal, que dizer do discurso pretensamente idealista do dirigente social-democrata Augusto Santos Silva, que pelos vistos desconhece o pretensamente realista Ministro dos Negócios Estrangeiros português Augusto Santos Silva?

Enfim, parece que a social-democracia chegou ao fim da linha quando o partido socialista deste país é uma referência para o resto. O governo deste país aprovou recentemente a transposição do pacote europeu de liberalização da ferrovia. O fim da linha passa de metáfora a realidade...

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Por que foi que Macron não convenceu os Coletes Amarelos?

A declaração oficial de Emmanuel Macron, na noite passada, é uma falsa resposta aos problemas colocados pelos protestos em todo o país.

O gráfico ao lado mostra como se distribuíram os salários em 2016, a partir dos dados do INSEE, o INE francês. Cerca de 60% dos assalariados recebia menos de 2 mil euros. Cerca de 30% recebia menos de 1500 euros, sendo que, nesse ano, o salário mínimo era de 1356 euros (actualmente está próximo dos 1500 euros).

O gráfico seguinte mostra a distribuição por decis da distribuição do rendimento (não apenas salarial), de acordo com dados compilados pelo jornal Le Monde.

Como é visível, os dois últimos decis - os "mais ricos" - concentram mais de 40% da riqueza criada. Os 20% mais pobres absorviam pouco mais de 10% do rendimento. Conforme um estudo do INSEE, as pessoas pertencentes aos 1% mais ricos recebiam mais de sete vezes o rendimento médio da população no seu conjunto e detinham 6,8% do total da riqueza. Eram gerentes em 60% dos casos e empresários em 10%.

Os dois gráficos revelam o grau de desigualdade que reina em França.

Esta é uma situação que, segundo o INSEE, se vem verificando desde 1998, pelo menos do que foi seguido estatisticamente. O peso dos grupos que eram os mais bem pagos aumentou significativamente em detrimento dos rendimentos intermédios ou mesmo baixos, uma situação que os estudos do INSEE qualificam como diferindo dos casos de polarização, como o dos Estados Unidos. Entre 1998 e 2015, como refere outro estudo, aumentou o fosso entre pobres e ricos, tendo apenas se reduzido ligeiramente desde 2010, tudo baseado na riqueza financeira e no sector imobiliário. Cerca de 70% dos agregados mais ricos beneficiaram da subida do valor da propriedade (mais 133% nesse período). A riqueza financeira aumentou 75% entre 1998 e 2015, sobretudo durante o período de 2004/2010, beneficiando todos menos os mais pobres. A propriedade foi aquilo que explicou o fosso entre os pobres e os ricos.

Por outro lado, a linha de pobreza fixou-se em 1015 euros mensais, que impregnava 14,2% da população francesa, limiar esse - segundo o INSEE - que era um das mais baixos na União Europeia. O desemprego foi uma das causas principais de pobreza (37,5% dos casos). Recorde-se que o salário mínimo se situa muito próximo desse limiar de pobreza. Ou seja, quem o recebe pouco consegue sobreviver quando mais elevar-se socialmente.

Estas desigualdades são fruto de um modelo de funcionamento económico que, como noutros países, optou por reduzir ao máximo os custos laborais - vulgo salários - como forma de ganhar competitividade e conceder margem de manobra às empresas. Mas nada disso se inverte por artes mágicas ou pequenas medidas.

Por isso, não é de estranhar a desconfiança do movimento Coletes Amarelos às medidas anunciadas por Macron. Sobretudo porque elas representam, sim, uma prenda pública às empresas. Ver próximo post.

Hoje, na livraria Ferin, em Lisboa


segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Para João Miguel Tavares, a igualdade é ninguém ter direitos


É sempre muito instrutivo acompanhar a nossa estimada direita, sobretudo a que se toma por democrática e sofisticada. JMT, na senda dos apoios a Trump e Le Pen, resolveu atirar-se ao direito à greve dos funcionários públicos. Vejam a acutilância dos argumentos:

"Muitos funcionários públicos nem os salários perdem, porque os sindicatos quotizam-se para repor o dinheiro."

E os sindicatos quotizam-se junto de quem, caro JMT? Vendem rifas na rua?

"Pior: essas greves são feitas num sector onde o trabalhador nunca corre o risco de perder o emprego."

É, de facto, uma pena a proteção do trabalho. Se se pudesse despedir os grevistas, andava tudo mais mansinho.

"Nos Estados Unidos, estão mesmo proibidos de fazer greve na maior parte dos estados, incluindo Nova Iorque."

Um exemplo para todos nós, vindo de um país que está nos últimos lugares da OCDE em desigualdade de rendimentos, taxa de pobreza, taxa de pobreza infantil e taxa de trabalhadores pobres, nesta última batido pela Polónia, que é um dos outros dois exemplos para JMT. O terceiro é um paraíso fiscal (Luxemburgo).

"As greves no sector público não são um problema apenas entre o trabalhador e o seu empregador – como acontece, por exemplo, no caso da Autoeuropa, que é uma questão entre a Volkswagen e os seus funcionários, com a qual pouco ou nada temos a ver."

Os argumentos da direita sobre greves e Autoeuropa são de geometria muito variável. Se os estivadores fazem greve, estão a prejudicar o país porque a Autoeuropa não consegue escoar os automóveis. Se são os próprios trabalhadores da Autoeuropa que param e a discussão é outra, então já não faz mal. E se a greve for na EDP? E se for na Fertagus? Ou nos CTT? Também só afectam o patrão e o trabalhador? A verdade é que todas as greves afectam terceiros. JMT defende o direito à greve, desde que seja o de trabalhadores que podem ser despedidos no dia seguinte.

"Se o sector público tem privilégios únicos, também deveria ter obrigações exclusivas. Algo tem de mudar."

Os trabalhadores da Função Pública gozam de direitos de trabalho elementares, nos quais assentaram todas as democracias europeias e um contrato social que deu à Europa o maior período de prosperidade de sempre. Um privilegiado é alguém que ganha mais do que qualquer funcionário público para ser a voz dos donos. E que, vendo trabalhadores com direitos e trabalhadores sem direitos, não hesita: Tire-se os direitos a todos.

sábado, 8 de dezembro de 2018

Um dia em Paris


Aqui fica uma mancheia de fotos retiradas da emissão em directa que o canal televisivo Russia Today fez da manifestação que o movimento Coletes Amarelos realizou hoje e, pela quarta vez, em Paris.

Foi no dia em que o Governo mobilizou os efectivos de segurança para um domingo policiado. Havia mais de oito mil polícias em Paris, o dobro do efectivo do sábado anterior, muitos deles - como o disse à France 24 o representante sindical - arrebanhados sem repouso, de todos os lados do corpo de segurança (como é visível nas fotos), muitos vindos de outras cidades, onde por acaso também se realizaram manifestações.

Uma imagem que se quis mostrar de força, foi mais a do pânico oficial em lidar com um movimento que quebrou o ímpeto de medidas que o governo estava a tomar e que, porque se entronca nas consequências socialmente gravosas de uma política neoliberal adoptadas há décadas, já contaminou outros países alvo dessas políticas. A ironia: um colete usado legalmente sobretudo por automobilistas (mostrando o início afunilado do movimento), está a tornar-se um uniforme de combate, globalizado.


Apenas para ficar assinalado. Muitos vídeos podem ser encontrados aqui - para compensar a publicidade que o anterior post fez ao Youtube...

Quarta-feira, em Lisboa: Colóquio Economia Social e Solidária


«Nos últimos anos, as organizações da economia social e solidária sofreram o duplo impacto de uma crise económica e financeira prolongada e de alterações de quadros legais e instrumentos de actuação. Para lá das definições conceptuais, este modo de pensar e construir organização social e económica tem a uni-lo princípios e valores comuns e objectivos de sustentabilidade. Dotadas de uma já longa história e desempenhando um papel importante, mas não isento de contradições, as organizações da economia social e solidária enfrentam hoje desafios que importa debater.»

Promovido pelo Le Monde Diplomatique - edição portuguesa e pela cooperativa Outro Modo, o colóquio procura responder a três questões: «Que setor é este? História, tensões, realizações» (com Manuel Canaveira de Campos, Rogério Roque Amaro, Sílvia Ferreira e moderação de João Rodrigues); «Que evoluções teve? Leis, trabalho, mercado, experiências» (com Margarida Antunes, Pierre Marie, Sandra Lima Coelho, Stéphane Laurent e moderação de José Castro Caldas); «Que futuro pode ter? Atividades, territórios e redes» (com José Alberto Pitacas, Nuno Serra e moderação de João Baía).

O colóquio realiza-se no CIUL - Centro de Informação Urbana de Lisboa (Picoas Plaza, Rua Viriato), com início às 14h30 e a entrada é livre. Estão todos convidados, apareçam.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Preocupações soberanas


No Público, de Vicente Jorge Silva a Manuel Carvalho, notou-se nos últimos dias uma surpreendente preocupação com a soberania nacional na relação dita assimétrica com a China. Trata-se de uma preocupação assaz selectiva. Afinal de contas, estamos perante apoiantes da mais significativa perda de soberania democrática, a que esteve e está associada a uma integração europeia que também fragilizou brutalmente as possibilidades de uma política externa digna de um Estado a sério num mundo felizmente mais multipolar. Basta pensar, e só para dar um exemplo, nas privatizações impostas pela troika e no reforço do controlo estrangeiro de recursos estratégicos, incluindo por parte do Estado chinês.

Entretanto, alguns intelectuais do eixo político euro-atlântico têm-se manifestado preocupados com o potencial desalinhamento com Washington e com Bruxelas que se pode gerar num contexto de ascensão da China e de aumento da sua influência. Em Portugal, uma certa reflexão sobre as relações internacionais parece ser feita a partir do que se imagina ser o centro e os seus interesses.

A multiplicação das dependências económicas, e logo políticas, externas é o melhor que as elites nacionais conseguem fazer, com alguma venalidade à mistura. Só consigo lembrar-me de uma analogia impertinente: é uma espécie de versão suave da política de porta aberta que a China desgraçadamente conheceu tão bem no seu século de humilhações, algures entre a primeira guerra do ópio e a fundação da República Popular. Diz que os comunistas chineses são nacionalistas. Pudera. Mao bem dizia que “em última análise, a luta nacional é uma questão de luta de classes”.

Enfim, no campo exclusivo do controlo nacional, ou seja, público, de sectores económicos estratégicos e de instrumentos de política económica relevantes, é caso para dizer, atirando barro à muralha: aprendamos e façamos o que o regime chinês ainda faz em domínios como o sistema financeiro ou a electricidade. Esta seria a base material, o ponto de partida popular, para a saudável reciprocidade, de que tanto se tem falado, nas necessárias relações.

Leituras: Revista Manifesto (n.º 2)

Chega amanhã às livrarias e quiosques o segundo número (IIª série) da Revista Manifesto. Com um dossier dedicado ao balanço prospetivo da solução política encontrada em 2015, este número contém ainda as entrevistas a Manuel Carvalho da Silva e Manuela D'Ávila e um conjunto de textos de enquadramento - macroeconómico e europeu - para pensar a próxima legislatura.
Para além do portefólio, e das secções de Estórias, Recensões e Memórias (com um texto de Manuel Alegre sobre Piteira Santos e a republicação de um artigo de Paulo Varela Gomes), esta edição conta ainda com dois textos na secção de Contraditório, dedicada ao debate em torno da exploração de petróleo em Portugal.
A revista será lançada em Lisboa no próximo dia 11, terça-feira, a partir das 18:30h, na Livraria Ferin. A apresentação deste número estará a cargo de José Manuel Pureza e Pedro Delgado Alves.

(Para além das livrarias e quiosques, a revista pode igualmente ser adquirida na página da Fórum Manifesto).

Lista de Artigos:

ANA CORDEIRO SANTOS E ANA DRAGO, É possível uma política de habitação em Portugal?......ARTUR PATULEIA, Razões climáticas e sistémicas para a não exploração do petróleo em Portugal......CARLOS FARINHA RODRIGUES, Um outro olhar sobre as desigualdades......CÉU MATEUS, É preciso refundar o Sistema Nacional de Saúde?......DIOGO MARTINS, Expandir a fronteira do possível......FERNANDO MARANTE, Serafina – Estudos sobre a possibilidade do movimento......FERNANDO NUNES DA SILVA, O transporte público como instrumento de política social......FILIPA VALA E GONÇALO LEITE VELHO, Reformas na ciência, tecnologia e ensino superior......FILIPE LAMELAS, É possível ir mais longe na legislação laboral?......FREDERICO FRANCISCO, O lugar do petróleo no caminho para a descarbonização......ISABEL DO CARMO, O ser humano na ordem e na desordem das coisas......IVAN NUNES, Brasil, os últimos dias......JORGE BATEIRA, Thorstein Veblen - A Teoria da Classe e do Lazer......JORGE MALHEIROS, O envelhecimento na encruzilhada das políticas públicas contemporâneas......JOSÉ REIS, O Estado cercado e a reinvenção da ação pública......LUÍSA COSTA GOMES, Quel ch'è fatto è fatto......MANUEL ALEGRE, Ele era sozinho uma frente......MANUEL CARVALHO DA SILVA, Duas ou três legislaturas de esquerda podem transformar o país......MANUELA DVILA, Torço para que as próximas eleições existam......NUNO SERRA E PAULO AREOSA FEIO, Escola Pública e igualdade de oportunidades: a última fronteira?......PAULO VARELA GOMES, Tirem os nossos carros de cima dos nossos passeios......PEDRO RODRIGUES, A Cultura é um direito social?......REGINA GUIMARÃES, Versão Longa......RICARDO PAES MAMEDE, As perspetivas orçamentais e o futuro da Geringonça......RICARDO SANTOS, SAAL para a Geringonça – Ponto de partida para um compromisso......SÍLVIA FERREIRA, O Estado Social e o Terceiro Setor: passado e futuro......VICENTE FERREIRA, A Economia política do crescimento......VÍTOR DIAS, Cuidar da memória, fortalecer a esperança.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

"Coletes amarelos": para lá da emissão da televisão

Aconselha-se a procura no youtube das imagens do último sábado em Paris, para que se possa ter uma ideia mais real do que foi.

Que se tente ver as imagens apenas pelo som da violência. A violência de quem tomou a iniciativa de protestar contra a degradação social, a violência da repressão, a violência da reacção à repressão, tudo indiciando uma sociedade doente. Tudo tão longe das imagens, tomadas à distância, dos correspondentes nacionais na capital francesa, como foi o caso da RTP.

Ao início, a jornalista Rosário Salgueiro mostrou uma sincera simpatia pelo movimento dos "Coletes Amarelos" em França. Era na altura em que protestavam contra a subida dos impostos. Nas emissões televisivas, parecia partilhar os seus pontos de vista sobre a carga da carga fiscal nas suas vidas. "Às vezes falamos menos nestes directos deste caldo social que explica estes fenómenos", "há pessoas completamente desconectadas da realidade". Preocupações sociais que raramente se viram nas suas reportagens de França, sempre muito centradas - talvez por pedidos de Lisboa - sobre uma agenda mais política, vista de quem governa e não de quem é governado.

Mas depois, quando o movimento começou a ganhar visibilidade, complexidade e corpo na capital, a sua reacção passou a ser outra. E de que maneira.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Dá mesmo vontade de colocar um colete


O que é mais impressionante quando se participa dessas reuniões espontâneas em todas as rotundas do país, é talvez, para lá da raiva, a alegria que anima o povo. Como se sair de casa, ocupar o espaço público e engajar-se em conversas políticas com estranhos já fosse um fim em si mesmo, o começo de um renascimento. Porque essa experiência é de um tipo incomum: humana e viva, como eventos desportivos, mas muito mais profunda pela sua dimensão cívica. Todos os coletes amarelos sentem confusamente que são mais uma vez povo pela primeira vez desde há décadas; que um sistema odiado por eles, que pensava tê-los conquistado, é subitamente deslegitimado pelo seu aparecimento; que os cidadãos virtuais, chamados a expressar sua escolha sob restrição em eleições específicas, tornam-se cidadãos reais, capazes de desempenhar um papel importante na vida da cidade. Nestas centenas de ágoras improvisadas, cada um sente renascer em si um autêntico vínculo cívico, a fraternidade que surge espontaneamente das discussões políticas. É uma fonte de alegria profunda que essa palavra seja divulgada e trocada entre os cidadãos. 
(...) 
Trinta anos de frustração, ressentimento e amargura face ao declínio da coisa pública imposta a uma França relutante por governantes conformistas e covardes em nome de uma adaptação sem fim à globalização e de uma submissão necessária para uma construção europeia supostamente salvadora. Trinta anos de regressão social, de desregulação financeira, de enfraquecimento económico e de recuo do Estado em todos os domínios. Trinta anos de raiva reprimida que de repente explode na cara dos nossos dirigentes, atordoados pela ressurreição súbita do povo como força política directa e activa. Hoje, num justo retorno, ocorre um relembrar súbito da realidade fundamental do nosso universo político: não há democracia sem demos. Que seja preciso recordar essa evidência no ponto em que estamos, é algo que diz muito sobre a degeneração política, a desvitalização da democracia que caracterizou as últimas três décadas. 
(...) 
Os ministros afirmaram repetidamente que é difícil saber o que os Coletes Amarelos realmente queriam, já que suas reivindicações são diversas e às vezes confusas, mas é possível resumi-las numa única ideia: eles querem que o governo adopte uma política económica precisamente contrária a que tem conduzido até agora, o que significa substituir uma política da oferta inepta e destrutiva - as últimas décadas são uma prova irrefutável disso - por uma política da procura, ou seja, por um grande plano de investimento público de várias dezenas de mil milhões de euros, destinado a estimular o crescimento, criar empregos maciçamente, financiar a transição ecológica e restaurar, finalmente, as funções degradadas do Estado republicano. Para ser eficaz, um tal plano necessariamente implica fazer saltar o ferrolho europeu, livrando-se das restrições comunitárias e, idealmente, recuperando a nossa soberania monetária, retomando o controlo do banco central e instaurando temporariamente restrições à livre circulação de capitais. Por outras palavras, lançar uma revolução ideológica e institucional que varreria o essencial da UE.

Alguns dos excertos do notável artigo de Eric Juillot sobre uma revolta que faz sentido, disponibilizados e traduzidos aqui pelo nosso comentador ST, a quem agradecemos.

Eles têm medo

Uma das múltiplas virtudes da mobilização popular intransigente, dos coletes amarelos, é a transferência de algum medo de baixo para cima. Só desta forma realista, alguma transferência de recursos de cima para baixo pode ocorrer. Macron está com medo. Esperemos que tenha cada vez mais medo. Agora, parece que até está a considerar reinstituir um dos impostos que a sua presidência dos ricos, para os ricos e pelos ricos tinha abolido: o imposto de solidariedade sobre as fortunas. Voltar ao quase tão impopular status quo de Hollande não chega, claro. Portanto, bravo povo francês, ainda mais um esforço, ainda mais um exemplo.

Actualização. Afinal, o amedrontado e desorientado Macron ainda se opõe à reinstituição do imposto de solidariedade sobre as fortunas. Entretanto a notícia do The Guardian, a que fiz ligação, foi alterada, sem qualquer indicação da mudança do título e da profunda revisão feita ao texto. Confirma-se que Macron ainda é o presidente. Só dos ricos, claro. Portanto, bravíssimo povo francês, muito mais esforços, muito mais exemplos.

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Revista Manifesto: «Geringonça 2.0?»

«O número da Manifesto que agora chega às mãos dos leitores acaba por captar, sem que o pretendesse à partida, o ambiente que se sente nesta aproximação ao novo ano de 2019. Dois temas sobressaem nesta edição. Por um lado, o balanço prospetivo da solução política encontrada na sequência das legislativas de 2015, com a convergência inédita, na democracia portuguesa, dos partidos de esquerda. Por outro, a situação complexa e delicada que resultou das eleições no Brasil, no passado mês de outubro. De modo contraditório, e por isso de certa forma desconcertante, estas questões refletem o otimismo crítico e o pessimismo realista que se sente no ar.»

Do editorial do número 2 da Revista Manifesto (IIª série), que será lançado no próximo dia 11 de dezembro (terça-feira) em Lisboa, a partir das 18:30h, na Livraria Ferin (Rua Nova do Almada, 72). A apresentação estará a cargo de José Manuel Pureza e Pedro Delgado Alves. Apareçam.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

"Coletes amarelos" em Portugal?

O que se passa em França assemelha-se cada vez mais a um movimento de revolta popular que tem por base uma acumulação de desigualdades sociais, agravadas pelas consequências de uma política orçamental associada à manutenção do euro.

Parte dessa movimentação pareceu, no início, erguer bandeiras de direita - contra uma subida dos impostos - o que já recebeu uma oportunística resposta por parte do ministro da Economia e Finanças de que era preciso reduzir os impostos e... a despesa pública. Mas o mal-estar geral parece tornar-se transversal, com críticas à esquerda ao governo Macron, pela redução dos impostos aos mais ricos e aumento dos impostos aos mais pobres. Após algumas hesitações, o movimento conta já com a participação política da população de esquerda.

Essas condições materiais para a revolta explodiram em França. Mas poderão eclodir em qualquer país. Porque a mãe de todos os populismos - como a direita gosta de lhe chamar - está na perpetuação de injustiças sociais.

Veja –se o que se passa em Portugal em termos fiscais, nomeadamente no IRS.

O IRS era suposto ser o imposto único sobre o rendimento recebido individualmente. Antes de 1989, o imposto que incidia sobre as diversas formas de rendimento tinha taxas diferenciadas. A reforma fiscal levada a cabo em 1989, era Cavaco Silva primeiro-ministro, pretendeu criar um imposto único, mas ao arrepio da comissão de reforma fiscal, o governo manteve a diferenciação de taxas e regimes, em nome da competitividade fiscal entre países. Os rendimentos de capitais não estão sujeitos à progressividade constitucional da tributação sobre o rendimento. O englobamento de todos os rendimentos não é obrigatório. O ónus da prova da veracidade das declarações fiscais apresentadas pelos contribuintes ficou do lado do Fisco.

Resultado: apenas os assalariados e pensionistas – cujos rendimentos não podiam deixar de ser declarados – declararam na totalidade os seus rendimentos. Os outros parecem mal contribuir para a sociedade.

As classes visíveis


Para lá de Merkel, o Presidente Macron, para usar a fórmula de um dos seus vários apoiantes nacionais, tem emergido como a grande esperança do europeísmo dominante na opinião deste rectângulo. Como indicam as orientações de política de Macron, conformes à lógica profunda da economia política da integração europeia, trata-se de uma presidência dos mais ricos, pelos mais ricos e para os mais ricos.

Numa situação cada vez mais degradada, não admira que a sua popularidade seja hoje inferior à de Sarkozy e de Hollande na mesma altura dos seus mandatos, sendo rejeitado por três quartos dos franceses. Está a seguir o caminho de outra das esperanças do europeísmo, lembrem-se, o bufão italiano Renzi.

A raiva popular, bem racional nestas desgraçadas conjuntura e estrutura, tem estado, uma vez mais, nas ruas, com cada vez mais coletes amarelos. Uma ampla maioria apoia os protestos. Muito mais importante do que a sua causa imediata, do que o rastilho, é a questão social com uma expressão geográfica, a França periférica, que emerge em toda a sua amplitude. Esta expressão de um potencialmente poderoso contramovimento nacional-popular, culminando na exigência política da demissão de Macron, tem sido enquadrada politicamente, mas não tem sido dirigida.

Neste contexto, há quem queira resgatar a melhor tradição das esquerdas. Há quem não alinhe na enésima versão dos “deploráveis”. Insultar as classes populares tornou-se de novo uma das especialidades do elitismo liberal, um vírus que atinge também sectores de esquerda, os que têm medo a tudo o que mexe em baixo.

Haja quem perceba, não sem contradicções e hesitações, que populismos, tal como nacionalismos, há muitos. De resto, e como diz o economista político Jacques Sapir, “esta revolta é objectivamente contra o Euro”. Lá chegaremos.

domingo, 2 de dezembro de 2018

O que acontece a um ministro que viola a lei?

Há uma coisa que confunde neste caso da greve dos estivadores do porto de Setúbal. E essa perplexidade decorre da leitura de uma disposição do Código do Trabalho que está em vigor.

É sobre o direito à greve, constitucionalmente previsto.

Artigo 535.º 
Proibição de substituição de grevistas 
1 - O empregador não pode, durante a greve, substituir os grevistas por pessoas que, à data do aviso prévio, não trabalhavam no respetivo estabelecimento ou serviço nem pode, desde essa data, admitir trabalhadores para aquele fim.
2 - A tarefa a cargo de trabalhador em greve não pode, durante esta, ser realizada por empresa contratada para esse fim, salvo em caso de incumprimento dos serviços mínimos necessários à satisfação das necessidades sociais impreteríveis ou à segurança e manutenção de equipamento e instalações e na estrita medida necessária à prestação desses serviços.
3 - Constitui contraordenação muito grave a violação do disposto nos números anteriores.

No porto de Setúbal, a empresa contratou trabalhadores de fora da empresa para acudir a uma acumulação no porto de carros por embarcar, produzidos pela Autoeuropa, em consequência da greve dos trabalhadores dessa empresa. Essa era a sua força: jogar o poder da Autoeuropa e peso do Estado português contra uma empresa que comete ilegalidades ao contratar precariamente quem devia ter um contrato permanente. Em vez de acudir a esse fundo da questão, o Governo mobilizou recursos públicos para proteger a vinda e a entrada trabalhadores de fora, para realizar o trabalho que os trabalhadores, numa justa, legal e tempestiva greve, não queriam fazer. Mas ao fazê-lo caiu na ilegalidade.

Possivelmente, o governo deve ter recebido enormes pressões, a ponto de vários ministros terem concordado em violar a lei e a Constituição. Já nem se fala disso, porque ninguém vai aceitar falar sobre isso. Mas a lei não pode ser objecto para ser usado em real politik.

E nesse caso, é caso para perguntar: Já foi aplicada esta "contraordenação muito grave" no caso do Porto de Setúbal? Ao abrigo de que disposição legal não foi esta contraordenação ainda aplicada? Ao abrigo de que disposição legal foram os recursos públicos usados para proteger uma empresa que estava claramente - e com o apoio do Estado - a violar a lei de forma "muito grave"? E estas não foram as únicas violações à lei, como defende o advogado Garcia Pereira.

Estamos ainda à espera das respostas. Porque o Código do Trabalho não pode servir para fazer caducar convenções colectivas, enquanto se aceita que empresas poderosas actuam ou beneficiem de actuações à margem da lei.

Actualização a 3/12/2018: comunicados do Governo e da parte patronal dos estivadores têm as mesmas gralhas...