segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Para lá do «soundbite»

Duas questões, simples, que televisões, jornais e outros órgãos de comunicação social poderiam colocar ao ex-primeiro ministro (numa próxima sessão de apresentação da sua recandidatura à liderança do PSD ou na eventual inauguração de uma escola):
1. Quando reconhece que o anterior governo e a troika «cometeram muitos erros», a que erros se refere exactamente?
2. Que medidas concretas tem o ex-primeiro ministro em mente quando afirma que, «se estivesse no governo, estava a bombar para que a crise ficasse cada vez mais para trás»?

Nota: Nada em especial contra as declarações de Pedro Passos Coelho, o candidato a líder de um partido que, garante, «estará preparado» para governar. Apenas seria interessante conhecer a substância e significado dessas declarações, para lá do mero «soundbite». Ou será que no PSD, tal como no CDS, também existe um vazio em relação ao futuro?

A minha entrevista ao Il Manifesto para não falantes de italiano

O jornal Il Manifesto publicou ontem a entrevista que dei ao Goffredo Adinolfi, correspondente do diário italiano em Lisboa, sobre a situação política e económica em Portugal. Fica aqui a versão traduzida.

Q: Finalmente, com um atraso de alguns meses, o Orçamento do Estado para 2016 (OE2016) está na recta final: que avaliação é possível fazer ao governo das esquerdas liderado por António Costa?

R: O esforço para distribuir melhor os rendimentos é o aspecto mais positivo. Esta foi uma preocupação central dos acordos feitos entre os partidos de esquerda e isso foi conseguido principalmente através de duas vias: a política orçamental e o aumento do salário mínimo. O aspecto menos positivo do OE2016 tem a ver com o facto de continuar a trajectória de redução severa do défice orçamental, que vai de 3,1% para 2,2% do PIB, num momento em que o desemprego ainda é muito elevado (muito mais do que os números oficiais mostram).

Q: Valeu a pena?

R: Tendo em conta a alternativa valeu seguramente a pena, mas ainda é insuficiente considerando as condições em que o país se encontra.

Q: A direita e os meios de comunicação estão a tentar fazer passar a ideia de que o aumento de impostos previsto no OE2016 prejudica a classe média e as empresas.

R: A direita e grande parte dos meios de comunicação tiveram uma reacção que é quase risível. Começaram por criticar a proposta de OE2016 porque consideravam os valores pouco fiáveis. Depois passaram a dizer que o OE não estava em conformidade com as regras europeias. Em seguida tentaram sustentar que os aspectos de redistribuição de rendimentos estavam ausentes. Finalmente, argumentaram que a estratégia do Orçamento – aumentar a procura interna – não iria funcionar na prática. Esta atitude dá a entender que a direita olha com grande nervosismo para a busca de alterativas.

Q: O OE2016 respeita os critérios impostos pela União Europeia. Isso significa que a austeridade também pode ter uma interpretação de esquerda?

R: Isso é parcialmente verdadeiro, mas há limites. Este Orçamento mostra que é realmente possível distribuir melhor os esforços de consolidação orçamental, mas também mostra que dentro das regras europeias não há nenhuma possibilidade de ter uma política que promova decisivamente o emprego. De facto, a “austeridade de esquerda” dá um contributo modesto para a resolução da crise social em Portugal.

Q: Ao contrário do que se poderia pensar, a Comissão Europeia deu o seu aval ao Orçamento do governo de Costa, depois de exigir uma série de medidas compensatórias. Isto é um sinal de que algo está a mudar também em Bruxelas?

R: Não, não creio que tenham ocorrido grandes mudanças de atitude. A Comissão Europeia teve em todo este processo uma postura extremamente agressiva com o Governo Português, e as coisas só não foram piores porque a posição negocial da Comissão não é a melhor neste momento. Seria um erro pensar que a Comissão teve uma atitude transigente. Em Bruxelas há uma grande preocupação em relação tanto ao resultado do referendo britânico como ao problema dos refugiados. Além disso, a Comissão Europeia teve de ter em conta os erros cometidos durante o programa de ajustamento. Um dos mais importantes que surgiram no contexto da negociação deste Orçamento foi o facto a Comissão ter tratado como medidas permanentes o que, na realidade, eram apenas medidas temporárias do anterior governo (tais como o corte dos salários da função pública). Isto criou dificuldades acrescidas ao actual governo português.

Q: Algumas críticas também vieram da esquerda, especificamente foi dito que as medidas favorecem principalmente a classe média...

R: Creio que a grande maioria das pessoas e organizações de esquerda vêem este Orçamento como o menor dos males possíveis. Em parte, é verdade que o tipo de medidas tomadas beneficia principalmente a classe média, mas isso também acontece porque foi a classe média o grupo mais penalizado em termos fiscais durante o programa de ajustamento. Mas é preciso ter em conta que há também importantes medidas que visam apoiar os rendimentos mais baixos: o aumento do salário mínimo, o aumento das transferências sociais e a alteração dos benefícios fiscais para os filhos. Por isso não é inteiramente verdade que o OE2016 penaliza as classes mais baixas em favor das classes médias. Dito isto, é preciso fazer muito mais para reduzir os elevados níveis de desigualdade que existem em Portugal.

Q: Um aspecto-chave que está a emergir fortemente nos últimos meses tem a ver com o resgate dos bancos pelo Estado, que, segundo alguns cálculos, ascendem a cerca de 40 milhões de euros...

R: Basicamente, existem dois motivos que levaram ao fracasso de quatro bancos, incluindo aquele que era o terceiro maior do país: por um lado, houve casos de má gestão; mas 15 anos de crescimento económico medíocre foram definitivamente o factor que mais determinou a acumulação de grandes quantidades de empréstimos malparados. É um fenómeno diferente do ‘subprime’ ou de outros activos tóxicos. Num país que está há muitos anos em crise também a actividade bancária acaba por ser penalizada.

Q: É possível calcular quanto o Estado terá de gastar como consequência da falência de bancos?

R: Não, é muito difícil fazer esse cálculo, porque há uma suspeita de que as dívidas incobráveis ainda não foram totalmente contabilizadas pelos bancos, a fim de manterem os seus rácios de solvabilidade.

Q: O governo de Costa deveria, então, reduzir ainda mais as expectativas...

R: É um dos muitos riscos que o governo irá enfrentar. Outros incluem a evolução muito incerta da economia internacional, a política monetária europeia e o impacto dos estímulos previstos no OE2016.

Q: Quais foram os resultados de quatro anos de Troika?

R: O programa de ajustamento Português teve três objectivos principais: assegurar a sustentabilidade das finanças públicas, melhorar a competitividade da economia e estabilizar o sistema financeiro. Hoje vemos que o sucesso nos dois primeiros eixos - as finanças públicas e da competitividade - é muito questionável. E no que respeita à estabilidade do sistema bancário parece que ainda está tudo por fazer.

Q: Diz que o OE2016 tem muitos aspectos positivos, mas que é manifestamente insuficiente para resolver os problemas estruturais...

R: No actual contexto Português é impossível simultaneamente criar emprego, pagar a dívida nos termos previstos e cumprir as regras orçamentais europeias – é o que eu chamo o triângulo das impossibilidades da política orçamental. A opção da troika e do Governo anterior consistiu em concentrar-se na aplicação das regras orçamentais e no pagamento da dívida pública, deixando o desemprego crescer. Um governo que queira contribuir para a criação significativa de emprego terá de abdicar de cumprir um dos dois outros objectivos. A não ser que as condições de pagamento da dívida as regras orçamentais venham a ser alteradas na União Europeia, não é possível fazer as três coisas ao mesmo tempo...

Q: ... Logo?

R: Logo, ou tomamos a iniciativa de renegociar a dívida e/ou de desrespeitar as regras orçamentais, sujeitando-nos à enorme pressão das lideranças europeias (como se viu no caso grego) ou desistimos de recuperar a economia, assistindo a mais 15 anos de estagnação, com efeitos dramáticos sobre o emprego e a emigração.

Q: O rácio dívida pública/PIB, que passou nos últimos quatro anos de 100 a 130%, é sustentável?

R: Portugal paga cada ano cerca de 4,5% do PIB em taxas de juros sobre a dívida pública. Isto significa que para o Orçamento estar equilibrado é necessário cortar todos os anos na despesa pública. Na verdade, não há nenhum país que tenha conseguido pagar uma dívida tão elevada sem ser num contexto de forte crescimento económico...

Q: ... Mas depois do programa de ajustamento não deveria ter ocorrido esse crescimento?

R: Portugal não pode crescer porque não tem controlo sobre sua moeda, não pode promover as exportações, ao mesmo tempo que tem de prosseguir uma política de contenção orçamental. Neste contexto, a reestruturação da dívida torna-se uma questão fundamental e acredito que, na realidade, todos o reconhecem, sem querer dizê-lo abertamente.

Q: Por reestruturação da dívida entende a redução dos montantes ou o alargamento dos prazos?

R: Do meu ponto de vista, o objectivo é reduzir significativamente os juros a pagar todos os anos, é pouco relevante como se lá chega. A economia portuguesa não pode recuperar se 4,5% do PIB têm de ser alocados anualmente ao pagamento dos juros da dívida. Este é um suicídio lento, pelo que tem de ser encontrada uma solução, seja qual for a via.

Q: Considera possível reestruturar a dívida? Há sensibilidade para esta solução ou a alternativa é a saída do euro?

R: A saída do euro ou uma situação de confronto unilateral entre o país e a UE é um cenário muito pouco provável, por duas razões: primeiro, porque o poder de negociação de Portugal é actualmente muito limitado; segundo, porque os custos de saída do euro são muito mais visíveis para o público do que os custos associados ao contexto austeritário actual. Dito isto, não posso descartar por completo a possibilidade de Portugal entrar em rota de colisão, levando ao abandono da moeda única. Em qualquer caso, os problemas fundamentais causados pela disfunção da zona do euro vão continuar, o que vai levar a um aumento das tensões políticas na UE e o desfecho é difícil de prever.

Q: Qual é a lógica por detrás de uma política económica suicida?

R: Portugal tem três tipos de desequilíbrio macroeconómico fundamentais: as finanças públicas, a dívida externa e o desemprego elevado. Não é possível corrigir os três ao mesmo tempo. O FMI privilegia a redução da dívida externa até mais do que a dívida pública. Na perspectiva do FMI, a dívida externa pode ser reduzida através da desvalorização interna, o que tem um efeito duplo: por um lado, permite ganhar competitividade baixando o preço das exportações; e, por outro lado, leva a uma redução das importações, porque o investimento e o consumo diminuem.

Q: Com que consequências?

R: Os efeitos dessas políticas são devastadores não apenas sobre o emprego, uma vez que criam as condições para uma recessão permanente, mas também sobre as contas públicas, porque o impacto positivo das exportações sobre as finanças públicas é muito baixo. O Estado ganha mais quando os produtos das empresas são vendidos internamente, por meio de impostos sobre o consumo, do que quando são vendidos no exterior. Logo, a opção por privilegiar a correcção da dívida externa põe em causa a prossecução dos outros dois objectivos: crescimento do emprego e finanças públicas.

Q: Se as consequências das políticas austeritárias são claros para todos, por que se insiste no erro?

R: Não é possível ter economias com estruturas produtivas tão diferentes como as que existem na UE e, ao mesmo tempo, viver com as mesmas regras de política monetária, a menos que se verifique uma de duas coisas: ou há uma enorme transferência de recursos (como aqueles que existem, por exemplo, entre o norte e o sul de Itália); ou então há um empobrecimento acelerado e duradouro das economias que têm estruturas de produção menos competitivas. A maioria das instituições internacionais considera politicamente inviável a primeira hipótese – e, provavelmente, têm razão. Sendo assim, a solução para a preservação da zona euro tem de passar por promover a flexibilidade e a desvalorização interna das economias mais fracas.

Q: A coligação entre PS, PCP e BE demonstrou nas últimas semanas grande solidez, o que se pode esperar no futuro?

R: O facto de haver hoje em Portugal uma direita convictamente neoliberal é o maior seguro de vida para o actual governo, porque nenhum dos partidos de esquerda quer ser visto com responsável pelo regresso a políticas extremamente agressivas para a população, que a direita continua a defender. Assim, embora o BE e o PCP enfatizem a sua posição crítica em relação ao comprometimento do PS com as regras orçamentais europeias, enquanto for possível obter políticas mais favoráveis para os trabalhadores e para o conjunto da população não espero que haja uma ruptura da coligação que permitiu a formação deste governo.

Q: Como tem sido percepcionado pelo público o novo Orçamento de Estado: com entusiasmo, oposição ou indiferença?

R: Por enquanto, não existe nem uma grande oposição, nem um grande entusiasmo. Parece-me que há boas razões para que não haja nem uma coisa nem outra, porque o que temos é o menor dos males – e o menor dos males nunca suscitou muitos ódios nem muitos amores.

domingo, 28 de fevereiro de 2016

O vazio do CDS em relação ao futuro

Que me perdoem os meus ex-colegas do Público, mas acho que na entrevista à candidata a dirigente do CDS Assunção Cristas faltou o essencial: como é que o CDS espera resolver o problema do emprego em Portugal? Como vai fazer para absorver mais de um milhão de desenpregados (em sentido lato)? Como vai conseguir atrair de novo todos os emigrantes jovens que continuam a esvair a população activa? Como se resolverá o problema do envelhecimento da população sem imigrantes? Como vai conseguir crescer economicamente aplicando o Tratado Orçamental? Como vai resolver o problema de se pagar anualmente mais de 8 mil milhões de euros em serviço da dívida? Como pensa reduzir o peso orçamental das PPP que absorverão cada vez mais recursos orçamentais? Com que instrumentos se vai criar mais competitividade externa das empresas?

São perguntas muito de economista? Serão. Mas os problemas nacionais que temos pela frente são eminentemente económicos e, consequentemente, sociais. E neste capítulo a entrevista foi muito pobre. E pobres foram as respostas dadas por Assunção Cristas, mesmo sem essas perguntas. Diria mesmo confrangedoras do vazio político em que o CDS se encontra. Porque é nas questões concretas que os políticos patinam.

Veja-se alguns exemplos do pouco que foi dito sobre o futuro de Portugal.

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Esqueçam, mas depois não se queixem


O mais grave disto tudo é que há quem goste e prefira ser funcionário menor europeu do que político de um país soberano. É muito difícil encontrar sobre esta questão a tradicional divisão esquerda-direita, e, se a procurássemos o que encontraríamos seria contrário ao senso comum tradicional: uma esquerda patriótica, e uma direita rendida a trocar a soberania pelo diktat de uma política económica e de interesses de que gosta e que lhe dá força.
José Pacheco Pereira

[É] verdade que Portugal dispõe hoje de uma quinta coluna bastante disponível para prejudicar os interesses nacionais em favor dos interesses dos países mais fortes da UE. São muitos, vivem de cara destapada, multiplicam-se pelas televisões (às vezes parecem omnipresentes) e desejam que Portugal seja derrotado, os portugueses sejam levados para mais cortes, as agências de rating rebentem com o país e os juros da dívida subam à velocidade dos balões.
Ana Sá Lopes

Peço desde já desculpa a muitos, com estômagos fragilizados devido a um pretenso cosmopolitismo pretensamente liberal, por estas duas reflexões algo pesadas e já com algumas semanas. Mas é que são verdadeiras e bem achadas, embora ainda raras. Têm de multiplicar-se. Vão multiplicar-se. Se à direita o incómodo com esta retórica é bom sinal, a muitos dos que à esquerda ainda ficam horrorizados com a apropriação do nacionalismo, chamemos-lhe mesmo assim, por este campo ou por democratas de direita, aliados nesta luta, parte do mesmo campo, na realidade, digo meia dúzia de coisas.

Esqueçam as nacionalizações necessárias, o serviço nacional de saúde, o salário mínimo nacional ou o artigo 1º da Constituição, o da vontade popular, já que o nacional não está lá por acaso. Esqueçam grande parte da história da esquerda, revolucionária, reformista ou reformista revolucionária, a que venceu ou que tentou vencer por esses elos mais ou menos fracos afora do sistema mundial no século XX: esqueçam a social-democracia sueca, a da Suécia como “casa do povo” a partir do final dos anos vinte, esqueçam o Che Guevara, esqueçam o pátria ou morte por ele também proclamado nas Nações Unidas, nos anos sessenta; esqueçam o chamado nacionalismo internacionalista, de recorte anti-imperial, que culminou no projecto, a retomar, de uma nova ordem económica internacional, em 1974, feita para permitir a assunção universal da soberania económica por parte dos Estados.

De novo por cá, esqueçam a nossa revolução, democrática e nacional, o Movimento das Forças Armadas, o tal que agiu em nome da “salvação da pátria” também no ano de 1974. Esqueçam que, precisamente graças a um certo espírito de 1974, dispomos à esquerda de um vasto reportório patriótico, que ainda anda por aí, à espera de ser trabalhado, actualizado e ligado a forças sociais dinâmicas, portadoras de um programa de superação desta ordem pós-democrática que vem de fora e que corrói a comunidade por dentro.

Esqueçam a criação da tal fronteira do antagonismo de que é feita a política popular, potencialmente maioritária, e que passa, qual condição necessária, por conseguir imaginar uma outra nação, uma outra comunidade política soberana e por dar densidade institucional ao que é, na realidade, também um acto político de separação das águas internas para ganhar margem de manobra externa.

Esqueçam que o nacionalismo, como brilhantemente sublinhou Benedict Anderson, num livro tão bom e tão bem traduzido, é um conjunto de dispositivos culturais flexíveis e logo mobilizáveis por projectos político-ideológicos muito distintos: a variante popular do nacionalismo tem um potencial inclusivo e democratizador inigualável.

Esqueçam que a demissão dos intelectuais progressistas passa, aqui e agora, pela desistência explícita de imaginar a nação e a sua progressiva libertação (na realidade, há quem imagine e Miguel Gomes, no cinema, é o melhor de todos, mas parece-me que falta imaginação no que Anderson chamou o “capitalismo da imprensa”, no debate público por escrito).

Esqueçam que este exercício nunca fica por fazer se ainda houver por aí uma réstia de vitalidade num país condenado a humilhações semicoloniais.

Esqueçam, mas depois não se queixem.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

SOS SNS

Querem ajudar a destruir o Serviço Nacional de Saúde? Então continuem a alargar a subsidiação pública aos hospitais privados, na linha da última ideia perigosa de alargar o universo dos beneficiários da ADSE. Como sublinha Manuel Esteves, esta medida “dinamiza o cada vez mais poderoso sector privado de saúde e afasta ainda mais gente da classe média do SNS”. Isabel Vaz, a do melhor negócio só a indústria de armamento, tem razões para sorrir. Serviços públicos para pobres são pobres serviços públicos. A construção de instituições públicas inclusivas é uma das tarefas das esquerdas, ou não?

Amanhã: Marcha Europeia pelos Direitos dos Refugiados


«Amanhã, dia 27 de Fevereiro, os cidadãos europeus vão reunir-se pelos direitos humanos dos refugiados, exigindo a todos os países membros da UE:

A criação de rotas seguras e legais para os refugiados - para que estes consigam chegar e requerer asilo sem terem de atravessar o mar em barcos sobrelotados ou andar centenas de quilómetros a carregar os seus filhos e todos os seus pertences. Requerer asilo é um direito humano e ninguém deve morrer na tentativa de alcançar um refúgio seguro.

A recusa do confisco de bens - em vez de terem de entregar as suas poupanças aos traficantes e aos governos que aprovaram a lei do confisco de bens, possam gastar o dinheiro que amealharam e que consigo trazem, fruto de uma vida de trabalho, da venda de bens e de poupanças, no começo de uma vida nova na Europa.

A criação de pontes aéreas, que permitem por em prática a reinstalação - mecanismo das Nações Unidas criado para proteger os refugiados mais vulneráveis, incluindo sobreviventes de tortura e pessoas que se encontram em situações que requerer cuidados médicos urgentes. Um sistema que permite que as pessoas viajem para outros países e aí se instalem de forma segura. Na era das companhias aéreas low cost e recursos modernos de triagem consular, as viagens perigosas não são admissíveis.

Vistos humanitários - muitos refugiados não têm todos os documentos necessários para obter um visto normal para viajar entre países. Sendo-lhes concedidos, os países da UE permitem aos refugiados viajar em segurança e requerer asilo na chegada ao espaço europeu. Os vistos humanitários permitem acabar com os mercados de contrabando.

Reunificação de famílias - mecanismo que permite aos refugiados que se encontram fora da Europa reunir-se aos familiares que já estão na UE. Por que razão se vai obrigar alguém a fazer uma viagem longa e perigosa se ela já tem família na Europa que lhe pode dar apoio?;

Programa de recolocação - as pessoas que tenham solicitação de refúgio válida, nesta triagem inicial, devem ser beneficiadas por um massivo programa de recolocação, com a participação obrigatória de todos os Estados-membros da UE

A European March for Refugees Rights envolve 28 países e mais de 150 cidades. Em Lisboa, concentração no Largo Jean Monnet, às 15h00, terminando no Terreiro do Paço. No Porto, concentração na Praça da Liberdade e marcha até à Câmara Municipal. Em Coimbra, concentração na Praça 8 de Maio e marcha até ao Parque Verde.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Até logo...

«Este é um livro de Economia Política. Assenta numa perspetiva interdisciplinar que dá valor às deliberações e aos processos fundamentais que estruturam a nossa vida coletiva, toma em conta as estruturas de poder e a envolvente institucional, sabendo que a economia funciona em contextos históricos, sociais e políticos precisos. É, além disso, um trabalho em que se lançam os fundamentos de uma "escola" de pensamento que é adequado designar-se estudos críticos da financeirização.
(...) Como deveria acontecer com todos os estudos económicos, trata de assuntos das nossas vidas, num dos momentos mais convulsos da contemporaneidade nacional, em que, no meio de debates intensos e de um aparente escrutínio coletivo, as transformações ocorrem muitas vezes nos subterrâneos do nosso quotidiano, de forma estrutural, mas também opaca. É, por isso, um trabalho destinado a revelar e dilucidar questões essenciais. E fá-lo com demonstrações abundantes.
»

Excerto do prefácio que José Reis escreveu para o livro que o João Rodrigues, a Ana Cordeiro Santos e o Nuno Teles lançam mais logo, a partir das 18h00, na Livraria Almedina (Atrium Saldanha), em Lisboa. Publicado pela Actual Editora e pelo Observatório sobre Crises e Alternativas, o livro será apresentado por Manuel Carvalho da Silva e Ricardo Paes Mamede.

Há análises que nos oferecem quadros de leitura, chaves de interpretação de um país, num dado período da sua trajetória de evolução, num dado momento da sua história. «A financeirização do capitalismo em Portugal» poderá vir a constituir-se como um desses códigos de leitura, um desses quadros de interpretação da sociedade e da economia portuguesa nas últimas décadas. À luz do qual diversas dimensões da nossa vida coletiva ganham sentido e inteligibilidade: da transformação dos modos de vida à impregnação do mundo da finança, dos mecanismos de reprodução social à transformação do Estado e das políticas públicas. Como se uma nova camada se instalasse, a somar, transformar e interagir com camadas que a precedem (nomeadamente a da natureza semiperiférica da sociedade portuguesa, um outro instrumento conceptual poderoso para interpretar o país, justamente nos alvores das dinâmicas mais recentes de financeirização do nosso capitalismo).

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Até amanhã...

Banca

A sua passagem, ainda que breve, pelo BES/Novo Banco, onde terá certamente tido amplas oportunidade de constatar o horror do capitalismo financeirizado, explicará parte do que me parece ser uma evolução do pensamento de Vítor Bento no que à banca diz respeito, agora aventando as potenciais vantagens da nacionalização da nova instituição e sua integração num polo público revigorado, pelo menos até que a burguesia nacional recupere o fôlego.

Seja como for, é, de facto, a única forma de garantir o controlo nacional mínimo de um bem público, o crédito, de outra forma entregue à predação, particularmente prejudicial às periferias, dos mastodontes bancários internacionais, promovidos pela UE realmente existente, diluindo com tempo os prejuízos das aventuras da banca privada.

Na realidade, como lembraram ontem os comunistas portugueses não se trata bem de uma nacionalização, mas antes de reafirmar e de clarificar a propriedade pública do banco: “Para todos os efeitos, o capital do Novo Banco atualmente é exclusivamente público e uma operação de assunção política da sua direção poderia enquadrar-se nos gastos públicos já assumidos.” É preciso evitar neste caso a custosa, mas reveladora, humilhação registada no Banif.

«Social-Democracia Sempre!»


Impacto, nas crianças e jovens, de cortes em mínimos sociais ao longo dos últimos quatro anos. Num contexto de aumento muito significativo da pobreza e do desemprego. Os gráficos dispensam grandes comentários, não acha Dr. Pedro Passos Coelho?

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Todo um programa

Uma das maiores vitórias do neoliberalismo reside nas transformações registadas na cultura material das sociedades. A provisão privada de bens e serviços, no quadro de mercados liberalizados, fixa as normas de consumo, onde todos bens e serviços são, aparentemente, homogeneizados enquanto mercadorias. Digo aparentemente pois este processo é sempre impossível de atingir e contestado nas diversas fases da provisão.

Por exemplo, a água potável nas nossas torneiras ainda está longe de ser entendida como uma simples mercadoria, à imagem e semelhança de uma Coca-Cola ou de uma água do Luso. Os sindicatos, muitas autarquias e associações de consumidores constituem uma barreira difícil de transpor para a entrada a toda a força do capital na provisão deste bem. A água é ainda entendida como um bem com especificidades próprias, que não deve estar sujeita à lógica do lucro.

O meu exemplo da água não é inocente, pois bens e serviços materialmente distintos, mas igualmente essenciais a uma vida digna, parecem já estar culturalmente no domínio da provisão privada, como é o caso da electricidade. Com a liberalização do mercado eléctrico junto de consumidores finais, o número de agentes privados cresceu na simulação de um mercado concorrencial organizada pela entidade reguladora do sector, a ERSE, que vigia os seus proveitos e custos. Esta liberalização, acompanhada pelas privatizações da EDP e da REN, conduziu a um resultado pouco surpreendente: aumento do preço da electricidade consistentemente acima da inflação, e lucros crescentes para as empresas do sector, conquanto os seus custos financeiros sejam cada vez mais pesados devido ao endividamento da última década e meia. Dou um exemplo: a EDP, embora tenho tido em 2014 um endividamento líquido de 17 000 milhões de euros, que compara com 9 000 em 2006, com a correspondente mais do que duplicação dos encargos financeiros, de 207 milhões em 2006 para 597 milhões em 2014, consegue resultados positivos de 1200 milhões de euros nesse último ano contra 940 milhões em 2006. Não analisei detalhadamente as contas de forma a perceber de onde vêm os proveitos e a evolução dos custos (bem sei que o preço dos combustíveis fósseis tem aqui influência), mas não me parece que o aumento acumulado de 43%, em termos reais, entre 2006 e 2014, do preço da electricidade lhe seja alheio.

Conclusão, liberaliza-se o mercado, privatiza-se a produção e a electricidade passa a ser uma mercadoria como as outras. O problema é que não é. Este ciclo neoliberal encerra contradições e falhas que precisam de ser resolvidas, sob pena de colocar todo o processo em causa. O aumento dos preços aos consumidores finais acarreta um problema irresolúvel. Por mais que o entendimento da electricidade se altere, quem não tem rendimento deixa de pagar a conta e de ter acesso. Isto é um problema para o vendedor de electricidade e um problema político, pois torna a contradição entre interesses privados e interesse público mais saliente. Neste contexto, criou-se a tarifa social de electricidade. Assim, em 2011, já depois da liberalização do mercado, o Estado impôs um desconto por via da tarifa destinada às franjas mais desfavorecidas. Este desconto é teoricamente suportado pelos fornecedores de electricidade, embora quase 20% do desconto final seja suportado pelo Estado, via IVA. Ainda assim, o impacto é marginal nos proveitos das empresas,O ciclo fecha-se. Os problemas do acesso ficam supostamente resolvidos, conquanto o esforço dos que têm menor rendimento seja cada vez maior, beneficiando os accionistas das novas empresas privadas. A tarifa social é um resíduo social da nova organização do sector guiada pelos preços, que legitima uma transformação profunda do nosso entendimento do que era antes um serviço público.

Todo este meu relambório está obviamente relacionado com o “embandeirar em arco” do governo e partidos que o apoiam em torno do alargamento da tarifa social, de resto já promovida pelo anterior governo. Argumentarão que isto é melhor do que nada e que irá beneficiar quem menos tem. Será verdade, embora os limites deste modelo sejam claros quando pensamos que um indivíduo, que viva sozinho e ganhe o salário mínimo, está excluído desta tarifa. Contudo, terá de ser claro que aceitar a tarifa social como forma de intervenção pública na electricidade é abdicar parcialmente de alternativas universais ao neoliberalismo na provisão de bens e serviços. A missão de um governo passa a ser entendida como a de resolver, com base em estratégias dependentes de condições de recursos, eventuais falhas sociais de um mercado à priori aceite como modo ideal de coordenação das economias. Todo um programa.

José Pedro Gil e Emanuel de Andrade - Menino do Bairro Negro



(interpretado por um Ensemble Orquestral composto por um Quarteto de Cordas, Piano e Voz)

Os novos arautos da igualdade


Não deixa de ser interessante que uma das linhas de ataque da direita ao Orçamento de Estado para 2016 passe por envergar uma pele de cordeiro igualitária para criticar o OE por ser regressivo nos seus efeitos distributivos, como faz por exemplo Pedro Romano nesta análise que, convenientemente, esquece ou minimiza o efeito progressivo de medidas como os aumentos do RSI, do CSI e das pensões mais baixas, a redução das taxas moderadoras ou a alteração do quociente familiar em sede de IRS, para já não falar de medidas extra-orçamentais como o aumento do salário mínimo. Da mesma forma que é também frequente e convenientemente esquecido que o principal aspecto do OE-2016 que comporta uma componente regressiva  - a reposição dos cortes salariais da função pública ao longo dos últimos anos - resulta de uma decisão do Tribunal Constitucional de 2014 que considerou inconstitucional o prolongamento destes cortes em 2016 devido a violarem o princípio da igualdade.

O que nos remete para a discussão de fundo: se estes novos arautos da igualdade querem aprofundar a dimensão redistributiva e progressiva das transferências implícitas no Orçamento de Estado, muito bem, cá estamos para isso e temos gosto em que outros se juntem a nós na defesa desse objectivo. Mas que não o façam à custa de eviscerar e desqualificar a função pública. Queremos, afinal de contas, maior igualdade entre todos, provenha o seu rendimento do trabalho no sector privado, do trabalho no sector público ou de rendimentos de capital. Pelo que as políticas de igualdade a nível fiscal e orçamental não devem nem podem, como aliás confirmou o Tribunal Constitucional no plano jurídico, serem elas próprias discriminatórias, tal como não devem ser feitas à custa do esvaziamento e desqualificação de uma função pública de que dependem a qualidade e universalidade de serviços públicos que, já agora, constituem salários indirectos com especial importância para os mais pobres.

Querem portanto mais igualdade de rendimento? Aumente-se o número e granularidade dos escalões do IRS, o que é algo que eu espero que o actual governo venha em breve a fazer em sentido contrário ao que fez o anterior governo PSD-CDS. Ou termine-se com a pouca-vergonha que é a taxa liberatória sobre juros e mais-valias bolsistas em sede de IRS e obrigue-se a que esses rendimentos, que são rendimentos como os outros, sejam englobados com os restantes rendimentos para efeitos de determinação da taxa marginal de IRS. Apenas dois exemplos do muito que deve ainda ser feito por, e exigido a, um governo eleito com base na esperança de uma viragem de página da austeridade enquanto política fiscal e orçamental de classe. Quando esta direita recém-convertida ao igualitarismo de fachada se juntar à defesa destas propostas, talvez levemos um pouco mais a sério as lágrimas de crocodilo que agora verte cinicamente.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Memória (XXII)


«O ano de 2014 está suficientemente documentado como o ano em que a execução orçamental de Passos Coelho foi subvertida pelo Tribunal Constitucional. O Tribunal Constitucional anulou mais de 1000 milhões de austeridade e Passos reagiu em conformidade: pediu uma clarificação técnica, mostrou-se profundamente preocupado com o chumbo, alertou para o impacto orçamental da decisão, cancelou uma viagem ao Brasil dada a complexidade da situação criada pelo TC e até, pasme-se!, questionou a capacidade dos juízes. Não se acredita, portanto, que Passos venha reclamar méritos de uma execução orçamental tão perturbada pelo TC. Assim, quando vir Passos falar da credibilidade das metas orçamentais, a pergunta que de facto se impõe é: que autoridade tem Passos para falar de objetivos orçamentais?»

Excerto de um post imperdível do Nuno Oliveira no 365 forte. A ler na íntegra.

Pensar


Pensava que os exércitos de operárias e operários pobres e explorados que contribuíram para a acumulação primitiva do capital industrial têxtil que pagou a folia e o requinte de Serralves estavam finalmente justiçados com a abertura do jardim e do museu à res publica. Engano. O Estado e os tios e tias dos fundadores da fundação mais as suas empresas e piedosas obras de mecenato e outras manobras de distinção e tudo que lhes dá um verniz de arte contemporânea e de empenhamento social decidiram apoiar esta decisão inteligente e oportuna num tempo em que a entrada grátis ao domingo de manhã era mais que justificável.

Se a fundação não tem guito, que mude a programação e, em vez da arte pop, do minimalismo, do pós-minimalismo, da arte conceptual e da arte povera, que invista mesmo na arte pobre para os pobres. Ficávamos mais contentes, permanecia o amor ao museu e seguiríamos mais conciliados com uma verdadeira arte capaz de iluminar a nossa condição contemporânea de estarmos por conta de um punhado de ricos escandalosamente ricos a reinar num planeta de pobres desgraçados aos milhões.

Álvaro Domingues, Serralves, para que te quero?, Público. Crónica exemplar dos tempos que correm, denúncia invulgar de uma forma de exclusão que se vai vulgarizando, aliás em linha com o atento trabalho deste geógrafo das nossas transformações. Domingues devia mas é ter uma coluna regular num jornal de referência...

domingo, 21 de fevereiro de 2016

O regresso a 2011 ou "keynesianismo" de direita?

Agora que está liberto de obrigações, Pedro Passos Coelho assume erros no passado (embora sem os concretizar). E declara que foi com ele que a austeridade começou a ser removida.

E em parte, os números parecem dar-lhe razão. Mas por motivos que não os apresentados por ele.

Fonte: INE, Contas Nacionais, OE (2015, 2016)
Leia-se o programa de Governo PSD/CDS (pag.12): "O Governo entende que a austeridade na despesa do Estado, sujeita a modelos de eficiência, virá a constituir, a prazo, uma alavanca para a melhoria da produtividade, para o incremento do potencial de crescimento e para a criação de emprego". Este era o cerne do programa económico do PSD/CDS: reduzir o peso do Estado na economia para libertar recursos para iniciativa privada.

Agora, olhe-se para o 1º gráfico, construído com base nas estatísticas do INE (em contabilidade nacional). 

O que sobressai do gráfico?

Que o Governo de direita que defendeu as virtudes da austeridade na despesa pública, parece ter beneficiado do seu contrário. A alavancagem que o Governo conseguiu para o crescimento do PIB a partir do 2º semestre de 2013, parece ter surgido do facto de o Governo não ter aplicado a sua política económica. Imagine-se o que teria acontecido à economia portuguesa com uma reforma do Estado em 2013, com redução de um número significativo de funcionários e mais cortes no financiamento à actividade pública, como previa o Memorando e o programa do Governo PSD/CDS.

Mas paradoxalmente, parece que cabe agora ao Governo socialista - por pressão de Bruxelas - aplicar aquilo que não foi imposto à direita. Então para quê tanta crítica da direita ao OE socialista? Está o PSD a querer que o PS não ajoelhe a Bruxelas e defenda uma maior expansão da despesa pública? O que quer afinal o PSD?

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Os limites da «economia do empobrecimento competitivo» (II)

Um estudo recente mostra que «Portugal é um dos piores países da OCDE para trabalhar», com elevados níveis «de insegurança no mercado de trabalho e sendo um dos dez piores países em termos de qualidade das remunerações». Aliás, na generalidade dos indicadores do relatório, Portugal surge de forma sistemática em posição desfavorável. Em 25 países, é o 3º com maior «risco de desemprego»; o 4º com maior «insegurança laboral» e «desigualdade de rendimentos»; o 9º com níveis mais elevados de «stress laboral»; o 19º em matéria de «qualidade do rendimento» e «rendimento médio»; o 16º na «protecção no desemprego». No indicador síntese da Qualidade do Mercado de Trabalho, estabelecido a partir deste conjunto de variáveis, Portugal ocupa a 20ª posição, apenas superando a Polónia, a Hungria, a Grécia, a Eslováquia e a Turquia.


À escala europeia, o retrato que o estudo permite traçar é bem revelador das assimetrias existentes e do fosso de diferenciação entre centro e periferia, relembrando os círculos concêntricos de Heinrich von Thünen. Os elevados níveis de qualificação do mercado de trabalho nos países do centro e Norte europeu têm como contraponto a desqualificação do mercado de trabalho nos países da periferia e do Sul, num processo de clivagem e divergência que as políticas de austeridade e empobrecimento acentuaram nos últimos anos.

Não por acaso, de facto, muitos dos países pior posicionados no ranking de qualidade do mercado de trabalho são os que registam uma evolução particularmente negativa em termos de saldos migratórios (como sucede no caso de Portugal, Espanha ou Grécia). Do mesmo modo que muitos dos países melhor posicionados em termos de qualidade do mercado de trabalho são os que registam ganhos migratórios mais expressivos nos últimos anos (como é o caso do Luxemburgo, da Alemanha ou da Áustria).


O mercado de trabalho não é pois imune às leis da oferta e da procura, reagindo aos processos de desregulação laboral, empobrecimento e alegado «ajustamento» das economias. Como referia há tempos o Luís Gaspar, «baixam-se os salários no pressuposto que o trabalho é demasiado caro. O trabalho vai-se embora. Mesmo para o mais ortodoxo dos economistas, isto deveria querer dizer que o trabalho não estava caro. A única transformação estrutural da economia arrisca-se a ser esta: em vez de serem os salários que se "ajustam" à economia, é a economia que se ajusta aos salários baixos». Ou seja, as políticas de austeridade não são almoços grátis, como dizia o outro. Têm contradições e limites intrínsecos, que as tornam contraproducentes e que se pagam caro, no presente e no futuro.

Talvez sejam dados como os deste estudo que levam João César das Neves a concluir, nas Jornadas Parlamentares do PSD, que é necessário diminuir a «rigidez do mercado laboral» de um país que considera «em vias de extinção», devido à falta de nascimentos e à emigração. Para enaltecer, logo a seguir, o facto de o anterior governo ter sido «o que mais liberalizou o mercado de trabalho» em Portugal, lamentando por não se ter, mesmo assim, conseguido aproximar o país dos seus parceiros europeus: em matéria de rigidez laboral, segundo César das Neves, «estamos à frente da tropa toda». Como os dados ali em cima permitem constatar, claro.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Precisamos de um Banco de Portugal


Com uma excepção, a actuação no caso de dívida do Novo Banco, temos sido neste blogue bastante críticos da acção do Banco que não é de Portugal, em geral, e de Carlos Costa, em particular: Por um manifesto anti-Costa.

É preciso, no entanto, nunca perder de vista que a sua actuação reflecte as perversidades mais gerais da Zona Euro, do Banco Central Europeu e das suas sucursais, da independência dos Bancos Centrais face ao poder político democrático. O outro lado desta última é a dependência política face ao capital financeiro, a cujo poder crescente desde os anos oitenta chamamos financeirização. As crises cada vez mais frequentes são o resultado deste arranjo neoliberal em que os custos sociais são transferidos para o público.

Carlos Costa já devia ter abandonado o cargo há muito, claro, perante esta crise bancária em câmara lenta, perante as suas responsabilidades políticas pela desgraça dos últimos anos, mas não estou certo que algo de fundamental mudasse com esse acto de dignidade básica. Na realidade, Carlos Costa nunca devia ter ido lá parar, dado o seu percurso.

De qualquer forma, é interessante ver, através de uma conveniente chamada de atenção do Negócios, como o governador já mobilizou os seus amigos em Frankfurt: quem se mete com o governador, leva com Draghi? Se sim, então este é um braço de ferro cujo desenlace será mesmo muito interessante.

No fim, não há como escapar à ideia de que o Estado português precisa de um Banco Central na dependência do Ministério das Finanças, com autonomia técnica, mas com os seus fins determinados politicamente, um Banco de Portugal, no fundo. Tudo o que nos possa aproximar disto deve ser saudado.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Estamos a regressar a 2011? - 1

Quem veja televisão e leia jornais parece que, desde que o Partido Socialista chegou ao Governo, Portugal está em risco de voltar a 2011, mas antes da entrada da troika. Hoje, Passos Coelho repete aquela velha máxima desse tempo: "pusemo-nos a jeito", frase que é uma antecâmara do prato forte - um programa endurecido - bem regado com molho "não há alternativa" porque "temos de fazer o que os mercados querem". Um prato que, como se sabe, não saiu muito bem e ainda hoje está por digerir.

Este "revivalismo" não é um acaso. E isso ficou bem patente no debate organizado pelo Observatório sobre Crises e Alternativas", dedicado ao tema "A narrativa da crise e crise das narrativas", que se realizou ontem em Lisboa, no ISCTE.

Na minha participação, expus - muito sucintamente - a evolução entre 2010 e 2014 do pensamento de seis jornalistas económicos da nossa praça - Pedro Santos Guerreiro (PSG), Helena Garrido (HG), Camilo Lourenço (CL), António Costa (AC), Nicolau Santos (NS) e João Vieira Pereira (JVP). Em linhas gerais, o que se verificou nesse período foi um progressivo e crescente criticismo à eficácia da aplicação do programa de ajustamento. NS contra a própria filosofia subjacente; PSG, HG, AC e JVP dando conta dos fracos resultados do programa, mas criticando o Governo de falta de iniciativa; e CL defendendo veementemente a filosofia original do programa. A exposição - na presença de HG, NS e JVP - tornava evidente a alteração de posições dos jornalistas: desde uma recusa à vinda da troika, passando pelo seu entusiástico acolhimento, pela defesa da aplicação do programa e de um Governo PSD/CDS, pela crítica posterior aos técnicos da troika, antes erguidos - por eles - como "popstars" e que afinal demonstraram o seu falhanço; pela crítica ao vazio do poder da direita no poder. E tudo terminava com citações recentes de jornalistas, já em 2016, defendendo a necessidade de um programa de austeridade que nos tire o bafo dos mercados no nosso pescoço. Tal como acontecera em 2011.

Mas - culpa minha - não concluí de forma mais clara.

Lançamentos


Estão previstos outros lançamentos, para já apenas em Coimbra e no Porto. Daremos novidades.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Licenciados e doutorados a mais? Muitas humanidades e poucas engenharias? Não acredite em tudo o que pensa

Hoje no "Números do Dinheiro" (RTP3, 22h) discute-se ciência, ensino superior e inovação. Como vamos filmar fora do estúdio e com estudantes à volta (na FEUNL), hoje não haverá gráficos. Deixo aqui alguns que gostaria de mostrar.

Antes de olharem para eles, porém, convido-vos a lerem as seguintes frases e decidirem o que pensam delas:

1) Há licenciados e doutorados a mais em Portugal.
2) Há demasiados licenciados e doutorados em áreas de ciências sociais humanidades, e poucos nas ciências naturais e engenharias.
3) Os novos doutorados portugueses estão condenados ao desemprego.
4) Os poucos que conseguiram emprego antes da crise beneficiam de condições contratuais privilegiadas.

Leram com atenção? Então olhem para os gráficos e verão que as quatro frases não são mais que lugares comuns, com pouca sustentação nos dados.

Quando fazemos comparações internacionais percebemos que há poucos licenciados e doutorados em Portugal, e que uma parcela significativa das pessoas com formações superiores especializa-se nas áreas que supostamente estão mais próximas de aplicações tecnológicas avançadas. Os doutorados continuam a ser necessários, o que é revelado pela reduzida taxa de desemprego (claro que esta esconde a emigração de muitos). No entanto, a maioria dos doutorados continua a trabalhar em condições muito precárias, e não é só no início da carreira. Enfim, como dizia um livro indispensável publicado há uns tempos, "Não Acredite em Tudo o que Pensa".

Nota: os dados apresentados são os mais recentes que se encontram disponíveis.








Seminário: «As Narrativas da Crise» (17 de Fevereiro)

«Nenhuma narrativa é neutra. Quem conta um conto não só acrescenta um ponto, como confere um sentido aos acontecimentos relatados. (...) Designamos os relatos analisados neste seminário por "narrativas da crise", conscientes de que o termo "crise" é em si mesmo central na narrativa dos acontecimentos experimentados. Porque se disse da sequência de eventos relatados que eles configuravam "uma crise"? O que está implícito na interpretação desses acontecimentos como "uma crise"?
As narrativas da crise são importantes. Elas proporcionam a pessoas perplexas e confusas, pela sequência surpreendente de acontecimentos adversos, um enquadramento interpretativo que define o que "correu mal" e "o que deve ser feito". Esse enquadramento condiciona o modo como todos (re)definimos no contexto da crise as nossas preferências, interesses e valores e a posição que enquanto cidadãos assumimos – de acordo, consentimento ou de rejeição - às soluções de política adotadas.
As narrativas da crise carreiam interpretações dos acontecimentos, mas não estão imunes ao desenrolar dos acontecimentos e à crítica. Por muito poderosas que sejam, há sempre momentos em que as narrativas podem entrar elas próprias em crise com um simples “O Rei vai nu”. É isso que discutimos quando além das narrativas da crise falamos de crise das narrativas.»

Organizado pelo Centro de Estudos sobre a Mudança Socioeconómica e o Território (Dinâmia'CET/ISCTE), pelo Observatório sobre Crises e Alternativas (CES-UC) e pelo Sindicato dos Jornalistas, decorre amanhã no ISCTE (Auditório J. J. Laginha), em Lisboa, a partir das 14h00, o Seminário As Narrativas da Crise e a Crise das Narrativas. Em debate, «Crise, troika, austeridade: uma leitura das narrativas da crise a partir da análise linguística do discurso» (por Isabel Margarida Duarte e Alexandra Guedes Pinto); «O FMI e a experiência do “resgate” português» (por Ana Costa); e «A narrativa da austeridade na imprensa económica portuguesa» (por João Ramos de Almeida).
A apresentação dos temas será moderada por José Castro Caldas (CES) e os comentários por Paulo Martins (Sindicato dos Jornalistas). Participam no painel de comentadores: Ana Luísa Rodrigues (Sindicato dos Jornalistas), Cunha Vaz (Cunha Vaz & Associados), Helena Garrido (Jornal de Negócios), João Rodrigues (CES-UC), João Vieira Pereira (Expresso), Nicolau Santos (Expresso), Rita Espanha (CIES/ISCTE) e Rita Figueiras (FCH-UCP).
A entrada é gratuita, devendo as inscrições ser feitas aqui.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Paralelismos


Vale a pena ler Francisco Louçã – Quanto custa a um economista não perceber a crise – sobre o fracasso de Irving Fisher (1867-1947), um dos mais importantes economistas, em 1929, tomando como pretexto o excelente A Queda de Wall Street.

Assinalo, no entanto, que Fisher redimiu-se, por assim dizer, através de uma análise profunda sobre as causas da depressão, a interacção perversa entre dívida e deflação, por exemplo num artigo de 1933. Tomáramos nós que todos os grandes economistas convencionais tivessem a mesma capacidade no actual contexto.

Deixem-me ser optimista, como se isto fosse uma mera questão intelectual. Talvez assim não fosse tão provável que tantos repetissem, sobretudo na televisão, o mantra que nos leva outra vez para o buraco: mais austeridade para “acalmar” os mercados, vistos quer como predadores hiper-racionais, quer como rebanhos assustados.

Estamos condenados a isto? Creio que enquanto vigorar a mentalidade do Euro, o equivalente contemporâneo da mentalidade do Padrão-Ouro, essa relíquia bárbara, como lhe chamou Keynes (e nisto Fisher e Keynes estavam de acordo), a resposta é clara. E sim, precisamos de um Plano B, e não, não é o do Eurogrupo.

domingo, 14 de fevereiro de 2016

E ainda: o OE2016 promove ou não uma melhor redistribuição de rendimentos?

Eu sei que já cansa, mas o tema não está esgotado.

O DN volta hoje à carga num artigo com um título nada inocente, "Orçamento distribui mais dinheiro a quem ganha mais". O argumento, basicamente, é este: a devolução de salários na função pública e o corte da Contribuição Extraordinária de Solidariedade em 50% beneficiam rendimentos mais elevados, que foram aqueles que foram mais prejudicados no passado. Logo, são estes os escalões de rendimentos que mais beneficiam.

Isto é verdade e não é.

Como tenho escrito, o OE cumpre várias funções, uma delas é melhorar a redistribuição de rendimentos, outra é repôr a normalidade constitucional. A reposição dos salários da função pública tem mais a ver com o segundo objectivo do que com o primeiro. Mas isto não significa que o OE2016 não beneficie os rendimentos mais reduzidos.

Vejam a tabela abaixo, construída com base nas simulações publicadas no Jornal de Negócios do passado dia 10/2. As simulações têm em conta várias medidas previstas ou já em vigor: Reposição dos salários da Função Pública de forma gradual; Eliminação total ou parcial da sobretaxa de IRS; Aumento do salário mínimo nacional de 505 para 530 euros; Reforço do Rendimento Social de Inserção; Aumento do abono de família; Aumento do Complemento Solidário de Idosos para os reformados muito pobres; Actualização em 0,4% das pensões abaixo de 600 euros; e Redução da Contribuição Extraordinária de Solidariedade.

A variável "vencimento público equivalente", que acrescentei, divide o valor total dos vencimentos brutos pelos membros da família (com cada adulto a valer um e cada filho a valer 1/2), de modo a aproximar-se das necessidades de cada família. O quadro mostra-nos que os maiores benefícios, em termos propocionais, vão para agregados de baixos rendimentos (que tipicamente estão no sector privado ou são reformados).



Em geral, o impacto das medidas adoptadas pelo governo beneficia mais os rendimentos inferiores. Mas há excepções que saltam à vista. Sem surpresa, entre os agregados com rendimentos mais elevados aqueles que mais beneficiam são os funcionários públicos - o que traduz o facto de terem sido os principais afectados pelos cortes dos últimos anos. Entre os rendimentos mais baixos são também de funcionários públicos os agregados menos beneficiados pelas medidas agora propostas, por razões semelhantes às que referi.

Com base nestes dados (que são apenas exemplificativos) a conclusão que parece emergir é esta: a orientação geral do OE parece a correcta, tendo em conta os objectivos a atingir. Ainda assim, poderão ser introduzidos no OE2016 alguns ajustamentos pontuais, em sede de debate na especialidade na Assembleia da República, de modo a torná-lo um instrumento mais coerente e eficaz.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

O Orçamento menos mau

A proposta de OE para 2016 pode ser avaliada sob duas perspectivas distintas: as prioridades que estabelece e as opções que faz para as prosseguir.

Os acordos entre os partidos de esquerda que suportam o governo elegeram como principais prioridades: a aceleração da retoma económica e do emprego; a redução das desigualdades e da pobreza; e a reposição da normalidade constitucional. Conforme acordado, estes objectivos deveriam ser prosseguidos através de um estímulo à procura interna por via do aumento dos rendimentos das famílias – em particular das menos abastadas (contribuindo simultaneamente para aumentar o consumo e para reduzir as desigualdades) – e a reversão imediata dos cortes de salários à função pública, classificados como inconstitucionais por quem de direito.

A prossecução destas prioridades enfrentava, à partida, dois constrangimentos fundamentais: as regras orçamentais da UE e a dependência do país (em particular do Estado) face ao financiamento externo. Havendo por parte do PS a opção por não questionar nenhum destes constrangimentos, adivinhava-se à partida que a elaboração do OE para 2016 seria um exercício exigente.

Há quem considere que o governo elegeu as prioridades erradas – que a reversão das inconstitucionalidades, o estímulo à procura interna e a redução das desigualdades deveriam ser objectivos subordinados à redução dos défices público e externo, como forma de "credibilizar o país perante os investidores". Aqui estamos no domínio das escolhas políticas e cada um faz as suas.

Por outro lado, importa saber se a proposta de OE para 2016 é ou não coerente com as prioridades estabelecidas pela maioria parlamentar que suporta o governo - e que, de resto, subscrevo. Considero que sim e não creio que fosse possível fazer muito melhor.

A reposição dos salários da função pública é feita de modo faseado ao longo de 2016. A redução da sobretaxa do IRS é feita de forma selectiva, beneficiando as famílias de menos rendimentos. São reforçadas, de forma contida e condicionada, as transferências sociais (RSI, CSI, etc.). A compensação do aumento da despesa é conseguida através do aumento de impostos especiais sobre tipos de consumo que devem mesmo ser desincentivados (crédito, energia, tabaco, automóvel).

O grande problema desta proposta de OE para 2016 é o facto de dar uma resposta demasiado modesta a quase 1,3 milhões de portugueses que não encontram um emprego em condições. Mas, provavelmente, é a melhor resposta possível, dadas as restrições existentes.

[Texto publicado no Jornal de Negócios no dia 10/2/2016]

Leituras: Revista Crítica - Económica e Social (n.º 5)


«Interpretações diversas e divergentes sobre a Constituição da República Portuguesa em função dos resultados eleitorais das últimas Eleições Legislativas e da campanha Presidencial, motivam este número da Revista Crítica Económica e Social no que serão interpretações de direitos e deveres económicos, sociais e culturais, como o trabalho, o emprego, o salário, a segurança social, a saúde, a educação, sem esquecer as vertentes da igualdade de oportunidades e o combate às desigualdades. , com artigos e opiniões de Alexandre Abreu, Ana Sofia Fernandes, Fernando Marques, Isabel do Carmo, José Soeiro, Manuel Carvalho da Silva, Manuela Silva, Maria Eduarda Gonçalves, Maria Eduarda Ribeiro, Nuno Serra, Pedro Adão e Silva, Pierre Guibentif, Renato Miguel do Carmo, Ricardo Paes Mamede e Teresa Fernandes.
O sistema financeiro e os recentes casos relacionados com a Banca nacional, especialmente o BES e o BANIF, são analisados por Alexandre Abreu, António Bagão Félix, Eugénia Pires, Francisco Louçã, João Galamba, João Ramos de Almeida, João Rodrigues, Mariana Mortágua, Paulo Coimbra e Ricardo Cabral.
São ainda publicados artigos originais ou actualizados sobre ambiente e desenvolvimento sustentável por Carlos Gaivoto, Gonçalo Calado e João Camargo, e divulgados trabalhos artísticos que retratam outras leituras da crise do sistema financeiro, por Luís Miguel Castro e Tiago Gomes.»

O editorial (assinado por Ana Costa, José Luís Albuquerque e Francisco Louçã) da edição de Janeiro da revista Crítica - Económica e Social (n.º 5), que já se encontra disponível para download gratuito (em formato pdf). Boas leituras!

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Portugal é mesmo um país tão desigual assim?

Na passada 3ª feira mostrei o gráfico abaixo durante o programa "Números do Dinheiro" da RTP3, onde se discutia a proposta de Orçamento de Estado para 2016 (OE2016).


O gráfico dá conta da distribuição das famílias portuguesas por escalões de rendimentos e o meu objectivo ao mostrá-lo era duplo:

1) mostrar que a maioria dos comentadores fomenta uma noção errada do que é a "classe média" em Portugal (as famílias que têm em mente auferem, na verdade, rendimentos muito acima da média e da mediana da distribuição); e

2) contestar a ideia de que o OE2016 penaliza as famílias portuguesas de classe média.

Várias pessoas se mostraram cépticas em relação aos dados apresentados no gráfico - e têm boas razões para isso. Os dados correspondem à distribuição do rendimento colectável (o rendimento bruto menos as deduções específicas; caso se trate de um casal o valor é dividido por dois), com base no qual se definem os escalões do IRS a aplicar. Ora, sabemos bem que há muita fuga aos impostos em Portugal. Isto significa que muitas famílias que oficialmente se encontram no escalão mais baixo de rendimentos, na verdade, auferem rendimentos superiores. Nalguns casos, muito superiores: em Dezembro, José Azevedo Pereira, ex-Director-Geral dos Impostos, afirmava ao Jornal de Negócios que havia cerca de mil famílias muito ricas que apenas asseguravam 0,5% da receita de IRS, cerca de 500 vezes menos do que seria expectável.

Note-se, porém, que isto em nada invalida as duas mensagens que acima referi.
Para o perceber, façamos um exercício simples. Imaginemos (provavelmente exagerando) que nada menos do que metade dos 68,4% de famílias que são incluídas no escalão inferior subdeclara os rendimentos que aufere. Se distribuirmos esses 34,2% de famílias pelos restantes escalões de acordo com a sua proporção (como faço no próximo gráfico), verificamos que as conclusões fundamentais se mantêm.


É verdade que o número dos muito ricos aumentou neste novo cenário hipotético – há agora mais 11 mil famílias (muitas mais do que as mil referidas pelo ex-Director-Geral de Impostos). Ainda assim, elas representam apenas 0,22% dos agregados familiares portugueses (só mais 0,02 pontos percentuais do que no caso anterior). O escalão seguinte (dos 40 mil aos 80 mil euros) pesa agora 2,5% (apenas mais 0,9 pontos percentuais do que anteriormente). Ou seja, mesmo supondo que o IRS distorce, e muito, a verdadeira distribuição de rendimentos, Portugal continua a ser um país muito desigual. E as famílias com rendimento colectável superior a 40 mil euros - as tais que são menos favorecidas, ou até penalizadas, pelo OE2016 - não representam mesmo a "classe média" portuguesa.

Note-se também que se o segundo gráfico estiver mais próximo da realidade do que o primeiro, então o OE2016 é ainda mais justo - e não menos.

Há quem critique o OE2016 pelo facto pretender resdistribuir os rendimentos fundamentalmente através redução da sobretaxa do IRS. O problema é que as famílias de rendimentos muito baixos não pagam IRS; como tal, não beneficiam da redução da sobretaxa. Importa, porém, notar dois aspectos.

Primeiro, a redução de sobretaxa não é a única forma prevista no OE2016 para promover a redistribuição de rendimentos; há que considerar, nomeadamente, o reforço das transferências sociais (RSI, CSI e abono de família) e a forma como são considerados os filhos e ascendentes a cargo (que é menos regressiva do que o anterior quociente familiar). Em geral, estes são benefícios menos sujeitos a fraude, pelo que tendem a deixar de fora os supostos "falsos pobres".

Segundo, se o número de famílias pobres é menos elevado do que as estatísticas oficiais sugerem e se uma parte significativa das verdadeiramente pobres beneficia de outras formas de distribuição, então a ideia de que o OE2016 favorece a classe média-baixa mas não os mais pobres dos mais pobres também é incorrecta. Quando muito podemos dizer que o OE2016 não favorece as famílias que não declaram rendimentos para efeitos fiscais, mas que têm situações mais folgadas do que as estatísticas sugerem - o que não se pode considerar propriamente uma injustiça.

Demos as voltas que dermos, Portugal é mesmo um país muito desigual - e o OE2016 dá algum contributo para corrigir esta situação. Mas continuaremos a ser um país muito desigual enquanto estiver por resolver a principal fonte dos problemas: a falta de empregos em condições. Mas esse é tema para outros textos.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

A financeirização do capitalismo em Portugal


Este livro constitui a primeira abordagem de economia política à financeirização do capitalismo em Portugal. Desafia a sabedoria económica convencional, que durante muito tempo ofuscou os efeitos perniciosos deste processo, reduzindo-o a uma benigna «modernização financeira». A estagnação prolongada e a crise económica exigem que se rompa com esta visão ideológica. Em alternativa, o livro propõe uma análise crítica dos mecanismos que explicam o peso que a finança adquiriu em múltiplas áreas da provisão de bens e de serviços, da habitação à segurança social, passando pelo sector da água. A tese principal do livro é a seguinte: a evolução do capitalismo em Portugal nas últimas três décadas foi marcada pela ascensão da finança, em geral, e da banca privada, em particular, determinando as principais dinâmicas socioeconómicas e políticas do país desde então. Tratou-se de um processo internacional que, no caso específico português, é devedor da integração europeia que finalmente culminou num Euro disfuncional.

A sinopse do livro, que estará nas livrarias esta semana. Em breve, daremos novidades sobre os lançamentos em Lisboa, Coimbra e Porto.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Treinar o olhar

Há sempre boas razões para se olhar de forma crítica para o campo mediático. Mas por vezes os cidadãos estão particularmente despertos para essa reflexão, porque o quadro que a suscita entra pelos olhos e pelas casas adentro, quase se impondo à observação. Esses momentos não significam necessariamente uma grande alteração, nem sequer degradação, dos defeitos e constrangimentos que pesam sobre as práticas jornalísticas. Podem traduzir apenas as desarrumações que ocorrem em momentos de instabilidade, de mudanças de maior ou menor grau. A questão é esta: como fazer com que essa percepção de desconforto perante uma informação que devia ser muito mais do que é, porque ela enforma as nossas escolhas resulte num aprofundamento da democracia? Para começar, aproveitando esses momentos para nos determos nos aspectos sistémicos deste campo, para lá da fulanização e das caricaturas, e para treinarmos o olhar crítico, mesmo em situações em que as «normalidades» nos são apresentadas como tão «naturais» e estáveis que esquecemos que elas são terrenos de debate e de escolhas.

Sandra Monteiro, Media e Política, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Fevereiro de 2016.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Do not go gentle into that good night

Os artigos de opinião no Expresso estão cheios de animais. "Já não é carne nem é peixe, é um animal mitológico, tem tronco de anfíbio, cabeça de abóbora e próteses nos membros" (diz Pedro Santos Guerreiro). É "uma espécie de ornitorrinco, um mamífero keynesiano enxertado de ovíparo austeritário" (diz Ricardo Costa). "Um animal estranho" (diz Nicolau Santos). Para a maioria dos colunistas, a proposta de OE é um bicho sem coluna.

Mas estranhamente, ninguém se questiona sobre o que seria o bom OE. À excepção de Nicolau Santos, ninguém discute se este OE contribui para criar mais emprego, para absorver um milhão de desempregados (em sentido lato), se ajuda a atrair os quadros emigrados, se vai no sentido de se produzir mais e importar menos, de se resolver a camisa de onze varas em que Portugal se encontra. Nada. Apenas a pequena esgrima palaciana e, curiosamente, apenas ideias que entroncam na estratégia da direita - relatada pelo próprio Expresso - de mostrar que o "caminho de Costa não dá", o que obrigará o PS a adoptar mais austeridade para cumprir metas impostas e levar a "esquerda radical" a quebrar o acordo, forçando a queda do governo e a convocação de eleições antecipadas. Helena Garrido, no editorial de hoje do Jornal de Negócios, fala mesmo de "novas eleições que podem acontecer a qualquer momento".

A direita está tão convicta desta ideia que entrou em modo de campanha. O PSD sublinha que o OE é uma "manta de retalhos", Passos Coelho parte pelo país fora, protestando contra o "grande aumento de imposto" e o CDS fala de um "aumento significativo de impostos". Até parece um remake das eleições de 2011, quando Passos Coelho se enfurecia contra a austeridade de Sócrates, e que - verdade se diga - lhe deu a maioria absoluta.

Essa é igualmente a estratégia da Comissão Europeia que – obviamente – sabe o que deveria ser feito para criar emprego, mas prefere antes forçar medidas que puxam para baixo o crescimento económico e que, assim, ajudarão à mudança de poder em Portugal. É nisto que estamos envolvidos.

Mas tudo isto para fazer o quê depois? Baixar impostos? Aumentar a despesa pública? Criar mais desemprego ou manter o que temos? Promover a emigração?

Debate sobre o orçamento: quatro ausências e uma lição.


A tendência, prevalecente em certos meios de esquerda, para fazer amálgamas entre o PS e o PSD, dizendo que são exactamente a mesma coisa, sempre me irritou. Qualquer tentativa no sentido de mostrar diferenças era brindada por epítetos de "reformismo" ou o clássico "queres é ir para o PS". Mutatis mutandis, a situação hoje é bem diferente. Este Orçamento de Estado (OE) tem sido objecto da maior propaganda política de que me lembro, o tal "spin" da moda, à esquerda e à direita, com dois blocos bem definidos na defesa e no ataque ao documento. No entanto, não obstante evidentes diferenças com o que seria um OE da direita, o debate tem esquecido pontos essenciais, presentes na discussão de outros orçamentos.

O primeiro ponto que importa realçar e que, curiosamente, está ausente da discussão pública à esquerda, é a sua incapacidade de responder ao maior problema da economia portuguesa, o desemprego. Este é um orçamento restritivo, que prevê um aumento maior das receitas do que da despesa e que, graças a Bruxelas, impõe uma redução significativa do défice público (de 3,1% do PIB para 2,2%). Ou seja, este orçamento não responde ao problema da capacidade produtiva instalada por utilizar (quer de capital, quer de trabalho). Pelo contrário, agrava-o, reduzindo os montantes de investimento público. A redução de 10 mil funcionários públicos previstos é bem significativa da relação deste orçamento com o problema do desemprego.

A redução do número de funcionários públicos conduz-me ao segundo ponto ausente do debate: os cortes. Os serviços públicos, como educação e saúde (verdadeiro salário indirecto), são sujeitos a cortes ou nominais, na educação, ou reais, na saúde (aumento de 0,6%, abaixa da inflação prevista). Já conhecemos os eufemismos dos "ganhos de eficiência". Na verdade, estamos perante cortes nestes serviços públicos, que serão ainda maiores se tivermos em conta que ambos os orçamentos incluem aumentos de gastos salariais, por via da reposição de salários. A reposição de salários e a descida da sobretaxa do IRS conduz-me à terceira ausência: a repartição destas reposições.

A reposição salarial é obviamente justa face ao esbulho praticado junto das classes médias/médias altas, mas a verdade é que este orçamento concentra aumentos de rendimento na segunda metade da escala de rendimento dos trabalhadores. Os trabalhadores que ganham mais de 1500 euros são aqueles que mais beneficiam da redução do IRS, a que se junta a reposição salarial mais concentrada junto dos funcionários públicos mais bem remunerados. Quem se encontra na primeira metade do rendimento ganha, comparativamente, pouco. Perdeu-se uma oportunidade de reduzir a desigualdade salarial.

A quarta ausência no debate vai no sentido contrário. A subida dos impostos sobre combustíveis é de elementar justiça. Se queremos combater seriamente as mudanças climáticas, o retorno ao combustível fóssil barato deve ser impossibilitado. Como imposto indirecto que é, pode ser argumentado que estamos perante um aumento regressivo, mas na verdade penso que a realidade é bem mais complicada: quem tem um BMW consome mais gasolina e anda mais de automóvel. Acresce que falamos de importações, cujo aumento deve ser desincentivado.

Finalmente, este orçamento mostra, mais uma vez, quem manda nas opções políticas e na alocação de recursos no nosso país: a UE, através da sua não-eleita Comissão. As lágrimas de crocodilo de António Costa "este orçamento é pior do que o apresentado" servem de muito pouco a quem cá vive. Daqui a uns meses, é provável que tenhamos um orçamento rectificativo. O sentido das ordens da União Europeia é claro. Ter um plano B é imperativo.