terça-feira, 31 de julho de 2012

Uma boa notícia e um novo blogue

O Câmara Corporativa está de volta. E o Ministério da Contrapropaganda abriu as hoje as portas ao público.

Ligações

Sabemos que os salários estão em queda no nosso país. Ao mesmo tempo, a taxa de desemprego bate novos recordes. Isto anda tudo a ser ligado por uma economia política da austeridade tão transparente quanto perversa: “novo Código Laboral reduz custo do trabalho em 5%”, calcula o governo. Cálculos por baixo, como se assinala agora que entra em vigor este instrumento de consolidação de uma economia já sem pressões laborais, graças ao desemprego de massas. O governo diz que espera efeitos positivos na criação de emprego a prazo e até manda inventar números e tudo. Esquece-se que os salários são um custo para as empresas, e nem sequer o mais significativo, mas também são uma fonte de procura, e bem significativa, além de que o seu crescimento, garantido por regras laborais exigentes, é um útil bloqueio à perpetuação de estratégias empresariais medíocres. A procura será externa ou não será, dizem. Ninguém cresce o suficiente com base apenas na procura externa sobretudo quando esta estratégia de transferência de rendimentos do trabalho para o capital está em curso à escala europeia, comprimindo o mercado interno europeu, e quando sabemos que os problemas de competitividade não têm origens salariais internas. A quase quadruplicação da taxa de desemprego nos últimos doze anos, período em que tivemos diversas alterações regressivas na legislação laboral, não será revertida com esta política de alterações cada vez mais atentatória da dignidade de quem trabalha. Pelo contrário, a austeridade recessiva e estas reformas fora do prazo estarão indelevelmente ligadas à destruição de emprego, à precariedade, à redução dos salários e ao aumento de pessoas insolventes, ao aumento das desigualdades. É o que dá termos um governo ligado a interesses tão medíocres. Um futuro governo que ligue ao mundo do trabalho terá de cortar muitas ligações perversas e de refazer outras mais profícuas.

Lembrem-se do Pavilhão Atlântico

Tendo custado na altura o equivalente a cerca de 50 milhões de euros, e com um orçamento de manutenção a rondar os 600 mil euros anuais, o Pavilhão Atlântico foi vendido na semana passada ao Consórcio Arena Atlântico (constituído por Luís Montez, Álvaro Ramos e a actual equipa de gestão do equipamento), por cerca de 22 milhões de euros. Segundo a ministra Assunção Cristas, «o grupo Parque Expo tem uma dívida de 200 milhões de euros, daí a decisão de realizar activos, vendendo um conjunto de património relevante sobre o qual o Estado não tem função pública crucial a prosseguir».

Apesar de relevante, deixemos por agora de lado a muito discutível questão de o Estado não ter, com o Pavilhão Atlântico, nenhuma «função pública crucial a prosseguir» (sendo contudo que este critério deveria, então, ser coerente e consequente nas áreas onde se reconhece que o Estado «tem função pública crucial a prosseguir»). Mas fixemo-nos apenas na «racionalidade económica» do negócio: nas palavras da própria ministra, «o Pavilhão Atlântico era rentável» (já em plena crise, entre 2009 e 2010, os seus lucros triplicaram). O que quer isto dizer? Basicamente que não era um «fardo» para o Orçamento de Estado, antes pelo contrário.

A venda do Pavilhão Atlântico é pois apenas mais um episódio (evidentemente simbólico em termos financeiros comparativos), da longa história das privatizações em Portugal, que por sua vez se insere num processo mais vasto, o do empobrecimento deliberado do Estado. Uma história que tem vindo a ser escrita com as linhas da mais pura «irracionalidade económica» (para usar os termos do pensamento económico dominante), na óptica da defesa do interesse público e do dinheiro dos contribuintes.

Quando ouvirem falar do Estado gordo, que gasta mais do que tem, que é ineficiente e que não produz recursos suficientes para permitir a existência de políticas sociais decentes, lembrem-se do Pavilhão Atlântico. Quando vos disserem que não é possível manter um Serviço Nacional de Saúde universal e gratuito, ou um sistema público de educação com qualidade para todos, lembrem-se do Pavilhão Atlântico. Quando insistirem que não se podem assegurar os recursos mínimos de subsistência aos cidadãos mais carenciados, lembrem-se do que significa - simbolicamente - a privatização do Pavilhão Atlântico.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Leituras

Ler economistas políticos críticos do “Sul” que escrevem sobre a crise da zona euro é compensador, já que há muito tempo que pensam sobre os problemas da inserção (in)dependente e sobre os malefícios da liberalização financeira numa perspectiva comparada. Carlos Bresser-Pereira e Jayati Gosh são dois bons exemplos.

Bresser-Pereira escreve na Folha de S. Paulo: “Diante desse quadro, digo a meus amigos espanhóis que a austeridade não resolverá seus problemas (muitos deles concordam) e que melhor para todos os países europeus era decidirem em comum acordo pela descontinuidade do euro, para, assim, evitar uma crise maior e garantir a União Europeia. Diante dessa observação, eles se calam. A sobrevivência do euro é tabu para eles.” Vai deixando de ser tabu em alguns círculos. Segue-se a invocação da experiência da Argentina, ali tão perto.

Sendo um dos principais economistas brasileiros “neo-desenvolvimentistas”, Bresser-Pereira tem enfatizado nos seus trabalhos académicos a importância de uma política cambial e de controlo de capitais especulativos amiga da indústria, o que significa que só pode olhar com cepticismo para um euro que consolidou tudo aquilo que, segundo ele, os países que se querem desenvolver não devem fazer e que bloqueou todos os instrumentos de política a que devem deitar mão.

De forma convergente, embora seja mais politicamente mais radical, Jayati Gosh da Índia oferece no The Guardian uma formulação tão esclarecedora quanto de leitura aconselhável para os moralistas imorais das finanças que aqui temos criticado: “com fluxos de capitais livres e acesso sem barreiras a crédito externo por parte dos agentes nacionais, não pode existir política macroeconómica prudente; os equilíbrios ou desequilíbrios internos mudarão de acordo com o comportamento dos fluxos de capitais, que por sua vez respondem às dinâmicas económicas que eles próprios iniciaram”. O padrão foi tão claro quanto repetitivo na época de todas as liberalizações financeiras. A Espanha parece tirada de um manual de crises financeiras. Portugal parece um pouco mais complicado, como eu e José Reis argumentamos, até porque os problemas começaram mais cedo e algumas ilusões sobre desenvolvimento sem instrumentos de política adequados mais cedo e lentamente no fundo acabaram. De resto, também vai ficando claro que o ajustamento imposto só vai causar “dor”, como indica até a The Economist em mais uma das suas magnificas capas.


Como sair daqui? Que tal aprender com quem já esteve aqui e daqui conseguiu sair, como aconselha Gosh? Gosh apela a que atentemos em países tão diferentes como a Malásia ou a Argentina, ou a Islândia, já agora: do controlo de capitais à reestruturação da dívida, só a rebelião em relação à sabedoria económica convencional resulta. Fica a pergunta que a esquerda tem de debater e enfrentar abertamente em cada um dos países: “será que tudo isto pode ocorrer no colete-de-forças imposto pela união monetária?”

domingo, 29 de julho de 2012

Serviços públicos prestados por privados nunca serão públicos

Há uns meses atrás a presidente da comissão executiva da Espírito Santo Saúde, a inenarrável Isabel Vaz, premiou-nos com mais uma das suas tiradas ao proclamar o recurso sucessivo à interrupção voluntária da gravidez como o exemplo máximo de desperdício de dinheiros públicos.

Pouco importa que os episódios de recurso repetido à IVG sejam residuais. Isabel Vaz escolhe as mentiras que quer tornar verdade, jurando que "isto não tem nada a ver com ser ou não católico" (o facto de o discurso ter sido feito em Fátima será mera coincidência). Da mesma forma, não nos restam dúvidas que ao defender que “é preciso acabar com o mito dos malefícios das Parcerias Público-Privadas”, Isabel Vaz fá-lo na qualidade de cidadã consciente e preocupada e não como Presidente do BES Saúde.


Segundo Isabel Vaz, é fundamental que se discuta "o que deve ser de facto pago por todos nós", porque "não há dinheiro para pagar tudo". Aceitando o repto, sugiro à Espírito Santo Saúde que poupe nas dezenas de milhares de euros que gasta com publicidade institucional na PPP do Hospital Beatriz Ângelo em Loures, incluindo a sua revista ilustrada (100.000 exemplares por tiragem, em papel de qualidade). Para além dos benefícios financeiros, poupava-nos a sensação de que andamos todos a pagar a propaganda dos movimentos 'pró-vida' e de grupos económicos predadores.



Políticos há muitos...


O sobe e desce do Público de sexta-feira coloca o ex-goldman Mario Draghi a subir porque o efeito das suas declarações mostra que “os mercados confiam mais no BCE do que nos políticos para salvar o euro”. No Público de hoje, Luís Villalobos alinha pelo mesmo diapasão, dizendo que “que não foi um político que se destacou esta semana, mas sim o presidente do BCE”. Em primeiro lugar, é bom relembrar que Draghi é um político porque dirige uma instituição politica, que até diz que conduz política monetária e tudo. Lá por o BCE ser uma instituição pós-democrática, nos seus procedimentos e efeitos, isso não quer dizer que seja menos política. Em segundo lugar, é verdade que a maioria dos operadores nos mercados financeiros anseia pela formação de uma convenção “salvação do euro” que ajude a ancorar as expectativas e a encarar o sempre incerto futuro com outra confiança, o que ajuda a tornar claro que as dinâmicas dos mercados financeiros estão dependentes de decisões políticas que impeçam as suas lógicas autodestrutivas em momentos de instabilidade. Em terceiro lugar, o efeito das declarações de Draghi poderá ser de curta duração sem acções à altura: uma convenção “salvação do euro” exige, como se tem repetido nos últimos anos, violar de forma cada vez descarada as regras que mal o suportam, refazer a relação quebrada pelo euro entre banco central e tesouro(s), entre políticas monetária e orçamental, colocando o BCE a agir como prestamista de última instância dos Estados (pode começar por ser por via de um fundo com licença bancária...). Draghi terá de mandar o mandato do BCE borda fora, mesmo que tente disfarçá-lo porque fazê-lo abertamente acabaria com muitas carreiras e reputações e tornaria mais difícil manter a ficção de que não é de política que se está a falar (a regulação bancária com escala europeia promete também neste campo...). Em quarto lugar, e apesar de ir conseguindo impedir o colapso da infra-estrutura monetária, o BCE está sempre muito atrasado e tem sido parte do problema nesta crise. Recapitulemos: em 2008, o BCE andava ainda a aumentar as taxas de juro por causa do seu rígido mandato, depois alinhou, em coerência com o seu código genético ideológico, com a “austeridade expansionista” e com a lógica da “rigidez laboral”, ajudando a destruir empregos por esse euro fora e tentando liquidar o que resta dos modelos sociais, acompanhando a propaganda com todo o apoio directo aos bancos, negado aos Estados, e com toda a chantagem que outras intervenções nos mercados secundários da dívida foram capazes. Em quinto lugar, é bom lembrar que a aposta baseada na intuição “o que nasce torto...” pode ser mais racional do ponto de vista de investimento individual se as peças do dominó continuarem a cair como até agora, graças às lógicas anti-keynesiana e anti-social inscrita neste euro.

sábado, 28 de julho de 2012

Dos executantes, da raiva e das assustadoras ideias simples

«É quando Pedro Ferraz da Costa diz, com aquele ar perpetuamente zangado e enjoado com o mundo, que é preciso acabar com 100.000 ou 200.000 empregos na função pública, sem problema nenhum, porque o Estado vai continuar a funcionar na mesma. É que não é análise, é desejo.
É quando se defende um mundo que funcione para as "empresas" - uma abstracção funcional porque o que eles querem dizer é outra coisa - sem ter que emperrar porque há leis, direitos e direitos, instituições e eleições, interesses outros que não os das «classes certas».
(...) É quando Passos Coelho diz que "não estamos a exigir de mais", como se fosse pouco o que se está a exigir e ainda não levaram em cima com a dose toda. É quando avança com mais uma comparação moral que mostra o imaginário em que estamos metidos; não podemos correr o risco de nos cruzar com os nossos credores "nos bons restaurantes e boas lojas". É mesmo isso que os portugueses andaram a fazer nos últimos anos, a comprar malas Vuitton e sapatos Jimmy Choo!
Passos dizia que as pessoas "simples" percebiam isto, porque de facto para ele as coisas são assim simples. Então como é que nos devemos "cruzar com os nossos credores"? De alpergatas, vestidos de chita, trabalhando dez horas por um salário de miséria? É que não é preciso andar muito tempo para trás para ter sido assim. Ainda há quem se lembre. Deve ser por isso que é preciso "ajustar".
O papel destas ideias, elas sim "simples" no sentido bíblico, é que são aquilo que está metido dentro da cabeça do discurso do poder actual, mais por parte dos executantes do que dos mandantes. O teatro do poder actual é composto por poucas personagens a preto e branco: os credores, os devedores, os empreendedores, os "não competitivos", os que "vivem acima das suas posses" e os "ajustados", "os alavancados" e os "desalavancados", os "piegas" preguiçosos e os bons alunos que fazem o "trabalho de casa" e não querem ter direitos, os "pacientes" e as "baratas tontas". Não é um mundo muito complicado, é até assustadoramente simples, mas assusta saber que é este teatro de sombras que move o discurso do primeiro-ministro. Nele não há pessoas e quando as há estão do lado do mal, são "ruído", são não-económicas na sua essência».

Do imperdível artigo de José Pacheco Pereira no Público de hoje (e que pode ser lido na íntegra aqui).

Pink Floyd: One of these days

sexta-feira, 27 de julho de 2012

OCDE: nem cooperação, nem desenvolvimento

É sabido que Portugal é um dos países mais desiguais da Europa. É sabido que a desigualdade económica excessiva está associada a inúmeros problemas sociais e a crises económicas. É sabido que o aumento das desigualdades salariais, sobretudo com o crescimento dos salários no topo, tem sido um dos factores a impulsionar o aumento das desigualdades um pouco por todo o lado. É sabido que, em Portugal, o sector público exibe menores desigualdades salariais do que o sector privado devido à estrutura das carreiras, à maior presença sindical e à cultura de negociação colectiva. É sabido que comprimir as desigualdades salariais antes de impostos, através da negociação colectiva mais centralizada, por exemplo, sempre foi uma das armas dos países mais igualitários e prósperos mais a norte, onde aliás a percentagem de funcionários públicos é muito superior à nossa. É sabido que assim o trabalho distributivo por via fiscal e dos serviços públicos universais fica mais fácil, criando-se um virtuoso “multiplicador da igualdade”.

Se tudo isto é sabido, então por que é a OCDE quer aumentar ainda mais as desigualdades em Portugal, pondo o sector público a imitar o sector privado, com subidas nos salários lá mais para o topo no primeiro, em nome de “qualificações” supostamente reconhecidas no segundo, comprimindo igualmente os salários lá mais para a base do sector público? Como se fossem as qualificações e não as relações de poder institucionalizadas a determinar os salários, como se o polarizado sector privado devesse servir de referência para o que quer que seja, como se fosse óbvia e natural a tradução das qualificações em salários. E se fizéssemos ao contrário? E se reduzíssemos as desigualdades no sector privado com o reforço da negociação colectiva fora da empresa, com um sistema fiscal mais progressivo, que efectivamente criasse um tecto salarial, ao mesmo tempo que o salário mínimo continuaria a recuperar poder de compra, por exemplo?

De resto a lata da OCDE não tem fim, visto que foi uma das organizações com maiores responsabilidades na difusão da nova gestão pública que erodiu uma cultura de serviço público e desestruturou a consistência do aparelho estatal e agora está preocupada que este não consiga levar a cabo o trabalho de neoliberalização requerido por falta de pessoal qualificado atraído pelos salários do privado. Enfim, a injustiça social é o ADN de organizações neoliberais como a OCDE, durante décadas ao serviço de uma agenda de “reformas estruturais” geradora de todas as fracturas e de todas as crises. No campo da política económica, esta gente andava ainda há pouco a defender aumento das taxas de juro e, claro, continuam a defender toda a austeridade de que os governos sejam capazes para fazer baixar o salário directo e indirecto de quem está mais exposto. Depois queixam-se do desemprego gerado pela quebra de procura e pedem mais rondas de regressão laboral que os seus próprios estudos põem em causa. Definitivamente, a cooperação e o desenvolvimento não passam por aqui.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Santa Filomena: quatro perguntas à Câmara Municipal da Amadora

«A erradicação do núcleo degradado de Santa Filomena é uma etapa fulcral para atingir o objetivo de continuar a construir uma Cidade socialmente mais justa e territorialmente coesa no respeito e na prossecução dos interesses de todos os que nela habitam».

(Do comunicado da Câmara Municipal da Amadora, hoje divulgado).

Depois de cercar e impedir o acesso ao bairro, as escavadoras municipais deram hoje início às operações de despejo e demolição no Bairro de Santa Filomena. Das 46 famílias que ficarão sem casa no decurso desta operação, apenas 28 serão realojadas. Às restantes, a Câmara Municipal da Amadora limitou-se a propor o pagamento da viagem de repatriamento para Cabo Verde ou, em alternativa, o pagamento de três meses de renda no mercado livre. Todas as famílias recusaram a viagem de regresso e apenas 10, em óbvias circunstâncias de pressão e intimidação, se resignaram à efémera solução do cheque de arrendamento.

A situação económica e social dos moradores do bairro é gritante e o município certamente não a desconhece. Aliás, em nenhum caso é invocada, pela edilidade, a existência de situações económicas que tornem as famílias não elegíveis para efeitos de resposta social pública. Na página do colectivo Habita encontram-se exemplos de situações dramáticas em que vivem pessoas que hoje perderam a casa. Há por isso questões a que a câmara municipal tem de dar uma resposta clara:

1. Tratando-se de situações de alojamento idênticas, perante as quais pende a decisão de erradicação do Bairro de Santa Filomena, com que fundamento - política e socialmente aceitável - a CMA decidiu diferenciar a resposta às famílias abrangidas, realojando as que estavam inscritas pelo recenseamento de 1993 e colocando as restantes perante soluções precárias ou humanamente inaceitáveis?

2. Porque razão decidiu a câmara ignorar, de forma consciente e ostensiva, as providências cautelares em curso, mesmo que delas apenas tivesse conhecimento não oficial?

3. Conhecendo a difícil situação que o país atravessa, e as condições socio-económicas das famílias que moram no Bairro de Santa Filomena, como justifica a câmara a urgência em proceder à sua demolição, sem cuidar de garantir soluções perduráveis, justas e adequadas a todos os que nele habitam?

4. Porque é que nem sequer foi equacionada a possibilidade de realojar estas famílias no próprio bairro, na sequência da sua requalificação? Que contactos foram feitos com o Estado central tendo em vista obter apoios para resolver o problema?

Sem uma resposta precisa e substantiva a estas questões, o deplorável cinismo com que a Câmara Municipal da Amadora termina o seu comunicado de hoje pode ser traduzido numa frase simples: «operação de limpeza étnica» (e não, como se quer fazer crer, do início de um processo cor-de-rosa que conduzirá à construção de «uma Cidade socialmente mais justa e territorialmente coesa, no respeito e na prossecução dos interesses de todos os que nela habitam»).

Tempo de perder as ilusões

Os portugueses começam a perceber que foram manipulados. Primeiro, disseram-lhes que a crise teve origem externa mas que podíamos combatê-la fazendo alguns sacrifícios para apaziguar os mercados financeiros. Nada mais falso, como se vê desde que o processo começou na Grécia. Depois, disseram-lhes que foi o país que “se pôs a jeito” gastando acima das suas posses, pelo que agora deve expiar pelos excessos da última década. Sim, houve excessos simétricos, do lado dos credores que induziram o endividamento e do lado dos devedores que se iludiram com o dinheiro fácil. Mas importa lembrar dois pontos: a) a participação na zona euro, eliminando a necessidade de um stock de divisas que em devido tempo daria o alerta, colocou o sistema bancário na lucrativa posição de agente, silencioso e conivente, que canaliza e distribui os recursos financeiros dos países com excedente comercial; b) à parte o empreendimento imobiliário especulativo que também tivemos, o endividamento das famílias destinou-se, no essencial, à compra de habitação própria por falta de alternativa. Em resumo, disseram aos portugueses que a adesão ao euro nos faria convergir para o nível de vida das economias mais desenvolvidas quando afinal, por força de uma construção institucional comandada pela ideologia neoliberal, para estar na zona euro temos de convergir para o terceiro-mundo.

(Excerto do meu artigo no jornal i)

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Sempre a ajudar...

Estava previsto que fosse 5% de quebra no PIB. Estava. Agora já vão nos 7%, só em 2012. A depressão grega aprofunda-se, graças ao que alguns manipuladores ainda designam por “ajuda”. As elites europeias não param de ajudar o continente e de revelar toda a sua presciência com ideias do calibre da “austeridade expansionista”, desde 2010. Qual 2010, qual carapuça. Desde pelo menos 1992, como assinala Jean-Paul Fitoussi, um economista keynesiano que há 20 anos que não diz outra coisa: o chamado Consenso de Washington foi inscrito nas estruturas do euro determinadas em Maastricht e isso teve impactos muito negativos em termos de crescimento e de emprego. Isto para que não se recorde com saudade os inventados bons tempos em que havia estadistas da estatura de não sei quem.
Entretanto, nos Estados que permaneceram soberanos, como o Reino Unido, onde a mais a mais intensa austeridade desde os anos setenta foi uma escolha ideológica apenas determinada internamente, as consequências económicas de Osborne, denunciadas por economistas keynesianas britânicas com memória histórica, estão à vista: uma nova contracção do PIB, uma situação como não se via há 50 anos. No actual contexto, a austeridade não é expansionista mesmo para quem teve a suprema sensatez de não aderir ao euro, podendo desvalorizar e descer as taxas de juro para compensar os impactos recessivos evidentes das escolhas no campo orçamental. É claro que, ao contrário do que acontece com os “Estados” que se endividam numa moeda estrangeira, como a Espanha, as taxas de juro da dívida pública britânica têm até agora baixado. É sabido que quem emite dívida na sua moeda nunca fica insolvente e isso acalma os nervos e as pulsões autodestrutivas dos mercados. Está lá sempre o Banco Central para o que der e vier.

Uma das ironias da situação actual é que as forças de mercado, supostamente o grande ácido corrosivo dos Estados, estão a fazer com que a noção de soberania nacional ganhe uma nova saliência política e com esta tudo o que moda pós-nacional e globalista tinha decretado extinto ou obsoleto. Dani Rodrik avança algumas explicações económicas mais ou menos convencionais para a necessária resiliência dos Estados num novo trabalho acabado de sair.

Cruzada ideológica

No final da semana passada, Teresa Leal Coelho, constitucionalista, deputada e vice-presidente do PSD, juntou-se ao coro de vozes que, à direita, criticam a decisão do Tribunal Constitucional (TC) em matéria de corte de subsídios aos funcionários públicos e pensionistas.

Depois de o líder parlamentar Luís Montenegro ter admitido que o Tribunal Constitucional deveria ser extinto, Teresa Leal Coelho acusou a instituição de «extravasar» as suas competências, ao «fazer apreciações de mérito político» sobre medidas a tomar pelo Governo para pôr as contas públicas em ordem, considerando que esse pronunciamento «condiciona o Governo na sua competência exclusiva de elaborar o Orçamento do Estado para 2013 e a do Parlamento que o aprova».

Vindo de uma constitucionalista, este comentário causa a maior perplexidade, obrigando a lembrar que a Constituição tem justamente, entre outros, o dever de «condicionar o poder legislativo e executivo do governo, obrigando-o a exercer estas funções no respeito da mesma». Contudo, Teresa Leal Coelho tem razão num ponto (ainda que não seja o que satisfaz os interesses da cruzada ideológica contra os trabalhadores do Estado): é obviamente discutível que o TC, no momento em que declara a inconstitucionalidade do corte de subsídios e pensões, permita que a mesma tenha lugar em 2012, com base em critérios de avaliação da «conjuntura política». Aí sim, poderá dizer-se que o TC extravasa o âmbito das competências que lhe estão atribuídas.

De resto, os argumentos que têm sido esgrimidos para fundamentar a restrição dos cortes à função pública (a maior estabilidade do emprego e patamares salariais mais elevados), não resistem a uma observação simples: se devem ser esses os critérios, apliquem-se então indiferentemente à função pública (onde os contratos precários têm aumentado a olhos vistos) e ao sector privado. Além de que os próprios cortes (supressão dos subsídios de férias e de Natal), resolveriam de forma directa a questão dos valores remuneratórios que, ao contrário do que se pensa, não são mais elevados na função pública.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Entretanto, por França...

A globalização tornou-se um sistema prejudicial para todos os trabalhadores, para todas as classes populares e médias do mundo inteiro; uns porque perdem o que alcançaram com tanto custo, outros porque nada ou muito pouco ganham (...) o comércio livre é a guerra de todos contra todos (...) o proteccionismo europeu, simultaneamente ecológico e social, é o keynesianismo do século XXI, uma forma política realista, justa e eficaz de organizar a economia de mercado mundial.

Excertos do pequeno livro-manifesto lançado por Arnaud Montebourg aquando da sua candidatura nas primárias socialistas francesas, onde foi o terceiro candidato mais votado. A desglobalização, um proteccionismo na escala certa, ambiental e socialmente consciente, e que não se confunde com autarcia, é uma das ideias à esquerda que é preciso desenvolver: os países mais desenvolvidos têm o direito a proteger os seus arranjos sociais, laborais e ambientais e a sua base industrial e fiscal das chantagens das transnacionais e do capital financeiro, enquanto que os países subdesenvolvidos têm direito a pôr em prática, com toda a autonomia, as políticas públicas de intervenção para o desenvolvimento que hoje a OMC e tantos tratados tentam impedir. Bom, agora Montebourg é ministro da “recuperação industrial” e está a ter o seu primeiro e bem duro teste com o anúncio recente de milhares de despedimentos na Peugeot, símbolo da desindustrialização da França, muito acentuada pelo euro e por uma crise que tem gerado uma sangria de empregos industriais. Assumindo o projecto de dizer a verdade ao poder, Jacques Sapir, um dos principais teóricos da desglobalização, lembra ao governante Montebourg o que há a fazer se quiser permanecer fiel ao espírito do candidato Montebourg: entrar pelo gabinete de Hollande e dizer-lhe que sem proteccionismo selectivo e política cambial não vamos lá. Se a linha de Montebourg for derrotada, e tudo está feito para que o seja se não houver forte pressão social e política de baixo, capaz de contrariar a que vem de cima, a Frente Nacional certamente que saberá monopolizar o cada vez mais popular discurso proteccionista, dando-lhe o cunho xenófobo e regressivo que alguns à esquerda estranhamente julgam que é indissociável de uma palavra na realidade a conquistar e a usar sem medos nem hesitações pelos que estão na margem certa.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Por quanto tempo mais?

A fractura na Zona Euro expressa, por exemplo, pelo diferencial entre as taxas de juro dos títulos de dívida pública alemães e espanhóis a dez anos, não cessa de se acentuar. A Espanha está no mesmo círculo vicioso de austeridade rumo a uma insustentável intervenção externa, destinada a tentar minorar as perdas dos credores, com a repetição do mesmo tipo de mentiras. E o desemprego já atinge um quarto da população activa. É claro que há dinheiro a captar por via de uma fiscalidade progressiva e se isto não chegar, e não chega, há que começar por fazer escolhas simples, mas difíceis politicamente: contrato social ou contratos financeiros? Esta é também a escolha grega e portuguesa para responder às ameaças permanentes do centro. Isto também quer dizer suspensão do serviço da dívida e início da sua reestruturação por iniciativa política dos devedores. É a única arma das periferias para voltarem a ter, na escala certa, o que muitos economistas, sobretudo keynesianos, desde o início desta desventura monetária, na década de noventa, consideram insensato terem perdido: a ligação entre o banco central e o tesouro, traduzida, entre outras coisas, na possibilidade de se recorrer ao financiamento monetário de um défice que é tão necessário quanto inevitável em recessão, o que faz com que um Estado que se endivida na sua moeda não seja compelido a comportar-se como se fosse uma família em crise, com o cortejo de cortes e de insolvência. E mesmo quando existem problemas na balança de pagamentos, a desvalorização da moeda ajuda e muito. Temos tido recentemente um cheirinho disso com a desvalorização do euro (e temos todos os exemplos históricos em que possamos pensar...). Tudo isto tem efeitos tranquilizadores, já identificados, em “mercados” que, na realidade, precisam de ser sedados. A perda desta ligação, a dificuldade, alguns dirão mesmo a impossibilidade, institucional e política da sua reconstituição à escala do euro, dada a cultura económica que o moldou, expõe continuamente as democracias aos especuladores, aos fanáticos senhores vestidos de negro e a quem internamente trabalha para eles. Isto significa austeridade e empobrecimento permanentes. Por quanto tempo mais?

sábado, 21 de julho de 2012

O grande negócio da austeridade

Certamente motivado pela agenda de transformação estrutural deste governo, a Sociedade Francisco Manuel dos Santos (Jerónimo Martins) decidiu diversificar a sua actividade e aventurar-se no negócio das clínicas privadas. Confirma-se que a política de saúde deste governo é uma óptima oportunidade de negócio. 

João Galamba, bens não transaccionáveis

Ficamos a aguardar pela enésimas diatribes da sua fundação sobre os insustentáveis direitos sociais. Tudo tem o seu papel na complexa divisão de trabalho do grande grupo económico capitalista com investimentos intelectuais à altura do poder político detido e das ambições de expansão para onde haja lucros a realizar à custa de assimetrias de poder e de conhecimento. Desde a fundação deste blogue, no governo Sócrates, que temos vindo a insistir que as políticas de privatização directa ou indirecta de bens e serviços públicos, naturalmente muito concentrados na área dita dos bens preponderantemente não transaccionáveis, estão em fatal contradição com a mensagem que poderes públicos preocupados com o desenvolvimento devem enviar aos grupos económicos: ide trabalhar para os transaccionáveis, dirigidos à substituição de importações e à exportação, e larguem a fruta doce do Estado social, seus malandros.

Esta contradição aprofunda-se decisivamente e só poderá ser superada através de uma política de protecção da integridade dos serviços públicos acompanhada e, isto é cada vez mais decisivo, de uma alteração do quadro monetário e financeiro associado a uma renegociação da abertura aos fluxos globais que impedem políticas industriais, de protecção e de atenuação da chantagem por parte das fracções extrovertidas do capital, que o Grupo Jerónimo Martins simboliza, de desglobalização em suma. O actual enquadramento externo explica aliás grande parte dos investimentos dos grupos económicos: no contexto de uma moeda forte e sem flexibilidade e de uma globalização irrestrita, a fracção dominante do capital nacional e a sua expressão política foram para onde tiveram incentivos para ir, dados os sinais cambiais e outros, e agora querem continuar nessa senda.

Sem instrumentos de política adequados para promover o desenvolvimento, e estes não serão recuperados sem rupturas com a integração europeia realmente existente, tudo favorece um capitalismo cada vez mais predador, por um lado, e um impotente discurso moralista, por outro. Quem perde sempre é a prática democrática soberana e as classes cuja prosperidade tende a ser proporcional à sua robustez.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

A austeridade é um negócio (I)

Recebi a imagem aqui ao lado (clicar para ampliar) na caixa de spam do meu correio electrónico. Foi-me enviada por um sugestivo «M. da Saúde» e fiquei com dúvidas se com «M.» pretendem abreviar «Ministério» ou «Medicare» (ou se já acham, nos dias que correm, que tanto faz).

No título, a mensagem não podia ser mais clara: «Proteja-se dos cortes na saúde em 2012, saiba como!» (sendo reforçada, na imagem, com outra frase: «Proteja-se dos cortes na saúde, conheça os planos de saúde Medicare»).

Este é um eloquente sinal dos tempos. Mas não se iludam com os valores da promoção. Fui à procura das «letras pequeninas» num suposto contrato (seguradora que não tenha «letras pequeninas» ainda é menos confiável do que a que as tem) mas não as consegui ver. Teria que pagar, previamente, um dos dois valores em causa (35 ou 20€ por ano), para travar eventual conhecimento com elas. A minha curiosidade não chega a tanto.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Montes

Pedro Santos Guerreiro parece ainda querer fazer um esforço para naturalizar a manipulação, o tráfico de influências, a fuga ao fisco, o branqueamento de capitais, a necessária sordidez das comissões e das privatizações, a vida do liberal sector financeiro nacional e internacional realmente existente, em suma, atribuindo-as, no fundo, a “uma besta gananciosa chamada homem”, mas nem ele, com todos os seus recursos, consegue levar este projecto ideológico até ao fim porque o seu editorial de ontem tropeça na realidade das “estruturas mais poderosas da economia portuguesa” que têm nomes, muitas redes e toda a impunidade que o dinheiro concentrado compra. É claro que fracções dominantes do capital dependem das estruturas que permitem a sua inserção internacional, já que sem a liberdade, reconquistada a partir da segunda metade do cavaquismo, de circulação de capitais ou sem a multiplicação de infernos fiscais, o seu poder não seria o mesmo, a “doença do dinheiro” não seria tão intensa. É das estruturas financeiras ajudadas a criar externamente pelo euroliberalismo que acabamos sempre por falar, dos comportamentos gananciosos que favoreceram, multiplicando horizontes de curto prazo e oportunidades para o enriquecimento de uma pequena minoria respeitada pelos reguladores, das crises, da ineficiência e dos custos sociais que geram.

Santa Filomena: regresso ao passado?

O Alexandre Abreu já se referiu aqui à situação que se vive no Bairro de Santa Filomena, no concelho da Amadora. Tomando como critério o recenseamento realizado em 1993 (no âmbito do PER), a Câmara Municipal apenas pretende assegurar o realojamento das famílias que constem desses registos e que não foram realojadas na altura. Sobre as restantes (que não viviam à data no bairro) pende a ameaça de despejo compulsivo, com posterior demolição das casas, sem que nenhuma solução substantiva seja apresentada. A câmara apenas se dispõe pagar até três meses de renda no mercado livre ou as viagens de repatriamento para Cabo Verde (e quem não aceitar, terá que conseguir - segundo a edilidade - «solução alternativa por conta própria»).

Estamos a falar, de acordo com o apuramento realizado pelo Habita (que apresentou entretanto uma queixa na ONU), de um bairro onde vivem 83 famílias (280 pessoas, das quais 104 crianças), com rendimentos médios mensais entre 250 e 300€. Estamos a falar de muitas situações de desemprego e de luta diária pela sobrevivência. Estamos a falar de cidadãos que se encontram à margem da «cidade», nos tempos de crise e empobrecimento deliberado que o país atravessa.

O Estado Novo está cheio de episódios de despejo coercivo. De camiões de caixa aberta a descarregar móveis, roupas e utensílios de cozinha como se fossem entulho. De violentas repressões policiais a acompanhar o avanço das retroescavadoras sobre barracas ou habitações clandestinas. Um tempo em que a constituição não estabelecia explicitamente que «todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar».

Em democracia, estes episódios de despejo compulsivo praticamente desapareceram e o Estado assumiu, ainda que muito moderadamente, as suas obrigações constitucionais. Mas manteve-se o mau hábito de não envolver as pessoas nos processos de realojamento, desde o seu início, e a tendencial expulsão em massa para zonas inacessíveis e desqualificadas das cidades. Os problemas que se pretendia suprimir foram em regra apenas deslocados, apesar da melhoria das condições em que as pessoas passaram a viver.

Mas hoje, em pleno século XXI no bairro de Santa Filomena, o recuo parece ser em toda a linha. Não se trata apenas de mais um mau processo de realojamento em curso, que evita a negociação com as populações e que não resolve problemas e lhes junta outros. Trata-se de deixar pessoas, em situação de particular vulnerabilidade, inteiramente à sua sorte. Será que não aprendemos nada?

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Economia sem ilusões

[O] eventual equilíbrio da balança comercial não é sustentado pois não resulta de um aumento da produção substitutiva de importações e incremental das exportações, é basicamente um efeito da recessão e da austeridade. As importações estão em queda livre devido exclusivamente à redução da procura interna. Do consumo, mas também do investimento com efeitos negativos na capacidade produtiva futura. A evolução favorável das exportações é positiva, mas relativa pois no essencial é a recuperação da quebra de 2009. Acresce que do aumento homólogo das exportações, até Maio, cerca de 10% provém de objectos de ouro, das jóias familiares vendidas devido à crise, e 29% de combustíveis cujo valor acrescentado nacional é mínimo. Por aí não vamos lá. E omite-se o que terá sido a causa mais benéfica para as exportações, a desvalorização do euro. Que não depende de nós e poderá ser temporária. Em Portugal, o euro continua tema proibido, embora o debate sobre o assunto seja urgente e essencial.

Octávio Teixeira

A cassete soberana

Adoro a linguagem destes relatórios da troika escritos por lunáticos bem pagos. Numa primeira leitura, destaco esta formulação do FMI – “existem riscos de migração dos passivos do sector privado para o balanço soberano”. Existem e muitos nesta bancarrotocracia. A Comissão Europeia essa está sempre mais à frente na novilíngua, revelando para todos os que querem ver aquilo em que se tornou a integração europeia – “os riscos orçamentais aumentaram significativamente devido a uma composição do crescimento fiscalmente menos rica, o que afectou a performance dos impostos.” O periclitante crescimento das exportações, paradoxalmente ajudado pela crise do euro, não puxa por nada. Estão proíbidos de dizer que o Estado pode tentar controlar a despesa, mas não controla o défice porque não controla os efeitos fiscais da recessão engendrada pelos cortes.

Confirma-se também que não há semana que passe sem que a Comissão Europeia não nos venha recordar a natureza deste euro e da fraude intelectual que mal o suporta: cortes salariais sem fim ajudados pela desregulamentação sem fim das relações laborais. As coisas são como são feitas e como serão desfeitas. A recessão gerada pela austeridade aumenta “surpreendentemente” o desemprego, ao mesmo tempo que os salários caem mais do que o esperado? Tanto melhor, já que está tudo escrito há muito nas regras deste jogo: por definição, o desemprego exige sempre mais redução dos direitos laborais, maior facilidade em despedir, menos indemnizações e sobretudo cada vez menos contratação colectiva. Vale tudo para que os trabalhadores fiquem cada vez mais expostos num economia de compressão salarial, já que as causas do desemprego se devem para toda a eternidade à existência de “rigidezes”, em última instância na mente de quem trabalha.

De resto, a despesa de uns é rendimento de outros, a despesa pública é rendimento público e privado e a despesa privada é rendimento privado e público? Comprima-se a despesa pública e veja-se o que, também de forma surpreendente, acontece, em cascata, ao rendimento privado numa situação de desemprego de massas e aos balanços de tantas empresas e famílias: parece que o Estado não se pode comportar como se fosse uma família no meio de uma crise, embora a isso esteja obrigado pelo soberano externo, sem afectar a saúde, incluindo a financeira, das famílias realmente existentes desta região periférica.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Escrutínio e permeabilidade (I)

«É preciso pedir explicações a quem aprovou esta lei [equivalências no ensino superior], Mariano Gago, o ministro mais tempo em funções no nosso país», considerou no sábado passado Duarte Marques, líder nacional da JSD, a propósito da licenciatura de Miguel Relvas.

Estas declarações trouxeram-me à memória «Os acusados», de Jonathan Kaplan (1988). O filme relata o caso verídico da violação de Cheryl Araujo num bar de New Bedford e a batalha judicial que se segue, com a defesa dos esturpadores a tentar culpar a vítima (justificando o sucedido, por exemplo, com o modo como se vestia e a forma como dançava).

Com uma lógica idêntica, Duarte Marques considera - no «caso Relvas» - que a fraude académica e administrativa em apreço resulta basicamente da transposição (pela mão de Mariano Gago) das orientações de Bolonha em matéria de certificação de competências no ensino superior. Criada a oportunidade de fraude, como atribuir culpas a Miguel Relvas ou à Universidade Lusófona, as verdadeiras «vítimas» deste processo, segundo o líder da JSD? É curioso, aliás, que este entendimento - igualmente anedótico - vá contudo em sentido oposto ao de outro liberal, João Miranda, que acha que o Estado não deveria meter, nem a ponta do nariz, na absoluta liberdade de organização das instituições de ensino superior.

A questão que merece ser assinalada é contudo mais profunda e estrutural. A lógica de inclusão dos privados nos supostos «sistemas nacionais» (de saúde, educação ou protecção social), defendida pelas direitas que querem «ir ao pote» e com cedências sucessivas das «terceiras vias» europeias (em nome de uma mirífica redução do papel do Estado à função de regulador) - tem sido fortemente contestada por sucessivos «casos», em diversas áreas (veja-se a sucessão de escândalos do ensino superior privado em Portugal, o modo como se instituíram entre nós as PPP's rodoviárias e da saúde ou o funcionamento das entidades reguladoras, por exemplo). A hipótese a colocar, e que merece ser analisada, é a de que - nesta lógica de concretização de políticas públicas através dos privados - se perde uma considerável capacidade de escrutínio e se abre um vasto campo de permeabilidade a interesses obscuros, dificilmente perscrutáveis.


segunda-feira, 16 de julho de 2012

Da fadiga

A ideia de um mercado autoregulável era utópica e o seu progresso foi obstruído pela autoprotecção realista da sociedade. 

Karl Polanyi

A “fadiga de ajustamento” para a qual o FMI vem uma vez mais alertar é uma das minhas expressões preferidas na economia política da austeridade e que naturalmente também faz parte do vocabulário de um Banco que não é de Portugal e que papagueia a sabedoria económica convencional de Washington ou Frankfurt. Diz que esta fadiga é contagiosa e tudo. Trata-se de começar a justificar o enésimo fracasso do ajustamento, responsabilizando os objectos de uma experiência que se lembram que podem ser sujeitos políticos. A sociopata Lagarde acha que a “fadiga grega” deve servir de aviso para Portugal. Fossem os gregos mais esforçados, tivessem a capacidade de viver sem acesso a cuidados de saúde ou sem empregos e de apoiar o programa responsável por isso, por exemplo, e tudo já estaria a correr pelo melhor. Mas não: preferem ficar cansados de austeridade e alguns até têm o topete de reagir colectivamente de forma mais ou menos espontânea, manifestando-se ou votando em número cada vez mais elevado em quem promete acabar com a pilhagem em curso, assim condicionando o tal ajustamento planeado. Definitivamente ainda não existem homens económicos novos à altura das utopias liberais...

domingo, 15 de julho de 2012

Amparos e invulnerabilidades

Os banqueiros sentem-se muito desamparados e a banca é um sector muito vulnerável.

A parceria público-privada entre Passos Coelho, Leonor Beleza e Alexandre Soares dos Santos, também conhecida por António Borges, deu a sua enésima entrevista, desta vez ao Público: insana ortodoxia económica, que esquece todos os paradoxos da economia da depressão por si favorecida, ao serviço de todas as idas ao pote por parte do capital, onde avulta a fracção financeira, que espera adquirir activos a preço de saldo graças à crise – “Passo parte do meu tempo a falar com investidores estrangeiros, aqueles que querem entrar no momento certo”.

Na entrevista, Borges revela a identificação total com a visão do bloco social europeu liderado pelo capital financeiro alemão e com o seu projecto de classe de longo prazo, que teve em Maastricht e no euro os seus desenvolvimentos políticos e institucionais cruciais. Isto é mais do que compreensível sendo Borges quem é. Borges sabe que as coisas são como são feitas no campo monetário e financeiro, onde se criam todos os enviesamentos estruturais nas políticas públicas, como é o caso do salário directo e indirecto a funcionar como variável necessária de ajustamento no euro, conduzindo a uma alteração, há muito em curso, da repartição do rendimento entre trabalho e capital. Tivessem todos os adversários dos Borges desta vida a mesma clarividência e a coisa seria, talvez, um pouco diferente, porque as rupturas a fazer estariam mais claras.

É claro que Borges tem de fingir que os interesses da sua minoria equivalem ao interesse público. Manter a hegemonia exige que estes intelectuais orgânicos façam da aldrabice modo de vida. Alguns exemplos: o poder de compra dos salários da função pública cai 30%, entre 2000 e 2012, embora Borges fale como se tivesse ocorrido um qualquer regabofe aí; a Grécia implementou um programa selvagem de austeridade, que conduziu a uma das maiores depressões em tempos de paz, e Borges acha que nada falhou porque nada foi aplicado; as garantias dos países aos empréstimos no quadro do fundo europeu, desenhadas para minorar perdas dos credores financeiros, são apresentadas como exemplo de “solidariedade”. E podíamos continuar. Enfim, ler esta entrevista ajuda a definir prioridades e a identificar o adversário principal e todas as estruturas que o amparam e o tornam aparentemente invulnerável.

sábado, 14 de julho de 2012

Confiar no sistema financeiro?

 
O governador do BdP bem pode insistir na importância do sector financeiro para o desenvolvimento das economias. Porém, enquanto não reconhecer que o sistema deve ser reformado de alto a baixo, as suas afirmações não têm crédito. Precisamos de o ouvir dizer: temos de regular a participação financeira no capital das maiores empresas para que estas ponham à frente da distribuição dos dividendos o financiamento do investimento estratégico; é necessário voltar a separar a banca comercial da banca de especulação; deve ser proibida a venda de títulos que ainda não se possui; tem de ser reduzida a velocidade dos movimentos de capital de curto prazo e, se necessário, pelo menos parcialmente suspensa para que os países possam gerir a política monetária e cambial em favor do desenvolvimento. Então talvez o governador comece a ganhar a credibilidade que, hoje, o cidadão comum não lhe concede. Em particular, também porque nunca demonstrou a existência de um elevado risco sistémico na falência do BPN, um caso em que o BdP surgiu aos olhos dos portugueses como um supervisor falhado, ou cúmplice por omissão.

(Excerto do meu artigo desta semana no jornal i)

Salidas

Sem abandonar uma linha europeísta, mas também sem grandes ilusões, Juan Torres Lopez, um dos economistas críticos espanhóis que vale a pena seguir com mais atenção, colocou uma questão tão importante quanto inadiável, uns dias antes da nova e mais intensa ronda de austeridade recessiva e repressiva ter sido apresentada: ¿Qué hacemos en el euro? Excertos em castelhano, já que os povos da península falam da mesma crise e terão de falar cada vez mais das mesmas alternativas:

“Las cínicas amenazas de expulsión del euro de Grecia son simplemente eso, puras amenazas que Alemania nunca llevaría a cabo porque sus bancos y grandes empresas son los que más se han beneficiado y los que más siguen haciéndolo de su presencia en Europa. E igual pasa con España y los demás países que estén al borde del abismo (…) Es por eso que España tiene que vender cara su presencia en el euro. Para poder sobrevivir en el euro, para que a España le intereses permanecer en él, se necesita un diseño diferente, una nueva arquitectura institucional y otras políticas verdaderamente efectivas contra la crisis del tipo que ya señalé en otro momento (…) No contemplar la posibilidad de salir del euro es ya un error que nos va a costar muy caro. Desde luego que la salida sería una opción difícil y traumática, aunque quizá solo a muy corto plazo y si se compara con la aparente placidez de la agonía lenta que nos preparan dentro del euro. Pero que podría dar resultados positivos en un plazo de tiempo bastante más corto del que se pueda creer”

Nos últimos anos, muitos de nós têm procurado desenvolver esta linha de forma mais ou menos sistemática. É claro que a passagem do tempo torna a questão cada vez mais saliente e fácil de responder em todos os países periféricos e não só.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Um declínio cumulativo e terminal

Regresso ao poste que o Nuno Teles publicou aqui há dias para sublinhar a relevância dos factos a que ele se refere para a discussão em torno da saída do euro como opção política. Recordo que um dos argumentos (entre outros, claro) que têm sido apresentados, inclusivamente à esquerda, para rejeitar essa opção consiste na putativa rigidez das exportações portuguesas face às flutuações cambiais: supostamente, Portugal não contaria com um tecido produtivo susceptível de responder significativamente ao estímulo da desvalorização que se seguiria à reassunção da autonomia monetária e cambial. Ora, parece-me que a resposta das exportações portuguesas à depreciação do euro nos últimos meses constitui uma 'experiência natural' que refuta eloquentemente essa objecção - da mesma forma que a diferença entre a evolução das exportações para dentro e para fora do espaço comunitário, tal como o Nuno assinala, refuta qualquer tentativa de interpretar o comportamento agregado das exportações como um início de resposta positiva da economia portuguesa à pretensa "terapia" imposta pelo governo.

É óbvio que este debate não perdeu a actualidade e, por isso mesmo, iremos voltando a ele. Infelizmente, esta crise ainda mal começou - e se isso é verdade para o "Ocidente" como um todo, é-o ainda mais para a economia portuguesa, que se encontra no centro de uma tempestade perfeita em que se conjugam: i) uma recessão global causada pela deflação de níveis insustentáveis de endividamento (principalmente privado), a qual, em virtude da própria dimensão desse mesmo endividamento, arrastar-se-á com certeza durante muitos anos; ii) a pertença a uma zona monetária disfuncional, desenhada para servir os interesses do capital independentemente da miséria e desemprego que origine; e iii) a imposição em Portugal de um programa de compressão da procura interna na esfera fiscal e orçamental. Seria preciso bastante imaginação para conseguir conceber uma conjugação de factores mais destrutiva para a economia e sociedade portuguesas. Como é evidente, o problema não é cíclico, mas imanente e estrutural - algo que, estou em crer, a vasta maioria dos portugueses ainda não percebeu ou quis perceber. E se pouco podemos fazer em relação ao primeiro dos factores atrás apontados, não teremos outro remédio, mais cedo ou mais tarde, senão libertarmo-nos das correntes dos outros dois - sob pena de tornarmos cada vez mais reais as palavras proféticas de Wynne Godley, escritas aquando da assinatura do tratado de Maastricht:

"Se um país, ou região, não tiver a possibilidade de desvalorizar a sua moeda, e se não beneficiar de um sistema de equalização orçamental, então não há nada que impeça que entre num processo de declínio cumulativo e terminal, conduzindo, em última instância, à emigração como única alternativa à pobreza e à fome."

Santa Filomena e o direito à habitação

Vivemos tempos em que a nossa indignação recebe apelos de muitos lados, mas há casos que, apesar de locais, são particularmente chocantes na medida em que afectam pessoas especialmente desprotegidas. É o caso do processo em curso de despejo e demolição do bairro de Santa Filomena, na Amadora.Trata-se de um bairro de génese irregular habitado por centenas de famílias que não foram abrangidas pelo recenseamento do Programa Especial de Realojamento, em 1993, e que, por esse motivo, estão excluídas do acesso ao realojamento em prédios de habitação social por parte da Câmara. Estamos a falar de famílias inteiras com rendimentos muito baixos, que incluem muitas crianças e idosos, e que, em resultado da recessão, se defrontam actualmente com problemas de desemprego especialmente graves.É neste contexto que a Câmara Municipal da Amadora insiste em levar por diante o processo de despejo, sem se preocupar minimamente com assegurar o direito destas famílias à habitação para além das insultuosas ofertas do pagamento de três meses de renda no mercado de arrendamento (ao qual estas famílias não têm a menor possibilidade de aceder), ou, no caso de famílias originárias de outros países, do pagamento do voo para esses países. E tudo isto rematado, num padrão que começa a ser habitual, com uma carga policial violenta sobre a manifestação dos habitantes do bairro que reivindicavam os seus direitos à frente dos paços do concelho, no passado dia 21 de Junho.

Note-se que, segundo o famoso mas muito desrespeitado artigo 65 da Constituição da República Portuguesa, a habitação é um direito. Não é uma prioridade nem um objectivo - é um direito constitucionalmente garantido. E é-o porque se considera, e bem, que uma sociedade decente não pode deixar os seus elementos mais desprotegidos a dormir na rua. Pode-se com certeza debater a quem cabe, em  cada caso, assegurar o cumprimento efectivo desse direito constitucional. Mas enquanto não se chega a uma conclusão sobre isso, o executivo camarário da Amadora será culpado de uma inconstitucionalidade activa e de um atentado aos direitos humanos se levar por diante esta acção de despejo sem que seja proporcionada uma alternativa válida a estas famílias. Visto que foi eleito nas listas de um partido que se diz socialista, fará bem em pôr a mão na consciência e arrepiar caminho enquanto é tempo.

O sistema de ensino não é um jogo da playstation

Foi através do Sérgio Lavos que cheguei a mais uma escrita patusca do João Miranda. Com o título pomposo de «Licenciaturas e liberdade de ensino», o João considera que «o único sistema de atribuição de licenciaturas consistente com a liberdade académica é aquele em que a licenciatura é atribuida exclusivamente por critérios definidos pela instituição que a atribui». Nestes termos, a vantagem «essencial [deste sistema] é que as pessoas e as instituições são livres e consequentemente responsabilizáveis pelas suas acções. As universidades são responsáveis pelos seus critérios e quem as frequenta é responsável pela escolha que faz e todos serão julgados pelas suas escolhas». Isto é, «há licenciaturas que valem mais que outras precisamente porque universidades e estudantes fazem escolhas livres».

Percebem-se bem as razões circunstanciais que suscitam esta reflexão. Como se vislumbra sem dificuldade o quadro conceptual que a ilumina. A liberdade absoluta, das instituições de ensino superior e dos estudantes, exercida na posse - por todos - de plena informação, não é senão o mercado a funcionar em todo o seu esplendor. Como num jogo de playstation, as más universidades deixam de ser escolhidas e os alunos que nelas apostaram têm a merecida sanção no mundo do trabalho. As primeiras fecham e os segundos vão à (sua) vida. O mundo torna-se perfeito: basta que se deixe decantar gradualmente por esse mecanismo racional e purificador que é o mercado, impedindo qualquer estorvo que o Estado lhe queira impor.

Não se percebe, aliás, porque razão o Instituto de Segurança Social teima em fiscalizar lares de idosos. Se se permitir que funcionem como muito bem entenderem, algumas mortes e maus tratos farão descer a procura dos lares que os permitiram e as famílias deixarão de os escolher. É simples. É como nas farmácias: porque razão se há-de impedir que um curioso em substâncias medicinais abra uma, se basta deixar que a sua impreparação e irresponsabilidade produzam resultados visíveis aos olhos de todos?

Aqui há uns tempos, o João Miranda também via vantagens no aumento dos transportes públicos decretados pela troika. Segundo o João, com esses aumentos, as pessoas passariam a escolher melhor o local para residir e trabalhar, as empresas passariam a localizar-se nesses locais e a criar aí emprego e os desequilíbrios territoriais ver-se-iam francamente esbatidos, em favor da descompressão e desanuviamento social das áreas metropolitanas (que se veriam poupadas à presença de gente incapaz de pagar as novas tarifas). Isto foi há cerca de um ano. Será que o João Miranda já pode partilhar connosco a demonstração dos resultados no ordenamento do território e no emprego que a sua imaculada teoria deixava antever?

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Sistema Nacional de Saúde: iguais no direito à saúde



Inspirado pelo Relatório Beveridge de 1943, em três anos (1945-48) o Governo Trabalhista de Inglaterra produziu cinco pacotes legislativos que, no seu conjunto, lançaram as bases do Estado de Bem-Estar.

Em 1946, Aneurin Bevan, o arquitecto do NHS (Sistema Nacional de Saúde) declarava:

"Nenhuma sociedade pode legitimamente dizer-se civilizada se for negado tratamento médico a uma pessoa doente por falta de recursos. Uma sociedade torna-se mais coesa, mais tranquila, e espiritualmente mais saudável se souber que os seus cidadãos têm, como rectaguarda da sua consciência, o conhecimento de que, não apenas cada um, mas todos os seus concidadãos, têm acesso ao melhor que a prática médica pode prestar."

Num prospecto de 1950, distribuído nos quartéis, dizia-se o seguinte:

"O Serviço Nacional de Saúde prestar-lhe-á todos os cuidados médicos, dentais e de enfermagem. Todos, ricos ou pobres, homem, mulher ou criança podem aceder à totalidade ou a qualquer parte dele. Não há pagamentos, excepto para um pequeno número de serviços específicos. Não se exigirá a subscrição de seguros. Mas não é um serviço de beneficência. Todos vamos pagá-lo, sobretudo como contribuintes fiscais, e ele aliviará as suas preocupações financeiras em tempos de doença."

Em 1979, os Conservadores liderados por Margaret Thatcher deram início a uma nova era. Roy Griffiths, gestor do grupo de distribuição Sainsbury nessa época, foi nomeado conselheiro de Thatcher e recomendou uma profunda transformação no estilo de gestão do NHS: de uma gestão por consenso passou-se para uma administração de tipo empresarial com predomínio dos gestores. O mercado e os negócios passaram a liderar.

São conhecidos os resultados nefastos da política de saúde de Thatcher e da versão social-liberal de Blair. No momento em que, em Portugal, os profissionais de saúde se erguem em defesa do Serviço Nacional de Saúde, é importante recordar que ele foi criado para aprofundar a democracia, para que possamos viver como iguais no direito à saúde.

Estas notas foram inspiradas pela leitura de um capítulo de Dorothy Wedderburn ('The Superiority of Collective Action: The Case of the NHS'), de onde traduzi as citações, no livro coordenado por Paul Barker (1996) Living as Equals, Oxford University Press. 
   


Pela nossa saúde


Para lá dos números esmagadores de adesão (entre 85 e 100%, segundo os sindicatos), a greve dos médicos que hoje termina ficará marcada por sinais claros de compreensão e solidariedade por parte dos utentes do SNS, como demonstram os testemunhos que foram sendo recolhidos pelas televisões em hospitais e centros de saúde.

Num país que tem tendência para lidar mal com paralisações dos trabalhadores do Estado (professores, profissionais de empresas de transporte, funcionários públicos em geral), e onde os médicos são frequentemente encarados como uma classe privilegiada em termos salariais e de estatuto (à semelhança dos juízes), este dado assume uma enorme relevância e significado. Não, não se trata da defesa egoísta de meros interesses corporativos em tempos de crise, como ontem sugeria António Barreto na SIC Notícias.

Crato, de que é que estás à espera?

«Se estivesse no lugar do ministro da Educação, já teria uma inspecção a caminho», afirmava ontem à RTP Alberto Amaral, presidente da Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES), ao considerar que a licenciatura do Dr. Miguel Relvas não é credível e coloca em causa a própria credibilidade do ensino superior.

De facto, a discussão sobre o enquadramento legal geral - em matéria de equivalência e atribuição de créditos por instituições de ensino superior - não esgota o «caso Relvas». Existe, para lá desta questão, o problema da credibilidade científica e administrativa dos procedimentos adoptados.

O ministro Nuno Crato pode não querer comentar a licenciatura de um colega de governo. Mas não é suficiente que apenas pretenda rever o Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES) nesta matéria. Há, em todo o processo, transbordantes indícios de fraude académica e administrativa, que não podem dispensar a visita da Inspecção Geral de Educação e Ciência à Universidade Lusófona.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Da regeneração


O exaltado editorial de Helena Garrido sobre os portugueses que passaram de “esbanjadores consumidores” a “aforradores exportadores” não menciona um detalhe decisivo para explicar o comportamento “histórico” de uma balança comercial de volta às marcas da próspera década de quarenta. Umas páginas mais à frente lá está ele: a quebra da procura interna gerada pela austeridade, o que causa uma quebra das importações. Conjuntural esta quebra? Talvez não, até porque a austeridade é não só permanente neste contexto europeu como, no típico círculo vicioso que criou, cada vez mais intensa, o que significa permanente oscilação entre recessão e estagnação, com os níveis de desemprego conhecidos. Um milhão de desempregados devem estar muito satisfeitos por terem passado a viver numa nação dita de aforradores exportadores. O investimento, uma das condições necessárias para qualquer recuperação ou modernização, colapsa, com uma queda de mais de 30% em dois anos. De resto, a evolução das exportações é oscilante e, já se sabe, nenhum país cresce a taxas satisfatórias apenas voltado para a procura externa, como o caso da própria Alemanha nos indica, ainda para mais num contexto em que demasiados países europeus estão apostados em ser “aforradores exportadores” através da austeridade regeneradora. De Espanha, que vale como mercado de destino quase tanto como o mundo fora da zona euro, chegam-nos aliás péssimos ventos.

Do estado da nação


«Está na moda fazer um retrato estranho dos portugueses. Mimados, "piegas", mandriões, aldrabões, penduras, dependentes do Estado e dos subsídios. Não me espanto. Este é o retrato perfeito de uma elite que se habituou a viver do ouro do Brasil, das colónias, do condicionalismo industrial, das maroscas com os dinheiros europeus, da troca de favores entre o poder político e económico, das empreitadas das PPP, dos gestores mais bem pagos da Europa servidos pelos trabalhadores que menos recebem, do trabalho barato e semiescravo e de uma completa ausência de sentido de comunidade. De um país desigual.
A desigualdade não tem apenas efeitos económicos e sociais. Tem efeitos cognitivos. Com raras exceções, determinadas por um percurso de vida diferente ou por uma forte consciência social e política, a nossa elite não faz a mais pálida ideia do país onde vive. E tem a sua experiência e a experiência de quem a rodeia como única referência. Porque a desigualdade afasta os mundos sociais em que as pessoas se movem. Por isso acha que "só não trabalha quem não quer", que "os portugueses vivem acima das suas possibilidades", que "se desvaloriza o rigor e a exigência", que "a inveja é o nosso maior pecado" - como se ela não fosse um reflexo pouco sofisticado de um país desigual e injusto, onde a ascensão social raramente tem alguma relação com o mérito.
O outro País de que falam é bem diferente deste retrato castigador e ignorante. É sofrido, trabalhador, onde o quase nada que se tem foi conseguido com um enorme esforço. A miséria está sempre à espreita e quando vem esconde-se dentro de portas. Porque a última coisa que os portugueses são é piegas. A nossa pobreza envergonhada, que acaba por servir os interesses de quem não a quer combater, é o melhor exemplo de como os portugueses são em quase tudo diferentes do retrato que a nossa anafada elite faz deles.»

Do texto de Daniel Oliveira, a ler na íntegra, publicado em dia de debate sobre o estado da nação. É à luz deste retrato, estrutural, que devem ser avaliadas as opções do governo ao longo do último ano. Afastámo-nos dele ou aprofundámo-lo? (fotografia de Orlando Ribeiro).

terça-feira, 10 de julho de 2012

Noite mineira

O valor da moeda não interessa?

A boa notícia do dia é o crescimento de 8,5% das exportações em Maio face ao mesmo mês do ano passado. As exportações para o espaço comunitário (onde estão os países da zona euro e uns quantos outros) cresceram 0,9%, enquanto as exportações para fora deste espaço cresceram 31,4%. A desvalorização de 13,5% do euro face ao dólar ao longo do último ano não tem nada que ver...

Depois de mais uma cimeira histórica

Com taxas de juro das obrigações do tesouro a 10 anos acima dos 6%, nem a Espanha nem a Itália conseguem permanecer na Zona Euro. Isto é o que Mario Monti e Mariano Rajoy deviam ter deixado claro a Angela Merkel na cimeira. Deviam ter dito que os seus governos iniciariam os preparativos para sair do euro se não ocorresse uma mudança de política.

Wolfgang Munchau, Financial Times

Isto é o que Portugal, a Itália, a Irlanda, a Espanha ou a Grécia deviam ter feito há muito, de preferência em convergência, como neste blogue temos defendido, começando por usar a arma da reestruturação dívida. Por si só, esta opção política obriga a colocar em cima da mesa todos os cenários em termos de enquadramento monetário, quer queiramos, quer não. De resto, é claro que mais uma cimeira conseguiu fazer história durante quase uma semana porque, entre outras coisas, insistiu na austeridade e não apresentou soluções viáveis para um fundo e um mecanismo financeiramente limitados, tanto mais que as suas tarefas são supostamente cada vez mais ambiciosas, preferindo fazer vagos anúncios regulatórios para um prazo em que o euro estará morto. Mais de dois anos de austeridade recessiva, uma prescrição forjada no preconceito e na arrogância de classe, cavaram todas as divisões políticas, ajudando as forças de mercado no seu trabalho de desenvolvimento desigual. As forças da especulação, ditas sem pátria, resolvem o actual impasse favorecendo a refragmentação nacional, como se pode ver pela diferença entre as taxas de juro das periferias e as do centro que é soberano porque é visto como tendo o controlo da moeda, assim imitando as baixas taxas de juro dos títulos de dívida pública dos outros verdadeiros soberanos, dos EUA ao Japão, os que têm tesouro e banco central na mesma escala. Este é apenas um dos muitos paradoxos da economia política da zona euro num tempo em que o velho ainda não morreu e o novo ainda não nasceu. Tempo de sintomas mórbidos, como assinalou Gramsci.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Sempre contra o austeritarismo

Ora as Cassandras dos nossos dias são os beatos do passado recente. Instigadores das políticas comunitárias impostas a fórceps desde há trinta anos, festejaram sucessivamente o maior mercado do mundo, a moeda única e a «política de civilização»; ignoraram o veredicto popular mal ele se lhes mostrou contrário; destruíram qualquer projecto de integração que se baseasse na harmonização social por cima, nos serviços públicos, e em barreiras comerciais nas fronteiras da União. Agora, soam as badaladas da meia-noite e o coche transforma-se em abóbora; esquecem-se subitamente da sua antiga alegria e juram que sempre nos avisaram de que aquilo nunca iria funcionar. Irá a dramatização financeira servir de pretexto para impor um salto federal em frente sem o submeter ao teste do sufrágio universal? Poderá uma Europa que já se encontra em mau estado dar-se mesmo ao luxo dessa nova denegação da democracia?

Serge Halimi, Federalismo em marcha forçada.

O «povo» em crise ouve-se pouco na televisão, sobretudo em comparação com o «povo» alegre, transmutado em partidário integral das cores nacionais, ou esse outro «povo», imaginado pelo sonho liberal, constituído por empreendedores individuais, exemplos de iniciativa que incutem na sociedade um sentimento de culpa generalizado, assumido por aqueles que mais sofrem com a crise.

Nuno Domingos, A alegria nacional na televisão.