Este post é um pouco extenso. Por isso, para quem não tenha a paciência de o ler na íntegra, o gráfico seguinte ilustra a principal conclusão a que se procura chegar: uma restrição dos «contratos de associação» (celebrados entre o Ministério da Educação e escolas do ensino particular e cooperativo) às situações de efectiva inexistência local de oferta pública no ensino básico e secundário (ou aos casos em que a oferta existente tem uma taxa de ocupação de 100%), teria permitido, entre 2011 e 2014, uma poupança acumulada de cerca de 328 milhões de euros.
Para se ter uma noção do que esse montante representa, basta referir que o mesmo seria mais que suficiente para evitar os cortes acumulados, no período em causa, em domínios da
Acção Social Escolar (13M€), na
Educação e Formação de Adultos (20M€), na
Educação Especial (30M€), nas
Actividades de Enriquecimento Curricular (46M€) e nos
Cursos CEF, PIEF e de Ensino Profissional Público (141M€). E ainda sobrariam cerca de 78 milhões de euros para substituir outros cortes infligidos na escola pública (como os que provocaram os despedimentos, em massa, de professores contratados nos últimos dois anos).
Esta estimativa parte das conclusões de um estudo de reorganização da rede do ensino particular e cooperativo que apontava, em 2010, para uma redução muito modesta dos apoios estatais no âmbito dos contratos de associação. Mas mesmo a poupança que se infere desse estudo (13 milhões de euros em 2011), bastaria para impedir os cortes acumulados na Acção Social Escolar entre 2011 e 2014. Por isso, quando vos disserem que não há dinheiro para a escola pública, lembrem-se destes números e do que eles nos dizem sobre a transfega imoral de verbas do Orçamento de Estado para o ensino privado, a expensas da degradação deliberada do sistema público de educação.
1. Em 2010, o Ministério da Educação encomendou a uma equipa de investigadores do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Coimbra um estudo sobre a «
Reorganização da Rede do Ensino Particular e Cooperativo com Contrato de Associação», tendo em vista avaliar os casos em que a existência de capacidade de oferta local, das escolas públicas do ensino básico e secundário, permitiria suprimir ou diminuir os apoios estatais a estabelecimentos de ensino particular e cooperativo.
O relatório final revelar-se-ia, contudo, minimalista nas suas propostas. Dos 91 contratos de associação analisados (num total de 93), apenas se recomenda a cessação de 4, optando-se em regra por ligeiros cortes no número de turmas apoiadas em cada escola. De facto, mesmo em
casos obscenos como o de Coimbra, não é proposta a denúncia de nenhum contrato, sugerindo-se somente a supressão de apoios a 33 das 115 turmas contratualizadas em 2010. Por outro lado, e porventura porque o caderno de encargos assim o estipulou, o estudo desconsidera quaisquer soluções de expansão local da oferta pública (através da construção de novas escolas ou do aumento do número de turmas nas escolas existentes). Isto é, soluções que possibilitariam reduzir ainda mais o número de contratos de associação em vigor.
2. Ainda assim, é proposto um corte global de 214 turmas (das 2.130 contratualizadas em 2010, segundo o estudo), que correspondem a uma redução de cerca de 5 mil alunos (num universo de 53 mil alunos abrangidos). Em termos financeiros, considerando o custo médio por aluno (cerca de 4.500€), estamos a falar de uma poupança imediata de cerca de 22 milhões de euros (que corresponde sensivelmente a 9% do financiamento concedido a colégios e escolas privadas com contratos de associação).
Porém, uma interpretação mais fiel ao «espírito da lei», isto é, o princípio de que estes contratos apenas deveriam ter lugar nos casos de ausência, ou de manifesta saturação, da oferta pública de educação ao nível do ensino básico e secundário (numa lógica de estrito complemento dessa oferta), permite estimar que, em relação a 2010, se deveriam manter contratos com apenas 31 escolas, que abrangeriam somente cerca de 24 mil alunos. O que, em termos financeiros, representaria uma poupança, nesse ano, de aproximadamente 130 milhões de euros (que comparam com os 235 milhões concedidos ao universo de escolas considerado).
3. Tudo leva a crer que a redução gradual do orçamento atribuído a privados através de contratos de associação, ao longo dos últimos anos (e que não esgotam os apoios do Estado ao ensino particular e cooperativo), pouco ou nada deve à aplicação das recomendações do referido estudo, antes reflectindo a diminuição do número de alunos a frequentar o ensino privado (em resultado do impacto, sobre muitas famílias, das políticas de austeridade) e a diminuição do valor médio de financiamento por aluno (que se estima seja de cerca de 3.300€ em 2014).
A estes factores, acresce a necessidade de deitar alguma areia para os olhos da Troika, simulando suficientemente
o cumprimento do Memorando de Entendimento nesta matéria. Por outro lado, constata-se que ainda hoje se mantêm activos os apoios a pelo menos dois (Colégio da Imaculada Conceição e Colégio São João de Brito) dos quatro estabelecimentos de ensino privado cujos contratos o estudo da reorganização recomendava fossem cessados (como mostra a mais recente
lista de apoios publicada pelo próprio Ministério da Educação). E se dúvidas restassem sobre o entendimento do ministério nesta matéria, o próprio Nuno Crato se encarregou recentemente de as dissipar, ao anunciar que a celebração de contratos de associação vai
deixar de estar dependente da inexistência ou insuficiência de oferta pública, ao nível do ensino básico e secundário.
4. Anuncia-se portanto, porventura a partir do momento em que as obrigações subjacentes ao actual Memorando de Entendimento caduquem (Junho de 2014), uma nova vaga, ainda mais absurda, de contratos de associação firmados com colégios e escolas do ensino particular e cooperativo. Ao mesmo tempo que serão certamente anunciados mais cortes orçamentais na escola pública, o encerramento de estabelecimentos, mais despedimentos de professores e o agravamento do processo de deterioração induzida nas condições de ensino e aprendizagem e na qualidade do sistema público de educação. Quando justamente, desde 2011, se deveria ter começado a fechar, de forma implacável, a torneira das rendas gordurosas do ensino privado, que permitiria ter obtido poupanças acumuladas (só em contratos de associação) de cerca de 328 milhões de euros.
Sublinhe-se que neste processo não está apenas em causa continuar a financiar, com o dinheiro de todos os contribuintes, uma educação de luxo que é, em regra, só para alguns, os «escolhidos» entre famílias de elevado estatuto sócio-económico (e em prejuízo do financiamento e da qualidade da escola pública). O que está igualmente em causa é a transformação profunda do sistema de ensino, que assim trilha a acentua os passos de uma crescente dualização, tornando-se, ao arrepio de uma escola que se quer democrática e inclusiva, fonte de reprodução das desigualdades sociais. A
experiência sueca está aí para o demonstrar.