quarta-feira, 31 de agosto de 2022

O transporte público funciona e faz falta

Face à inflação e à escalada dos preços da energia, o governo alemão decidiu reduzir temporariamente o preço dos transportes públicos. A experiência durou três meses e os resultados, que começam agora a ser conhecidos, são bastante positivos: a redução do uso de carros diminuiu as emissões de C02 em 1,8 milhões de toneladas, o equivalente ao abastecimento de 350.000 casas durante um ano.

O documentário Cidades Impossíveis, realizado por Ricardo Moreira, já tinha demonstrado os benefícios do transporte público gratuito na promoção de padrões de mobilidade mais sustentáveis, usando o exemplo do Luxemburgo, onde a medida se encontra em vigor desde março de 2020.

Em Portugal, um estudo publicado em 2019 pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes concluiu que a redução dos preços dos passes teve consequências semelhantes: mais utilização de transportes públicos, menos recurso aos carros e menos emissões de dióxido de carbono. Dados úteis para afastar dúvidas sobre a importância do investimento público numa rede de transportes gratuitos e abrangentes.

Amanhã na feira


terça-feira, 30 de agosto de 2022

Ecos de uma demissão


A história de Marta Temido é mais uma história da "queda de um anjo". De alguém que propôs uma Lei de Bases da Saúde à esquerda contra setores poderosos do seu partido, mas que logo revelaria incapacidade de formular uma estratégia para o SNS, comunicá-la e exigir recursos para a concretizar. 

Pelo contrário, deixou-se enredar no jogo de propaganda erigido pelo PS para capitalizar a sua popularidade pública pós-pandemia com fins eleitorais (quem não sem lembra daquele triste número de receção do cartão do partido no congresso do PS?), sem fingir o seu próprio deslumbramento.

Para se ser uma boa ministra da saúde, não basta apenas a oposição, em tese, aos interesses instalados no setor. É preciso estar disposta a comprar as lutas políticas internas necessárias para ter o investimento que o SNS precisa para cumprir a sua missão.

É também preciso saber para onde se vai. Depois da aprovação da Lei de Bases da Saúde, foi sempre incapaz de promover um discurso analítico, estruturado das premissas para as conclusões. Essa indefinição estratégica paga-se cara.

Deve valorizar-se quem se opõe aos interesses obscuros do setor, mas isso de nada vale sem um ministra capaz de delinear um horizonte e capaz de entender que as bravatas orçamentais não se compaginam com um SNS que dignifique a sua missão.

Dificilmente o futuro trará boas notícias. Há muito que setores da esquerda (próximos dos quais me movo) lhe prestavam um apoio tácito, convencidos do que a sua gestão seria menos má do a de qualquer outro potencial ministeriável do PS. E teriam razão, muito provavelmente. 

Mas há limites ao "menos mau". A estratégia do mal menor, se dilatada no tempo, sem respostas efetivas, apenas traz o lodo e o pântano, canalizando a justa indignação que se gerava para os verdadeiros inimigos do SNS. Por isso, a minha posição é pouco auspiciosa.

Convencido de que a manutenção da inoperância da ministra era cada vez mais tóxica aos defensores do SNS, acolho a demissão como positiva.

Também convencido de que na órbita do PS dificilmente existirá alguém que alie valores firmes no domínio da saúde e capacidade de concretização, não antecipo nada de bom. Malhas que a maioria absoluta tece, sem surpresa. Para gaúdio de uma direita em excitação crescente.


Fugas e falta de coragem

Mais uma vez, a direita não tem coragem de dizer ao que vem. Questionado - após a demissão da ministra da Saúde - sobre qual a mudança de política que o PSD defende para o SNS, o seu vice-presidente Miguel Pinto Luz disse em conferência de imprensa que essa resposta... cabia a António Costa dar. 

Recorde-se que, aquando da discussão para a sua criação, o PSD votou contra a criação do SNS. E desde aí, a política do PSD - quando esteve em maioria absoluta no Parlamento - foi a de dar corpo a uma Lei de Bases que colocou o Estado a incentivar o... sector privado da Saúde, ao mesmo tempo que foi asfixiando financeiramente o SNS, suborçamentando-o. Isso aconteceu tanto nos anos 80, no mandato de Cavaco Silva, como no mandato do Governo Passos Coelho/Paulo Portas, tendo como elemento coordenador secretário de Estado adjunto Carlos Moedas e apoiado no Parlamento pelo seu líder Luís Montenegro.

Mas recorde-se igualmente que o PS, embora afirmando-se como o grande criador do SNS (omitindo o papel de outras forças políticas e sindicais), tem tido contudo uma política em zigue-zague, muitas vezes comprometida com os grupos privados na Saúde, que consolida a deriva da direita e que o impediu de resolver o problema da suborçamentação do SNS (ditado pelos constrangimentos neoliberais impostos ao nível da UE), que se reflectem na acentuação dos problemas de desarticulação de serviços e equipas, da ausência de carreiras aliciantes para os seus profissionais, obrigando o SNS a ir cedendo posições aos operadores privados que vão imponto as suas regras e a sua influência na esfera política. 

Há décadas, mas sobretudo nos últimos anos que à esquerda do PS se critica esta hesitação. Esse foi o tema que esteve na base da posição do Bloco e do PCP na inviabilização do anterior governo PS. Ainda há cinco dias, o PCP alertava para a situação que politicamente se estava a criar, com a tentação governamental para a privatização do SNS. 

Resta, pois, conhecer que condições a ex-ministra afirmou que "deixou de ter para se manter no cargo". Nomeadamente, saber as razões aventadas para a demissão da ministra durante a madrugada de hoje, às 1h15, aceite em comunicado do gabinete do PM... às 1h30


segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Divers faits


Augusto Santos Silva encarna a colonização neoliberal do PS. Em menos de 140 caracteres, toda uma ideologia incapaz de aprender o que quer que seja com o mundo desde pelo menos a crise iniciada em 2007-2008. 

É com este intelectual que pelos vistos certa esquerda conta para travar a extrema-direita. Esta “credibilidade”, esta submissão a “mercados”, criações institucionais do poder político, só a alimenta. As agências de notação são apenas uma perversa, mas complementar, nota de rodapé e que só gera  instabilidade na ausência de freios e contrapesos. 

Repetimos as vezes que forem necessárias: o banco central controla, se quiser, a taxa de juro da dívida denominada na moeda por si emitida e em todas as maturidades. O BCE teve de querer a partir de certa altura para salvar o euro e os bancos, introduzindo algum realismo numa rematada distopia monetária. Um gráfico pode valer mais do que muitas palavras



Quando o BCE deixar de querer, quando a elite alemã deixar de querer, os mercados implodem e o euro também. Tudo o resto, incluindo a austeridade recessiva mais ou menos larvar, é pura política de classe, aceite por aqueles que, dado o nome, devem defender quem trabalha, ao invés de patrocinarem uma política de transferência maciça do trabalho para o capital, como a que está em curso: já vai em 7,5% do rendimento, previsto só este ano. 

A UE foi criada em Maastricht para destruir a social-democracia europeia depois de terminada a sua utilidade para as classes dominantes, em face da crise do socialismo: os fait divers de uma Primeira-Ministra finlandesa favorável ao belicismo da OTAN e a ofuscação twiteira do presidenciável Santos Silva são testemunhos tão tardios quanto pífios deste facto de norte a sul.

sábado, 27 de agosto de 2022

Sedes do neoliberalismo


Filha das ilusões tecnopolíticas da “primavera marcelista”, a Associação para o Desenvolvimento Económico e Social (SEDES), fundada em 1970, é “herdeira ética de Sá Carneiro”, para usar a fórmula do seu atual presidente, Álvaro Beleza. Ou seja, é herdeira do liberalismo que sempre preferiu evoluções pouco democráticas a revoluções democráticas. É hoje uma das sedes do neoliberalismo.

O anúncio de um estudo coordenado por Abel Mateus, economista consistentemente neoliberal desde os anos 1970, e por Álvaro Beleza, médico de direita que milita no P sem S e consistentemente peneirento, confirma esta hipótese. 

O resto da crónica pode ser lido no setenta e quatro.


sexta-feira, 26 de agosto de 2022

O impacto distributivo da inflação

Em julho, a taxa de inflação homóloga - que compara o nível geral de preços deste mês com o mesmo mês do ano passado - atingiu os 9,4% em Portugal. É o valor mais alto dos últimos 30 anos, sendo preciso recuar a novembro de 1992 para encontra um valor semelhante. A subida dos preços a um ritmo a que já não assistíamos há várias décadas está a afetar a maioria das carteiras. Mas o impacto não é igual para todos.

Um estudo publicado em julho por economistas do FMI estima que o aumento médio do custo de vida nos países europeus seja de cerca de 7% ao longo do ano. No entanto, os impactos variam consoante a classe social. Na esmagadora maioria dos países, o aumento do custo de vida para os 20% mais ricos é menor que o dos 20% mais pobres, como se vê no gráfico acima. O motivo é relativamente intuitivo: os grupos de menores rendimentos gastam maior proporção dos seus salários em eletricidade, gás e bens alimentares, onde a inflação se tem concentrado

O que estes dados nos mostram é o impacto distributivo da inflação. Em Portugal, enquanto a maioria das pessoas vê o seu poder de compra diminuir significativamente porque os salários não acompanham a escalada dos preços, os acionistas das grandes empresas têm recebido dividendos recorde à boleia dos lucros extraordinários em setores como o da energia, o da grande distribuição ou o da banca. Mas o governo português continua a não parecer muito interessado em medidas redistributivas, como a tributação dos lucros extraordinários (que já está a acontecer em países como Itália, Espanha, Reino Unido, Bélgica ou Grécia) ou a promoção de aumentos salariais pelo menos em linha com a inflação.

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Como se queima um velho Estado


Por uma vez dou razão a Manuel Carvalho, em editorial no Público, até porque em matéria florestal por vezes abandona os seus preconceitos neoliberais:  “O algoritmo e o futuro risonho da serra [da Estrela] revelam sinais de nervosismo, insensibilidade e desorientação. Na sua tentativa de relativizar a dimensão do desastre não deram conta que a relativização e a propaganda não funcionam”. 

E a desmemória também não. Como está o Pinhal de Leiria? Lembro o que Carvalho escreveu, em coautoria, num Público de 2017: 

“No final dos anos de 1970 havia na circunscrição florestal da Marinha Grande (que se dedicava quase em exclusivo ao pinhal e tinha orçamento próprio) 5 técnicos, 200 trabalhadores rurais e 40 guardas florestais. Hoje não há circunscrições e na Marinha Grande trabalham dois técnicos e 10 trabalhadores rurais – não há, como se sabe, guardas florestais. Após duas grandes reformas nos serviços em 1993 e 1998, os serviços florestais locais e circunscrições florestais regionais (3 no centro) passaram a estar centralizados no ICNF [no Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas], em Lisboa.” 

Nesse mesmo dia, num artigo de opinião, o geólogo Micael Jorge informava ainda que, entre 2001 e 2009, as matas do Pinhal tinham gerado 26,2 milhões de euros de lucros, enquanto que o valor investido fora de cerca de 2,7 milhões. 

Avancemos cinco anos para chegarmos de novo ao verão de 2022, sabendo que pouco se fez para alterar este estado de coisas, por exemplo através de investimento público em serviços públicos nesta e noutras áreas. A passagem do tempo assim só piora tudo, até perante a evidência cada vez mais ululante das alterações climáticas. 

A seguir ao incêndio na Serra da Estrela, o biólogo Jorge Paiva informava em artigo de opinião no Público: “Com este devastador incêndio, resultante da incúria e incompetência de quem devia proteger o Parque Natural e Geoparque Internacional da Serra da Estrela, há animais e plantas que ficarão em elevado risco de extinção e até poderão ter sido extintas.” 

E mais à frente afiançava: “Recuso-me a utilizar a sigla ICNF (de Florestas), pois resultou de um dos maiores crimes florestais que os governantes cometeram: a extinção dos Serviços Florestais. No que resultou a ocorrência de devastadores piroverões.” 

A lição é clara, mas só se virmos a floresta para lá do neoliberalismo que queima um velho Estado, também através da austeridade mais ou menos encoberta: Portugal é dos países com menos funcionários públicos, em percentagem do emprego total, no mundo desenvolvido, é um dos países europeus com menor percentagem de propriedade pública na floresta e regista o nível de investimento público mais baixo da UE. 

E não será este Governo que alterará este estado de coisas, definitivamente. Sobram a propaganda e o relativismo, realmente.

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

O Qatar não é aqui


«No próximo dia 21 de Novembro, às quatro da tarde em ponto, hora local, um esférico denominado Al Rihla ("A Jornada"), fabricado pela marca Adidas, com uma cobertura de poliuretano texturizado e 20 gomos, será colocado no centro de um grande rectângulo de relva. (...) A empresa holandesa que forneceu os relvados dos últimos três Mundiais de Futebol recusou-se a colaborar neste torneio após ter sabido que só na construção dos estádios já pereceram mais de 6750 trabalhadores, todos oriundos da Índia, do Bangladesh, do Nepal e do Sri Lanka. Nenhum cidadão do Qatar, país anfitrião, morreu na edificação das infraestruturas que irão receber o Mundial da Vergonha. (...) Um inquérito de 2018 concluiu que os operários das obras do Mundial trabalhavam dez horas por dia, seis dias por semana, em condições deploráveis, sendo frequentes jornadas de trabalho de 12 a 14 horas e até casos de escravos que trabalharam 148 dias consecutivos sem uma única folga».

António Araújo, Qatar, o Mundial da Vergonha

«Este Mundial simplesmente não seria possível sem trabalhadores migrantes, que constituem 95 por cento da mão de obra do Qatar. Desde estádios e estradas à hospitalidade e à segurança, o torneio depende do trabalho árduo de homens e mulheres que viajaram milhares de quilómetros para sustentarem as suas famílias. Mas, com demasiada frequência, estes trabalhadores ainda descobrem que o seu tempo no Qatar é definido por abuso e exploração. (...) Enquanto órgão organizador do Campeonato do Mundo, a FIFA tem uma responsabilidade à luz dos padrões internacionais de mitigar riscos para os direitos humanos decorrentes do torneio. Isto inclui riscos para trabalhadores em indústrias como hospitalidade e transporte, que se expandiram massiçamente para facilitar a execução da competição».

Steve Cockburn (Amnístia Internacional, março 2021)

«Uma investigação do Guardian (...) revela que os trabalhadores têm sido forçados ao longo dos últimos anos a pagar milhares de milhões de dólares em taxas para poderem trabalhar. O jornal britânico estima que trabalhadores provenientes do Bangladesh tenham pago entre 1,5 mil milhões a dois mil milhões desde 2011 até 2020 e que nepaleses tenham pago entre 320 milhões e 400 milhões entre 2015 e a primeira metade de 2019. Os primeiros serão obrigados a pagar taxas entre 3.000 a 4.000 dólares e os segundos entre 1.000 a 1.500. Isto implica que o pagamento destes valores lhes custe pelo menos um ano de trabalho».

Esquerda.net, No Mundial do Qatar feito à custa de baixos salários, migrantes têm de pagar para trabalhar

terça-feira, 23 de agosto de 2022

Da alegada «falta de confiança» dos arrendatários à preferência das famílias pela casa própria

Foram recentemente publicados dados interessantes sobre as opções das famílias relativamente ao regime de ocupação da habitação. Ao contrário do que muitas vezes se pensa - sugerindo-se que as pessoas foram «empurradas» para a compra de casa, dada a escassa oferta no arrendamento - a casa própria é mesmo a opção preferida das famílias.

De facto, e de acordo com os dados do INE, cerca de 45% das famílias proprietárias preferiram mesmo ter casa própria (para lá das razões financeiras), representando apenas 2%, neste universo, os agregados que preferiam ter arrendado. Isto quando, entre as famílias arrendatárias, 64% preferia ter comprado casa, situando-se em apenas 10% os casos de preferência pelo arrendamento. E se 38% das famílias proprietárias consideraram que a compra foi o melhor investimento, apenas 3% das famílias arrendatárias depreciam a aquisição, desse ponto de vista.


Estes dados são importantes, ajudando a desconstruir a ideia, que persiste, de que a crise do arrendamento é uma «crise de confiança» dos proprietários (alegadamente suscitada pela intervenção do Estado e, em particular, pelo congelamento das rendas) e não o reflexo da preferência das famílias pela aquisição de casa própria, sobretudo a partir dos anos noventa, impulsionada pela redução das taxas de juro e pelos apoios e benefícios fiscais no acesso ao crédito.

De resto, e como já assinalámos repetidamente neste blogue (ver por exemplo aqui, aqui ou aqui), o peso relativo das «rendas antigas» foi-se tornando manifestamente marginal, perdendo capacidade explicativa da alegada crise de confiança dos arrendatários, nomeadamente na sequência da liberalização para os novos contratos, em 1990, e da aprovação da «Lei Cristas», em 2012, responsável por um aumento exponencial dos despejos.

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Quem ganha com a subida das taxas de juro?

 

A subida das taxas de juro parece ter vindo para ficar. Depois do anúncio do Banco Central Europeu (BCE), que aumentou as taxas de juro de referência em 50 pontos base, espera-se que a tendência se mantenha. É neste sentido que se tem discutido as suas principais implicações.

O impacto mais destacado tem sido o do crédito à habitação: para quem tem empréstimos com taxas variáveis, as prestações já estão a aumentar e poderão subir substancialmente, já que o indexante utilizado nos contratos (a taxa Euribor) acompanha a flutuação das taxas de juro de referência. Além disso, a subida das taxas vai tornar mais cara a concessão de crédito para as empresas e terá um efeito de restrição do investimento no conjunto da economia, o que pode aumentar o desemprego.

No entanto, o aumento dos juros não é uma má notícia para todos. O setor bancário, por exemplo, é um dos principais beneficiários deste processo. Depois de terem recebido mais de 2 biliões de euros em empréstimos do BCE para fazer face à crise provocada pela pandemia, os bancos europeus têm agora uma oportunidade de ouro: depositar o dinheiro nas contas que detêm no banco central, aproveitando os juros mais elevados para obter lucros extraordinários. Para perceber como funciona o esquema, é preciso recuar uns anos.

Em 2019, o BCE começou a conceder empréstimos aos bancos comerciais com condições bastante favoráveis. Estes empréstimos ficaram conhecidos como “operações específicas de refinanciamento de longo prazo” e eram concedidos a taxas de juro negativas (-0,5%). Por outras palavras, o banco central pagava aos bancos comerciais para estes receberem o dinheiro. Com o início da pandemia, o BCE reduziu ainda mais essa taxa, para -1%, justificando-o com a necessidade de fornecer liquidez aos bancos e impedir uma quebra generalizada da concessão de crédito, à semelhança do que aconteceu na última crise financeira e que desencadeou uma vaga de incumprimentos e falências.

Só que, com o aumento da taxa de depósito do BCE, é expectável que os bancos aproveitem para depositar os empréstimos que receberam no banco central e arrecadar os juros. De acordo com as contas dos analistas financeiros da Morgan Stanley, esta operação poderia render ao setor bancário entre quatro e 24 mil milhões de euros até ao fim do programa em 2024. Um dirigente de um banco europeu, citado pelo Financial Times, explicou de forma sucinta que “este negócio tem sido bastante lucrativo”, embora reconheça que “é difícil para os bancos gabarem-se abertamente disso – ninguém quer admitir que estão a beneficiar da pandemia”. Apesar do risco de um aumento dos incumprimentos nas prestações dos empréstimos, as perspetivas do setor bancário europeu para os próximos tempos parecem ser francamente otimistas.

Em Portugal, o setor bancário também não tem motivos de queixa. Os lucros dos cinco principais bancos – BCP, Santander, CGD, BPI e Novo Banco – aumentaram 78% nos primeiros seis meses do ano, face ao mesmo período do ano passado. Ao mesmo tempo, as comissões bancárias voltaram a subir: ao todo, os cinco bancos cobraram 1222 milhões de euros aos clientes no primeiro semestre de 2022.

Os banqueiros têm recusado comparações com o ano passado devido às restrições impostas pelo confinamento. Nesse sentido, argumentam que os resultados são um indicador de regresso à normalidade. Mas a verdade é que o valor cobrado em comissões subiu 19% em relação ao mesmo período de 2019, o que indica que a pandemia está longe de explicar tudo. Na verdade, as comissões aumentaram 163% nos últimos 10 anos, como notou recentemente a DECO, o que demonstra o poder de mercado dos principais bancos e o seu impacto na carteira dos consumidores.

Em Espanha, o governo de centro-esquerda liderado por Pedro Sánchez (PSOE) já avançou para a tributação dos lucros extraordinários do setor bancário. A ideia passa por cobrar uma taxa sobre os ganhos extraordinários decorrentes da subida dos juros e do aumento das comissões bancárias. É uma medida de justiça social, por visar os grupos que estão a lucrar com a crise, e de bom senso económico, por desencorajar preços especulativos e permitir financiar outras medidas de apoio a quem está a perder poder de compra.

Por cá, o Governo não parece ter muito interesse em atuar. Num ano em que os salários reais terão uma quebra acentuada – uma das maiores do conjunto dos países da OCDE – face à escalada da inflação, o Governo continua a preferir manter intocados os lucros dos grandes grupos, da energia ao retalho, passando pela banca.

Artigo publicado inicialmente no Setenta e Quatro.

Duelo


Participei no “duelo” do Expresso da semana passada, tendo Pedro Brinca como oponente: Concorda com o plano de emergência social apresentado pelo PSD? Não:

A proposta de programa de emergência social do PSD para os últimos quatro meses de 2022 — que inclui vales alimentares para pensionistas e trabalhadores de menores rendimentos, a redução regressiva do IRS para os escalões intermédios, o aumento do abono de família e linhas de apoio para as IPSS e PME mais afetadas pelo aumento dos custos da energia — atua sobre os efeitos e não sobre as causas da perda de poder de compra das famílias. Ainda que estas medidas possam mitigar muito parcialmente o aumento galopante do custo de vida para os mais pobres em 2022, o problema reemergirá em 2023 com o continuado aumento do preço dos bens essenciais.

Uma das causas da perda do poder de compra das famílias é, precisamente, o desajustamento entre a evolução dos preços dos bens essenciais e a evolução dos salários e das pensões. Segundo informação recentemente divulgada pelo INE, a remuneração mensal média por trabalhador aumentou 3,1% no 2º trimestre de 2022, relativamente à do mesmo período do ano anterior. Ajustando para a inflação, medida pela variação do Índice de Preços no Consumidor, que foi 8,0% nesse trimestre, em termos reais, a remuneração mensal média por trabalhador diminui 4,6%. Ao mesmo tempo, assiste-se à acumulação de lucros extraordinários das empresas que beneficiam com a guerra e a crise energética, não se vislumbrando no contexto nacional, ao contrário do que sucede em outros países, apoio político para a taxação destes lucros excessivos.

Tão-pouco se vislumbra o reforço dos serviços públicos, nos domínios da saúde, do apoio à infância ou do cuidado a pessoas dependentes, que, constituindo salário indireto, poderiam garantir a manutenção do bem-estar das famílias num momento marcado por crises de vária ordem — financeiras, sanitárias, energéticas, inflacionárias, ambientais — cada vez mais recorrentes.

Pelo contrário, a Administração Pública encontra-se permanentemente ameaçada por cortes orçamentais e uma carência de pessoal crónica e agora aguda, resultado de décadas de políticas que vêm mercadorizando a provisão de bens essenciais e, deste modo, limitando o alcance do Estado social quando ele é mais necessário.

O PSD propõe, portanto, políticas mitigadoras, que não intervêm sobre as causas estruturais dos problemas que visam resolver, acabando por agravar esses mesmos problemas. A solução para a perda do poder de compra das famílias não pode deixar de passar pela valorização do emprego com direitos, dos rendimentos do trabalho e das prestações sociais e pelo reforço dos serviços públicos de acesso universal.

domingo, 21 de agosto de 2022

Querido diário - a crise do euro aí estava... (e está)

Há dez anos, até os mais ferranhos federalistas, como a jornalista Teresa de Sousa do Público, se questionavam - mesmo após a famosa frase de Draghi - quando seria que o euro rebentaria. E o euro era lido então como aquilo que sempre fora: um instrumento político, de uma determinada política.

E assim é. Há alguma explicação racional para um (neo ou ordo) liberal que todas as áreas da política devem ser flexibilizadas - todas, menos uma: a monetário-cambial? Só há uma explicação que, aliás, nunca é explicada: A imposição dessa política rígida, que fixa a ditadura de uma determinada e infléxivel paridade cambial é gerida por uma instituição independente do poder político democraticamente eleito (o Banco Central Europeu), mais preocupado com a saúde do sector financeiro (a inflação baixa mantém o valor dos créditos prestados) do que com quem vive do seu trabalho e do valor do seu trabalho.

Público, 19/8/2012

Em 2012, eram claros os sinais disruptivos da arquitectura da moeda única. Durante muito tempo, vendeu-se a ideia de que esta arquitectura - coxa - fora a possível para aliciar a Alemanha a perder o controlo do seu bem-amado marco. Mas torna-se cada vez mais claro que as ditas lacunas da moeda única - taxas cambiais fixas e irrevogáveis entre regiões de níveis económicos distintos, ausência de uma política orçamental que compense esse desnível e a forretice de obstar à criação desse orçamento federal - na verdade funcionam às mil maravilhas em proveiro dos Estados mais poderosos da Europa.

Estes passaram a beneficiar de uma moeda mais fraca que a que seria a sua própria. Obrigaram os Estados mais fracos a ter uma moeda mais forte do que a sua própria. E isso está na base de cada vez mais maiores dificuldades para os Estados mais fracos: económicas (maior défices externos, desarticulação das suas estruturas produtivas apoiando-se em sectores fracamente produtivos), sociais (prevalência de baixos salários e aumento da pobreza), orçamentais (incapacidade de políticas expansionistas limitadas pelos magros recursos próprios e pela impossibilidade de os seus bancos centrais financiarem a actividade política), políticas (expansão da extrema-direita e cada vez maior divórcio entre cidadãos e a democracia), demográficas (mais envelhecimento, menos crianças, mais emigração), etc. E que se agravam à medida que a sua dívida se agrava.

É como acontecia com os seringueiros do Ferreira de Castro (ler "A Selva") que, antes de começarem a trabalhar, já deviam ao patrão e trabalhavam para pagar essa dívida, na verdade inexistente...

Foi aquilo que Portugal sentiu em 2012.

Público, 19/8/2012

Depois de o Tribunal Constitucional ter impedido o ímpeto "reformista" do PSD de Passos Coelho/Portas/Montenegro/Moedas/Poiares Maduro, a troica voltava com as suas cegas e estúpidas receitas, supostamente para fazer crescer Portugal à la SEDES: ou cortas na despesa pública (vulgo, na saúde pública do SNS, na educação pública, na provisão publica em Habitação, nos apoios sociais, na segurança, etc., etc.) ou tens de aumentar impostos sobre quem paga já impostos. Ou seja, sobre trabalhadores e pensionistas.

E é isso em que nos arriscamos de novo a cair. Dez anos depois... com os senhores não eleitos do BCE a impor suas condicionalidades de cada vez que algo não lhes agradar. Para já, o BCE tudo faz para provocar uma nova recessão, quaisquer que sejam os custos económicos e sociais, e que se impeça uma justa repartição do rendimento. Tudo em nome da alta finança:
Questionada [Isabel Schnabel, membro da comissão executiva do BCE] sobre os riscos de uma recessão, a responsável esclarece que há indícios "de que o crescimento económico desacelere e não está fora da mesa que entremos numa recessão, especialmente se as importações da Rússia forem ainda mais afetadas". Mas, mesmo com uma recessão, a economista, que faz parte do núcleo duro do BCE, adianta que pode não ser suficiente para trazer a inflação de volta a uma linha de controlo de 2%. "O abrandamento do crescimento da economia provavelmente não é suficiente para abrandar a inflação", diz.
E se tudo se mantém desarmonioso, por que razão não há-de haver uma nova crise do euro?

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Um "déjà vu" revivido no Pontal

Retirado da página do Parlamento, sobre uma sessão em Julho de 2011

A direita em Portugal tem dois pecados originais. 

Primeiro. É incapaz de traçar um diagnóstico sobre as causas da situação do país porque isso obrigá-la-ia ou a responsabilizar governos seus; ou, para se manter coerente com o defendido ao longo de décadas, a ter de propor medidas tão gravosas para a maioria dos portugueses, que lhe retiraria apoio eleitoral suficiente para a guindar ao poder. 

Segundo. Na ausência desse diagnóstico consistente, a direita tem poucas e más alternativas. Ou faz um discurso vazio de políticas, repetindo chavões e cavalgando a conjuntura; ou traça um falso diagnóstico, com falsas soluções; ou esconde dos portugueses o seu verdadeiro programa e mente sobre o que vai fazer quando for governo. De qualquer forma, isso faz com que o seu discurso seja sempre vazio de ideias, de reformas. E ai de quem lhe peça ideias ou propostas, porque a resposta será: o Governo governa, a oposição vigia. 

Já foi assim com Rui Rio (aqui e aqui). E já está a ser com Luís Montenegro. Veja-se o seu discurso de domingo passado, no Pontal. 

O resto pode ser lido ler aqui, na página do Setenta e Quatro.


quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Sedes da troika


O Público noticia um estudo da SEDES: “Para se poder levar a economia de uma trajectória de quase estagnação a um crescimento médio de 3,5% ao ano, é essencial um período de transição, em que teremos de fazer alguns sacrifícios e adoptar políticas de ruptura que só fruirão totalmente no médio e longo prazo.”

É a dupla Abel Mateus, um economista consistentemente neoliberal desde os anos 1970, e Álvaro Beleza, um médico de direita consistentemente peneirento desde sempre.

O que propõem? A receita recessiva de austeridade da troika e das regras europeias por reformar, ou seja, ganhos de curto, médio e longo prazo para os mesmos de sempre e perdas em todos os horizontes para os mesmos de sempre. 

Da privatização do SNS à da segurança social, passando pelo aumento de direitos patronais e redução dos laborais, é a mesma receita de sempre, inscrita num euro, que apoiaram entusiasticamente e que só produziu estagnação.

Estas sedes da troika só são levadas a sério por uma comunicação social com brutais enviesamentos ideológicos.


quarta-feira, 17 de agosto de 2022

O europeísmo está a perder o gás


A crise energética continua (e continuará) na ordem do dia. Como aqui se procurou explicar, avizinha-se um inverno gelado, sobretudo na Alemanha, que apela à solidariedade dos países menos dependentes do gás natural proveniente da Rússia, como é o caso de Portugal.

A semana passada, Olaf Scholz, Chanceler da Alemanha, lamentou a inexistência de um corredor de gás natural que ligue Portugal, Espanha e França à Europa Central, instando à construção de um gasoduto a partir do território nacional. Perante as ameaças à segurança de abastecimento, e uma vez que não possui terminais de gás natural liquefeito (GNL) em terra, a Alemanha beneficiaria da sua regaseificação na Península Ibérica, nomeadamente, no porto de Sines, e do seu transporte através de gasoduto. 

Afinal, bastou uma Alemanha em apuros para que um impasse de mais de uma década nesta periferia energética se transformasse num imperativo europeu, para regozijo daqueles que, como Manuel Carvalho, diretor do Público, fazem questão de relembrar que este gasoduto já tinha sido defendido por Pedro Passos Coelho. 

A concretização deste projeto transnacional implicaria, do lado português, a construção de uma terceira interligação à rede de gás natural espanhola, uma ambição antiga de Governos do PSD e do PS que esbarrou sucessivamente contra os pareceres desfavoráveis da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (alegando incertezas quanto aos avanços das infraestruturas em Espanha e França, e antecipando potenciais aumentos nas faturas dos clientes portugueses) e da Agência Portuguesa do Ambiente (devido aos impactos ambientais na paisagem protegida do Alto Douro Vinhateiro). 

O objetivo era que Portugal, através do terminal do porto de Sines, se tornasse na porta de entrada do gás natural norte-americano na Europa, contribuindo para contornar a dependência em relação à Rússia. O plano para a criação de um corredor Portugal-Espanha-França parecia ter sido definitivamente derrotado em fevereiro de 2019, quando os reguladores espanhol e francês chumbaram a interligação de gás natural entre Espanha e França através dos Pirenéus (que era condição para a construção de um novo gasoduto até Espanha, passando por Trás-os-Montes), considerando que os custos ultrapassariam os benefícios para os seus consumidores. 

Portugal ficou ainda mais isolado e impossibilitado de exportar gás natural através de gasoduto para lá de Espanha. A Península Ibérica é, virtualmente, uma “ilha energética”, devido precisamente à escassez de interconexões com o resto do território europeu. Este processo de periferização energética da Península Ibérica serviu os interesses de França, por exemplo, que sempre resistiu à construção de um gasoduto transpirenaico – receava a concorrência, embora se refugiasse em argumentos de cariz ambiental (obviamente, legítimos) –, mas foi arrastando as negociações diplomáticas com Portugal e Espanha. 

Ora, neste momento, os planos para diversificar as fontes de abastecimento da União Europeia (UE) e para assegurar o fornecimento de gás natural à Alemanha já passam por Portugal. A crise energética levou a Comissão Europeia e a Alemanha a falar de “solidariedade”, “união” e “partilha de esforços”. 

Na sua habitual diligência, António Costa afirmou que “a Alemanha pode contar 100% com o empenho de Portugal para a construção do gasoduto”, que, de acordo com o Primeiro-Ministro, teria a duração de quatro anos e um custo de 330 milhões de euros (desejavelmente subsidiados pelo Mecanismo de Recuperação e Resiliência), com a mais-valia de poder ser reconvertido para o transporte de hidrogénio verde no futuro. Nada disto está garantido. 

Porém, muito para lá da viabilidade económica e tecnológica, do impacto ambiental e do traçado do gasoduto, ou seja, os entraves do passado que teriam de ser novamente avaliados pelas entidades competentes, parece que se instalou uma amnésia coletiva em relação às alterações climáticas e à urgência em cessar a dependência dos combustíveis fósseis – a designada “neutralidade climática” que colocaria a UE na vanguarda da transição energética, lembram-se? As metas climáticas e energéticas de Portugal e da UE já eram manifestamente insuficientes antes da guerra na Ucrânia, a diferença agora é que já não há dissimulação. 

Outro detalhe: uma infraestrutura que estaria operacional (no mínimo) daqui a quatro anos jamais ajudaria a Alemanha a mitigar a crise energética que se perspetiva para o próximo inverno. O desvio de navios metaneiros do porto de Sines para a Alemanha e a regaseificação do GNL em alto mar, a alternativa provisória, é inviável. O que está em causa é, pois, o papel atribuído a Portugal na segurança de abastecimento do Norte e Centro da Europa nas próximas décadas, quer se trate de gás natural, ou de gases renováveis. 

No editorial do Público de 14 de agosto, Manuel Carvalho refere que “tudo o que aproximar o país do centro de gravidade das decisões europeias é bom para Portugal” e reforça o seu “papel estratégico” na Europa. Quais são os indícios de que tal esteja verdadeiramente a acontecer? Estarão a ser secretamente negociadas contrapartidas altamente vantajosas para o nosso país? O que sabemos até ao momento aponta precisamente na direção oposta: a Alemanha precisa urgentemente de encontrar alternativas ao gás natural russo e Portugal é um peão nesse jogo de xadrez geopolítico, um intermediário que asseguraria que não faltaria energia ao “coração industrial e demográfico da Europa”, como o próprio afirma. 

Ao contrário do que Manuel Carvalho assevera, o gasoduto não tornará Portugal “mais europeu”, nem é, tampouco, “matéria de amplo consenso”. A construção de uma infraestrutura desta envergadura no contexto da crise climática desencadearia efeitos perversos que não podem ser ocultados: o prolongamento da dependência em relação aos combustíveis fósseis, mais especificamente, em relação ao gás natural dos EUA; a expansão do capitalismo fóssil, motor das alterações climáticas. 

O “estatuto de país periférico” de Portugal, reconhecido pelo próprio Manuel Carvalho, só se reverte com soberania energética, jamais sacrificando territórios, seja para expandir o capitalismo fóssil, ou em nome da transição energética. 


terça-feira, 16 de agosto de 2022

Economia política traduzida


Em nota anterior recomendei a leitura e tradução de um artigo escrito por um raro economista político soberanista italiano chamado Thomas Fazi, publicado na eclética unherd. O leitor Afonso Anjos teve a generosa iniciativa de o traduzir. Muito obrigado:  

Como Mario Draghi deu cabo de Itália - Uma crise está a crescer nas ruas de Itália

A defenestração de Mario Draghi deixou o establishment italiano – e sem dúvida o internacional – horrorizados.  Isto não surpreende. Quando foi nomeado Primeiro-Ministro italiano no começo do último ano, as elites política e económica da Europa deram as boas-vindas à sua chegada como se fosse um milagre. Virtualmente todos os partidos do parlamento italiano – incluindo os dois partidos ex-‘populistas’ que ganharam as eleições em 2018, o Movimento Cinco Estrelas e a Liga – deram o seu apoio. O tom da discussão pode ser bem capturado pelo poderoso governador da região de Campania, Vincenzo De Luca (PD), que comparou Draghi a “Cristo”.

Toda a gente estava de acordo: um governo de Draghi seria uma benção para o país, uma última oportunidade para redimir os seus pecados e tornar a “Itália grande outra vez”. Draghi, diziam eles, simplesmente em virtude do seu “carisma”, “competência”, “inteligência” e “importância internacional”, seria capaz de manter os mercados da dívida à distância, aplicar as muito urgentes reformas, e relançar a estagnada economia italiana. 

Infelizmente, a realidade não correspondeu às expetativas: Draghi deixou atrás de si um país em estilhaços. A última previsão macroeconómica da Comissão Europeia indica que a Itália irá ter o mais lento crescimento económico do bloco no próximo ano, apenas 0.9%, em consequência da queda nas despesas dos consumidores, por causa do aumento dos preços, e menor investimento privado, um resultado do aumento dos custos da energia e do crédito, bem como das perturbações no fornecimento do gás russo.

A Itália tem também uma das mais rápidas taxas de crescimento da inflação na Europa – que está neste momento em 8.6%, o nível mais elevado em mais de três décadas. As taxas de juro da divida pública italiana têm aumentado de forma sustentada desde que Draghi subiu ao poder, quadruplicando durante o seu mandato; hoje estão no nível mais elevado da última década. 

Por outro lado, esta “policrise” começa a fazer o seu dano na sociedade italiana: 5.6 milhões de italianos – quase 10% da população, incluindo 1.4 milhões de menores de idade – vivem neste momento em pobreza absoluta, o nível mais elevado de que há registo. Muitos destes trabalham, e é provável que este número aumente, à medida que os salários reais continuem a cair ao ritmo mais rápido do bloco. Entretanto, quase 100.000 pequenas e médias empresas (PMEs) estão em risco de insolvência – um aumento de quase 2% comparado com o último ano.

segunda-feira, 15 de agosto de 2022

A moeda nunca é neutra


O BCE é como o FMI, mas em mais ortodoxo. Por isso, é ainda mais raro ver economistas do soberano monetário antidemocrático reconhecerem um facto ululante e para o qual o jornalista económico Luís Ribeiro chamou oportunamente a atenção: as margens de lucro mais elevadas também contribuem, e de que maneira, para acentuar as pressões inflacionárias. Vicente Ferreira não tem defendido outra coisa, sendo um raro exemplo entre os economistas nacionais. 

Nesse banco dos bancos constatam agora os resultados da vitória na luta de classes para cuja blindagem dão um contributo decisivo: 

“Os economistas do BCE consideram que o peso dos salários é hoje menor no cardápio de custos que influenciam a inflação fruto das reformas estruturais que tiveram lugar nas últimas décadas e que foram retirando poder aos trabalhadores.”

domingo, 14 de agosto de 2022

Um livro no querido mês

 

É tão difícil imaginar o fim do capitalismo como imaginar que o capitalismo não tenha fim (...) Este livro não é dirigido somente a quem se dedica à sociologia económica ou à economia solidária. Trata-se de uma interface entre a economia política, o ecofeminismo, os estudos sobre o trabalho e outras economias que, longe de serem categorias fechadas ou disciplinares, são manifestações vivas da imaginação e das competências coletivas de resistência e transformação.

Deixo-vos um excerto da sinopse de um livro acabado de chegar às livrarias. Coordenado por Boaventura de Sousa Santos e Teresa Cunha, trata-se de uma obra coletiva para a qual tive o prazer de contribuir com um capítulo - O mundo não é de facto uma mercadoria. A economia política e moral de Karl Polanyi -, desenvolvendo argumentos aqui esboçados.


quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Contas certas e avaliações há muitas


Como o Paulo Coimbra indica no texto anterior, a tendência de transferência de rendimentos do trabalho para o capital arrisca-se a ser maior do que aquela que ambos antecipámos em artigo no Le Monde diplomatique - edição portuguesa e que já de si seria maior do que no pior da troika, devendo agora ficar nos 7,5%.

Sérgio Figueiredo certamente avaliará esta transferência como sustentável. Afinal de contas, o aumento do peso dos rendimentos do capital promete trazer mais investimento. O problema é a realidade: décadas disto nos países de capitalismo avançado e o investimento produtivo anda pelas ruas da amargura.

Entretanto, o capital monopolista fala: Pires de Lima do CDS, desculpem, da Brisa, veio queixar-se que não se valoriza a meritocracia para pouco tempo depois afiançar - «As portagens estão directamente relacionadas com a inflação, é o indicador de inflação em Outubro que vai determinar o valor das portagens». 

É claro que não se poderá contar com Figueiredo para avaliar as consequências nocivas nas políticas públicas do poder deste capital. 


Do trabalho para o capital: as novas contas certas

Hoje, o INE tornou público que a “remuneração bruta total mensal média por trabalhador (por posto de trabalho) aumentou 3,1% no trimestre terminado em junho de 2022 (2.º trimestre do ano), em relação ao mesmo período de 2021”. 

Na mesma informação pública também ficámos a saber que os preços subiram 8% no período em referência. 


O INE ainda não divulgou a sua estimativa para o crescimento do PIB real e por isso não conhecemos a evolução da produtividade do trabalho. 

Conhecendo os dados acima, o que podemos esperar relativamente à evolução do peso da retribuição do trabalho no PIB? 

Antes de responder a esta pergunta, recordemos que o peso da retribuição do trabalho no PIB é um rácio em que o numerador é igual à remuneração por trabalhador e o denominador igual ao PIB por trabalhador. 

Ora, como dizemos aqui, uma política de rendimentos destinada a assegurar que o peso dos salários na riqueza produzida se mantém, pelo menos, constante, tem de garantir uma variação dos salários igual à variação do PIB. 

Dito de outro modo, se o peso dos salários no PIB é um rácio em que o numerador é igual às remunerações por trabalhador e o denominador igual ao PIB por trabalhador, então, para assegurar que este rácio se mantém constante, a variação da remuneração tem de ser igual à variação do PIB. 

Como o PIB varia em termos de quantidades (produtividade), mas também em função dos preços (inflação), uma variação equivalente dos salários obriga a que estes também variem de acordo com quantidades (produtividade) e com preços (inflação). Ou seja, medir o peso da retribuição do trabalho no PIB implica dividir remunerações nominais por trabalhador por PIB nominal por trabalhador. 

Assumindo que no período em causa a produtividade evoluiu de acordo com a previsão do governo para o conjunto do ano de 2022, ou seja, 3,5%, podemos esperar que o PIB nominal por trabalhador tenha crescido 11,5% (8% em preço e 3,5% em quantidade). 

De acordo com a regra acima, para garantir que o peso dos salários na riqueza produzida se mantinha, pelo menos, constante, a remuneração nominal por trabalhador deveria ter crescido também 11,5%. Como cresceu apenas 3,1%, a diferença para 11,5% representa, grosso modo, o valor da transferência do trabalho para o capital. 

Para obter o valor exato desta transferência, a referida diferença de 8,4% deve ser dividida por 1 mais o valor do PIB nominal por trabalhador (11,5%), o que representa 7,5%*.

*Editado. De facto, não 7,5%, mas 7,8% - ver comentários a este post, abaixo.

terça-feira, 9 de agosto de 2022

Avaliação


Com toda a consistência de que os neoliberais são capazes, Sérgio Figueiredo decidiu um dia trocar o jornalismo dos negócios por uma sinecura na fundação que serve para limpar a imagem da EDP junto da intelectualidade. 

Apresenta-se agora como consultor de sustentabilidade e foi contratado por ajuste directo para fazer avaliação de políticas públicas para Fernando Medina. Antes de ser já o era, dada a orientação ideológica: toda a política neoliberal é sustentável, toda a alternativa socialista é insustentável.


Querido diário - Já nesse tempo, nem tudo o que luzia no IRC era ouro...

 

Há dez anos, o jornal Público fez contas a 20 anos de existência de IRC, a partir das estatísticas dos serviços de Finanças. E o que se concluía pode parecer estranho a quem faz da redução dos impostos  - nomeadamente dos impostos sobre as empresas - um cavalo de batalha. 

Se em 1990 o IRC liquidado (pago efectivamente) correspondia a 27% dos resultados contabilísticos positivos, passados 20 anos correspondia apenas a 6%! E apesar disso, o desempenho económico não era excelente - como todos os (neo)liberais com assento parlamentar fazem hoje questão sempre de sublinhar. 

Esta discrepância tornava visível que as taxas de IRC eram a questão menos relevante do debate sobre medidas fiscais. Mais relevante do que as taxas era a definição do estava ou não sujeito a imposto. Mais importante do que as taxas era o conjunto das políticas fiscais - cujo âmbito e eficácia ficam, geralmente, na obscutidade dos debates e da própria apresentação das leis - que permitiam uma redução dos lucros tributáveis e da própria matéria colectável sobre a qual incide, no final, a taxa. Pior ainda é tentar comparar taxas de IRC em diferentes países, para avaiar a "competitividade fiscal", sem ter em conta as respectivas definições de matéria colectável... 

Como é visível no gráfico publicado, os resultados tinham subido significativamente, mas aquilo que era tributado em IRC era bem menor, fazendo com que a receita liquidada de IRC se tivesse mantido estável ao longo dos 20 anos, independentemente dos resultados das empresas. 

E esta situação favorecia sobretudo as grandes empresas. Isso porque eram estas que - fruto de uma forte evasão nas pequenas empresas - mais proporcionalmente contribuíam para a receita de IRC. Ou seja, quando ostensivamente se pugnava por baixas de IRC, sabia-se - mas não se dizia - quem eram os principais beneficiários. E pior: beneficiava-se um grupo de empresas que já retirava melhor partido do regime fiscal. Enquanto para as empresas com um volume até 5 milhões de euros, o IRC pago representava entre 21 a 23% dos resultados contabilísticos positivos, as empresas com facturações acima de 250 milhões, "pagavam" apenas 9,3% dos seus resultados contabilísticos positivos.    

Esta análise foi actualizada em 2013, durante o Governo Passos Coelho. Procure-se aqui o Barómetro nº8 do Observatório sobre Crises e Alternativas e veja-se as propostas da comissão encarregada de sugerir alterações ao IRC, presidida pelo fiscalista António Lobo Xavier, um advogado ligado ao grupo Sonae e ao sector financeiro. O sector financeiro - como é possível ler nessa publicação - foi um dos sectores que mais beneficiou com as medidas propostas. 

Longe de encarar o problema estrutural de erosão fiscal do IRC, o Governo (neo)liberal de Passos Coelho alinhou com a preocupação de curto prazo de beneficiar fiscalmente as grandes empresas. E - engraçado - apesar disso, estamos hoje numa situação económica que os (neo)liberais criticam e - mais uma vez e como se nada se tivesse passado no passado recente - voltam a propor, como solução, a redução das taxas de IRC. 

Ora, há dez anos, que já sabemos duas coisas: Uma, a redução da taxa não é a questão essencial: discuta-se antes os pequenos detalhes das leis fiscais e veja-se quem beneficia do quê. Outra, a redução da taxa beneficia sobretudo os proprietários das grandes empresas e, como se vê presentemente, não vai resolver o problema económico do país. Apenas vai dar recursos públicos a uma minoria da população.   


segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Um jornal contra a oligarquia

O que se pensa que vai resultar do espectáculo diário dos mais ricos — cada país tem os seus oligarcas — a anunciar lucros e distribuições de dividendos, entre uma viagem espacial e uma entrevista complacente em meios de comunicação de que são proprietários, no meio da ostentação dos locais de férias que escolheram e dos luxos de que não abdicam? O ritmo dos números é alucinante: a Jerónimo Martins, do Pingo Doce e da Fundação Francisco Manuel dos Santos, aumentou 40% os lucros no primeiro semestre de 2022 (278 milhões de euros); a EDP teve lucros de 306 milhões de euros e a EDP Renováveis aumentou os lucros 87% (265 milhões de euros); a GALP, grupo Américo Amorim, registou um lucro de 420 milhões de euros; o banco Santander Portugal, um lucro de 155,4 milhões; o BPI, um lucro de 201 milhões; a Caixa Geral de Depósitos (CGD), um lucro de 486 milhões de euros… Erradamente, os poderes políticos não equacionam (re)nacionalizações nem impedem empresas com lucros de cortar efectivos ou encerrar balcões (como na CGD). Mas até a taxação de quem lucra extraordinariamente com a guerra e a crise, e a limitação dos preços no mercado, parecem muito incertas.

Sandra Monteiro, Dos lucros dos oligarcas aos vistos dos pobresLe Monde diplomatique - edição portuguesaAgosto de 2022.

sábado, 6 de agosto de 2022

Careca ao léu no andar de cima

A última semana foi prolífera em destapar carecas ao status quo nacional. Mário Ferreira rejeitou um empréstimo público depois de confrontado com irregularidades no processo, deixando claro que o dinheiro do Estado é amiúde entregue aos empresários que menos dele necessitam. 

Toda a direita se empertigou na assanhada defesa do direito das energéticas a terem lucros extraordinários, deixando claro que não se preocupam com a inflação ou com a economia, como alardeiam, mas antes com a defesa dos setores mais privilegiados com esta crise. Sempre, sempre ao lado dos poderosos, na defesa de que o saque pode ir sempre um pouco mais longe. 

Por seu lado, os arautos da democracia liberal, sempre eufanos na defesa dos direitos humanos, rasgaram as vestes por a Amnistia Internacional afirmar que a Ucrânia também está a atentar contra esses direitos ao escolher estratégias de defesa que utilizam civis como escudo humano em áreas urbanas, deixando claro que a prevenção do sofrimento nunca foi o seu principal valor. A Amnistia Internacional, que condenou a ação Russa desde a primeira hora, deveria, na sua sempre impoluta opinião, fechar os olhos aos atos condenáveis também praticados pelo novo santo do mundo livre. Defesa do "mundo livre" a qualquer custo com as famílias dos outros, para eles, é refresco. 

Semana difícil para o jogo de sombras do qual depende a cobertura das carecas dos moradores do andar cimeiro da cada vez mais piramidal sociedade portuguesa. 


Verão quente de 2022, inverno gelado de 2023


Num verão marcado por sucessivos recordes de temperatura um pouco por toda a Europa, prepara-se já um inverno que se prevê longo e rigoroso. Da espiral inflacionária à crise energética iminente, vislumbra-se um inverno gelado no velho continente. O espetro da recessão paira sobre as economias, a começar pela alemã. Se a Alemanha espirra, o resto da Europa constipa-se. 

O preço do gás natural disparou com a guerra e com a escalada sancionatória (embora a tendência ascendente fosse anterior), antevendo-se, neste momento, uma situação de escassez que poderá comprometer a segurança do aprovisionamento energético na União Europeia (UE). Antecipando uma interrupção total do fornecimento de gás natural proveniente da Rússia, do qual a Alemanha é extremamente dependente, a Comissão Europeia (CE) tem procurado delinear e implementar soluções alternativas, entre as quais a diversificação das fontes e meios de abastecimento de gás natural. Tal tem-se traduzido, na prática, numa multiplicação de contactos com regimes teocráticos.

O resto da crónica pode ser lido no setenta e quatro.

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Meias verdades do Instituto +Liberdade: inflação, lucros privados e receitas públicas

 

O Instituto +Liberdade decidiu entrar no debate sobre quem está a ganhar com a escalada da inflação. Para defender as grandes empresas, os liberais publicaram um gráfico em que comparam o aumento nominal dos lucros registado nos setores da energia, retalho e banca (perto de 900 milhões de euros) com o aumento total das receitas do Estado (5262 milhões) no 1º semestre do ano. A conclusão é a de que não faz sentido defender a tributação dos lucros extraordinários das empresas, visto que quem está a ganhar mais é o Estado. Só que há 4 problemas que tornam o argumento falacioso.

1. Os números apresentados escondem a escala. Olhar para aumentos nominais diz-nos muito pouco sobre a evolução das diferentes receitas, sobretudo quando falamos de agentes de dimensões tão diferentes como Estado e empresas. Os liberais condenam o aumento de 30% da receita do setor público no 1º semestre de 2022 (face ao mesmo período de 2021), omitindo que as grandes empresas têm registado aumentos bastante superiores dos lucros. Os cinco principais bancos viram os seus lucros disparar quase 80%, ao passo que, no retalho, a Sonae teve um aumento de 89%. Já no setor da energia, a Galp registou um crescimento dos lucros superior a 150% neste período.

2. Há uma diferença de fundo no comportamento dos diferentes agentes. O enorme aumento dos lucros das grandes empresas resulta de aumentos significativos dos preços que estas cobram aos consumidores, fruto do poder de mercado que lhes permite aproveitar períodos de crise para aumentar as margens. Pelo contrário, as receitas públicas não cresceram devido a aumentos de determinados impostos (alguns, como o ISP, até foram reduzidos), mas sim por causa do efeito da inflação na receita total obtida, já que a subida dos preços dos bens e serviços faz aumentar automaticamente a receita associada a impostos indiretos como o IVA.

3. A tributação dos lucros extraordinários serve, entre outras coisas, para desencorajar a prática de preços especulativos. A medida, sugerida pelas instituições internacionais mais insuspeitas (Comissão Europeia, OCDE, FMI) e aprovada em vários países europeus, pode ser combinada com a regulação de preços e/ou margens, como aconteceu em Portugal no início da pandemia, quando o governo limitou as margens de lucro na venda de máscaras ou álcool-gel. Uma intervenção eficaz por parte do Estado acabaria até por atenuar o aumento das receitas públicas: se os preços dos bens e serviços não subirem tão acentuadamente, também não aumentará tanto a receita do Estado com impostos indiretos.

4. A publicação dos liberais condena o aumento da receita do Estado num contexto de "significativa perda do poder de compra dos portugueses". Neste contexto, é difícil justificarem por que motivo recusaram propostas que tinham como objetivo garantir uma aplicação mais justa dessa receita para proteger precisamente o poder de compra da maioria das pessoas. Na votação das propostas da esquerda para que o Estado promovesse aumentos salariais pelo menos em linha com a inflação, mantendo o poder de compra de quem trabalha no setor público e estabelecendo um referencial para os aumentos no setor privado, a IL aliou-se ao PS para as rejeitar.

Está longe de ser a primeira vez que o Instituto +Liberdade constrói argumentos a partir de meias verdades ou da omissão dos factos que não encaixam nestes: já aconteceu aqui, aqui, aqui, aqui ou ainda aqui. Ainda não é desta que teremos um contributo para “melhorar a literacia financeira e económica no país”, como o site prometia.

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Ainda mais longe

Hoje ouvi, numa conversa entre pessoas inteligentes e informadas, que é normal que as classes médias ponham os filhos em colégios privados, porque querem que os seus filhos “vão mais longe”. Eu também quero que os meus filhos – e os filhos de outras famílias – vão mais longe no que aprendem na sala de aula e nas oportunidades que isso lhes abre. Por isso não me resigno com as insuficiências científicas e pedagógicas das escolas públicas que frequentam. 

Mas quero que os meus filhos vão ainda mais longe. Quero que conheçam crianças e jovens com outras experiências de vida, de outros grupos socioeconómicos, de diferentes origens culturais. Quero que vão mais longe, mas também que vejam mais perto. Quero que vejam o país na sua diversidade, em vez de se fecharem nas bolhas de relações que a sociedade portuguesa - classista como é - tende a gerar. E isso só a escola pública lhes pode dar.

Presença ideológica

Quem ler este livro constatará que a historiadora Sheila Fitzpatrick é tão pouco marxista quanto céptica em relação ao uso do conceito de totalitarismo para descrever a experiência soviética, sendo aliás uma activa participante num debate com décadas nos EUA. Também é céptica em relação à ideia de império para caracterizar a URSS. O título original do livro é só The shortest history of the Soviet Union

Alguém na Editorial Presença decidiu acrescentar um subtítulo, certamente sem consultar a autora. Aliás, a tradução tem pelo menos um momento igualmente embaraçoso: traduzem stock de capital, destruído maciçamente na Segunda Guerra Mundial, por “capital acionista”.

Esta manipulação vai para os tesourinhos deprimentes da tradução ideológica, ao lado de um livro de Ha-Joon Chang chamado 23 Things They Never Told You About Capitalism e que foi traduzido para 23 Coisas que Nunca lhe Contam Sobre a Economia ou de um livro de uma autora marxista, a primeira traduzida pela Gradiva, onde trabalhadores passam a colaboradores… 

 

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

E assim se trata a política de habitação em Portugal...

 

Não é de agora e nem é exclusivo do sector da habitação. 

A 25 de Maio de 2021, numa sessão parlamentar, o então secretário de Estado da Mobilidade foi questionado pelo deputado Bruno Dias (PCP) - por três vezes! - sobre se era mentira que as multinacionais dos transportes (neste caso táxis) podiam colocar em Portugal quantos carros quisessem, com a capacidades que quisessem, nos locais que quisessem, sem que o Estado pudesse fazer alguma coisa. E o secretário de Estado - por três vezes! - nada respondeu nem negou. E todos sabemos em que condições laborais essas multinacionais funcionam. 

A pretexto de ser "uma pequena economia aberta" que necessita de capital externo - uma discutível tese que assenta no pressuposto neoliberal de que a única criação monetária possível é a que decorre do acesso aos mercados financeiros - Portugal tornou-se numa grande e escancarada porta de entrada do investimento estrangeiro multinacional, sem qualquer limite ou pensamento estratégico ou real preocupação governamental sobre o que se passa na vida dos portugueses habitantes das principais cidades.

Oligarcas lusitanos: os domadores de espíritos


Na mesma semana em que Mário Ferreira se viu envolvido num escândalo associado à captação de dinheiros públicos e à manifestação porno-riquista da sua ida ao espaço, serviu-se da TVI, canal que detém, para falar numa entrevista conduzida pelo seu funcionário, Manuel Luís Goucha, que lhe deu palco para limpar a sua imagem. 

Também nesta semana, o Tal & Qual, jornal revitalizado por Marco Galinha, dono da Global Media, fez capa com Luís Marques Mendes, com o título "A família é a minha única equipa". Assinale-se a ironia de um jornal conhecido pelas suas palavras violentas dirigidas a alguns políticos escolher fazer uma entrevista suave e emocional, de manifesta promoção de imagem, ao pregador de domingo da direita e provável futuro candidato a Presidente da República dessa área política.


Face a estes dois exemplos, e a tantos outros, só os ingénuos podem fingir que a concentração de capital privado na comunicação social não ameaça de forma crescente a democracia portuguesa. Pensar em novos meios de financiamento para uma comunicação social mais plural é uma urgência democrática.

E, sim, é normal que isso possa envolver a distribuição de fundos públicos, sob concurso, a projetos  que demostrem cumprir princípios deontológicos elementares. Não será o Estado a tentar controlar a comunicação social, como alguns dirão. Será o Estado a garantir o direito à pluralidade democrática no debate.

Este é um dos temas em que o Partido Socialista e os partidos à sua esquerda poderiam convergir, promovendo uma importante reforma estrutural para a garantia da diversidade do debate democrático. Afinal, o partido do Governo tem também sido um dos alvos de uma comunicação social cada vez mais enviesada à direita, mais centrada em insinuar do que em escrutinar. 

Por motivos que permanecem insondáveis, mas para os quais se podem aventar razões, nem o Governo nem o Partido Socialista alguma vez demonstraram ter neste tema uma prioridade. O motivo mais plausível vem do reconhecimento que, na atmosfera rarefeita que compõe a elite económica portuguesa, as capilaridades da oligarquia estão bem estabelecidas nos dois partidos do centro. Mas, mesmo para um partido  que tenha apenas como objetivo a sua reprodução no poder, fica pouco clara a racionalidade que guia a passividade com que assiste a algo que o obrigará a agir e a comunicar num meio mediático cada vez mais envenenado.