sábado, 30 de abril de 2011

Economia para todos II


O Frederico Pinheiro organiza um novo ciclo do "Economia para todos", a começar já na próxima terça na Fábrica do Braço de Prata. Cabe-me o prazer de inaugurar este novo ciclo. Irei falar dos dois actos - subprime e dívida - da actual crise financeira. A entrada é livre.

Fica aqui todo o programa:

Curso Grátis ::: Economia para Todos ::: Todas as Terças-feiras de Maio às 19h30

3 de Maio
'Da crise do subprime à crise da dívida'
Nuno Teles, Economista e Doutorando da SOAS - Universidade de Londres

10 de Maio
'Estamos a viver acima das nossas possibilidades? Abordagens e perspectivas sobre o consumo e a crise financeira'
Ana Cordeiro Santos, Investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

17 de Maio
'A desigualdade na distribuição de rendimento'
Nuno Ornelas Martins, Professor Auxiliar da Universidade Católica Portuguesa

24 de Maio
'O futuro das nossas pensões: a sustentabilidade dos sistemas de reformas'
Bernardino Aranda, Economista da ATTAC - Associação para a Taxação das Transacções Financeiras para a Ajuda dos Cidadãos

31 de Maio
'O papel do Estado no desenvolvimento económico: parte do problema ou parte da solução?'
Ricardo Paes Mamede, Professor do Departamento de Economia Política do ISCTE

Local: Fábrica Braço de Prata - sala Visconti
Morada: Rua da Fábrica de Material de Guerra, nº1 1950-128 Lisboa
Autocarros: 28, 718, 755, 210 (nocturno)

Informações: Frederico Pinheiro (fredericopinheir@gmail.com)

sexta-feira, 29 de abril de 2011

O que é que se defende depois da social-democracia?

Não acho que o FMI seja neoliberal. É uma instituição que tem tido uma evolução, por alguma razão o presidente é um socialista francês. A Comissão Europeia não tem ideologia como tal e o BCE tem uma agenda demasiado monetarista.

Augusto Santos Silva

Quem é que um dos principais ideólogos deste PsemS julga que engana? É que daqui a uns dias a troika apresenta a aplicação concreta para Portugal da doutrina do choque neoliberal, o culminar do ciclo de austeridade iniciado por PS-PSD a mando de Bruxelas-Frankfurt. As políticas públicas são como o algodão. Enfim, Strauss-Kahn foi um dos artífices do esvaziamento ideológico dos socialistas franceses, um bom exemplo de captura pelo mundo dos negócios, todo um currículo, toda uma crise intelectual e moral da social-democracia. Apesar de se notar, aqui e ali, um assomo de realismo económico na teoria, o FMI impõe na prática um programa maciço de privatizações, o aumento do regressivo IVA e brutais alterações na legislação laboral para facilitar amplos cortes nos salários e a destruição das forças sociais que defendem o Estado social. A Comissão Europeia é neoliberal enquanto tal desde pelo menos Maastricht, uma máquina política, relativamente protegida do escrutínio democrático, de liberalização e de expansão das forças do mercado global, que mina, como agora se vê, qualquer ideia de modelo social. Sabem que esta economia dita de mercado, este capitalismo, exige uma sociedade de mercado. Os estatutos do BCE e os seus comunicados dizem tudo sobre a sua natureza e sobre a natureza deste euro. Finalmente, Santos Silva simboliza bem a farsa de uma certa intelectualidade, que acabou por se fixar no poder como um fim em si mesmo e que agora se vê sem poder nenhum, meros anunciantes de inevitabilidades inviáveis, de utopias liberais, que disfarçam como podem. Triste destino político e intelectual, muitas lições.

Usar a justiça contra a justiça

O PSD não pode dizer que quer um sistema de saúde caro (não necessariamente bom) para quem pode pagar e um sistema de saúde barato e mau, para quem não pode. Se dissesse a maioria das pessoas que quer viver numa sociedade decente nunca votaria no PSD. A justiça social é um valor importante para (quase) todos.

Como não pode dizer o que quer e o que pensa, o PSD diz coisas como: “A filha do homem mais rico de Portugal não pode pagar por uma consulta num hospital o mesmo que um desempregado”.

A isto chama-se usar a justiça contra a justiça. Explico porquê:

1º Não vejo por que é que a filha do homem mais rico de Portugal haveria de pagar o tratamento no hospital. Se o homem mais rico de Portugal pagar impostos e se estes impostos forem progressivos o tratamento no sistema de saúde já foi pago.

2º Se a filha do homem rico tiver de pagar a consulta pelo seu custo no SNS não se vê por que razão irá recorrer ao SNS e não à medicina privada.

3º Se a dita filha passar a recorrer à medicina privada não se vê por que há-de continuar a contribuir para o SNS.

4º Se ela deixar de contribuir para o SNS, o sistema público passará a ser financiado apenas com as contribuições dos que não são ricos.

Em suma: com a saída do homem rico do SNS e depois do menos rico e ainda do remediado cria-se um mercado para a medicina privada; o que fica é um sistema público sub-financiado e mau para pobres.

O PSD sabe isto tudo tão bem como eu. Sabe também, por simples observação de outras experiências, que o sistema privado é mais caro para todos os que terão de o pagar e pode ser pior que o público. Mas o privado convém aos grupos financeiros. Nos últimos anos, em cooperação com um governo que jura a sete pés defender o SNS, os grupos financeiros construíram os alicerces. Falta agora o resto. Melhor que o sector da saúde, disse uma vez uma senhora de um destes grupos, só o tráfico de armas.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Estes programas não são para social-democratas

O programa eleitoral do PS não é para social-democratas, não escondendo os compromissos com a austeridade dos sucessivos PEC, em flagrante contradição com o objectivo propalado de criar emprego e de defender o Estado social. No entanto, temos um avanço em relação ao programa de 2009 no campo da transparência. Enquanto que, em 2009, o programa do PS não referia privatizações, agora, numa das poucas propostas programáticas concretas, elas aí estão: “O programa de privatizações previsto no Programa de Estabilidade e Crescimento será também implementado.” O essencial do programa concreto, apesar dos apelos pungentes de economistas muito sérios para que a farsa que PS e PSD querem montar durante as eleições possa ter credibilidade, está a ser escrito pela troika e será subscrito pelo bloco central antes das eleições.

Ainda há social-democratas no PS?

O antigo primeiro-ministro dinamarquês e inspirador da social-liberal flexisegurança deu uma entrevista à Lusa a que os socialista portugueses devem prestar atenção. Nela defendeu que a troika pode demolir a protecção laboral portuguesa. Não é só a troika, claro. Talvez por diplomacia ou ignorância não referiu a cumplicidade activa dos "negociadores" portugueses do bloco central neste objectivo, alimentando a ilusão de alguma atitude nacional dura nesta e noutras matérias. Não há dureza, até porque não há negociação e muito menos qualquer ajuda. Aqui ficam excertos da entrevista, destacando-se a importância da negociação colectiva relativamente centralizada, envolvendo sindicatos fortes, na economia política laboral dos modelos, apesar de tudo mais progressistas, de capitalismo: "Quando se ouve a Comissão Europeia a falar convosco, com Portugal, esse não é o meu caminho. Vocês precisam de negociar e de ser duros nas novas negociações (...) Há que perceber que não enfrentamos uma ditadura do FMI e da UE, são é negociações duras sobre o resgate e sobre as condições para receber a ajuda e auxílio (...) A negociação colectiva é parte fundamental da moderna democracia e, basta olhar para a Escandinávia, para o meu país. Nós temos tido acordos colectivos em todos os anos desde 1945 e somos uma das economias mais fortes da Europa. A Alemanha tem também acordos colectivos. Por isso, penso que [a 'troika'] tem de dizer - vamos para boas negociações com Portugal, vamos olhar para a economia, mas vamos perceber que os acordos colectivos vieram para ficar".

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Da violência

As propostas do “Compromisso Portugal”, agora transformado em “Mais Sociedade” porque o dicionário da novilíngua neoliberal tem de ser rentabilizado, são apenas a expressão intelectual, abertamente mais violenta, da coligação interna e externa que conduz a austeridade em curso: usar a oportunidade do desemprego de massas, criada pela crise e pelas actuais políticas recessivas, para organizar a redução de salários directos e indirectos (contribuições e prestações sociais, serviços públicos), tentando legitimar este projecto de regressão através de um intenso moralismo, o contrário de qualquer noção básica de moralidade. Os desempregados, que precisariam de “incentivos” porque, na realidade, não querem trabalhar, e os pobres, aldrabões até prova em contrário, prova que até poderia ser feita com um cartão concebido para o efeito, são alguns dos alvos de uma casta de gestores e outros intelectuais orgânicos que quer consolidar em definitivo a captura e subversão do Estado.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Como escapar a mais uma década perdida?

A criação da União Económica e Monetária (UEM) não trouxe ganhos significativos para a economia portuguesa em termos de convergência real com os países mais ricos da Zona Euro. Analisamos as causas da fraca performance da economia portuguesa na última década, discutimos as suas perspectivas de crescimento dentro da UEM e fazemos duas propostas para uma reforma institucional urgente da UEM [imposição de limites para os desequilíbrios da balança corrente dos países e revisão em alta do objectivo para a taxa de inflação por parte do BCE]. Argumentamos que, no quadro institucional prevalecente, Portugal enfrenta um longo período de estagnação, desemprego elevado e reforma estrutural dolorosa e concluímos que, na ausência de uma reforma institucional da UEM, sair da Zona Euro constitui uma opção política séria para Portugal.

Aqui fica a minha tradução do resumo do artigo de Pedro Leão e Alfonso Palacio-Vera, disponível como documento de trabalho no Levy Economics Institute, um dos principais centros de investigação keynesianos nos EUA.

É o capitalismo...

Só uma estratégia comercial oportunista e talvez algum preconceito ideológico podem explicar que o título do livro de Ha-Joon Chang, um dos economistas de referência deste blogue, tenha passado de 23 Things They Never Told You About Capitalism para 23 Coisas que Nunca lhe Contam Sobre a Economia na edição portuguesa. Ao contrario do que se passa por esse mundo fora, em Portugal parece que não é de bom tom falar de capitalismo. A sabedoria convencional prefere “economia de mercado”. A sabedoria convencional é pouco rigorosa. Economias com mercados há muitas – pré-capitalistas, capitalistas e pós-capitalistas. Não vi a edição portuguesa, nem conto fazê-lo, mas este último trabalho de Chang vale bem a pena. Com grande clareza, Chang divulga as suas principais reflexões sobre as instituições fundamentais do capitalismo, a sua plasticidade e variabilidade e os seus resultados comparativos, indicando como o neoliberalismo, a ideologia de um certo capitalismo, fracassou ao gerar uma combinação tóxica de crises regulares e de desigualdades galopantes.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Ideias de 25 para 26

Eu bem sei que já se decretou que os tempos são de retrocesso e por isso pouco propícios a utopias reais. No entanto, a pergunta não desaparece: por que é o 25 de Abril, a democracia, há-de parar à porta das empresas? Amanhã, organizamos em Lisboa um seminário interdisciplinar para discutir as possibilidades de várias formas que a democracia económica pode assumir na teoria e na prática.

Feliz Dia, Liberdade!

sábado, 23 de abril de 2011

Um pouco mais de rigor...

Eu podia chegar aqui, já com algum atraso é certo, e criticar Vital Moreira por causa do seu artigo no Público da passada terça-feira, onde aponta o dedo à “esquerda radical” pelo desvio face à ortodoxia das finanças públicas, ao mesmo tempo que o governo que apoia bateu todos os recordes recentes no que ao défice orçamental diz respeito. No entanto, recuso esta estratégia demagógica, típica da actual brigada do reumático senatorial que monopoliza o debate público.

Pelo contrário, sei que estou em terreno mais seguro se dizer que Vital Moreira, talvez vítima da doença infantil dos neoliberalismos, o moralismo das finanças públicas, esquece que, crise após crise, estagnação após estagnação, bolha após bolha, crescimento fulgurante após crescimento fulgurante, a posição das finanças públicas numa economia capitalista avançada é sobretudo o reverso do andamento interno e externo da economia dita privada, dependendo também, mas em menor grau, da capacidade de ir contrariando o ineficiente e injusto “Estado fiscal de classe”, como Vital Moreira já bem lhe chamou. Neste se incluem, no nosso país, as predações dos grupos capitalistas rentistas, tal como as opacas e custosas parcerias público-privadas, em que o governo de Sócrates se especializou, ou a complacência face à taxação do sector financeiro, do património mobiliário e imobiliário e das grandes fortunas.

Posso ainda dizer que o plano inclinado da austeridade mina o crescimento e o emprego, de que depende em grande medida a almejada “consolidação” das finanças públicas, e que Vital erra sistematicamente no sentido da causalidade: o crescimento é uma condição para finanças públicas ditas sãs e não o contrário. Posso repetir pela enésima vez duas mensagens básicas: o governo pode controlar a despesa e assim cortar nos rendimentos e na procura, mas não controla o défice; o momento para resolver o problema das finanças é a fase ascendente do ciclo económico capitalista, fase que com esta austeridade corre o risco de não chegar.

E posso terminar com um apelo vital: ainda um pouco mais de rigor, se faz favor. É que é necessário ter muita ousadia para vir acusar a “esquerda radical” de nunca se preocupar com o estado das finanças públicas e depois apresentar um conjunto de propostas, uma justas outras injustas porque geradoras de exclusão, para aumentar a receita fiscal, mas que, no que se relaciona com a fuga e evasão fiscais, uma das poucas áreas em que Vital Moreira ainda diz qualquer coisa de esquerda, qualquer coisa civilizada, quase só são subscritas pela tal “esquerda radical”. Isto já para não falar na defesa da eliminação de muitos dos famosos benefícios fiscais que, segundo o Sócrates da última campanha eleitoral, constituíam um vil ataque da esquerda radical à classe média, ou na forma como Vital denuncia a eliminação do imposto sucessório durante o governo Barroso-Portas, omitindo deliberadamente que essa supressão foi apoiada pelo PS e rejeitada precisamente pela esquerda que vai à raiz, a mesma que sempre defendeu a reintrodução do que pode realmente ser o mais justo dos impostos, desde que bem desenhado.

Para lá desta economia do medo

Entrevista de Raquel Martins ao economista José Reis no Público de ontem:

Olhando para o mercado de trabalho em 2011, quais foram, na sua opinião, as principais mudanças que ocorreram e quais os principais problemas com que Portugal se confronta?

Foi o aparecimento de elevadas taxas de desemprego e, sobretudo, constatarmos que a economia ficou rodeada de um conjunto de restrições que a limitam, condicionando a criação de riqueza, restringindo a produção, minando a confiança e inviabilizando o crescimento. Constatámos que o sistema económico deixou de estar centrado na geração de riqueza e na distribuição de bem-estar, como aconteceu com o capitalismo europeu do pós-guerra, para ser um sistema rodeado de fins ilegítimos e de geração de enormes insustentabilidades. O mercado de trabalho deixou de ser um mecanismo de inclusão de pessoas e de distribuição de recursos produtivos para ser um processo de inutilização de recursos, sob a forma de inactividade de muitos, com a sua exclusão da economia.

A elevada taxa de desemprego é culpa da crise internacional ou houve também culpas do Governo que agora cessa funções?

Se há que encontrar um culpado para a elevada taxa de desemprego, a escolha é fácil. A asfixia da economia pelas finanças internacionais, a canibalização da produção pela especulação, a drenagem da riqueza criada para fins não-produtivos são os "culpados" certos. É aqui que se encontra também a causa da crise.

Como travar o desemprego e lançar o emprego quando se avizinham medidas de carácter recessivo como as que fazem parte da agenda do FMI e da Comissão Europeia? Há alguma saída ou estaremos condenados a viver nos próximos anos com elevadas taxas de desemprego?

A manutenção de elevadas taxas de desemprego será uma realidade longa, longuíssima, se não houver uma mudança radical da organização económica na Europa e em Portugal. Com a asfixia da austeridade não haverá emprego sólido. Haverá, porventura, alargamento do mercado negro do trabalho e da economia subterrânea.

A revisão da legislação laboral é muitas vezes vista como a panaceia para os problemas do emprego. Partilha desta visão? É necessário rever a lei laboral e flexibilizar despedimentos?

Não e não. Os problemas do emprego resolvem-se com crescimento, empresas dignas e eficientes, relações laborais saudáveis. Não é pela degradação do mercado de trabalho que se defende o emprego. Discuta-se, definitivamente, onde estão as causas da baixa produtividade em Portugal e analise-se a enorme deficiência organizacional das empresas e as razões por que muitos se declaram incapazes de pagar um simples salário mínimo.

Qual será o grande desafio e a margem de manobra do próximo Governo em termos de mercado de trabalho e emprego, num contexto em que terá que conviver com medidas impostas de fora?

O emprego e o trabalho são um aspecto central de um programa mínimo de salvaguarda da economia, da coesão social e do próprio crescimento. É bom que os partidos e o próximo Governo não se deixem ultrapassar pelo próprio FMI como já aconteceu com a Comissão Europeia, cuja posição desgraçada e lamentável é o dado mais negro da presente conjuntura de desconstrução europeia.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

O inevitável é inviável: Manifesto dos 74 nascidos depois de 74

Somos cidadãos e cidadãs nascidos depois do 25 de Abril de 1974. Crescemos com a consciência de que as conquistas democráticas e os mais básicos direitos de cidadania são filhos directos desse momento histórico. Soubemos resistir ao derrotismo cínico, mesmo quando os factos pareciam querer lutar contra nós: quando o então primeiro-ministro Cavaco Silva recusava uma pensão ao capitão de Abril, Salgueiro Maia, e a concedia a torturadores da PIDE/DGS; quando um governo decidia comemorar Abril como uma «evolução», colocando o «R» no caixote de lixo da História; quando víamos figuras políticas e militares tomar a revolução do 25 de Abril como um património seu. Soubemos permanecer alinhados com a sabedoria da esperança, porque sem ela a democracia não tem alma nem futuro.

O momento crítico que o país atravessa tem vindo a ser aproveitado para promover uma erosão preocupante da herança material e simbólica construída em torno do 25 de Abril. Não o afirmamos por saudosismo bacoco ou por populismo de circunstância. Se não é de agora o ataque a algumas conquistas que fizeram de nós um país mais justo, mais livre e menos desigual, a ofensiva que se prepara – com a cobertura do Fundo Monetário Internacional e a acção diligente do «grande centro» ideológico – pode significar um retrocesso sério, inédito e porventura irreversível. Entendemos, por isso, que é altura de erguermos a nossa voz. Amanhã pode ser tarde.

O primeiro eixo dessa ofensiva ocorre no campo do trabalho. A regressão dos direitos laborais tem caminhado a par com uma crescente precarização que invade todos os planos da vida: o emprego e o rendimento são incertos, tal como incerto se torna o local onde se reside, a possibilidade de constituir família, o futuro profissional. Como o sabem todos aqueles e aquelas que experienciam esta situação, a precariedade não rima com liberdade. Esta só existe se estiverem garantidas perspectivas mínimas de segurança laboral, um rendimento adequado, habitação condigna e a possibilidade de se acederem a dispositivos culturais e educativos. O desemprego, os falsos recibos verdes, o uso continuado e abusivo de contratos a prazo e as empresas de trabalho temporário são hoje as faces deste tempo em que o trabalho sem direitos se tornou a norma. Recentes declarações de agentes políticos e económicos já mostraram que a redução dos direitos e a retracção salarial é a rota pretendida. Em sentido inverso, estamos dispostos a lutar por um novo pacto social que trave este regresso a vínculos laborais típicos do século XIX.

O segundo eixo dessa ofensiva centra-se no enfraquecimento e desmantelamento do Estado social. A saúde e a educação são as duas grandes fatias do bolo público que o apetite privado busca capturar. Infelizmente, algum caminho já foi trilhado, ainda que na penumbra. Sabemos que não há igualdade de oportunidades sem uma rede pública estruturada e acessível de saúde e educação. Estamos convencidos de que não há democracia sem igualdade de oportunidades. Preocupa-nos, por isso, o desinvestimento no SNS, a inexistência de uma rede de creches acessível, os problemas que enfrenta a escola pública e as desistências de frequência do ensino superior por motivos económicos. Num país com fortes bolsas de pobreza e com endémicas desigualdades, corroer direitos sociais constitucionalmente consagrados é perverter a nossa coluna vertebral democrática, e o caldo perfeito para o populismo xenófobo. Com isso, não podemos pactuar. No nosso ponto de vista, esta é a linha de fronteira que separa uma sociedade preocupada com o equilíbrio e a justiça e uma sociedade baseada numa diferença substantiva entre as elites e a restante população.

Por fim, o terceiro e mais inquietante eixo desta ofensiva anti-Abril assenta na imposição de uma ideia de inevitabilidade que transforma a política mais numa ratificação de escolhas já feitas do que numa disputa real em torno de projectos diferenciados. Este discurso ganhou terreno nos últimos tempos, acentuou-se bastante nas últimas semanas e tenderá a piorar com a transformação do país num protectorado do FMI. Um novo vocabulário instala-se, transformando em «credores» aqueles que lucram com a dívida, em «resgate financeiro» a imposição ainda mais acentuada de políticas de austeridade e em «consenso alargado» a vontade de ditar a priori as soluções governativas. Esta maquilhagem da língua ocupa de tal forma o terreno mediático que a própria capacidade de pensar e enunciar alternativas se encontra ofuscada. Por isso dizemos: queremos contribuir para melhorar o país, mas recusamos ser parte de uma engrenagem de destruição de direitos e de erosão da esperança.
Se nos roubarem Abril, dar-vos-emos Maio!

Alexandre de Sousa Carvalho – Relações Internacionais, investigador; Alexandre Isaac – antropólogo, dirigente associativo; Alfredo Campos – sociólogo, bolseiro de investigação; Ana Fernandes Ngom – animadora sociocultural; André Avelãs – artista; André Rosado Janeco – bolseiro de doutoramento; António Cambreiro – estudante; Artur Moniz Carreiro – desempregado; Bruno Cabral – realizador; Bruno Rocha – administrativo; Bruno Sena Martins – antropólogo; Carla Silva – médica, sindicalista; Catarina F. Rocha – estudante; Catarina Fernandes – animadora sociocultural, estagiária; Catarina Guerreiro – estudante; Catarina Lobo – estudante; Celina da Piedade – música; Chullage - sociólogo, músico; Cláudia Diogo – livreira; Cláudia Fernandes – desempregada; Cristina Andrade – psicóloga; Daniel Sousa – guitarrista, professor; Duarte Nuno - analista de sistemas; Ester Cortegano – tradutora; Fernando Ramalho – músico; Francisca Bagulho – produtora cultural; Francisco Costa – linguista; Gui Castro Felga – arquitecta; Helena Romão – música, musicóloga; Joana Albuquerque – estudante; Joana Ferreira – lojista; João Labrincha – Relações Internacionais, desempregado; Joana Manuel – actriz; João Pacheco – jornalista; João Ricardo Vasconcelos – politólogo, gestor de projectos; João Rodrigues – economista; José Luís Peixoto – escritor; José Neves – historiador, professor universitário; José Reis Santos – historiador; Lídia Fernandes – desempregada; Lúcia Marques – curadora, crítica de arte; Luís Bernardo – estudante de doutoramento; Maria Veloso – técnica administrativa; Mariana Avelãs – tradutora; Mariana Canotilho – assistente universitária; Mariana Vieira – estudante de doutoramento; Marta Lança – jornalista, editora; Marta Rebelo – jurista, assistente universitária; Miguel Cardina – historiador; Miguel Simplício David – engenheiro civil; Nuno Duarte (Jel) – artista; Nuno Leal – estudante; Nuno Teles – economista; Paula Carvalho – aprendiz de costureira; Paula Gil – Relações Internacionais, estagiária; Pedro Miguel Santos – jornalista; Ricardo Araújo Pereira – humorista; Ricardo Lopes Lindim Ramos – engenheiro civil; Ricardo Noronha – historiador; Ricardo Sequeiros Coelho – bolseiro de investigação; Rita Correia – artesã; Rita Silva – animadora; Salomé Coelho – investigadora em Estudos Feministas, dirigente associativa; Sara Figueiredo Costa – jornalista; Sara Vidal – música; Sérgio Castro – engenheiro informático; Sérgio Pereira – militar; Tiago Augusto Baptista – médico, sindicalista; Tiago Brandão Rodrigues – bioquímico; Tiago Gillot – engenheiro agrónomo, encarregado de armazém; Tiago Ivo Cruz – programador cultural; Tiago Mota Saraiva – arquitecto; Tiago Ribeiro – sociólogo; Úrsula Martins – estudante.

Imagem de gui castro felga.

Lembrar

"A receita dos últimos anos tem sido simples: 'Uma das causas estruturais desta crise foi a acumulação de desequilíbrios macroeconómicos dentro da UE, que resultaram de uma agressiva política alemã de controlo de custos, especialmente salariais, o que potenciou o seu crescimento pelas exportações', explicava em Março do ano passado o economista Nuno Teles ao 'Jornal de Negócios'. 'Daí resultou um acumular de excedentes externos que teve por contraponto os défices nos países do Sul.'"

Nuno Aguiar, Alemanha não sabe soletrar "crise", mas não vive sem clientes.

Ata-me!


Público: "Reservas de ouro portuguesas já valem 12,5 mil milhões de Euros". A valorização é consequência, entre outras coisas, da sobre-abundância de capital especulativo e da perda de confiança no dólar como activo de reserva. São, tão simplesmente, as 14.as maiores reservas do mundo em termos absolutos. Isto num estado que não tem moeda própria, nem será com certeza accionista maioritário do Banco Central Europeu (que tem as suas próprias reservas, aliás, superiores em apenas 20% às do Banco de Portugal) (cf. World Gold Council).

Não fôssemos nós pensar que a alienação de parte dessas reservas claramente excessivas (a não ser, é claro, que para os lados da Almirante Reis se esteja a considerar a possibilidade de des-dólarização) poderia ser equacionada no quadro de um processo de reescalonamento de parte da dívida e renúncia de outra parte, o Público adverte que “de qualquer forma, os bancos centrais são, por princípio, desfavoráveis ao recurso às reservas de ouro para dar resposta a situações conjunturais e têm, até, acordos que limitam drasticamente essa possibilidade”.

Ah, sim? Presumivelmente, para evitar que a utilização das receitas resultantes obedeça aos ‘caprichos' do ciclo político, esse empecilho democrático... Mas pergunto-me por que motivo a decisão de privatizar vastos segmentos do sector empresarial do Estado (e assim aprofundar a mercadorização de mais e mais esferas da vida social) não há-de estar também ela dependente de princípios mais gerais e objectivos mais estratégicos do que fazer frente a “situações conjunturais”. Quais são mesmo os constrangimentos legais que vedam a possibilidade de alienação de ouro? Quais os requisitos políticos necessários para os alterar? E qual é a posição das diferentes forças políticas face a essa possibilidade? É que a comparação é tanto mais pertinente quanto, a título de exemplo, a avaliação do encaixe financeiro até 2013 que poderá resultar da venda total ou parcial dos CTT, EDP, ANA, TAP, GALP, REN, etc. etc. etc., é de... 4,8 mil milhões de Euros.

Queremos mesmo colocar mais monopólios naturais nas mãos de grupos económicos preguiçosos e rentistas, abdicando definitivamente da possibilidade de prossecução de objectivos públicos em termos de uma política industrial que apoie a necessária reconversão da economia e da satisfação de necessidades sociais? Queremos mesmo continuar a minar e eliminar serviços públicos, e assim cortar nos salários indirectos, tornando ainda mais miserável o quadro da desigualdade que nos rodeia? Queremos mesmo privatizar a Segurança Social e sujeitar à lógica do lucro o direito ao apoio na dificuldade?

É claro que a alienação de reservas de ouro deverá ser apenas uma parte de uma muito mais ampla estratégia que possa impôr-se como alternativa decente e de bom senso à selvajaria anunciada. Essa estratégia pode e deve incluir alternativas diversas (em termos de renegociação da dívida, eventual des-dolarização, promoção da eficiência do sector público e modalidades fiscais bem mais fortemente progressivas), mas, fundamentalmente, o necessário é que garanta que a repartição dos sacrifícios não penaliza adicionalmente os trabalhadores e classes populares em benefício das elites deste país. É isso que está em causa e é isso que é necessário que seja claramente explicado. E é também nesse plano que, lamentavelmente, a sequência dos acontecimentos trouxe já sucessivos retrocessos e faz temer derrotas ainda mais expressivas pela frente, as quais anunciam tempos negros num país cada vez mais anómico, mais desigual e menos decente.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Nunca se desiste

O fantasma está entre nós...

Bretton Woods foi escolhido para o congresso de 1944 a pedido de John Maynard Keynes que, após o seu primeiro ataque cardíaco, queria evitar o Verão de Washington, DC. Keynes teria um novo enfarte nas escadas do Hotel quando corria para uma reunião. Para o turista e para textos como este, contam-se estórias dos fantasmas de Keynes e da sua esposa bailarina em noctívagos passos de dança. Os economistas que entre as montanhas de Bretton Woods recusaram este mês o falso rigor do equilíbrio orçamental sabiam que o fantasma de Keynes estava com eles.

O economista e historiador Tiago Mata esteve no recente encontro de Bretton Woods, organizado pela fundação que Soros criou para promover um novo pensamento económico, e conta o que viu e ouviu no Negócios. A ler.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Goldmen...


As declarações com laivos keynesianos de Strauss-Kahn e os alertas de alguma investigação do FMI, a que temos aludido, sobre as consequências económicas negativas da austeridade, sobre a responsabilidade da desigualdade elevada no desencadear da crise ou sobre a eventual necessidade de controlos de capitais para desencorajar a especulação nos países em desenvolvimento, não devem iludir, como sublinha Mark Weisbrot no The Guardian, a questão dos interesses que comandam as operações concretas do FMI, que têm acabado sempre por convergir com a máxima ortodoxia da CE-BCE por essa Europa fora: acima dos governos do centro só mesmo a Goldman Sachs, a "bancocracia" de que fala hoje Rui Tavares no Público, não sendo aliás por acaso que o inefável Borges foi colocado a chefiar a secção europeia da internacional monetária. O economista-chefe do FMI, Olivier Blanchard, que agora até defende condições financeiras mais realistas nos empréstimos às periferias que vão para os credores, é há muito um dos mais entusiastas defensores de cortes, na ordem dos 20%, dos salários no nosso país. Assim se explica o relaxamento com o desemprego e a obsessão com as regras laborais. Uma prescrição para o desastre da interacção perversa entre deflação e dívida, com muita insolvência e fragilidade financeira à mistura. Entretanto, quem quiser sair deste quadro de terror socioeconómico e ter uma perspectiva mais realista sobre problemas de competitividade das periferias pode ler este artigo no voxeu, que revela o que se esconde por detrás dos custos do trabalho e sobretudo do capital…

A Economia Moral da Dívida


“Os portugueses vivem acima das suas possibilidades”. É uma proposição moralista vinda de quem gosta de dizer que a economia é amoral.

Em Portugal o saldo da conta corrente tem sido negativo, isto é, a balança de pagamentos é equilibrada com empréstimos contraídos no exterior pela banca, o estado e as grandes empresas públicas e privadas. Este saldo negativo acentuou-se desde a entrada no Euro. Portugal viveu a crédito e isso só é possível durante algum tempo. O moralista pergunta: quem é responsável? E responde: “Todos”.

Não, não somos todos responsáveis.

A história dos países periféricos da Europa reproduz em escala macro o drama do “subprime”. Um pobre endivida-se quando lhe oferecem crédito ao preço da chuva e acredita que poderá pagar porque a coisa que adquire com o dinheiro emprestado se está a valorizar e se irá continuar a valorizar no futuro. O dinheiro emprestado irá torna-lo mais rico e sendo rico pagará com facilidade. O usurário por acaso até sabe que o pobre irá explodir um dia e por isso mesmo passa a batata quente da dívida a outros pobres (e ricos) impingindo-lhes produtos “derivados” recheados de hipotecas duvidosas. Quem é responsável? O pobre ou o usurário?

Como é esta história na versão macro? Os bancos e outras instituições financeiras tendo em mãos recursos financeiros abundantes, cujos donos não querem, ou não podem, canalizar para a “esfera real”, emprestam-nos aos estados, aos bancos e às grandes empresas das economias deficitárias a juro baixo. Estas economias esperam crescer com o investimento privado e público e a expansão da procura interna. Essa era a promessa da convergência na UE. Crescendo poderão fazer face à divida. Os credores por acaso até sabem, ou suspeitam, que o crescimento não é garantido e que o processo de endividamento não se pode prolongar indefinidamente. Mas isso não lhes interessa nada porque no fundo acreditam que se a coisa não correr bem lá estarão as instituições internacionais para garantir que os Estados dos países endividados obrigam os pobres desses países a pagar a dívida privada e pública. Quem é responsável?

terça-feira, 19 de abril de 2011

Outra vez?


De forma um pouco incompreensível, dado o contexto onde os media parecem obcecados com as taxas de juro e os mercados financeiros, o recente aviso negativo da Standard and Poor’s relativo à notação AAA dos EUA passou despercebido. Esta avaliação fez manchetes por todo o mundo e tem muitas implicações para a economia global. Esta avaliação parece avisar que os EUA se preparam para se juntar à Europa no suicida austeritarismo pro-cíclico com as evidentes consequências recessivas para a economia mundial. No entanto, é impensável que os EUA tenham uma notação inferior à máxima. Seria o fim da Standard and Poor's. Uma diferente relação de poder do Estado e agências de notação da que nós temos, reflexo da actual economia política internacional.

Mas, mais importante do que o que veio na imprensa internacional sobre este aviso é o que passou por debaixo do radar. Além dos défices elevados, da instabilidade política e do baixo crescimento invocados pela agência de notação (argumentos que nós conhecemos demasiado bem), são assinaladas fragilidades graves no sistema financeiro norte-americano. A necessidade de recapitalizar parte da banca e o aumento das taxas de incumprimento de crédito podem conduzir a um cenário limite onde o Estado americano teria de gastar 34% do seu PIB para “salvar” o sistema financeiro. Citando o relatório: “acreditamos que os riscos oriundos do sistema financeiro norte-americano são maiores do que aqueles que avaliámos antes de 2008”. Nova crise financeira internacional no horizonte?

Frei Tomás


Alexandre Soares dos Santos, presidente do grupo Jerónimo Martins, em declarações na semana passada: "O país vai mal (...) tem-se vindo a perder a noção de ética e do comportamento social responsável". Seguem-se os bitaites sobre o rumo que o país tem de seguir, alinhando, claro está, pelo discurso da inevitável austeridade: "é imperativo que se esteja preparado para fazer sacrifícios".

Mas eu estarei a ouvir bem? Este Soares dos Santos que lamenta a erosão dos valores éticos e nos presenteia com a sua visão sobre o interesse nacional será o mesmo que lidera o grupo que há pouco mais de um ano viu o Supremo Tribunal polaco dar como provadas "violações massivas dos direitos dos trabalhadores" e outras práticas ilegais?

Espiral descendente

"Estas economias [Grécia, Irlanda e Portugal] encontram-se numa trajectória insustentável, sem que tal se deva a um esforço insuficiente por parte dos seus governos. A Grécia e a Irlanda procederam a cortes orçamentais heróicos. A Grécia esforça-se por superar a rigidez da sua economia e Portugal, mesmo que tenha demorado a libertar-se de algumas regras sufocantes, atravessa hoje um aperto fiscal pesadíssimo. Nestes três países o cenário é cada vez mais negro, em grande medida devido aos erros cometidos em Bruxelas, Frankfurt e Berlim. Devido à insistência da União Europeia, a prioridade das periferias tem consistido em reduzir os défices orçamentais, sem olhar para as consequências no crescimento. Ao mesmo tempo que a austeridade torna cada vez mais longínqua a saída da crise, o pagamento das dívidas destes países - que se prevê atinjam os 160% do PIB na Grécia, 125% na Irlanda e 100% em Portugal - torna-se cada vez mais difícil, o que faz com que as taxas da dívida soberana se mantenham elevadas. O resultado é uma espiral descendente."

Até já no insuspeito The Economist se percebeu o papel contraproducente dos ajustamentos austeritários, impostos por Berlim e Bruxelas às periferias europeias, face aos objectivos que os mesmos pretenderiam, supostamente, atingir.

Todo o economista é um activista

Num artigo sobre as lições islandesas para os periféricos, a The Economist afirma que há “activistas” em Portugal que defendem um referendo às medidas de austeridade. Destaque, aqui no Ladrões, para as considerações referendárias do José Maria: uma experiência mental e uma apropriada metáfora para o que está em jogo nas próximas eleições legislativas.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Mudar de direcção

O Negócios da sexta-feira passada tem um conjunto de informativos trabalhos sobre a hipótese da reestruturação da dívida. O tom é dado por Rodrigo Olivares – “Portugal estaria claramente melhor com uma reestruturação antes do resgate do FMI e da UE”.

O Nuno Teles intervém cuidadosamente na questão da saída do euro, que também é aí tratada. Este cenário tornar-se-á cada mais plausível à medida que as soluções do europeísmo progressista vão sendo rejeitadas e que a União se tranca no austeritarismo, embora não se deva dar ainda a luta europeísta por perdida. É claro que o cenário de esboroamento do euro não pode ser equacionado sem considerar as escolhas políticas nacionais que teriam de vir por acréscimo, mas que hoje parecem implausíveis: reestruturar intensamente a dívida para compensar o aumento do seu fardo com a passagem do euro para o escudo, controlo estrito de capitais, nacionalização do sistema financeiro e autonomia para furar as regras do mercado interno europeu.

Os custos de transição são óbvios e elevados, mas poderíamos desvalorizar a moeda para ajudar a reequilibrar as relações com o exterior, controlar o crédito e colocar o banco central a financiar o Estado em momentos de crise, como se faz por todo o lado e deveria fazer também na Zona Euro. A desvalorização cambial teria repercussões negativas sobre o poder de compra dos salários, claro, mas poderá ser preferível aos cortes nos salários nominais que estão a ser programados pela troika.

De facto, em regime de capitalismo essencialmente descoordenado, o corte de salários nominais só se consegue através da pressão do desemprego de massas duradouro, da desregulamentação acrescida das relações laborais, da destruição do que resta da negociação colectiva e do medo adicional na economia que também se consegue com o despedimento mais fácil e barato. Um processo deflacionário lento e com encadeamentos económicos perversos, sobretudo estando as famílias tão endividadas. O enfraquecimento dos sindicatos que resultará deste plano terá consequências negativas na economia política nacional, na defesa do Estado social e numa modernização da economia que requer alguma pressão salarial e regras laborais ou ambientais exigentes.

A solução mais racional, como temos defendido, continua a estar na reconfiguração da arquitectura do euro, gerada por pressão das periferias, que têm mais poder do que parece, para evitar uma quebra dos salários assente numa autêntica fraude económica. De resto, tenho pena que no sítio do Negócios estes e outros temas continuem a ser tratados num dossiê intitulado “ajuda externa”. Para que serve esta fantasia ideológica? Para ser de referência, um jornal económico tem de ser sempre resolutamente realista. Mudem o título do dossiê para intervenção externa, por exemplo.

Quatro anos



Fundado poucos meses antes do início da crise do sub-prime nos EUA, este blogue nasceu como "espaço de opinião de esquerda, socialista e que pretende desafiar o actual domínio da direita na luta das ideias". A oportunidade do blogue foi sendo sublinhada por tudo o que se passou à nossa volta nestes últimos quatro anos. Continuemos, que o caminho faz-se caminhando. Ou melhor, pedalando.

Bombeiros incendiários


A escalada dos juros de curto prazo recomeçou em Espanha a 6 de Abril. A chegada dos bombeiros a minha casa atiça o incêndio na casa do vizinho. Será que os bombeiros são incendiários?

sábado, 16 de abril de 2011

Convergência nacional em torno do emprego e da coesão social

Num momento dramático como o que vivemos, a sociedade portuguesa precisa de debate e de convergências democráticas. Precisa também de reconhecer que a crise do liberalismo económico, de que a acção dos programas patrocinados pelo FMI tem sido uma expressão, obriga a reavaliar opiniões e prioridades e a construir soluções novas, assentes em ideias e escolhas claras e num programa explícito, sabendo que na democracia nunca há a inevitabilidade de uma escolha única, porque a democracia procura as melhores soluções da forma mais exigente.

É indiscutível que o estado das finanças públicas, que é em grande medida o resultado da profunda crise económica, exige um conhecimento e avaliação exigentes de todos os compromissos públicos. E que se torna urgente identificar a despesa pública desnecessária, supérflua e geradora de injustiças sociais, distinguindo-a da que é indispensável, colmata problemas sociais graves e qualifica o país.É também útil que se reconheça a importância do trabalho, dos salários e dos apoios sociais na sociedade portuguesa, se admita a presença de carências profundas, sob a forma de pobreza e de desigualdades crescentes, e se considere que os progressos alcançados na nossa sociedade são o resultado da presença de mecanismos de negociação colectiva e de solidariedade cujo desmantelamento pode significar uma regressão socioeconómica que debilitará o país por muito tempo.

Qualquer solução para os nossos problemas tem de partir de uma constatação realista: até agora as intervenções externas foram a expressão de uma União Europeia incapaz de perceber que a alternativa à solidariedade, traduzida em cooperação económica e integração sem condicionalidade recessiva, é o enfraquecimento das periferias sob pressão da especulação e de cúmplices agências de notação. A zona euro paga o preço de não ter mecanismos decentes para travar a especulação em torno da dívida soberana e para promover políticas de investimento produtivo que permitam superar a crise. As periferias pagam o preço da sua desunião política, única forma de colocar o centro europeu, principal responsável por este arranjo, perante as suas responsabilidades.

No momento em que se vão iniciar negociações entre o Governo e a troika FMI-BCE-CE, sabe-se que a austeridade provoca recessão económica e gera fracturas profundas, de que o desemprego elevado é a melhor expressão. As experiências grega e irlandesa exigem uma revisão das condições associadas aos mecanismos de financiamento em vigor. De facto, devido à austeridade intensa dos últimos dois anos, a economia irlandesa contraiu-se mais de 11% e a recessão grega atingiu 6,5% só entre o último trimestre de 2009 e o último de 2010. O desemprego ultrapassa já os 13% nestes dois países. A este ritmo, e apesar dos cortes orçamentais intensos, nenhum deles conseguirá reduzir a sua dívida. Isso só acontecerá com crescimento económico e com uma noção clara de que não é nos salários e no trabalho, mas antes na escassa inovação e na fraqueza organizacional de grande parte das empresas portuguesas, que residem os problemas de competitividade. Portugal não pode ser um laboratório para repetir as mesmas experiências fracassadas, e corremos o risco de uma recessão ainda mais prolongada, se tomarmos em consideração as previsões do próprio FMI.

Por tudo isto, considera-se necessário um apelo a um compromisso sob a forma de um programa de salvaguarda da coesão social em Portugal, de manutenção e reforço das capacidades produtivas do país para gerar emprego, com atenção às pessoas, evitando sacrifícios desnecessários. Os pontos essenciais de tal compromisso são os seguintes:

1. Garantir que em todas as decisões económicas e financeiras se coloca o objectivo de promoção exigente do crescimento e do emprego, reconhecendo que a sociedade portuguesa não comporta níveis de desemprego que outras sociedades registam, dada a fragilidade da estrutura de rendimentos e a insuficiência dos mecanismos de protecção social. A presença, já sugerida, da OIT nas negociações entre o Governo e a troika FMI-BCE-CE seria um sinal construtivo muito importante, colocando a questão do trabalho digno.

2. Desencadear um escrutínio rigoroso da despesa pública, auditando a dívida do país, sobretudo a externa, identificando com rigor as necessidades reais e os desperdícios da administração pública e salientando a necessidade de concentrar os recursos na esfera essencial das políticas públicas que combatem a exclusão social e a desigualdade, qualificam as pessoas e promovem a actividade produtiva, a competitividade e o crescimento da economia.

3. Afirmar que a educação, a saúde e a segurança social, bem como outros bens públicos essenciais como os correios, não podem ser objecto de privatização, fazendo da lógica lucrativa um mecanismo de regulação nestes domínios, visto que tal solução seria cara e insustentável financeiramente, levaria à exclusão de muitos e generalizaria injustiças sociais e regionais.

4. Recusar qualquer diminuição do papel do Estado no sector financeiro, sublinhando que a Caixa Geral de Depósitos deve permanecer integralmente pública e com uma missão renovada e que a regulação do sector terá mesmo de ser reforçada para evitar novos abusos.

Os signatários entendem que um compromisso deste tipo viabiliza as acções necessárias ao momento presente, capacita a sociedade para enfrentar positivamente as dificuldades e tem como objectivo tornar claro que, em circunstâncias graves, há direitos associados à dignidade do trabalho, ao respeito pelas pessoas e à garantia da coesão social que não podem ser postos em causa, sob pena de fragilizar gravemente o país e de eliminar qualquer capacidade própria de superar a situação dramática em que nos encontramos.


Albano da Silva Pereira, Fotógrafo, Director do Centro de Artes Visuais de Coimbra; Alexandre Alves Costa, Arquitecto; Anália Torres, Socióloga, Professora do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa; António Arnaut, Advogado; António Chora, Coordenador da Comissão de Trabalhadores da Autoeuropa; António Manuel Hespanha, Professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa; António Pinho Vargas, Compositor; António Romão, Economista, Professor do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa; Augusto M. Seabra, Crítico de cinema, literatura e música; Boaventura de Sousa Santos, Sociólogo, Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Director do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra; Carlos Fortuna, Sociólogo, Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra; Cristina Andrade, Activista do FERVE - Fartos/as d'Estes Recibos Verdes; Daniel Oliveira, Jornalista; Eduardo Paz Ferreira, Advogado, Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; Elísio Estanque, Sociólogo, Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra; Eugénio Fonseca, Presidente da Caritas Portuguesa; Fernanda Rollo, Historiadora, Professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa; Fernando Catroga, Historiador, Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra; Fernando Roque de Oliveira, Economista, Presidente do Observatório sobre a Produção, o Comércio e a Proliferação de Armas Ligeiras; Helena Roseta, Arquitecta; Isabel Allegro, Professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa; João Abel Freitas, Economista; João Cravinho, Militante socialista; João Ferrão, Geógrafo, Investigador do Instituto de Ciência Sociais da Universidade de Lisboa; João Ferreira de Almeida, Sociólogo, Professor do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa; João Ferreira do Amaral, Economista, Professor do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa; João Proença, Sindicalista; João de Deus, Sindicalista; João Rodrigues, Economista, Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra; Jorge Vala, Psicólogo Social, Investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa; José de Faria Costa, Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; José Luís Pio Abreu, Médico Psiquiatra; José Maria Brandão de Brito, Economista, Professor do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa; José Maria Castro Caldas, Economista, Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra; José Reis, Economista, Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra; Luís Moita, Professor da Universidade Autónoma de Lisboa; Manuel Alegre, Escritor, militante socialista; Manuel Carlos Silva, Sociólogo, Professor da Universidade do Minho; Manuel Carvalho da Silva, Sindicalista; Manuela Silva, Economista, Professora do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa; Manuel Brandão Alves, Economista, Professor do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa; Maria Eduarda Gonçalves, Jurista, Professora do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa; Mário Murteira, Economista, Professor do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa; Mário Ruivo, Biólogo, Oceanógrafo; Miguel Henriques, Músico; Octávio Teixeira, Economista; Paula Gil, Activista da Geração à Rasca; Paulo Areosa Feio, Geógrafo, IGOT - Universidade de Lisboa; Pedro Hespanha, Sociólogo, Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra; Ricardo Paes Mamede, Economista, Professor do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa; Rui Namorado, Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra; Rui Tavares, Historiador e Eurodeputado; Sandra Monteiro, Directora do Le Monde diplomatique - edição portuguesa; Sandro Mendonça, Economista, Professor do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa; Sérgio Azevedo, Compositor; Tiago Gillot, Activista dos Precários Inflexíveis; Vasco Lourenço, Associação 25 de Abril.

Público, 16 Abril 2011

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Alto e para o baile


A informação hoje divulgada pelo governo de que até ao fim de Março se verificou um saldo orçamental da administração central positivo de 432 milhões de euro, enquanto no mesmo período do ano passada se verificara um défice de 1 311 milhões, é absolutamente surpreendente.

Este resultado positivo, que contrasta com os números do desemprego e da recessão, suscita-me grandes dúvidas e perplexidades:

1) Se a execução orçamental está a correr tão bem sem PEC IV para que servia o PEC IV?

2) O que está cá a fazer o FEEF-FMI? Estará efectivamente a tratar da dívida e do défice público e de garantir a liquidez do Estado, ou a preocupação é outra? Estamos a passar de uma fase grega da crise para uma fase irlandesa ou islandesa em que nos querem obrigar a sofrer as dores dos accionistas e credores dos bancos?

3) Não será este saldo orçamental positivo sinal de que a dose de PEC, ao contrário de insuficiente, foi até já excessiva, estando a produzir recessão (e redução do défice para lá do necessário) quando poderíamos estar a manter a trajectória de crescimento esboçada em 2010 e por essa via (a que na realidade é sustentável) estar a conter o défice e a dívida?

Alto e para o baile. Expliquem-nos lá isto muito bem explicadinho.

Tony Soprano bailout

Não é ajuda externa a Portugal, mas sim um “Tony Soprano bailout”, diz Michael Burke, ou seja, uma violenta operação de salvamento da banca do centro europeu e, já agora, da banca nacional à custa das populações das economias periféricas, dos seus rendimentos e activos.

Multiplicam-se as declarações de governantes espanhóis que nos garantem que a Espanha não é Portugal. Outros dirigentes europeus, como a ministra das finanças francesa, afiançam que Portugal funcionou como um “corta-fogo” da crise. Declarações deste género têm funcionado como um indicador avançado de novos problemas. Tony Soprano poderá estar a chegar a Espanha.

Um ex-funcionário português do FMI alinha com o que andamos a defender há já algum tempo: “Reestruturação da dívida pode ser usada como arma negocial pelo governo”. Usada como arma negocial de uma aliança das periferias seria ainda mais eficaz. Indicando que não é em vão que se esteve no FMI, aponta para uma redução dos direitos laborais e é franco sobre os objectivos de tal medida: reduzir os salários. O ataque ao salário directo e indirecto é uma das marcas dos Sopranos do FMI-BCE-CE.

Publicado no arrastão.

Ir ao pote

Numa conferência proferida na semana passada na Universidade Lusófona, Pedro Passos Coelho defendeu a ideia de constituição de parcerias público-privadas nas áreas da educação, saúde e acção social. O que significa, por exemplo na esfera educativa, a adopção de um conceito de «rede nacional de ensino», que incluiria as escolas públicas e privadas, ou seja, uma oferta «vista em conjunto». Justificando a proposta e referindo-se explicitamente ao ensino superior, Passos Coelho considerou que «aqueles que hoje estão no ensino público beneficiam de um custo, porque têm um pagamento beneficiado pelo Estado, que aqueles que precisam de recorrer ao ensino não público têm de enfrentar».

É claro que não passa pela cabeça do líder «social-democrata» que o problema detectado tem uma resposta alternativa à dita «visão de conjunto»: a expansão da oferta pública, tornando supletiva (ou verdadeiramente opcional) a frequência das instituições de ensino superior privado. Tal como não lhe interessa perceber que a natureza intrínseca dos serviços públicos prestados pelo Estado (e a necessidade de os mesmos se constituirem enquanto rede e segundo um princípio de cobertura territorial e de oferta formativa) não é compatível com os mecanismos privados de prestação de serviços.

Mas colocando de lado a discussão ideológica, Pedro Passos Coelho revela aparentemente desconhecer (de facto ou de forma deliberada) que o Estado já concede, desde 1997, apoio a alunos do ensino superior privado, sob a forma de bolsas (que têm uma componente relativa a propinas). Um apoio que abrangia cerca de 36% dos candidatos em 1997/98 e que rapidamente se estendeu a um contingente muito significativo de alunos, fixando-se em cerca de 63% em 2006/07 (informação mais recente disponibilizada pelo GPEARI).

As verdadeiras intenções do PSD de Passos Coelho (e dos interesses que representa), tornam-se todavia mais claras quando constatamos que o que está em causa é, essencialmente, a própria sobrevivência do ensino superior privado. Com efeito, o número de alunos inscritos tem vindo a decair ano após ano (passando de cerca de 114 mil em 1995/96 para cerca de 90 mil em 2008/09), apesar do absurdo volume de vagas (cerca 50 mil) que este subsistema oferece anualmente aos candidatos ao ensino superior. O que contrasta, nitidamente, com a expansão progressiva do ensino superior público, que viu aumentar o número de inscritos em cerca de 42% no mesmo período (passando de cerca de 200 mil em 1995/96 para cerca de 282 mil em 2008/09). O peso do ensino superior privado em Portugal passou assim de cerca de 1/3 para 1/4 dos total de alunos inscritos.

Mas tomando a proposta de Passos Coelho, que assenta na ideia do cheque-ensino (ou, em alternativa, do pagamento directo de custos pelo Estado às instituições de ensino superior privado), impõe-se uma questão: de onde vem o dinheiro necessário? Há duas alternativas: ou implica um reforço orçamental do MTCES (o que seria estranho num partido que grita em todas as direcções contra a «gordura» do Estado) ou implica um corte no orçamento das instituições de ensino superior público, degradando ainda mais as condições de sub-financiamento a que têm sido sujeitas. A opção, já o sabemos, seria certamente a segunda, revelando as intenções mais inconfessáveis: se não consegues competir no plano da qualidade, estrangula-a.

Esta proposta do PSD é, assim, não só reveladora do regresso do «compra-me isso Portugal» (que se eclipsou curiosamente durante a eclosão da crise financeira), mas também da crónica incapacidade da famigerada «iniciativa privada» para viver sem ser à sombra do Estado. O que há de verdadeiramente ideológico no «novo modelo de governação» que Passos Coelho propõe é muito menos do que se poderia supor. Do que se trata é mesmo de ir ao pote. De pura parasitagem.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Portugal visto de fora...

O cientista social norte-americano Robert Fishman publicou um artigo sobre Portugal no New York Times com uma visão excessivamente idealista, mas que sublinha bem as pressões especulativas sobre o nosso país, aqui resumido pelo Negócios, e que teve, como não podia deixar de ser, impacto interno. Fishman tinha publicado, em 2010, um artigo académico na revista Studies in Comparative International Development intitulado "Rethinking the Iberian Transformations: How Democratization Scenarios Shaped Labor Market Outcomes". O artigo está acessível através de qualquer universidade, mas um resumo pode ser encontrado aqui. Trata-se de um exercício de economia política comparada. Portugal aparece muito bem na fotografia em termos de capacidade de criação de emprego e de preocupação política com essa variável crucial. O estudo de Fishman refere-se ao período democrático, indicando precisamente que a ruptura revolucionária portuguesa e suas heranças político-ideológicas e institucionais, por comparação com a transição espanhola, explicam parte deste relativo sucesso português. No entanto, um certo entusiasmo de Fishman tem de ser temperado pela consideração das abissais desigualdades salariais nacionais, por exemplo. E é claro que este euro, a austeridade, as pressões especulativas e suas sequelas puseram em causa, desde o início do milénio, tal trajectória, como Fishman aliás reconhece.

Economia política da intervenção

A desfaçatez do bloco central não tem limites: Teixeira dos Santos indicou que o Estado está "disponível" para entrar no capital dos bancos. Sem mais, claro. O Estado bombeiro aceita empréstimos, com condições draconianas para as classes populares, para ajudar os bancos e seus accionistas, socializando prejuízos num processo à irlandesa? É isto, não é? Até agora os bancos intermediavam entre o BCE e o Estado, ganhando à custa de todos. E ainda há quem chame ajuda a esta expropriação. Revela-se claramente a lógica da concertação entre os bancos, organizada internamente pelo Banco de Portugal, para exigir a entrada da troika FMI-BCE-CE. A solidez do contrato político com este sector financeiro, um dos principais responsáveis pelo estado do país, por contraste com a precariedade do contrato social, diz tudo sobre o espírito santo que comanda internamente a nossa economia política. Embora o encaixe financeiro seja residual num contexto de venda forçada, a exigência de privatização de bens públicos essenciais faz todo o sentido para quem quer capturar sectores onde os lucros estão garantidos. É viver sempre em cima das possibilidades da comunidade. Repito o que escrevi no início da austeridade mais violenta: o que está aqui em jogo é um processo de transferência dos custos sociais do ajustamento à crise do capitalismo financeirizado para o "factor trabalho", a expressão de Cavaco Silva que é todo um programa político. A alternativa? Alternativas há muitas para os vários planos da vida económica, mas se calhar vai ser preciso pensar em reestruturar os bancos, impondo nesse processo perdas severas aos accionistas e aumentando a importância da banca pública.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Comissão Europeia recusa mandato de captura europeu para os ladrões de bicicletas

Se não acreditam, leiam aqui.

O olho subtil de Strauss-Kahn


É preciso fazer os ajustes orçamentais “com um olho subtil no crescimento”, alerta Strauss-Kahn.

Oh Strauss-Kahn, explique lá como é que isto se faz sem ser com facilidade nos despedimentos, liquidação da negociação colectiva e dos sindicatos, mais desemprego e redução dos salários para niveis chineses.

Empreste o 'olho subtil' aos seus homens em Portugal, até porque, como diz:

“As políticas de redução orçamental podem baixar o crescimento económico a curto prazo e isto pode mesmo conduzir a um aumento a longo prazo do desemprego, transformando-se assim um problema cíclico num estrutural”.

Contra a economia da recessão e da desigualdade

Entrevista do Ricardo Paes Mamede ao Libération: "FMI vai aumentar a desigualdade social em Portugal".

terça-feira, 12 de abril de 2011

Preocupados com o crescimento português?

Ficámos a saber através dos jornais que a “Europa” está «preocupada com falta de crescimento português». Uma afirmação destas, nos dias que correm, parece uma declaração de bom senso por parte dos dirigentes europeus. Já deve ser claro para todos que só crescimento económico, e não mais austeridade, nos pode tirar da crise.

Parece bom senso, mas não é. Logo a seguir na notícia ficamos a perceber o que isto quer dizer na prática: a chamada ‘ajuda externa’ virá amarrada a exigências de ‘reformas estruturais’ nos domínios da legislação laboral, do sistema de justiça, da regulação da actividade económica e veremos que mais.

As almas liberais lusas, crentes de que os problemas de competitividade da economia portuguesa se resolvem com a facilitação dos despedimentos e, de forma geral, com a redução dos chamados ‘custos públicos de contexto’, exaltam perante a perspectiva de conseguir impor a sua agenda sem ter de a sujeitar às regras da democracia. Essas almas continuam a viver utopias perversas.

Mais lucidez, ainda que menos escrúpulos, têm os membros do grupo alemão Europolis que entregou uma providência cautelar para impedir a Alemanha de participar no apoio financeiro a Portugal. Segundo o porta-voz deste grupo, Portugal «não tem futuro como uma economia competitiva» na zona euro.

A ideia não é difícil de perceber. A economia portuguesa tem um problema estrutural central – e não, não é a legislação laboral, a lentidão da justiça ou a burocracia – trata-se do seu perfil de especialização produtiva. A estrutura produtiva portuguesa é assente em sectores de baixa intensidade de conhecimento, de baixo valor acrescentado, com procuras internacionais pouco dinâmicas e/ou em que a concorrência internacional é muito intensa.

Este estudo do FMI mostra de forma clara por que razão a economia portuguesa cresceu tão pouco na última década – e, já agora, porque é que o desempenho exportador alemão tem sido tão positivo. A economia portuguesa está especializada em sectores cuja procura internacional tem crescido pouco e onde a concorrência das economias emergentes mais se tem feito sentir. Já a Alemanha tem a sua estrutura produtiva assente em bens de equipamento para a produção industrial e para consumo de luxo – isto num mundo marcado por processos recentes e massivos de industrialização (que exigem equipamentos para a produção), originando algumas centenas de milhar de novos bilionários (ávidos de Mercedes, BMW e Audi alemães) – a par de centenas de milhões de trabalhadores industriais a viver em condições miseráveis.




Quando a União Europeia negociou a entrada da China na OMC e uma redução generalizada das taxas sobre as importações dos bens das economias emergentes, fez um óptimo negócio… para alguns. Os grandes produtores europeus (em particular, os alemães) obtiveram um acesso privilegiado aos mercados emergentes. As economias da periferia ficaram à rasca.

Da mesma forma, quando a UE embarcou num apressado alargamento a Leste (em nome da estabilidade do continente), os produtores alemães passaram a ter acesso a uma reserva de mão-de-obra barata e qualificada mesmo à porta de casa. À rasca ficaram as economias periféricas, como Portugal, que viram deslocalizar-se muitas multinacionais - que agradeceram o brinde da nova geografia europeia.

Em ambos os casos, a economia portuguesa (entre outras) viu-se a braços com uma situação estrutural insustentável – com custos demasiado elevados para concorrer com as economias emergentes e do Leste europeu, mas pouco qualificada (não apenas em termos individuais, mas também de recursos e estratégias empresariais) para concorrer em segmentos de maior valor acrescentado. Já se sabia que o resultado não ia ser bom. Menos bom seria num contexto de aumento dos custos das matérias-primas e de apreciação do euro face ao dólar.

Discutir os problemas da economia portuguesa na actualidade sem ter este quadro por referência é embarcar numa mistificação lamentável. Na verdade, nada do que foi descrito se alterou. Neste contexto, não são as reformas estruturais que nos querem agora impor que vão fazer a diferença.

Tem, pois, razão o tal grupo alemão quando afirma que Portugal não irá crescer o suficiente no quadro da zona euro. Pelo menos, no quadro que existe na actualidade. Estão os dirigentes da UE preocupados com o crescimento português? Encontrem-se, pois, soluções que ajudem a relançar a competitividade da economia portuguesa de forma sustentável – criem-se fundos para investimento em sectores transaccionáveis (para fazer face à quase indisponibilidade de crédito ao investimento produtivo no presente), reforcem-se os fundos para I&D e formação, abram-se excepções temporárias às regras de auxílios de Estado da UE de forma a replicar uma desvalorização cambial.

Promover uma desinflação competitiva através da redução forçada dos salários (via aumento do desemprego e liberalização dos despedimentos), como ditam as condições de quem nos vem 'socorrer', vai condenar-nos não apenas a uma recessão prolongada, mas a um modelo de crescimento que tem os dias contados há muitos anos.