quarta-feira, 30 de setembro de 2020
Quino
«Morreu hoje Quino, um dos cartoonistas mais geniais de sempre, que usou o seu talento para denunciar a opressão nas suas formas mais brutais e nas mais insidiosas, às vezes pessimista, às vezes cheio de esperança. Somos tantos, os que cresceram com ele. Continuemos então»
José Gusmão (facebook)
A melhor forma
Mas há outra forma de olhar para a questão, garante Nuno Teles, professor na Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia. “Não faz sentido não aproveitar todos os recursos disponíveis ao Estado para fazer face à crise”, defende. O economista lembra que Portugal é dos países com os níveis de investimento público mais baixos da União Europeia e frisa que este financiamento chegaria a custo quase zero.
segunda-feira, 28 de setembro de 2020
Friedrich Engels (1820-1895)
Enviado para Inglaterra em finais de 1842 para, na empresa têxtil de que o seu pai era sócio em Manchester, continuar a sua formação comercial, Engels, que já estudara as obras dos economistas burgueses, dos socialistas e comunistas utópicos e adquirira sólidos conhecimentos filosóficos, pôde contactar de perto com as classes trabalhadoras da Grã-Bretanha a quem dirige uma mensagem colocada à cabeça do livro A Situação da Classe Laboriosa na Inglaterra. Nela se pode ler: «quis ver-vos em vossas casas, observar-vos na vossa vida quotidiana, conversar convosco sobre as vossas condições de vida e as vossas queixas, ser testemunha das vossas lutas contra o poder político e social dos vossos opressores.»
domingo, 27 de setembro de 2020
Um número triste, mas revelador
O Expresso chegou ontem ao número 2500 e decidiu assinalar a data. Para lá de um suplemento preguiçoso, convidou Leonor Beleza, Paula Amorim e Joana Vasconcelos para uma ideologicamente reveladora colaboração editorial, tendo o poder de definir os temas a abordar neste número. Estamos perante representantes, respectivamente, do filantrocapitalismo, do capitalismo monopolista de herdeiros e da cultura do porno-riquismo, celebrada, por exemplo, em Versalhes.
Paula Amorim excedeu-se no suplemento de economia: da opinião de Paulo Portas à de Adolfo Mesquita Nunes, este último assalariado de Amorim na Galp; de uma entrevista a Salvador de Mello da CUF, um capitalista da doença parasitária a uma notícia sobre investimentos na Graça do seu sócio no rentismo fundiário da Comporta, o francês Claudio Berda.
E que dizer da espiritualidade de um capitalista reformado da indústria farmacêutica, Luís Portela, na revista? Toda uma cultura. Houve de tudo.
Mas será que houve mesmo um tempo em que esta imprensa teve alguma autonomia real em relação aos interesses e valores dominantes, os da classe dominante? Não sei. Sei que neste tempo não tem qualquer autonomia editorial e já não disfarça.
sábado, 26 de setembro de 2020
sexta-feira, 25 de setembro de 2020
Anti-Renascença
No livro Casa da Rússia, John Le Carré tece uma intriga na qual os serviços secretos dos EUA e britânicos são levados a entregar uma lista de perguntas a uma suposta fonte do aparelho científico soviético, a qual, afinal, já estava comprometida pelos soviéticos. No fim de tudo, o personagem principal mostra-se espantado com a aflição de quem geria a operação. Não eram só perguntas? Sim - respondem-lhe - mas revelam o que o Ocidente sabe e não sabe.
Ora, isso acontece também no jornalismo. Há entrevistas que dizem muito mais dos entrevistadores do que dos entrevistados.
Foi o caso da recente entrevista do candidato comunista à Presidência da República João Ferreira dada à Rádio Renascença e ao jornal Público. Muito mais à Renascença, que estava representada pela sua directora de informação, Graça Franco, do que ao jornal Público representado pela jornalista Maria Lopes, já que foi a primeira quem marcou o ritmo da entrevista (ver a edição impressa aqui que não dá todo o colorido da entrevista).
As perguntas revelam o ponto de que parte o jornalista, o nível dos seus conhecimentos, o grau da sua preparação (ou a sua cedência à preguiça, ao cansaço e à pobreza vazia e desinteressante da espuma dos dias), o seu interesse (ou desinteresse) em aprofundar o pensamento do entrevistado, capaz de trazer mais luz (ou de acrescentar mais ruído ao ruído). As perguntas podem revelar igualmente o seu compromisso com a verdade do entrevistado (ou um comprometimento com os seus adversários e inimigos, acabando por ser afinal uma peça de campanha); a sua capacidade de elevação do debate e de fazer voar uma conversa entre seres que pensam (ou, dada a sua ignorância, arrastar ideias para a lama das palavras e visões curtas, resultando afinal num ataque de um troll profissional); o seu controlo das emoções para que nada perturbe esse voo das ideias (ou, na sua ausência, a raiva que deixa transparecer no tom calmo, baralhando o que está a ser debatido); no final, o seu interesse (ou desinteresse) como pessoa e ser intelectual, se é um ser humano bem formado e bem pensante, capaz de ouvir mesmo o seu inimigo, tal como se amasse tanto o próximo como a si própria, capaz de ser uma boa jornalista (ou se é apenas um inquisidor-mor em potência ou um outro cónego Melo, levado pela raiva mal gerida e mal resolvida, arrastada pelas suas convicções cegas às nuances do que está em jogo, tomado pelo seu poder momentâneo).
Vivemos tempos complicados, complexos e perigosos. A sociedade portuguesa está à beira de um momento em que uma "modernização" de três décadas de reformas, aplicadas sob os auspícios do FMI e da “liberalizadora” privatização da actividade económica, culminou num sistema político de transferência de soberania que penaliza as fracas economias e fortalece as fortes; depois de uma década de recessão e depressão provocada por vagas sucessivas de “resgates” e de políticas ineficazes aplicadas sob os auspícios da UE, a sociedade portuguesa encontra-se à beira de outra vaga em que os próprios instrumentos de “ajuda” estarão, mais uma vez, condicionados por quem nos “ajudou” a afundar. Um caldo que se teme poder descambar numa escalada do desemprego que resultará no pano de fundo de um estado permanente de emergência como forma de condicionar o debate político, numa conjuntura em tudo propícia a tensões sobre o próprio regime democrático.
E no meio de tudo isto, do que se lembrou a directora de informação da Renascença de perguntar ao candidato João Ferreira?
Segue-se a sequência das perguntas feitas. Ao fim da cerca de meia hora, que pensamentos se retiram do que pensa a jornalista da Renascença sobre o momento português, sobre o mundo? Pouca coisa, a não ser a tentativa – pouco disfarçada - de colocar (atirar) pedrinhas ao caminho de João Ferreira. Ver-se-á que nem um estagiário faria tais perguntas - porque teria vergonha de mostrar nada saber - quanto mais jornalistas séniores, como a directora de informação da Renascença que, estranhamente e porque acha talvez que nada tem a provar, acaba por agir como um estagiário que copia o que ouviu noutro lado.
quarta-feira, 23 de setembro de 2020
Da filantropia
O porno-riquismo é a nova fase do consumo conspícuo num tempo de capitalismo com desigualdades pornográficas, onde o dinheiro assim concentrado é sempre quem mais ordena. Embora tenha dificuldades em obter lucros, a Farfetch, fundada por José Neves, é um bom símbolo deste capitalismo, uma plataforma ao serviço do luxo.
terça-feira, 22 de setembro de 2020
Flat tax: há relação entre a progressividade e a desigualdade?
segunda-feira, 21 de setembro de 2020
Paradoxos
No Público, Sérgio Aníbal informa-nos: “No auge de uma das maiores crises da história e apesar de uma parte da população estar já a sofrer perdas de rendimento e de emprego, os portugueses têm estado nos últimos meses, em média, a poupar uma parte maior do seu rendimento. É um fenómeno que pode parecer surpreendente, mas que na verdade é habitual no início das crises económicas.”
domingo, 20 de setembro de 2020
sexta-feira, 18 de setembro de 2020
Da «liberdade de escolha»
Por isso, quando ouvirem defender a «liberdade de escolha» no acesso aos serviços de saúde, lembrem-se que essa ideia interessa, antes de mais, aos próprios prestadores privados. E que, quando a direita defende a existência de «sistemas únicos» de resposta (que não diferenciem prestadores públicos de privados, cabendo ao Estado financiar estes últimos), estão em causa universos que priorizam objetivos distintos, numa tensão entre salvar vidas e garantir lucros (como lembrava, em devido tempo, o Ricardo Paes Mamede).
quinta-feira, 17 de setembro de 2020
Da americanização
Na UE, o chamado discurso do Estado da União, feito anualmente pela Presidente da Comissão Europeia, é uma pindérica imitação do que se passa nos nada recomendáveis EUA. A americanização da economia política desta parte do continente é o horizonte intransponível dos federalistas europeus.
quarta-feira, 16 de setembro de 2020
Liberalismo em movimento: como o Economist contou (e mudou) a história
terça-feira, 15 de setembro de 2020
Duplicidades mediáticas
«Não há comparação entre o que aconteceu na Festa do Avante, onde as pessoas assistiram aos concertos em lugares sentados e distantes e foram definidas regras; e as imagens que vimos no Santuário de Fátima. No entanto, todos os títulos de jornais tiveram um sentido quase inverso ao que foi dito sobre a Festa do Avante: que o Santuário, cuidadoso, bloqueou o acesso mal se chegou a um terço da sua capacidade. A medida de emergência e improvisada teve um tratamento mais simpático do que todas as medidas preventivas do PCP, tratadas com desconfiança ou desdém. Com uma área quatro vezes superior, a Quinta da Atalaia propôs-se receber um terço (a DGS aconselhou um sexto) das pessoas que estiveram no Santuário de Fátima. Ninguém fez perguntas no Parlamento. Os jornais que fizeram do PCP o bombo da festa não pediram esclarecimentos. Não houve petições, cartazes, marchas lentas de carro. Não se trata de justificar um “erro" com outro, até porque o erro é incomensuravelmente mais evidente em Fátima do que na Atalaia. Fica é claro que a motivação contra a Festa do Avante nada teve a ver com saúde pública. Se assim fosse, a indignação seria muitíssimo sonora neste momento. A motivação era política. E sendo política, quer dizer que há quem use a pandemia para tentar limitar a liberdade política dos seus opositores. E isso é um ataque à democracia. Por mim, a Festa do Avante e as peregrinações a Fátima devem acontecer, desde que se acordem condições mínimas para que se façam em segurança. Cada um assumirá o preço político de assim o fazer. Assim como espero que os que antes gritaram e agora se calam assumam as suas verdadeiras motivações»
Daniel Oliveira, As reações a Fátima provam que o objetivo era calar o PCP
domingo, 13 de setembro de 2020
Dança de cegos
É que as próximas eleições presidenciais arriscam-se a um autêntico desastre. E, ainda por cima, não são irrelevantes.
Já com três candidatos que se posicionam à esquerda, o resultado final – a julgar pelo que se sabe hoje - entronará o candidato da direita e arrisca-se a catapultar o candidato da extrema-direita. Isso contribuirá, primeiro, para uma reformatação da direita e, segundo – e pior - para um recentramento à direita da iniciativa política e da política económica e social. E não se esqueça que Marcelo Rebelo de Sousa quererá deixar, no segundo mandato, o seu dedo na História de Portugal.
Não sei que diligências foram tomadas em busca de uma solução conjunta, capaz de criar um élan à esquerda e galvanizar a maioria do eleitorado - que, na verdade, vota à esquerda. Para isso, António Costa não ajudou, mas isso não deveria ter sido um entrave. Se houve alguma iniciativa, parece todavia que não surtiu efeito.
Pior: parece que todas as forças políticas estão apostadas em estilhaçar esse eleitorado de esquerda, ao levar os seus candidatos "até ao fim", com base naquele argumento – nada aritmético e algo voluntarista – de que, na primeira volta, convém que haja o máximo de candidatos para tocar o máximo de eleitores. No fundo, é como se as eleições fossem a feijões e, assim sendo, quantos mais levarem ao voto, melhor. Mais: parece convir desdramatizar as eleições, para que não se retirem ilações políticas da vitória dada como certa do candidato da direita. Mas trata-se de um risco imenso: o de cada uma das candidaturas à esquerda ser ultrapassada pela da extrema-direita, risco que seria agravado se houvesse segunda volta. Já vimos isso noutros países. E isto tudo sem que haja ainda qualquer acordo político entre a esquerda para uma política governamental mais consistente e duradoura, com uma visão a prazo, que não seja a colagem de pequenas políticas.
Ora, os casos portugueses do passado - como na eleição de Mário Soares e Jorge Sampaio - são instrutivos.
Relembre-se as eleições presidenciais de 1986. Havia o candidato à direita Freitas do Amaral, contra vários candidatos à esquerda: Salgado Zenha (apoiado por parte do PS e pelo PCP, cuja candidatura de Ângelo Veloso estava disposta a desistir na primeira volta), havia a hipótese de Maria de Lurdes Pintasilgo (apoiado pela ala eanista) e a vontade pessoal de Mário Soares (que nem era apoiado pelo PS). O PCP aprovara no seu X Congresso de meados de Dezembro de 1983 que nunca votaria em Mário Soares por ser “uma e a mais provável candidatura de direita". Soares partia, pois, com uma expressão mínima de eleitorado. O que fez Mário Soares?
Em Janeiro de 1985 - como conta Rui Mateus no seu livro Contos Proibidos - Mário Soares pediu-lhe para que falasse com Frank Carlucci – ex-embaixador dos Estados Unidos (EUA) em Lisboa no verão quente de 1975, ex-director adjunto da CIA, ex-secretário de Estado adjunto de Defesa dos EUA - sobre o apoio técnico de uma empresa especializada em eleições. Carlucci - com quem Rui Mateus admite que “mantinha contactos regulares” - chegara antes a defender que Soares “era mais importante enquanto secretário-geral do PS do que como PR”, mas nesta fase desavinda com o PS, acabou por o ajudar na sua candidatura.
Carlucci colocou-o em contacto com “uns homens do Reagan que eram the best that money can buy: Lee Atwater (vice-director de campanha de Reagan e, de 1981/83, assistente especial do presidente e em 1986 do presidente do Partido Republicano) e Paul Manafort (advogado e principal operacional da empresa), da empresa de RP Black, Manafort, Stone & Kelly. Os dois chegaram a Lisboa num voo da TWA às 7h30 de 3/3/1985. Nessa tarde, foram conversar com a casa de Soares, em Nafarros.
“Os americanos explicaram como trabalhavam e que tudo era possível desde que houvesse meios”. A candidatura de Lourdes Pintassilgo chamou desde logo a atenção dos especialistas dos EUA como forma de dividir votos à esquerda. Para eles, “era possível eleger Mário Soares desde que tudo fosse feito para manter Maria de Lourdes Pintasilgo na corrida” (na biografia escrita por Teresa de Sousa, Soares – segundo Rui Mateus – disse que os técnicos norte-americanos lhe teriam dito que era impossível, uma versão que valorizaria ainda mais o seu papel político...)
Essa indicação dos homens dos EUA corroborou os esforços e contactos de Soares para encorajar Pintasilgo a avançar. Mas eles tinham ainda outras tácticas.
“Entre os truques que eles tinham possibilidade de plantar, caso fosse caso disso, para desacreditar um candidato como Freitas do Amaral, no momento decisivo da campanha, havia o lançamento de um artigo num grande jornal como o New York Times, através das duas toupeiras, que, embora descrevendo o candidato com 90% de informação rigorosa, incluiria 10% de ficção. Por exemplo, seria revelada uma associação secreta avassaladora com o KGB, que seria impossível de verificar em tempo útil. O feedback dessa informação correria mundo e adquiriria tal veracidade que acabaria por se transformar num elemento implacável de dúvida sobre a integridade do candidato. Mário Soares estava absolutamente eufórico”.
Mário Soares apresentou os homens dos EUA ao seu think-tank: Gomes Mota, Vítor Constâncio, Jaime Gama, Vasco Pulido Valente. E no dia seguinte, à sua comissão técnica, com Serras Gago. Voltaram “inúmeras vezes” a Portugal. De Portugal, visitou-se a empresa em Washington. Trabalharam todos durante 3 meses.
Depois, houve problemas porque a candidatura de Mário Soares não lhes pagou, mas isso pouco importa agora.
sábado, 12 de setembro de 2020
Habemus Papa
«Os prazeres chegam-nos diretamente de Deus, não são católicos ou cristãos, ou outra coisa qualquer. São simplesmente divinos. (...) A Igreja condenou o prazer vulgar, desumano, bruto, mas, por outro lado, sempre aceitou o prazer humano, simples, moral. (...) O prazer de comer existe para nos manter saudáveis pela alimentação, tal como o prazer sexual existe para que o amor seja mais bonito e para garantir a perpetuação das espécies. (...) Os prazeres de comer e do sexo vêm de Deus.»
Citado num livro do jornalista italiano Carlo Petrini, o Papa Francisco acrescentaria, com uma santa benevolência, ter havido no passado algum «excesso de zelo» nestas matérias por parte da Igreja, devido a «uma interpretação errada da mensagem cristã». Eu já não me lembro de quem é que hoje comentava que foi preciso esperar 2000 anos para ouvir uma figura de proa da Igreja dizer o que Francisco disse. Mas não se surpreendam se, entretanto, surgir um qualquer manifesto ou abaixo-assinado, subcrito por uma centena de pessoas (na sua maioria certamente católicas), a condenar estas declarações.
sexta-feira, 11 de setembro de 2020
Covid-19: uma nova fase, com um novo padrão? (I)
A evolução recente no caso de Portugal parece encaixar no padrão acabado de referir. De facto, se é inegável o acréscimo no número de novos casos e de infetados (de 170 em meados de agosto para os atuais 439, e de 12,5 para 15,5 mil, respetivamente), o aumento registado ao nível dos internamentos (17%) e no número de óbitos não acompanha essa tendência. Aliás, o número de óbitos mantém-se numa média móvel diária (últimos sete dias) de 3, desde o dia 15 de agosto (com o número de novos casos, no mesmo período, a mais que duplicar).
O facto de o número de novos casos e de infetados serem os indicadores prediletos das notícias sobre a pandemia (e também o critério primeiro de algumas decisões políticas) faz com que esta alteração de padrão tenha tendência a passar despercebida, sendo muito importante tentar compreender com detalhe o que a poderá explicar. O facto de o contágio estar agora a ocorrer em camadas mais jovens, a possibilidade de o vírus ser hoje menos agressivo, o aumento do número de testes, a deteção e tratamento mais atempado das situações, ou a melhoria da capacidade de resposta dos sistemas de saúde são algumas das hipóteses a considerar. Independentemente de, como é óbvio, devermos manter toda a prudência e continuar a adotar os comportamentos, individuais e coletivos, que ajudem a impedir um regresso à letalidade registada na primeira vaga.
quinta-feira, 10 de setembro de 2020
Atentismo económico
Como assinalou recentemente Ricardo Cabral, uma quebra realista de 8,5% do PIB nacional em termos nominais em 2020 será superior ao montante que o país receberá em subvenções do fundo europeu nos próximos anos: 18 mil milhões versus 15,3 mil milhões.
terça-feira, 8 de setembro de 2020
Têm todos a exata noção do que assinaram?
2. É também interessante tentar mapear, através da lista de subscritores, interesses e motivações em jogo. Sendo evidente o peso do ensino privado, nomeadamente de setores que há muito se movem contra a escola pública (com os seus cheques-ensino e contratos de associação), e em particular da Universidade Católica (com os seus privilégios injustificados), há sinais das lógicas de aproximação ao Chega como derradeiro recurso para o regresso da direita ao poder e casos, em número significativo, de catolicismo ultramontano e conservadorismo bafiento. Por último, admita-se uma hipótese benigna, haverá subscritores que não terão percebido bem o que estavam realmente a assinar.
3. De facto, terão todos os signatários noção dos temas tratados e debatidos (sim, debatidos) na disciplina? Não reconhecem nestes domínios (ver tabela) uma vertente essencial da formação de crianças e jovens em sistemas educativos de sociedades plurais e democráticas? Perfilharão, todos eles, a ideia de estarmos perante «questões que dizem respeito à vida privada» e que cabem por isso ao «papel educativo dos pais», como sugeriu Manuel Braga da Cruz? Ou, pelo contrário, consideram que são matérias inerentes à convivência em comunidade e ao respeito pela diferença e pelo outro, exigindo que a disciplina não seja facultativa (como se de uma religião se tratasse)?
4. Terão alguns subscritores sido vítimas da campanha de desinformação e deturpação dos factos associados ao caso de que parte este manifesto, como a que sugere que o Ministério da Educação emitiu um despacho a «chumbar os dois alunos» que não frequentaram a disciplina, por decisão reiterada dos próprios pais? Saberão que estes mesmos pais recusaram, até hoje, todos os planos de recuperação das aprendizagens que lhes foram propostos? Terão os signatários Cavaco Silva e Passos Coelho noção de que aprovaram e promulgaram, respetivamente, um Estatuto do Aluno que estabelece, como consequência última da não frequência injustificada de qualquer aula, a reprovação?
5. Por último, saberão todos os subscritores do manifesto que o pai dos referidos alunos, Artur Mesquita Guimarães, é conhecido por ter pertencido à comissão executiva da Plataforma Resistência Nacional (atual Plataforma Renovar), contando com o apoio pro bono, no seu processo contra o Ministério da Educação, «do advogado João Pacheco de Amorim, que foi cabeça de lista por Coimbra do Chega nas legislativas e é irmão do número dois do partido, Diogo Pacheco Amorim, que substituirá André Ventura durante a campanha para as Presidenciais», e que isto anda tudo ligado, a mimetizar o que já aconteceu noutras paragens?
segunda-feira, 7 de setembro de 2020
Para honrar a democracia
Os reforços de emergência, se não forem acompanhados de medidas estruturais para a criação de uma rede pública de apoio aos mais velhos, e se esta não assentar numa articulação profunda de equipas da Saúde e da Segurança Social, vão também consolidar opções erradas que acompanham este sector desde a sua génese. Uma delas é a escolha, que o Estado português mantém, de estar ausente da provisão (pública), limitando-se a financiar instituições sociais nas quais delega as competências de cuidar destas populações. O resultado é um agravamento das tendências assistencialistas, que misturam falta de formação e preconceitos, num contexto de uma insuficiente fiscalização pelo Estado dos cuidados prestados (a começar pelos rácios exigidos entre profissionais e utentes, em particular os mais dependentes, com grande prejuízo para a qualidade da sua saúde) (...) Nesta edição, Maria do Rosário Gama defende a criação de um «Serviço Nacional de Apoio aos Mais Velhos», criando oferta pública e potenciando a rede já existente. Pela capacidade de intervenção imediata e pelo conhecimento que certamente trará dos problemas vividos no terreno, é um caminho que urge seguir. Na senda de uma rede pública e universal que possa finalmente honrar a democracia.
sábado, 5 de setembro de 2020
Desconstruir os mitos do CHEGA em 17 pontos (Parte 4 - O CHEGA é contra o sistema e defende o povo?)
As primeiras três partes podem ser consultadas aqui, aqui e aqui.
1) 14) Os políticos são todos uns privilegiados e uns corruptos. O André Ventura é que está lá a bater-lhes forte. Quando alguém aponta uma crítica generalizada aos políticos, ao estilo “são todos farinha do mesmo saco”, a primeira questão que se deve colocar é “qual é a sua alternativa?”. É que uma posição, legítima, é apontar o comportamento oportunista e corrupto de uma determinada personalidade. Outra é estendê-la a toda a comunidade política eleita. Este argumento é sempre perigoso porque pretende espalhar a lama sobre todos os eleitos e, por extensão, sobre a própria democracia. O corolário do argumento é que precisamos de deitar toda essa tralha fora e eleger o salvador, o chefe, que irá expurgar o sistema de todos os seus podres e males (não soa nada a fascismo, pois não?). Nunca esclarecem por que motivo o chefe e os seus correligionários, uma vez eleitos, não teriam exatamente as mesmas pulsões corruptas de que acusam os outros. No caso de André Ventura e do CHEGA tudo se torna mais irónico porque as ações falam por si. O processo de reconhecimento de assinaturas no Tribunal Constitucional apresentou, num primeiro momento, várias irregularidades. Peixoto Rodrigues, dirigente e mais destacado membro das forças de segurança nas listas do CHEGA, foi aposentado compulsivamente por faltas injustificadas, após já ter estado envolvido num processo judicial por falsificação de passes. Mais importante: após o CHEGA defender no seu programa eleitoral “implementar a obrigatoriedade da exclusividade no exercício do mandato de deputado!” – sim, com ponto de exclamação e tudo – André Ventura, o próprio, acumulou o seu mandato com o lugar de comentador da CMTV e de consultor fiscal da FINPARTNER, consultora ligada a Caiado Guerreiro, esse sim, um real ponto de convergência do grande interesse económico e financeiro português. O mesmo André Ventura que virá depurar o sistema de todos os seus males. Estamos conversados. Igualmente destituída de sentido é a ideia de que os deputados são o pináculo do privilégio da sociedade portuguesa. Um deputado com exclusividade aufere um vencimento total ilíquido de 3994,73€, o que se traduz numa remuneração líquida de cerca de 2350€. É, por certo, um vencimento elevado para o contexto da economia portuguesa mas não é um salário milionário como a extrema-direita gosta de fazer crer. Ninguém enriquece sendo deputado. A verdadeira fonte das fortunas em Portugal está nos rendimentos de capital, em especial os não declarados e colocados em off-shores, nas rendas financeiras e do imobiliário ou nos prémios de gestão das pirâmides das grandes empresas. Não por acaso, o CHEGA, a propósito destas fontes de desigualdade, nada tem a dizer. Pelo contrário, conta até com alguns dos representantes destes interesses como seus financiadores.
sexta-feira, 4 de setembro de 2020
Aos democratas
«A campanha contra o PCP a pretexto da Festa do Avante (amanhã haverá outro pretexto) revela que a besta fascista começa a mostrar as garras com todo o seu cortejo de seguidores boçais e com grandes e perigosas cumplicidades no poder económico e, consequentemente, na comunicação social. O inimigo principal é o PCP, mas visa a própria democracia. É bom que os democratas não fiquem em cima do muro a ver o que acontece lá em baixo.»
Até dizer chega
Adam Smith, uma das principais referências da economia política liberal, já nos havia alertado no século XVIII: quando os capitalistas de um mesmo ofício se reúnem para conversar, geralmente é para conspirar contra o público. No último século, capitalistas de diferentes ofícios, ou os seus representantes, reuniram-se frequentemente para conspirar contra as democracias. Em Portugal também. A 18 de Junho de 2020, numa quinta em Loures, como relata uma investigação do jornalista Miguel Carvalho na Visão, foi servido um belo repasto a «seletos convidados», que «pesam muitos milhões na economia nacional e até além-fronteiras»: reuniram-se para conspirar com o deputado do Chega André Ventura; a questão do financiamento deste partido não terá estado naturalmente ausente. João Bravo foi o anfitrião. Este capitalista com negócios nas áreas da defesa, da segurança e dos incêndios, necessariamente entrelaçados com o Estado, afiançou: «desde 1974 que o País se afunda».
Desconstruir os mitos do CHEGA em 17 pontos: guião de conversa com um apoiante da extrema direita (Parte 3)
As partes 1 e 2 destas série podem ser consultadas aqui e aqui, respetivamente.
1) 8) Só o CHEGA defende os polícias. A esquerda só defende os criminosos. Este é um dos principais argumentos dos apoiantes do CHEGA. Merece, por isso, um cuidado especial. Comecemos pelo início: em democracia, qual é a função das forças de segurança? As forças de segurança são compostas por um conjunto de cidadãos (polícias) a quem se atribui a exclusividade do uso de mecanismos repressivos e armas de fogo com o estrito fim de deter quem se encontra a violar a lei aprovada pelos órgãos democráticos. Por outras palavras, a polícia representa a democracia e, por extensão, todos nós, e tem a função de zelar pelo cumprimento da lei. Sendo a utilização da força uma ação sensível em democracia, é fundamental que ação destes profissionais seja detalhadamente escrutinada. Qualquer excesso ou discriminação na utilização dessa força é uma falha de todos nós. De igual modo, tem de ser garantido que nenhum polícia se sente legitimado a fazer o papel que cabe à justiça. A sua ação está confinada ao registo de ocorrências e à detenção de cidadãos, quando isso se mostrar necessário. A força deve ser usada na estrita medida em que permite parar a violação da lei ou efetuar a detenção, e sempre em proporcionalidade face ao facto ocorrido. Se este for o ideal de atuação da polícia, creio que nenhum cidadão poderia discordar. O problema é que o CHEGA tem uma estratégia bem diferente. A estratégia de apoio público do CHEGA às forças de segurança pertence aos mais básicos manuais da extrema-direita. Em primeiro lugar, porque lhe permite ampliar a sua base de apoio. Ao contrário de um discurso flagrantemente racista ou xenófobo, o apoio à polícia é uma um registo popular com a qual muitas se pessoas se identificam. Com efeito, um passo elementar desta estratégia passa por aproximar-se de pessoas que se sintam atraídas por esse discurso, de preferência por meio de um movimento não diretamente conotado com o próprio partido. Foi o que o CHEGA fez através do Movimento ZERO. Movimento sem rosto e com grande acolhimento nas redes sociais, esta página ganhou apoio popular por alegadamente defender a melhoria das condições para os agentes das forças de segurança. Mas rapidamente passou a fazer um discurso político, de glorificação dos pobres agentes que têm de combater os crimes no terreno, por oposição aos corruptos políticos (curiosamente sempre ligados ao governo e aos partidos à sua esquerda) que apenas boicotam a sua ação e lhes negam direitos. Este discurso é instrumental como vetor de conversão da simpatia popular pela polícia num sentimento de que é nela, na ordem que representa e no seu exercício discricionário que reside a solução para a desordem que se faz sentir. A criação deste discurso – a par da criação da ideia de que Portugal é um país inseguro (mito tratado noutro ponto) – são essenciais para tornar o CHEGA um partido atrativo. Qualquer dúvida sobre a ligação do CHEGA ao Movimento ZERO ficou desfeita quando André Ventura teve direito a enfáticos aplausos e a ser puxado para a tribuna por membros deste movimento numa manifestação de polícias, mesmo contra a vontade de alguns dos sindicatos que lá se encontravam. A ilusão de que só CHEGA defende a polícia passa por confundir defesa com impunidade e ausência de escrutínio. Sempre que um agente ou um conjunto de agentes é acusado de ter feito uso abusivo da força, o CHEGA vê nisso a prova de que há uma perseguição à polícia. O caso mais evidente é o da esquadra de polícia de Alfragide. Vários polícias (talvez não por acaso todos membros de um sindicato cujo presidente acabaria nas listas do CHEGA) foram condenados por agredir um conjunto de cidadãos negros. André Ventura desvalorizou o acontecimento. Em reação às agressões feitas a uma cidadã negra da Amadora, Carla Simões, que surgiu com a cara deformada acusando a PSP de agressão após ser detida, André Ventura desvalorizou o caso e afirmou que “tanto quanto sabemos e a informação que temos, essas lesões são compatíveis com as técnicas que foram utilizadas, legítimas, de neutralização”, acrescentando que temos de decidir “se queremos estar do lado daqueles que sistematicamente estão contra as forças policiais com a paranóia do racismo ou se estamos do lado daqueles que nos defendem”. É esta falsa dicotomia que tem de ser denunciada. Não há nenhuma oposição entre ser solidário com os agentes das forças de segurança (como com outros funcionários públicos) e escrutinar as suas ações. Cada acusação de racismo ou de excesso de força deve ser analisada com o maior cuidado e, caso se demonstre verdadeira, deve existir uma atuação firme perante os abusadores. Quem abusa do poder que a democracia lhe confere para exercer as suas funções não merece ser polícia e deve ser objeto da maior condenação social. Deveriam ser os polícias os primeiros a reconhecer isto publicamente. A ideia de que qualquer investigação ao comportamento da polícia tem por base um sentimento de perseguição é falso. Pelo contrário, um elevado nível de escrutínio tem de fazer parte do contrato social que a democracia estabelece com aqueles a quem dá legitimidade para usar a força. O discurso que André Ventura defende é o da impunidade, que tem como inevitável consequência o avolumar de abusos. É o mesmo clima que nos EUA leva a que simples operações STOP se possam transformar em homicídios de pessoas indefesas por parte de elementos das forças de segurança. É um discurso perigoso. Mas é o que CHEGA defende quando, no ponto 31 do seu manifesto, propõe a extinção da figura legal do “excesso de legítima defesa”. Isto significa que qualquer ato de uma força policial, mesmo que desproporcional face à infração praticada, muito dificilmente seria punida. É franquear a porta da arbitrariedade e da justiça pelas próprias mãos. É criar uma discricionariedade no uso da força que é perigosa para os cidadãos e ameaça a democracia. Nenhum polícia pode ser racista. Nenhum polícia pode pertencer a organizações que apoiem políticas racistas. Nenhum bom polícia pode ser apoiante do CHEGA.
Domingo, na Feira do Livro de Lisboa
Tendo certamente em pano de fundo duas publicações recentes, as Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise, um trabalho coletivo do CES, e o Cuidar de Portugal - Hipóteses de economia política em tempos convulsos, de José Reis (acabado de sair na edição em papel), a Almedina organizou uma Mesa Redonda com António Guerreiro, Boaventura de Sousa Santos e José Reis sobre os impactos económicos e sociais da pandemia. É já no próximo domingo, dia 6, na Feira do Livro de Lisboa (Auditório SUL), a partir das 15h15. Estão todos convidados, apareçam.
quinta-feira, 3 de setembro de 2020
Desconstruir os mitos do CHEGA em 17 pontos: guião de conversa com um apoiante da extrema direita (Parte 2)
A parte 1 pode ser consultada aqui.
1) 5) Portugal é um país inseguro e as minorias étnicas e raciais são as principais responsáveis por essa insegurança. Portugal não é um país inseguro. Segundo o Global Peace Index, publicado pelo Institute for Economics and Peace, Portugal é o país mais seguro da União Europeia e o terceiro país mais seguro do mundo. De igual modo, não há nenhuma ligação direta entre a criminalidade violenta e a origem racial dos indivíduos que cometem esses crimes. Segundo dados de um estudo publicado pelo Observatório da Imigração, uma vez colocados em “condições equivalentes de masculinidade, juventude e condição perante o trabalho, os dois grupos tendem a tornar-se perfeitamente equivalentes”. Sustentar e difundir estas duas ideias só interessa à estratégia da extrema-direita, para quem é fundamental mobilizar o ódio contra um grupo social, culpando-o de todos os males, no lugar de atacar a verdadeira raiz dos problemas e desenhar soluções.
Prioridades especulativas
De facto, na sequência do aumento dos valores de aquisição e das rendas ao longo dos últimos anos, sentidos sobretudo nas grandes cidades (e nomeadamente em Lisboa e na AML), dir-se-ia que a crise pandémica poderia estar a contribuir, escrevendo por linhas tortas, para o desejável «arrefecimento» do mercado e a melhoria do acesso à habitação por parte de famílias de rendimentos intermédios e com menores rendimentos.
Desejável descida dos preços e melhoria do acesso? Sim, mas não, ao que parece, para todos os «agentes». De acordo com um artigo recente no The Telegraph, citado pelo Diário Imobiliário, as empresas inglesas do setor parecem estar muito interessadas em conhecer o «segredo de Lisboa, um dos poucos mercados principais do mundo em que os preços das casas ainda podem subir em 2020», ao contrário do que se espera aconteça com Paris, Madrid, Londres, Genebra ou Berlim, que terão neste sentido «um ano difícil pela frente». Um contraste que leva o periódico a perguntar porque não pode o mesmo «acontecer em Londres» e o que se poderá «aprender com uma cidade cujo mercado imobiliário está definido para reverter a tendência de queda».
quarta-feira, 2 de setembro de 2020
Desconstruir os mitos do CHEGA em 17 pontos: guião de conversa com um apoiante da extrema-direita (Parte 1)
1) O CHEGA não é de extrema-direita. É de uma nova direita e não é composto por fascistas. Parte da tentativa de normalizar o CHEGA passa por negar o seu rótulo de extrema-direita e de partido fascista. O partido diz-se da “nova direita” ou da “direita moderna”. Mas o que há ali de novo? Tudo cheira ao bafio das ideias antigas. O “chefe redentor” a quem é preciso dar poder incontestado para pôr ordem nisto (André Ventura, quem mais?), a ideia de que a democracia é um antro de corruptos que apenas se querem servir a si mesmos (ignorando que sempre os sistemas repressivos tiveram mais corrupção e nepotismo do que as democracias e que a aparência do contrário só se deve à censura), a ausência de qualquer proposta para além de declarar que o sistema está podre, o cultivar a ideia de que o sentimento de insegurança é constante (quando Portugal é considerado um dos países mais seguros do mundo), apontar a culpa de todos os males a um grupo em relação ao qual existe um ressentimento social prévio e enraizado (em função do contexto histórico, podem ser os judeus, os comunistas, os negros, os ciganos ou uma combinação destes grupos) e fazer uma apologia acrítica dos setores que detêm a função repressiva no contexto democrático (militares e forças de segurança), na esperança de conquistar o seu apoio e o daqueles que veem nesses elementos o garante do restabelecimento da ordem. O que há de novo na nova direita? Nada. A receita é a mesma de sempre, com as pequenas variações que o contexto e o momento histórico impõem. “Ah, mas eles dizem que não são fascistas”. Se um animal tiver quatro patas e miar, mas insistir que é uma galinha, no lugar de um gato, considere desconfiar. Abundam os exemplos de fascistas nas suas fileiras. Diogo Pacheco de Amorim, fascista confesso, será o substituto de André Ventura no parlamento. Foi um membro do MDLP, grupo de extrema-direita responsável por vários atentados no pós-25 de Abril. É um terrorista que tem responsabilidade moral em vários homicídios. Sim, é neles que vota quando vota CHEGA. De igual modo, abundam nas fileiras do CHEGA ex-membros do PNR e de organizações neo-nazis, como a organização de Mário Machado e a Nova Ordem Social. Muitos destas organizações estiveram envolvidas em crimes de sangue. Não, eles não são novos e inofensivos. São a velha e violenta extrema-direita de sempre sob outra roupagem.
2) Se vivemos numa democracia, cada um pode ter a sua opinião e ninguém tem nada a ver com isso. A ideia de que a democracia é um espaço que acolhe qualquer movimento político organizado é um mito. Todas as democracias passam por momentos constituintes em que definem o espectro de ideias e posições que estão dispostas a acolher. No caso português, esse momento constitucional foi o 25 de Abril e os termos do nosso acordo democrático ficaram estabelecidos na constituição de 1976. A constituição é muito clara na rejeição de organizações de raiz fascista O CHEGA está, por isso, fora do arco constitucional e do acordo democrático em que a nossa sociedade assenta. Que o partido tenha sido legalizado pelo tribunal constitucional é parco contra-argumento. Como nenhum partido se declara fascista à partida, a sua não legalização com esse fundamento é pouco eficaz. De igual modo, agir a posteriori, recorrendo à ilegalização, seria um ato complexo e possivelmente contraproducente. Com efeito, a denúncia de que o CHEGA está fora do nosso acordo democrático deve partir de cada um de nós.
3) Se a sociedade tolera a extrema-esquerda, também deve tolerar a extrema-direita. Para aumentar a aceitabilidade de ser e/ou se relacionar com alguém de extrema-direita, o artifício usado passa por estabelecer uma equivalência entre extremos. Há dois problemas com este argumento. O primeiro é de substância: não há nada de semelhante nas propostas das duas áreas políticas. A esquerda é favor da igualdade entre pessoas de todas as raças etnias e credos. A extrema-direita é a favor da discriminação desses grupos. A esquerda bateu-se historicamente pela liberdade e pela democracia em Portugal durante o fascismo, tendo inúmeros dos seus membros sido perseguidos, torturados e presos. A extrema-direita foi apoiante do regime que perseguiu, torturou e prendeu. A esquerda bate-se pela defesa dos serviços públicos universais, ancorada no princípio de que a educação e a saúde são direitos vitais, que não devem estar condicionados pela discriminação do preço e do mercado. O CHEGA defende no seu programa que a Saúde e a Educação devem ser privatizadas, o que se traduzira na negação do acesso desses bens a milhões de portugueses. Votar na esquerda é votar pela não discriminação, pela tolerância, pelos valores da liberdade e pela ideia de que o cuidado médico e a educação são direitos básicos em democracia. Votar na extrema-direita é votar na intolerância associada à cor de pele, à orientação sexual ou à nacionalidade e é contribuir para uma sociedade mais desigual. Sendo mais claro: votar no CHEGA é votar naqueles que impuseram a repressão fascista, a ti, aos teus pais ou aos teus avós. É ser cúmplice de um lado negro da história de Portugal. Votar na esquerda é votar em que combateu ativamente a repressão e se bateu pelo estado democrático em que passaste a viver ou em que nasceste. Aquele onde tu e os teus filhos são livres de pensar, escrever e falar. Há uma diferença, não há? A sociedade aceita a esquerda (e a direita democrática) porque os seus princípios assentam na dignidade e liberdade democráticas, a extrema-direita não. E isto leva-nos ao truque da forma: chamar extrema-esquerda à esquerda que está à esquerda do centro é um artifício semântico para sugerir que as suas propostas também estão na periferia da normalidade democrática. Mas não estão: achar que o Estado deveria ser mais presente na economia, que a precariedade laboral deveria ser menor ou que a saúde e a educação deveriam ser públicas não as coloca de fora da democracia. Discriminar com base na cor de pele, na etnia ou na orientação sexual, sim. Não se pode comparar o incomparável.
4) Então a Coreia do Norte e a Venezuela? Antes do conteúdo, é importante de novo olhar para a estratégia do argumento. Esta é uma pergunta que os apoiantes de extrema-direita gostam de lançar quando são confrontados com as atrocidades que o fascismo perpetrou ao longo da história, designadamente em Portugal. O truque está em não responder diretamente ao problema – “como é possível apoiares uma área política que é herdeira dessas atrocidades?” – mas em criar uma manobra de diversão, sugerindo que o interlocutor sofre do mesmo tipo de fraqueza moral. É uma não resposta, que em nada anula o problema de base. Mas podemos responder diretamente à insinuação de que o socialismo/comunismo e a extrema-direita partilham das mesmas fragilidades históricas e morais. Em primeiro lugar, há uma enorme diferença entre apoiar um posicionamento político cuja substância assenta na perseguição de grupos e em sentimentos anti-democráticos ou, por oposição, apoiar um posicionamento político que inspirou modelos que, em determinados momentos históricos, distorceram os seus princípios. O socialismo/comunismo é um posicionamento político fundado na ideia de que o desigual acesso a meios de produção numa sociedade capitalista determina relações de poder assimétricas, com profundas ramificações sociais, e que essa desigualdade deve ser combatida em nome de mais equitativas e fraternas relações entre os membros de uma sociedade. Em nada se relaciona com o fascismo que, na sua génese, desde o primeiro minuto, tem como objetivo a subjugação de toda a dissensão ao pensamento do chefe e a perseguição de minorias étnicas e políticas como um passo necessário de depuração social. Isto não significa que atos políticos condenáveis não tenham sido praticados por regimes políticos que se declaravam socialistas. Mas isso foi resultado de uma deturpação política, não de uma aplicação bem-sucedida de um projeto. No que se refere ao hipotético apoio dos partidos de esquerda a esses regimes, importa esclarecer que o BE, desde a sua fundação, sempre rejeitou dar apoio presente ou de memória histórica a qualquer país socialista assente no partido único. De igual modo, foi crítico da viragem autoritária que se operou na Venezuela nos últimos anos, organizando mesmo um dossier sobre o assunto no seu portal de notícias. O PCP, por contingências particulares do seu percurso histórico, tem mantido uma posição de alguma ambiguidade neste domínio. Mas o que importa reter é que, no contexto português e no seu programa, o património do PCP é de luta da liberdade e pela democracia, não se lhe podendo apontar nenhuma tentativa de supressão da democracia ao longo da sua história. Ao sacrifício de muitos dos seus militantes devemos a liberdade que temos hoje. Com efeito, fazer esta pergunta apenas serve para os elementos de extrema-direita lançarem a confusão e se escusarem a responder pelos crimes que a sua área política perpetrou.