quinta-feira, 31 de maio de 2012

Hierarquias

1. Quando as coisas apertam, os especuladores buscam refúgio nos Estados soberanos que estão no topo da hierarquia da economia politica internacional, fazendo cair as taxas de juro da sua dívida pública, tornando o seu financiamento ainda mais fácil e barato e revelando-nos a inanidade da narrativa sobre mundos planos. Dos EUA ao Estado hegemónico do Euro – a Alemanha – este padrão é claro em épocas de crise e, de resto, acabará com uma moeda incapaz de suster as fracturas abertas pelo desenvolvimento desigual promovido pelos mercados financeiros. É por estas e por outras que análises sobre dívida pública e sua (in)sustentabilidade que não tomem em consideração a soberania e poder dos Estados não nos levam muito longe.

2. Todas as semanas, às vezes mais do que uma vez por semana, a Comissão Europeia alerta os mais distraídos para a real natureza do euro e dos ajustamentos regressivos que estruturalmente impõe: cortar salários à boleia do desemprego de massas, cortar salários à boleia da redução sem fim de direitos laborais, tornar o trabalho tão barato quanto possível, graças a transacções cada vez mais desesperadas, destruir os Estados sociais que se construíram à escala nacional. Já ninguém pode dizer que não sabe.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Torcer destinos

 
Sem ligar aos relativistas de várias famílias ideológicas, a UNICEF decidiu construir um índice de privação infantil para os diferentes países europeus, que são aqueles para os quais existem dados, tendo por base o incumprimento em dois ou mais indicadores, entre 14, de bem-estar infantil: comer três refeições por dia, ter acesso a livros adequados e ter a oportunidade de festejar datas importantes, por exemplo, são indispensáveis para o florescimento humano. A decência de uma sociedade vê-se, em primeiro lugar, pela forma como trata das suas crianças, pela forma como inscreve a ética do cuidado nas suas políticas e instituições. Portugal era então, em 2009, uma das sociedades europeias mais indecentes, com 27,4% das suas crianças privadas de fontes essenciais de bem-estar. Em 2012, estamos certamente bem pior, dada a austeridade, ainda por cima com uma assimetria sem paralelo. Em sociedades tão fracturadas como a portuguesa, os discursos sobre elevadores sociais e sobre mérito não passam de um embuste gigantesco. As políticas que nos atolam num capitalismo medíocre fazem com que de pequenino se torça cada vez mais o destino...

Solidariedade imigrante

«As contribuições líquidas dos imigrantes para a Segurança Social em 2010 ultrapassaram 300 milhões de euros, o que "prova que Portugal ganha com a imigração", afirmou hoje o investigador João Peixoto, autor de um estudo nesta área. (...) O estudo indica que o número de estrangeiros contribuintes foi de 276.417 em 2010, ano em que o saldo do sistema de segurança social português com os imigrantes atingiu 316 milhões de euros (ME).»

Do "i" online de ontem, que assim retomou uma matéria que o Público havia já tratado, de forma mais exaustiva, no final de 2011. Quando se fala em «contribuição líquida», significa que os 316 milhões de euros apurados em 2010 resultam da dedução - face ao montante global de contribuições dos imigrantes para os cofres da Segurança Social (580 milhões de euros) - das despesas com prestações sociais e pensões atribuídas a estrangeiros residentes em Portugal (264 milhões de euros, que beneficiam toda a comunidade imigrante, esteja ou não empregada). Isto é, mais de metade das receitas provenientes do trabalho imigrante constituem receita líquida: os imigrantes pagam não só a sua protecção social, como contribuem para pagar a dos outros, a dos cidadãos nacionais. Querem melhor exemplo de sustentabilidade e solidariedade?

É por estas e por outras razões que o afluxo de estrangeiros constitui um claro sinal de desenvolvimento de um país (e a saída, de estrangeiros e nacionais, o seu reverso). Aliás, talvez um dia a «imigração» venha a adquirir o estatuto de indicador macroeconómico (através, por exemplo, do «saldo migratório»), tão ou mais digno (e relevante), que muitos dos indicadores tradicionalmente convencionados (como por exemplo a «balança comercial», que acaba por dizer bastante menos sobre a situação económica e social de um país).

terça-feira, 29 de maio de 2012

É sistémica...

Chamo a atenção dos moralistas para o continuado regabofe das “famílias portuguesas”, que dissipam os seus rendimentos, levando mesmo à uma redução, ainda que ligeira, da baixa taxa de poupança. Chamo também à atenção para a o aumento dos incumprimentos no crédito, o que confirma a irresponsabilidade de “famílias portuguesas” que andaram a viver acima das suas possibilidades. “Its payback time”, já dizia Lagarde.

Agora a sério porque a situação é tão séria num país de gente séria que até os moralistas andam mais discretos: na realidade, sabemos hoje que uma parte cada dia maior dos 40% de famílias que têm dívidas aos bancos, que eram geralmente das classes relativamente mais desafogadas, a tal parda média, tem agora problemas por causa da quebra de rendimentos gerada pela austeridade recessiva e pelo aumento do desemprego, como até o Banco de Portugal reconhece no seu último relatório de instabilidade financeira: “A evolução da situação financeira dos particulares foi marcada pela redução do seu rendimento disponível, associada à quebra das remunerações e das prestações sociais e ao agravamento da carga fiscal, e pela redução ligeira da taxa de poupança”.

A crise é mesmo “sistémica”, ou seja, é uma crise de um arranjo monetário e financeiro disfuncional. Apesar disso, o BdP, ideologicamente programado para enfatizar a “crise da dívida soberana”, continua insanamente “a apostar na concretização estrita do Programa”. Também convém passar discretamente a ideia de que os bancos são vítimas dos estados, os pobrezitos. Bom, o tal programa com p grande para um país com p pequeno, que se vai prolongar para lá de 2013, obriga precisamente um estado que não é soberano por construção monetária a comportar-se cada vez mais como uma família em crise. Isto quando estamos fartos de saber que tal não pode acontecer sem ameaçar cada vez mais as famílias realmente existentes com quebras de rendimentos e com a insolvência. E as empresas também. Este é apenas um dos muitos paradoxos da depressão gerada pelo esforço descoordenado por parte de todos os agentes económicos para poupar, comprimindo a procura, a actividade económica, os rendimentos e logo a própria poupança, que é o que sobra. E para um cada vez maior número não chega, nem sobra.

De resto, os bancos do centro e da periferia, que pressionaram para a adopção do tal “Programa”, estão também em muito maus lençóis, embora seja notável o desvelo público para com o sistema financeiro, sem contrapartidas que se vejam, ao contrário do que afirmam directores de jornais que mais parecem relações públicas da bancarrotocracia.

Interrogar a dívida em Coimbra

A Iniciativa pela Auditoria Cidadã à Dívida Pública (IAC) tem encontro marcado para Coimbra na próxima 5ª feira, dia 31. Na página da IAC pode ler-se:
Houve tempos em que alguém que deixasse de ser capaz de pagar os juros de uma dívida, ou de a amortizar, era reduzido à escravidão. Depois a humanidade concluiu que isto não podia ser e passou a ser proibido tomar a liberdade de alguém como garantia de pagamento de dívidas. Os credores tinham de assumir o risco de incumprimento e por isso cobravam para si um juro. E para a dívida de um país, não haverá também limites aos direitos dos credores? Deverá uma parte da população de um país ser reduzida ao empobrecimento para que se possa servir a dívida? Deverão as pensões de reforma deixar de ser pagas? Deverão ser cortados os subsídios de desemprego? Deverão ser vendidos a desbarato os bens do Estado? Além de saber se a dívida pode ser paga, devemos discutir se o deve ser «a todo o custo». Para isso, encontramo-nos em Coimbra, no dia 31 às 21h00, no Café St. Cruz, para um debate com o José Dias da Silva (Comissão Diocesana de Justiça e Paz), o Manuel Rocha (Músico), a Olinda Lousã (sindicalista do STEC e membro da Comissão de Auditoria Cidadã à Dívida Pública) e o Rui Duarte (Deputado do PS).
Evento no Fecebook: http://www.facebook.com/events/386810891360321/

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Portugal não é a Grécia, o Niger não é aqui

«Decca Aitkenhead (jornalista do The Guardian): Quando analisa as contas gregas e exige medidas que sabe podem significar que as mulheres não terão acesso à assistência no parto, que os doentes deixam de poder aceder a medicamentos que lhes salvam a vida, e que os idosos vão morrer sozinhos por falta de cuidados - deixa de pensar em tudo isso e concentra-se nas contas?
Christine Lagarde (directora-geral do FMI): Não, penso sobretudo nas crianças da escola de uma pequena aldeia no Niger, que apenas têm duas horas de escola por dia e que partilham, cada três, uma cadeira, felizes por estar a aprender. Tenho-as no meu pensamento o tempo todo. Porque acho que elas precisam ainda mais do que as pessoas em Atenas. (...) Sabe que mais? No que diz respeito a Atenas, eu também penso naquelas pessoas que estão sempre a tentar fugir aos impostos.
DA: E pensa mais nesses do que naqueles que estão a lutar pela sua sobrevivência, sem emprego nem serviços públicos?
CL: Penso em todos por igual. E acho também que todos têm que se ajudar colectivamente. (...) Pagando os seus impostos. Sim.
DA: E os filhos deles, que não podem ser responsabilizados?
CL: Bem, os pais deles são responsáveis, certo? Por isso devem pagar os seus impostos.»

Não era de certeza este o destaque que Christine Lagarde tinha em mente com a entrevista concedida ao The Guardian. A mensagem pretendida era seguramente outra («É tempo de pagar, não esperem complacência») e insere-se na estratégia de pressão que diferentes instituições internacionais (nomeadamente o FMI, BCE e Comissão Europeia) têm estado a exercer sobre a Grécia.

Às portas de um acto eleitoral que pode conduzir o Syriza à vitória, estas instituições temem, sobretudo, que seja finalmente desmascarado o «bluff» com que tentam intimidar os gregos (como se estes não fossem, afinal, quem mais pode sair beneficiado desse desenlace), e com que procuram, simultaneamente, disfarçar as suas responsabilidades pelo fracasso da receita austeritária (o que implica manter a todo o custo a tese da culpa dos gregos pela ineficácia dessa terapia salvífica, apesar de a Grécia ter procurado cumprir os compromissos estabelecidos, num grau muito maior do que é comum pensar-se).

Christine Lagarde sabe que o aprofundamento da recessão económica, a contracção dos serviços públicos e a degradação das condições de vida na Grécia constituem, acima de tudo, o resultado da austeridade imposta àquele país (e da qual o FMI é empenhado cúmplice). Foi aliás a própria instituição a reconhecê-lo recentemente e está aí, à vista de todos, o impacto da estratégia da troika no aumento galopante do desemprego: desde o início da intervenção, foram destruídos cerca de 600 mil postos de trabalho na Grécia (isto é, 600 mil cidadãos que não só deixaram de poder continuar a pagar impostos como passaram a ter que viver de subsídios de desemprego, entretanto encolhidos e emagrecidos). O falhanço consecutivo das optimistas previsões macro-económicas fixadas é, aliás, uma das mais sintomáticas evidências da fraude intelectual que constitui a doutrina austeritária e que a realidade trata constantemente de demonstrar (em Janeiro do corrente ano, por exemplo, as receitas fiscais gregas diminuíram cerca de 7% face a Janeiro de 2011, quando se previa que aumentassem cerca de 9% nesse período).

E Christine Lagarde sabe também, melhor que qualquer comum mortal, que a «ajuda» internacional à Grécia é essencialmente canalizada para o sistema financeiro nacional e internacional (sendo por isso reduzido o montante que é colocado à disposição do Estado grego). Surpreende-se com o aumento da fuga ao fisco? E tenta emendar a mão, dizendo que pretendia referir-se, com as suas declarações, à necessidade de cumprimento das obrigações fiscais, sobretudo pelos mais favorecidos? Deveria então consultar, por exemplo, um estudo da própria Comissão Europeia, que reconhece que as medidas de austeridade induzem um agravamento das desigualdades sócio-económicas nos países sujeitos a curas de ajustamento como as que o FMI continua a defender.

Para lá de tudo isto choca, evidentemente, a insensibilidade de Lagarde perante situações como a de pais que se vêem forçados a deixar os filhos em instituições de solidariedade, de mães que tentam acalmar bebés que choram, dando-lhes água para substituir o leite que não podem comprar, ou crianças que desmaiam durante as aulas por não terem comido. Quando é preciso invocar o exemplo do Niger, como faz Lagarde, para tentar desvalorizar o drama social e humano em que a Grécia se encontra, estamos certamente conversados quanto aos efeitos devastadores que decorrem da aplicação da receita austeritária a um país europeu, não estamos?

Resulta

Prémio de risco da dívida espanhola em máximos da era do euro. A banca e o Estado estão sempre entrelaçados, agora através de repetidas e mirabolantes operações financeiras de apoio aos bancos, que podem ser seguidas lendo, por exemplo, o Alphaville. Bom, mas esta bancarrotocracia promovida por esta integração liberal não interessa para nada. Fechemos mas é os olhos, tapemos mas é os ouvidos e repitamos muitas vezes: a Espanha não é Portugal, Portugal não é a Grécia e o problema, claro, é que nenhum destes países se assemelha à Irlanda. Em complemento, repitamos: a rigidez laboral e o descontrolo nas finanças públicas são os grandes problemas e por isso a austeridade e as ‘reformas estruturais’ são inevitáveis. Diz que resulta se as elites gemerem muito e os restantes fizerem muita força...

domingo, 27 de maio de 2012

Para lá do romance europeu

Num dos seus últimos artigos, Vicenç Navarro chama a atenção para a “corrupção do processo democrático europeu” nas instituições que comandam a nossa economia política, cujas actividades e prioridades são essencialmente determinadas pelas fracções do capital, em especial do financeiro, cujo horizonte de operação, independentemente das raízes nacionais que ainda contam, é europeu ou está mesmo para lá do continente. Alguns números: 15000 a 20000 lobistas em Bruxelas gastam cerca de 3000 milhões nas suas actividades de compra de influência para definir as inevitáveis regras do jogo que estruturam a construção de mercados, a principal especialidade europeia. O défice democrático em Bruxelas facilita imenso este processo. É por estas e por outras que a propaganda europeia, a que faz equivaler egoísmo a nacional, é enviesada: o míope egoísmo organizado do capital opera em múltiplas escalas e tende a ser mais forte ali onde a democracia e as luzes do debate e escrutínio públicos são mais fracas. O drama é que estes poderes europeus estão a minar as democracias na escala onde estas são mais fortes.

sábado, 26 de maio de 2012

La bancarrotocracia

O Estado espanhol prepara-se para entrar com o equivalente a 2% do PIB num Bankia que já foi abandonado pelo Rato. Os novos dirigentes fazem questão de dizer que não querem apurar responsabilidades. A bancarrotocracia está bem e recomenda-se em Espanha: basta lembrar que o ex-presidente do falecido Lehman Brothers de Espanha é agora o ministro da economia.

Este regime monetário e financeiro favorece o seguinte padrão nas periferias consideradas bem sucedidas até há pouco: liberalização financeira, influxos de capitais também promovidos pela suposta desaparição do risco cambial, endividamento numa moeda que não se controla, bolhas especulativas nos activos, em especial na construção, captura de reguladores pelo poder financeiro reforçado, convenção “milagre económico”, superávites orçamentais, sobreapreaciação cambial, défices na balança corrente, dependência externa crescente, rebentamento da bolha, crise financeira e económica, défices orçamentais e crise da dívida que não é soberana, constando-se que afinal a produtividade não cresceu, dados os sectores promovidos pela finança de mercado, ou que os bancos afinal não eram um modelo de boa gestão do risco e de robustez, até porque o banco central sem escrutínio democrático andava entretido a promover a redução dos direitos laborais, a sua verdadeira obsessão; seguem-se programas de austeridade recessiva que procuram socializar todos os fardos e que trancam as economias numa espiral depressiva.

Isto só acaba quando se recriar um regime de controlo de capitais, presença pública determinante na banca e soberania monetária com controlo democrático do banco central. Tem de se começar por algum lado: razão tem por isso a esquerda espanhola em não ter desistido de exigir a criação de um pólo bancário público robusto ao serviço do desenvolvimento (até o PSOE começa a defender tal ousadia perante a pressão da realidade...), parte de um processo mais vasto de reformas estruturais – sim, esta expressão tem de ser reconquistada pela esquerda – que ataquem as verdadeiras causas dos problemas.

Da sociopatia

 
Christine Lagarde declarou, numa entrevista ao The Guardian, que não está lá muito preocupada com as consequências sociais da austeridade na Grécia, traduzidas em grávidas sem acesso a cuidados de saúde, por exemplo, porque o que realmente a preocupa são as “crianças nas aldeias do Níger.” Para Lagarde, os gregos são especialistas em enganar o fisco e devem pagar por isso. E as crianças devem pagar pela irresponsabilidade dos pais. Só não acredita quem não conheça esta gente. Tenham ainda em atenção que Lagarde foi, enquanto ministra das finanças de um país com a sua banca altamente exposta, uma das arquitectas da intervenção externa que gerou o desastre socioeconómico grego. E não se esqueçam também que a grande especialidade do FMI, que esta antiga advogada de altos negócios agora dirige, é há muito desenvolver o subdesenvolvimento, minando as possibilidades de miúdos e graúdos nos países que caíram na armadilha de quem defende sempre os credores. De resto, a entrevista de Lagarde revela que esta gente fará tudo para que a saída da Grécia do euro se transforme numa lição para todos os que tenham veleidades de desenvolvimento soberano. Pode ser que falhem neste intento. De vez em quando falham. E quando falham aumentam as nossas possibilidades.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Euro-inferno, euro-paraísos

Os melhores amigos de Gaspar andam surpreendidos com a evolução da taxa de desemprego, mas as suas as explicações só podem surpreender quem não conheça a lógica económica da troika, alinhada com a mais insana teoria económica que por aqui vamos tentando desmontar: se há desemprego, por definição, é porque os trabalhadores auferem salários demasiado elevados e têm demasiados direitos. Austeridade recessiva e procura são palavras proscritas neste euro-inferno. Entretanto, segundo a Der Spiegel, os amigos alemães de Gaspar planeiam criar ainda mais euro-paraísos fiscais e de regulação, a que chamam zonas económicas especiais, para os momentos mais predadores dos seus capitais nas periferias desvalorizadas que controlam.

A realidade, as contas e o bluff da pressão europeia


O cartoon de Luís Afonso no Público de hoje. De facto, segundo estas estimativas, 165 mil milhões é o montante adicional que os contribuintes europeus terão de suportar caso a Grécia saia do Euro (quase três vezes superior ao encargo decorrente da sua permanência na moeda única). Percebe-se assim bem que, ao contrário do que se pretende fazer crer, o poder negocial não se encontra só de um lado. Como se tornam claras as razões inconfessadas em que assenta a chantagem que tem vindo a ser exercida sobre o eleitorado grego.

Sem ciência não há futuro

«A aposta na Ciência configura uma das soluções mais eficazes para a saída da crise, promovendo o desenvolvimento do país e a qualificação cultural, científica e social dos seus cidadãos, o que, a par do desenvolvimento da tecnologia, permitirá relançar a economia nacional e criar emprego.
(...) O incremento da produção científica e tecnológica nacional, em quantidade e em qualidade, que tem sido reconhecido e premiado a nível nacional e internacional, deve-se à dedicação de milhares de bolseiros e investigadores nos últimos dez anos. Os bolseiros asseguram a maior fatia da investigação produzida, asseguram uma parte substancial das necessidades de docência das universidades, muitas vezes a título “voluntário”, e asseguram uma série de outras funções, incluindo administrativas.
Apesar disso, os bolseiros de investigação científica são um alvo geralmente invisível da precariedade laboral. (...) São jovens recém-licenciados, mas são também investigadores altamente experientes de pós-doutoramento. (...) Vivem com “contratos” de bolsa a 3, 6 ou 12 meses. Em Portugal, os bolseiros, não progridem na carreira (porque a carreira não existe), não têm direito a contrato de trabalho e os seus vencimentos não são atualizados há mais de 10 anos. Os bolseiros não estão protegidos socialmente quando as bolsas terminam. (...) Nunca os licenciados e doutorados representaram uma percentagem tão elevada dos desempregados.
(...) Os investigadores, bolseiros de investigação, presidentes de Centros de I&D e restantes cidadãos consideram que esta situação não é compatível com a dignidade, o esforço e o mérito daqueles que asseguram a investigação científica e tecnológica do país, e sublinham que ela inviabilizará, a curto prazo, uma condição fundamental para a sua recuperação económica e social: a produção científica e tecnológica.»

Da carta aberta ao ministro Nuno Crato, «Sem ciência não há futuro», hoje difundida e que pode ser lida na íntegra e subscrita aqui (via Filipa Vala, no facebook).

A precariedade é, desde há muito, o lado sombrio do assinalável progresso que o sistema científico português conheceu nas últimas décadas. Mas hoje, às mãos da estratégia míope de Gaspar e Santos Pereira (assente na compressão dos custos do trabalho como factor de fomento da competitividade), aumenta consideravelmente o risco de erosão e degradação das condições de produção científica em Portugal. Só um investimento sustentável em ciência e tecnologia nos coloca, de facto, nos antípodas do futuro que a actual estratégia de empobrecimento permite antever.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Ladrões de bicicletas...

No âmbito do ciclo “Economia e Cinema” da Cinemateca, António Bagão Félix foi convidado a escolher um filme que exprima um olhar cinematográfico sobre a economia. A escolha recaiu sobre o filme de Vittorio de Sica. Apesar de ter sido realizado em 1948, “Ladrões de bicicletas” continua bastante atual, conforme explicou à Antena1 Bagão Félix.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

More jobs for the (Chicago) boys

As previsões da OCDE indicam que o desemprego estará nos 16% em 2013, outro ano de uma recessão sem fim. Graças às políticas de austeridade, o desemprego aproxima-se oficialmente e a passos largos do primeiro milhão. Na prática, sabemos que já hoje o ultrapassou. O que recomenda a OCDE? Mais austeridade. Típico. Esta gente não aprende ou aprende demasiado lentamente. Ainda há muito pouco tempo a OCDE andava a recomendar, vejam lá, subidas nas taxas de juro por causa da inflação. A OCDE também já foi a campeã da desregulamentação das relações laborais, até os seus próprios estudos começarem a indicar que as dinâmicas de criação de emprego não passam por aí, antes pelo contrario. A teoria económica convencional, a economia zumbi, serve para ocultar estas chatices.

Rumemos do conforto de um think-tank pago pelos estados em Paris para Lisboa, mais concretamente para a Almirantes Reis, onde fica a sede do Banco de Portugal, o centro do consenso neoliberal em Portugal. O cada vez mais poderoso Banco de Portugal tem mais um clone para a política do façam força que eu gemo e nem disfarça: chama-se conselho das finanças públicas, uma instituição absolutamente desnecessária, até porque a AR já dispõe, e bem, de uma unidade técnica de aconselhamento nesta área. Insere-se este conselho na famigerada tendência para criar instituições ditas independentes do poder político democrático para orientar, “disciplinar” e conduzir as políticas económicas; instituições necessariamente dependentes do ponto de vista ideológico da tal economia zumbi.

Trata-se também aqui de criar mais lugares para economistas que, como bem sublinha João Galamba, acham a escolha democrática em matéria económica uma maçada que pode vir a parar a sua cassete de sempre: austeridade e mais austeridade, cortes na despesa, ou seja, nos serviços públicos, com mais ou menos diferenças irrelevantes na margem, já que o apoio à linha de desastre seguida é total. Querem sempre mais recursos, claro, agora para fazer ainda mais previsões furadas, já que a incerteza radical, a natureza endógena das variáveis com que lidam e a instabilidade gerada pelas políticas prescritas são inescapáveis. Para enfrentar a chata da realidade, mais vale estar vagamente certo do que rigorosamente errado, como dizia Keynes.

O desemprego para os outros deve, segundo economistas protegidos, ser acompanhado por ainda mais “reformas estruturais” para aumentar a insegurança laboral também dos outros. Facilitar os despedimentos só aumentará ainda mais o desemprego e as desigualdades, claro, sendo que a crise indica que despedir é demasiado fácil por esse continente fora, comprimindo ainda mais a procura. Pouco importa, já que o conta é fazer com que os salários baixem, mesmo que depois não haja poder de compra, mas apenas famílias insolventes, empresários viciados em estratégias medíocres e alguns economistas pagos para nos dar lições de moral.

Carta aberta


«Nas eleições de 6 de Maio o povo grego exprimiu democraticamente a sua vontade, manifestando a sua oposição às condições impostas pelo programa de assistência financeira. Essas condições lançaram os gregos no desespero e na miséria. Pela sua brutalidade, as medidas do programa estão a dilacerar a sociedade grega, provocando rupturas incompatíveis com uma recuperação social e económica que salvaguardem padrões de vida aceitáveis para a dignidade de todo o povo.
Goradas as negociações para a constituição de um governo, os gregos vão regressar às urnas no próximo dia 17 de Junho. Trata-se de uma decisão enquadrada nas regras democráticas daquele país. Porém, está a assistir-se da parte dos mais altos representantes das instâncias internacionais a declarações que em nada facilitam uma solução ajustada à situação que se vive naquele país. Pelo contrário, as tomadas de posição já conhecidas vão no sentido de influenciar e condicionar a liberdade de escolha e decisão dos gregos, ao colocar na agenda política, ao arrepio dos tratados europeus, a sua saída da zona euro com todas as consequências daí decorrentes.
Por outro lado, no mesmo sentido da consulta eleitoral na Grécia, os resultados das consultas eleitorais realizadas recentemente em França, na Alemanha, em Itália e no Reino Unido deram um sinal inequívoco de que também naqueles países as populações estão a rejeitar as medidas de austeridade que lhes querem impor em nome de um ajustamento orçamental cujos exemplos já conhecidos em nada estão a contribuir para melhorar as economias, nem sequer se revelam úteis para atingir o apregoado objectivo de resolver o problema das suas dívidas públicas.
Por estas razões, os signatários desta carta aberta entendem que nas actuais circunstâncias se deve expressar todo o apoio e solidariedade ao povo grego, exigindo o cancelamento das medidas de austeridade que lhe foram impostas. Entendem também que os governos europeus não devem poupar esforços junto da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu para serem encontradas soluções que aliviem a tensão vivida em toda a Europa. Exigem, finalmente, que sejam respeitados os resultados das eleições de 17 de Junho enquanto escolha democrática do povo grego.»

Carta aberta, a dirigir aos Presidentes do Parlamento Europeu, da Comissão Europeia, do Banco Central Europeu e do Fundo Monetário Internacional, hoje divulgada e que pode ser subscrita aqui.

Do gradualismo em política

«Quando nos anos 90 do século passado o movimento estudantil avisava que se estavam a abrir as portas à desigualdade no acesso e frequência do ensino superior público, chamaram-nos fantasistas; quando avisámos que a introdução de propinas traria consigo a elitização do ensino superior, chamaram-nos catastrofistas; quando dizíamos que a justiça se fazia nos impostos e não com a introdução de novas taxas, disseram-nos que não sabíamos do que falávamos.
Vinte anos depois temos um ensino superior público destinado a quem consegue pagá-lo. Quem tanto enche a boca com o discurso meritocrático, devia abri-la agora: o ensino superior público não é para os melhores mas para aqueles que conseguem pagá-lo. A desigualdade está aí, servida com brutalidade.
Há vinte anos dizíamos que uma lei injusta não podia ser lei. Porque perdemos a batalha, porque a solidariedade nos foi recusada, o resultado é hoje este: 30 mil estudantes perderam a bolsa, 10 mil abandonaram o ensino superior e o futuro de milhares de estudantes e do país está em suspenso.»

Andreia Peniche (Arrastão)

Tal como a introdução de taxas moderadoras na saúde, que surgiram envoltas no argumento de que apenas pretendiam combater as falsas urgências e os abusos na activação de serviços hospitalares, também a introdução de propinas foi inicialmente apresentada como tendo apenas em vista reforçar o financiamento da acção social e da promoção da qualidade no ensino superior. Contudo, é hoje cristalino que estas mudanças foram apenas o primeiro passo, mas decisivo, para levar a cabo um plano de progressiva desdemocratização, contracção e mercadorização dos serviços públicos de educação e saúde.

Tantas vezes apostada na defesa intransigente de posicionamentos irrepreensíveis no plano dos princípios e na formulação das propostas ideais, talvez a esquerda devesse prestar mais atenção à eficácia dos métodos de transformação gradualista em política. Ao contrário de um conhecido ditado, permitir que uma aparente «derrota em derrota» pudesse mais eficazmente conduzir «à vitória final».

terça-feira, 22 de maio de 2012

Modesta proposta

 
Na terceira versão da sua modesta proposta para salvar o euro no quadro de um “europeísmo” dito “descentralizado” – com europeização da supervisão bancária, da emissão e gestão da dívida pública até 60% do PIB de cada país, as tais euro-obrigações, e do planeamento de uma política de investimentos com escala europeia suportada por instituições como o Banco Europeu de Investimento – Yanis Varoufakis e Stuart Holland apresentam numa frase o mecanismo final de desintegração do euro: “um euro numa conta bancária grega tem um valor esperado inferior a um euro numa conta bancária espanhola, que, por sua vez, está abaixo dum euro numa conta alemã.”

Passados mais de dois anos foi aqui que nos conduziu a brilhante resposta europeia de austeridade a uma crise bancária, de dívida que não é soberana, de falta de investimento e de desequilíbrios entre os países. E insistem no erro. A interacção entre estas crises do neoliberalismo europeu é cada vez mais tóxica numa zona que no seu todo é mais desigual do que os EUA sem ter internamente os mesmos mecanismos redistributivos entre zonas ricas e pobres. E, já se sabe, a desigualdade dificulta a cooperação e mina a confiança. Nunca é tarde para o bom senso keynesiano à escala da moeda e para lá dela, seja a moeda qual for, mas não creio que dramatizar o fim do euro, como fazem os autores, vá introduzir qualquer bom senso nas elites e levar ao abandono das politicas que nos levaram até aqui, politicas que estão bem inscritas na arquitectura deste euro e na correlação de forças que favoreceu. Assim como não compreendo a ilusão de que a europeização das politicas de supervisão bancária leve a uma qualquer redução da influência do capital financeiro nas políticas de regulação, antes pelo contrário: em Bruxelas há mais lobbies do que em Washington, beneficiando da ausência de democracia e do necessário afastamento das classes populares e seus movimentos. Bem sei que pragmaticamente os autores não querem mexer nos tratados no actual contexto e percebo bem as suas razões.

De resto, o obrigatório incumprimento grego dentro do euro por iniciativa do país, na linha de Varoufakis, vai desafiar gente que não está habituada a ser desafiada, acentuando, em conjunto com os desestabilizadores movimentos de capitais, tensões que podem ser produtivas ou podem não ser. Num cenário de incerteza radical, o contramovimento de protecção requererá intervenção acrescida dos estados, ali onde está a democracia, ainda que esventrada. Julgo que é partindo daí que se pode esperar reconstruir uma coordenação modesta depois do parêntesis deste euro disfuncional.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Economia política

Hoje, não admitimos mais a possibilidade de construir um País forte e rico dissociado de melhorias nas condições de vida de nossa população, nem tão pouco acreditamos mais na delegação da condução de nosso crescimento exclusivamente às forças de autorregulação do mercado, crença, aliás, que Maria da Conceição Tavares sempre corretamente criticou. Vivemos uma grande transformação, uma benigna subordinação da lógica econômica à agenda dos valores indissociáveis da democracia e da inclusão social.

Dilma Rousseff na entrega do mais importante prémio científico brasileiro à economista de origem portuguesa Maria da Conceição Tavares. Um prémio para uma carreira na linha da melhor economia política do desenvolvimento, o estruturalismo; um prémio para alguém profundamente engajado com a causa do desenvolvimento inclusivo. Uma oportunidade para lembrar essa mensagem de três minutos que todos os jovens e menos jovens economistas devem ouvir.

 

domingo, 20 de maio de 2012

Então sairemos



Se ficar no euro significar a destruição da Grécia, sairemos. 

Sofia Sakorafa, uma popular deputada do Syriza que veio do Pasok.

A questão da saída/fim do euro está cada vez mais presente no debate, até porque a realidade imparável de mais de 20% de desemprego e de colapso económico causados pela austeridade tem muita força, acelerando a erosão de duas décadas de propaganda ideológica e de complacência intelectual por todas as periferias. Antes de revisitar alguns dos seus termos, gostaria de dizer que do ponto de vista político me parece haver convergências fundamentais e mobilizadoras a montante em partidos e movimentos transformadores e plurais – a necessidade de uma profunda reestruturação da dívida, usando-a também como instrumento negocial de periferias que recusam a austeridade imposta de fora e aceite pelas elites de dentro; a necessidade de não anatematizar nenhuma posição a jusante, descrevendo-a como “nacionalista” ou como “euro-idiota”, por exemplo.

A jusante há então muito que só o debate e a aceleração da história clarificarão, quer sobre a possibilidade de usar esta arma negocial e ficar dentro do euro, quer sobre as vantagens de ficar no euro mesmo que algumas das reformas propostas sejam aceites – penso na emissão de um arremedo de euro-obrigações, a tal metáfora de um Plano Marshall que até num PSD desmemoriado faz o seu tardio caminho, assim se reconhecendo implicitamente o fracasso da austeridade. O problema é que neste contexto político e nestas estruturas europeias, no quadro de um tipo de federalismo que já é o nosso desde que aderimos ao euro e transferimos soberania para instituições supranacionais anti-democráticas, estamos mais perto do projecto de um Trichet para reforçar os mecanismos de governo directo, dito de excepção, das periferias pelo centro europeu do que qualquer outra coisa. De resto, como se conseguirá tocar num BCE pirómano ou resolver o problema dos desequilíbrios estruturais nas relações económicas, o que exigiria, por exemplo, quebrar as sacrossantas e liberais regras do mercado interno, por forma a permitir políticas de discriminação fiscal e outras políticas industriais?

Encarar o fim de um euro que se revela irreformável de cima a baixo é encarar um processo complexo, tantas são as variáveis em jogo e as modalidades de saída e de reconstrução de um princípio de coordenação monetária entre nações soberanas: taxas de câmbio fixas, mas ajustáveis, em função dos desequilíbrios, o que exige controlo de capitais e coordenação entre bancos centrais e entre estes e um qualquer fundo monetário europeu, por exemplo.

Entretanto, podemos considerar alguns exercícios comparativos que têm sido apresentados, usando sobretudo a Grécia, a Argentina e a Islândia. Já sabemos que estes dois últimos países, muito diferentes entre si, até em dimensão, recuperaram de uma crise brutal porque enfrentaram os credores internacionais, usaram a desvalorização cambial e reinstituíram controlos de capitais. Um tripé com várias declinações institucionais potenciais.

São exemplos que nos dizem algo que já tínhamos obrigação de saber pela experiência portuguesa na democracia até à década de noventa: a desvalorização cambial pode ser um instrumento muito útil de ajustamento, no quadro do controlo de capitais, para corrigir desequilíbrios externos, aumentando exportações e diminuindo importações e gerando crescimento e emprego, lembrando que o pico do desemprego foi inferior a 8% nesse país distante.

Assim se protegem muito mais os trabalhadores e a recuperação do seu poder de compra do que com a alternativa da desvalorização pela austeridade, do desemprego de um milhão de pessoas no nosso país, da desregulamentação laboral ou do sacrifício dos funcionários públicos portugueses, que no euro já perderam 30% do seu poder de compra, com os privados a copiar sem que o desemprego dê sinais de abrandar, claro.

A comparação da Grécia com a Argentina, em termos de capacidade exportadora, ou com a Islândia, em termos de recuperação económica e de quebra do poder de compra dos salários, é esclarecedora. Três gráficos ilustrativos:


Note-se que a recuperação da capacidade exportadora argentina foi só uma parte, e não a mais importante, de uma recuperação que dependeu essencialmente do mercado interno.
Aconselha-se então a leitura das análises comparativas dos economistas Bill MitchellMike Weisbrot, versões heterodoxas com convergências com as análises mais convencionais de Krugman ou de Roubini (em português). É claro que a Argentina e a Islândia tinham e têm moeda própria. A Argentina tinha e tem um sistema financeiro relativamente pouco integrado, mas a Islândia não.

Os custos de transição para a nova moeda são certamente elevados no curto prazo, muito dependendo da capacidade política interna e externa revelada numa situação em que não há saídas fáceis. O fim do euro nas periferias poderá facilitar uma ruptura com o processo de financeirização, com o comando de bancos ditos privados, com a “liberdade” irrestrita de capitais e com todo o cortejo de desequilíbrios económicos assim gerados, colocando a banca pública e o Banco Central de novo no centro de uma acção monetária e financeira mais funcionais. Sem combater a maldição do financiamento por poupança externa, associada a uma moeda demasiado forte num quadro de liberalização financeira, continuar-se-á numa trajectória de dependência que acabará com qualquer vestígio de soberania democrática e de possibilidade de desenvolvimento.

Encarar a possibilidade desta experiência monetária ter um fim nacional criará outra margem de manobra política para forçar a renegociação de tudo o que conta com coragem, dignidade e esperança.

sábado, 19 de maio de 2012

Ponham-se finos

 
A única estratégia clarificadora e que pode dar esperança nas periferias é a da tensão com as instituições europeias e com os poderes centrais, tal como temos advogado desde o inicio da intervenção externa, mas que em Portugal tem tido pouco eco, com excepção de vozes corajosas como Pedro Nuno Santos e que tiveram de enfrentar o estupor de elites medíocres. Uma estratégia política de recusa da austeridade e da predação que quanto a mim exige abertura intelectual para todos os cenários progressistas, tal como aqui os temos exposto. Bom, tem a palavra Alexis Tsipras, por enquanto apenas líder do Syriza: “A nossa primeira escolha é convencer os nossos parceiros europeus de que é do seu próprio interesse não cortarem com o financiamento (…) Se não conseguirmos convencê-los – porque a nossa intenção não é tomar medidas unilaterais – e se a Europa avançar com medidas unilaterais da sua parte, ou seja, se cortar o financiamento, então seremos obrigados a deixar de pagar aos nossos credores, a entrarmos em suspensão de pagamentos aos nossos credores”.

Combater a desigualdade é combater a crise

A literatura económica sobre os efeitos macroeconómicos do crescimento das desigualdades não tem parado de crescer nos últimos anos numa ciência social que tem uma sabedoria convencional que ainda defende, invocando John K. Galbraith, que os pobres não têm incentivos para trabalhar porque têm demasiado dinheiro, mas já os ricos é porque não têm dinheiro suficiente.

O último trabalho de Engelbert Stockhammer, um economista que tem identificado empiricamente o paradoxo salarial no seio da Zona Euro e que explica parte da sua medíocre performance económica geradora de desemprego, aponta para alguns dos mecanismos responsáveis pelo impacto macroeconómico negativo do crescimento das desigualdades económicas: da quebra da procura, dada a maior propensão a consumir por parte das classes populares com rendimentos estagnados ou em queda, passando pela consolidação de modelos nacionais de crescimento guiados pelo endividamento ou pelas exportações, respostas desequilibradas à tal quebra da procura agregada, até à maior propensão para especular por parte dos mais ricos, que têm de fazer alguma coisa ao dinheiro que concentram graças às políticas feitas para favorecer o seu poder.

 É por estas e por outras que James K. Galbraith (tal pai, tal filho) defende que o controlo da desigualdade e controlo da instabilidade financeira são a mesma coisa. Para termos um retrato socioeconómico ainda mais completo podemos cruzar estas ideias com o que se sabe sobre o impacto das desigualdades económicas nos problemas sociais, da maior desconfiança social ao reforço do Estado penal, parte do maior desperdício de recursos em trabalho de monitorização, repressão e controlo nas sociedades mais desiguais.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Ideias e interesses

A taxa de desemprego já quase quadruplicou nos últimos 12 anos. Primeiro foi o euro e a estagnação, duplicação, depois foi a crise internacional, o euro e a austeridade associada, nova duplicação. É claro que neste período a fraude da “rigidez do mercado” de trabalho, o outro nome ideológico para a real redução dos direitos laborais e para o esforço para reduzir salários directos e indirectos, teve sempre uma influência desmedida nas políticas públicas, tanto maior quanto mais importantes são as causas reais do desemprego que não são enfrentadas, antes pelo contrário. Neste contexto, maiores facilidades para despedir, por exemplo, só fazem aumentar os despedimentos. Associado à fraude da rigidez está um diagnóstico equivocado e desumano sobre as motivações individuais oportunistas e sobre salários demasiado elevados dos trabalhadores, tanto maiores quanto mais na base estes estão. A política de tentar usar o subsídio de desemprego, de que tantas centenas de milhares estão excluídos, para subsidiar o abaixamento dos salários e para criar incentivos para o desempregado aproveitar as supostas oportunidades que emergirão em contexto de profunda quebra da procura é tributária desta fraude conveniente. Se houve genuína surpresa com a mais recente e acentuada subida do desemprego só pode ter vindo de gente com o juízo toldado por ideias sem sentido, mas com surpreendente influência, em parte porque servem interesses tão poderosos.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Um europeísmo realista


A crise da zona euro parece encaminhar-se a grande velocidade para um desfecho ditado pela dinâmica especulativa dos mercados financeiros, sendo esta acelerada pelo impasse político em que a Grécia caiu após as recentes eleições e pela recusa da Alemanha, da Comissão e do BCE em admitir que a política de austeridade é contraproducente. Fala-se agora numa agenda para o crescimento, uma retórica que está longe de obter consenso e, mesmo que venha a traduzir-se em decisões, está ainda mais longe de se concretizar em investimentos reais com efeitos significativos sobre a criação de emprego em Portugal. Por agora ainda não se reconhece que a crise é muito mais privada do que pública e que é sistémica já que une devedores do Sul e credores do Norte.

Em Julho de 2009 escrevi no Ladrões: "De facto, uma moeda única não é sustentável quando as grandes desigualdades de nível de desenvolvimento dos estados envolvidos não são contrabalançadas por uma política económica comum. Confirmando esta objecção de fundo, o Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) aguentou-se mal no passado recente e teve de ser flexibilizado. Agora a recessão global em que estamos mergulhados está a criar as condições que vão precipitar o fim do próprio euro. Custa-me fazer esta afirmação, mas o meu europeísmo é um projecto político realista e não uma ideologia que transporta para fora da realidade. E a realidade a que não podemos fugir é que a Alemanha está a criar as condições perfeitas para acabar com o euro."

Decorridos mais de dois anos de crise do euro, ainda há muitos europeístas que tomam os desejos pela realidade. Alguns acreditam que a Alemanha até poderá deixar cair a Grécia, contra a qual construiu uma narrativa de culpabilização extrema. Já quanto à Irlanda, Portugal, e sobretudo a Espanha, todos esperam uma viragem de política que evite o colapso. Mas estão enganados. Nos próximos meses vão ter de se render à evidência. Vão ter de reconhecer que a saída para esta crise não se fará por reformas a partir do que existe, antes exige uma refundação do projecto europeu.

O tempo das ilusões já se esgotou. Talvez o Norte da Europa possa suportar perdas da ordem dos 400 mil milhões de euros em créditos de diferente natureza concedidos à Grécia. Mas há que contar com a corrida aos bancos após a bancarrota grega e com os efeitos de contágio que produzirá. Ora a recente nacionalização do Bankia, o quarto maior banco de Espanha, criado pela fusão de várias caixas de aforro que não foram reestruturadas, com 10 milhões de clientes e cerca de 37 mil milhões de euros em crédito imobiliário tóxico, é um sinal precursor da enorme escala das perdas que vêm a caminho. Como em Portugal, a recessão em Espanha vai fazer crescer o crédito malparado que se adicionará aos créditos imobiliários tóxicos, ou seja, ainda avaliados aos preços anteriores à explosão da bolha.
Percebe-se a crescente preocupação dos EUA com a crise europeia.

Não me parece realista pensar que as dívidas públicas alemã, holandesa e finlandesa vão explodir para financiar a reestruturação do sistema financeiro espanhol e recapitalizar os bancos credores europeus, a que terá de se juntar o financiamento do estado espanhol e o segundo pacote à Irlanda e a Portugal. A emissão de eurobrigações e uma inundação de moeda criada pelo BCE, para financiar tudo o que fosse preciso, permitiria ganhar o tempo necessário para enfrentar a dimensão estrutural desta crise. Acontece que os eleitorados do Norte não parecem dispostos a caminhar em direcção ao federalismo. Um europeísmo realista deveria reconhecer que a União Europeia só sobrevive se for libertada desta união monetária insustentável.

(O meu artigo de hoje no jornal i)

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Desenvolvimento desigual

Ao comparar a Zona Euro com várias uniões monetárias potenciais, dos países da América Latina aos países começados pela letra M, este gráfico chama a atenção de uma forma ousada para uma questão simples e em que temos insistido: a heterogeneidade imparável da Zona Euro, o tal desenvolvimento desigual que as forças de mercado e a ideologia neoliberal aprofundam, não tem paralelo. Isto ser-lhe-á fatal, até porque torna cada vez mais difícil a cooperação política robusta que é requerida, há já vários anos, para corrigir os defeitos de fabrico do euro, através de uma espécie de New Deal ou Plano Marshall; termos que hoje são metáforas para um voluntarismo típico dos Estados Unidos e só possível com ligação entre moeda e orçamento na escala apropriada. Seja como for, Estados Unidos é coisa que não teremos deste lado, já que a integração assimétrica do euro cristalizou todas as desigualdades e não será o idealismo, na mais generosa e minoritária das hipóteses, de elites apostadas num centralismo mais ou menos democrático que tapará o buraco. Talvez seja mais prudente seguir o economista Jacques Sapir e “reaprender os princípios da coordenação entre nações soberanas, que são os berços da democracia, sobre as ruinas de uma cooperação construída no desprezo pela opinião dos eleitores” (Faut-il-sortir de l’euro?, 2012, p. 10).

Portugal na Encruzilhada da Europa - Começa na Sexta


18 e 19 de Maio de 2012 - Entrada Livre
Faculdade de Ciências - C3 - Metro Campo Grande

PROGRAMA DA CONFERÊNCIA

Sexta, 18
21h - Conferência de Abertura
Jan Toporowski (London School of Oriental and African Studies)
Moderação: Mariana Mortágua

Sábado, 19
9h - Sessão Plenária

O que falta na arquitectura do Euro?
José Castro Caldas (Centro de Estudos Sociais)
Ricardo Cabral (Universidade da Madeira)
Mariana Santos (Economista, Bloco de Esquerda)
Moderação: José Gusmão

11h - Painéis:

1. A Austeridade e o(s) Direito(s) do Trabalho
Isabel Moreira (Constitucionalista, Deputada independente PS)
Nuno de Almeida Alves (Observatório das Desigualdades, CIES-ISCTE)
Catarina Martins (Deputada, Bloco de Esquerda)
Ana Cordeiro Santos (Centro de Estudos Sociais)
Moderação: Ricardo Moreira

2. Há esperança para um Estado Social Europeu?
Bastiaan van Apeldoorn (Vrije Universiteit Amsterdam)
José Reis (Centro de Estudos Sociais-FEUC)
Pedro Filipe Soares (Deputado, Bloco de Esquerda)
Moderação: Helena Pinto

15h - Portugal, Europa e as Alternativas
Marisa Matias (Vice-Presidente do PEE, Eurodeputada do BE)
Eugénio Rosa (Economista, Partido Comunista Português)
Pedro Delgado Alves (Presidente da Juventude Socialista, Deputado)
Ricardo Cabral (Universidade da Madeira)
Moderação: Cecília Honório

17h – Encerramento
Francisco Louçã