quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O trilema


Realizadas as manifestações convocadas pela CGTP e pelo movimento Que Se Lixe a Troika, tudo indica que a falta de uma proposta credível para romper com a actual depressão, a falta de uma luz ao fundo do túnel, é a razão fundamental para a desmobilização das pessoas. Contudo, são cada vez mais visíveis os sinais de que há uma cólera sufocada que, mais tarde ou mais cedo, acabará por irromper com violência no espaço público. Na Grécia dos nossos dias, como na Alemanha dos anos trinta, a violência é sintoma de um enorme fracasso político à esquerda: a incapacidade de produzir uma alternativa mobilizadora. A situação em que nos encontramos foi descrita pelo economista Dani Rodrik sob a forma de um trilema. Dos três vértices do trilema - globalização, estado-nação, democracia - as sociedades contemporâneas apenas podem escolher dois.

A globalização comercial e financeira, consagrada no Consenso de Washington, logo após o fim da União Soviética, foi progressivamente imposta nos vários continentes através do FMI, do BM e da OMC. Na Europa, os estados colocaram-se sob a tutela dos mercados financeiros e as várias dimensões do Estado social europeu foram sendo reconfiguradas em nome da "competitividade". Nesta nova ordem, a política económica contra cíclica tornou-se anátema, o trabalho foi desprotegido, a legitimidade dos direitos sociais foi posta em causa e a finança desregulada infiltrou os maiores partidos, controlando agora apertadamente os estados. Por conseguinte, a escolha entre diferentes projectos de sociedade ficou praticamente eliminada já que a ideologia neoliberal e os interesses de uma minoria induziram a escolha dos vértices globalização - estado-nação. A situação de tutela que hoje vivemos, sujeitos a "condicionalidades" que não dependem dos resultados eleitorais, faz-nos sentir na pele o que vários povos de outros continentes há muito sabem: a globalização esvaziou a democracia no estado-nação.

Tratando-se de um trilema, há mais duas escolhas possíveis. Uma delas é o binómio democracia - integração, neste caso deixando cair o estado-nação e transferindo para um nível superior os mecanismos da democracia representativa. Esta opção não existe à escala mundial mas é o sonho de muitos europeístas, pelo menos como a meta de um processo lento e cheio de obstáculos. Tendo abdicado da soberania económica através da criação de uma moeda única, de um banco central independente e do Tratado Orçamental, os estados pertencentes à Zona Euro poderiam dar mais alguns passos de natureza federal: eleger o Presidente da Comissão, criar um orçamento federal com transferências dos países mais ricos para os que estão em dificuldades, mudar o mandato do BCE para que financie os estados mais frágeis e lhes torne mais favoráveis a taxa de câmbio e a inflação, etc. A crise que estamos a viver já tornou evidente que a Alemanha nunca aceitará este caminho, embora esteja disposta a camuflar essa recusa com cedências de menor alcance, sempre tentando ganhar tempo. O SPD, o novo parceiro de Angela Merkel no governo, será muito útil para camuflar a sua estratégia de completa submissão da UE ao ordoliberalismo. Porém, como observaram Kevin O'Rourke e Alan Taylor num recente artigo académico (Cross of Euros), "Uma coisa é levar mais longe as instituições federais dos Estados Unidos em tempo de crise, dentro do que já é um país, outra coisa é fazê-lo numa união de 17 estados independentes."

Perante a urgência de encontrar uma saída para esta crise, ainda podemos virar-nos para a terceira escolha, o binómio estado-nação - democracia, deixando cair a Zona Euro e protegendo-nos da globalização. É este o caminho de saída da crise que as esquerdas se têm recusado a assumir. Por isso é que continuamos sem luz ao fundo do túnel. E também é por isso que, em França, Marine Le Pen vai à frente nas sondagens.

(O meu artigo no jornal i)

EUA arrasam política económica alemã e europeia

Aqui, páginas 24 a 27, infelizmente só em inglês. As razões por detrás deste ataque à austeridade são múltiplas e variadas, mas o receio que a Zona euro seja o rastilho para uma nova crise global é real. De forma certeira, é na esfera política que os riscos são identificados.

Análise de mercado? Só com economia política.

O Banco Espírito Santo tem actualmente ganhos potenciais de 100 milhões de euros em títulos de dívida portuguesa que comprou durante a crise política, quando o seu valor desceu (e, consequentemente, o juro implícito subiu). O BES comprou assim títulos "baratos" na esperança de uma subida do seu valor futuro devido, digo eu, à resolução da crise política. Porém, neste caso não me parece que tenha sido só "esperança". Sabemos que Paulo Portas foi pressionado pelos banqueiros nacionais, Marcelo Rebelo de Sousa dixit. Ou seja, o BES tem claramente informação e, sobretudo, poder para influenciar a definição do preço dos títulos que compra, lucrando com isso. A crise não é igual para todos..

Que força é esta?

O chamado “guião da reforma do Estado” confirma claramente como a política neoliberal de reconfiguração das funções do Estado ao serviço de interesses privados, a tal ida ao pote, se sustenta presentemente numa grande fraude já várias vezes desmontada – o que chamam de “despesismo” teria estado na origem da crise –, à qual Paulo Portas junta outra da sua lavra – os recessivos e regressivos cortes na despesa seriam afinal um meio para recuperar a soberania perdida. Como o documento indica logo a abrir – de resto, o tamanho da letra para levar a redacção acima das sempre simbólicas cem páginas é toda uma pobre encenação –, a austeridade permanente está inscrita no “ser euro”, “ser euro”, reparem bem, no tratado orçamental e em toda a restante tralha a que querem dar dignidade constitucional, o que retira em permanência toda a margem de manobra no campo política pública de que é feita a soberania, a condição necessária da democracia. Neste colete-de-forças europeu, a direita ganha e ganhará sempre, sempre. Nem precisa de se esforçar muito. Este documento fraquinho e particularmente esticado é paradoxalmente uma demonstração da sua força, da força das estruturas.

Hoje: «Rejeitar o orçamento, afirmar alternativas»


«O Orçamento de Estado (OE) para 2014 é o mais gravoso para a sociedade portuguesa desde que vive em democracia. A ser aprovado na Assembleia da República e posto em ação pelo Governo, este OE cumprirá um dos objetivos políticos centrais da austeridade – a suspensão prática do regime democrático por imposição de uma legitimidade da exceção e da necessidade.» (O orçamento da Revisão do Regime).

«O processo de transformação do modelo de sociedade levado a cabo pelas políticas inscritas no Memorando da Troika reduz a esfera de atuação do Estado até à inexistência. As privatizações são um elemento chave de transferência de recursos públicos para as mãos de privados.» (Vende-se país com tudo incluído).

«A dívida pública é, simultaneamente, causa e consequência da proposta de Orçamento de Estado para 2014 (OE14). É em nome da dívida que se justificam as opções políticas de um governo que privilegia o cumprimento cego dos compromissos e exigências dos credores financeiros, em detrimento das responsabilidades para com os cidadãos.» (OE 2014: o que é que a dívida pública tem a ver com isto?).

«Quando se escrever a história dos tempos de retrocesso que estamos a atravessar, o ministro Nuno Crato surgirá como um dos membros do actual governo – responsável pelas pastas da Educação, Ensino Superior e Ciência – que melhor conseguiu conciliar as duas dimensões essenciais do plano de transformação do país que se encontra em curso.» (O Orçamento da Educação: ao serviço das desigualdades e do empobrecimento).

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Os cães, os gatos, os «guiões de reforma do Estado» e a direita que não se leva a sério

Há cerca de uma semana, foi o número promovido por deputados da JSD, que propuseram referendar a coadopção por casais do mesmo sexo. O objectivo era, evidentemente, distrair as atenções da opinião pública de mais um Orçamento de Estado que não resolve, antes agrava, os problemas do país. Há dois dias, a iniciativa coube ao CDS-PP, que pela mão da ministra Assunção Cristas avançou com uma nova palhaçada para distrair as massas da discussão orçamental, lançando para a praça pública a ideia de uma nova lei com restrições ao número de cães e gatos por apartamento.

Não deixa de ser curioso que partidos supostamente liberais - e que por isso repudiam, por natureza, a omnipresença do Estado - queiram que este espete o nariz na casa das pessoas, ao ponto de estabelecer um limite de animais de estimação por metro quadrado. Nada que seja, contudo, propriamente novo nem estranho.(*) Sabemos bem, de facto, que no que toca à relação do Estado com os cidadãos, a direita que nos governa é muito selectiva: ao mesmo tempo que defende a livre iniciativa na economia e o mercado sem restrições, pugna por um Estado com mão-de-ferro em matéria de comportamentos, costumes, códigos de conduta e escolhas dos cidadãos (como demonstram as posições em matéria de criminalização da interrupção voluntária da gravidez, orientação sexual, eutanásia ou consumo de estupefacientes).

Esperar-se-ia à partida, portanto, que pelo menos nas questões económicas a maioria de direita fosse coerente com o liberalismo que apregoa. Desiludam-se. Basta lembrar, por exemplo, a justificação dada pelos deputados Virgílio Macedo (PSD) e Hélder Amaral (CDS-PP) na discussão do Orçamento de Estado de 2013, sobre a necessidade de manter o IVA de 23% na restauração. Em seu entender, não se tratava de uma forma de obter mais receitas fiscais mas sim de regular, através do Estado, «o excesso de oferta». Ou seja, tudo ao arrepio da máxima difundida aos sete ventos, segundo a qual o mercado, quando liberto das constrições impostas pelo Estado, se auto-regula.

A terceira tentativa de distracção da atenção da opinião pública aconteceu hoje e foi protagonizada por Paulo Portas, com a apresentação do «Guião da Reforma do Estado». Não é este o momento para analisar o famigerado documento, cuja data escolhida para a sua apresentação pública (um dia antes do início da discussão do OE de 2014) já diz muito sobre a importância que o vice-primeiro-ministro atribui ao fardo incómodo que carrega há meses. Apenas valerá a pena assinalar, neste contexto, que as propostas em matéria de educação confirmam uma vez mais o real entendimento que esta direita que não se leva a sério, e os interesses que representa, têm sobre a iniciativa privada entre nós: sempre e sempre abrigada à sombra do Estado, refastelada a sorver, alarvemente, o dinheiro dos contribuintes.


(*) Durante a ditadura, na cidade do Porto, os fiscais dos bairros camarários tratavam de controlar zelosamente os mais ínfimos pormenores do quotidiano dos moradores. Nas fichas em que reportavam as ocorrências que entendiam ser dignas de registo (e para além de «apontamentos» sobre a vida amorosa dos residentes), podiam encontrar-se anotações como as seguintes: «tem uma galinha ilegal», «deu o cão», «possui animais», «frangos a divagar», «não retirou as andorinhas de casa», «autorizada a ter uma cadela», «tem dois pintos o que não é permitido» [Alexandre Alves Costa, Álvaro Siza, Carlos Guimarães, Eduardo Souto Moura, Manuel Correia Fernandes (1979), «SAAL/NORTE - Balanço de uma experiência», Revista Cidade/Campo, nº2. Porto: Edições Ulmeiro (pág. 29)].

Definhamento

Número de emigrantes em 2012 foi superior ao total de nascimentos. É um país que definha. Na verdade, quem viverá e terá filhos num “país” sob tutela externa e austeridade permanentes e que, a fazer fé no plano das elites para as próximas décadas, terá de continuar a transferir, de baixo para cima e de dentro para fora, uma parte relevante da riqueza gerada para pagar uma dívida impagável nos actuais termos? Quem, no fundo, poderá viver e procriar numa prisão feita de dívida? Esta é talvez a questão económica, política, social, demográfica, o que quiserem, central, de vida ou morte nacional. Reestruturação da dívida, alguma inflação, para erodir o valor real da dívida, e criação de emprego com direitos, o que requer recuperação de instrumentos de política económica perdidos com o euro: uma combinação que pode ajudar a superar o actual círculo vicioso do desenvolvimento do subdesenvolvimento e garantir a a esperança num país sem aspas. Como isto anda tudo ligado, aposto que nesse novo contexto por criar, as pessoas começarão a ter mais filhos cá dentro e deixarão de emigrar também para poderem ter filhos lá fora.

Mais um flop


Afinal o novo ministro da Economia, Pires de Lima, ao contrário do que tinha afirmado na entrevista que deu a semana passada à revista “Visão”, acredita em milagres. Para o novo ministro vivemos um milagre económico e, para o comprovar, apresentou alguns indicadores, entre os quais destacou os números das exportações. Pires de Lima, que sobre ele próprio diz que se “criaram expectativas manifestamente elevadas”, quer tanto provar que afinal não foram assim tão elevadas que acaba como muitos outros a ser manifestamente exagerado na análise dos pobres sinais de “recuperação económica”. Fosse mais atento, ou mais sério, teria dito, como os dados do INE nos mostram, que 70% do crescimento das exportações é explicado somente pelo aumento da capacidade de produção da refinaria de Sines. A este propósito, seria também importante referir que as exportações de combustíveis integram uma elevada componente de importações, e portanto representam um reduzido valor acrescentado.

Já agora, e ainda sobre este assunto, é também prudente não esquecermos que a nova refinaria de Sines está perto de atingir a sua capacidade máxima de produção, o que devia ser um alerta para um ministro que decidiu apoiar-se nos números das exportações. Mas Pires de Lima também se esqueceu de dizer que o investimento tem sido revisto em baixa desde que foi apresentado o OE para 2013. Se quando este foi apresentado a queda prevista para 2013 era de 4,2%, no primeiro orçamento rectificativo a redução do investimento foi revista em baixa para menos 7,6% e agora no segundo rectificativo novamente revista em baixa para menos 8,5%. É que o mesmo ministro que agora destaca os números das exportações afirmou em Março deste ano que “os políticos que não se convençam que as exportações vão salvar as empresas. É tempo de as pessoas que estão a construir este processo de ajustamento terem um discurso e uma prática mais próxima da economia real” e que ao “Expresso” deste fim-de-semana disse que “sem procura interna é um bocado complexo esperar que as empresas que operam em Portugal invistam”. Pires de Lima, que é ministro de um governo que vai retirar mais 4 mil milhões à economia em 2014, revela-se mais um como muitos outros: diz uma coisa na oposição mas está disponível para fazer outra diferente quando no poder.

(crónica publicada às quartas-feiras no jornal i)

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Economia pós-autista

Com a crise financeira internacional de 2008, um terramoto atravessou não só a economia como também a teoria económica. A rainha perguntava na London School of Economics: "Como é que ninguém viu aproximar-se a crise?" Mas tal como a economia, onde as mudanças foram ténues, também a teoria económica, na sua versão dominante, pareceu imune à crise. O escandaloso Nobel a Eugene Fama , o tal que teorizou que os mercados financeiros agem de forma eficiente, mostrou bem como a crise não alterou nada do que se aprende nos departamentos de economia um pouco por todo o mundo.

Felizmente, existem estudantes de economia realmente interessados em aprender como a economia funciona e que exigem pluralismo teórico nas suas salas de aula (dos austríacos aos marxistas). Movimentos de estudantes têm aparecido nos últimos 10 anos que lutam pela revisão dos “autistas” currículos universitários onde só o paradigma neoclássico tem lugar. O mais recente é a “Associação por uma Economia pós-crise” da Universidade de Manchester que chegou às páginas do The Guardian (aqui e aqui). A luta destes estudantes é exemplar. Depois de se organizarem e recolherem assinaturas a pedir pluralismo teórico e análise da presente crise económica no seu curso, o departamento de economia pediu uma proposta de novo currículo para macroeconomia a um dos seus professores. O programa era impecavelmente pluralista, mas foi rapidamente vetado pela direcção por não cumprir "requisitos científicos". O assunto parecia arrumado. Contudo, os estudantes organizaram um módulo alternativo com a colaboração do dito professor. Perto de metade dos estudantes inscritos na cadeira de macroeconomia (à volta de 200) frequentam agora este curso feito à margem da Universidade. A seguir.

A austeridade não passa


segunda-feira, 28 de outubro de 2013

CDA: Debater o orçamento do «vale tudo»


«Este é o Orçamento do vale tudo. Vale apresentar previsões e metas irrealistas. Vale fingir que o corte de salários e pensões tem alguma coisa a ver com as reformas que o país precisa para sair da crise e se desenvolver. Vale negar que a recessão continuada destruirá competências e adiará os investimentos necessários ao crescimento da economia.

Tudo vale porque o governo e a troika não podem reconhecer que a sua estratégia falhou – que a economia portuguesa está ainda mais debilitada, a sociedade portuguesa desestruturada e as finanças públicas cada vez mais insustentáveis. Porque o governo espera por um milagre vindo da Europa que evite a humilhação de um segundo resgate. Porque é preciso aproveitar o choque e a desorientação para prosseguir uma agenda de desmantelamento do Estado Social. Porque é preciso continuar a pôr o interesse dos credores à frente da dignidade das pessoas. Vale tudo porque quem gere os destinos da Europa não se sente ameaçado pelo sofrimento que impõe a outros povos.

Os fundamentos e as consequências da proposta de Orçamento de Estado para 2014 têm de ser compreendidos e debatidos. A busca de alternativas, por difíceis que pareçam, também passa por aqui.»

A convocatória do debate promovido pelo Congresso Democrático das Alternativas e que terá lugar na próxima quinta-feira, 31 de Outubro, a partir das 21h00 no Auditório do Liceu Camões, em Lisboa. Estão todos convidados.

Lou Reed: Small town



«Em tempos de colorido "paz e amor", quando o vimos surgir com os Velvet Underground, formados em 1965 (...), mostrou o outro lado: o submundo violento e interdito de dealers e agarrados, a sexualidade sob todas as formas, a erupção de vida que pulsava no outro lado do espelho, para onde o conforto burguês e o moralismo hipócrita se recusavam a olhar.»

(Mário Lopes, no Público de hoje)
 

domingo, 27 de outubro de 2013

Economia humana

Há uma questão central que é a renegociação da dívida, em prazos e avanço de juros, porque está a ser paga com juros absolutamente acima do razoável. Esta é condição sine qua non para dispormos de meios que nos permitam valorizar os nossos recursos naturais e humanos e criar uma dinâmica de desenvolvimento que permita um aparelho de Estado capaz de responder por direitos fundamentais como a universalidade da educação, uma saúde de qualidade, a segurança. (...) Defendo uma redução drástica de horários de trabalho, para acomodar a situação dos jovens desempregados. Evidentemente isto supõe que se aceite na empresa uma repartição mais equitativa dos salários e que o total das remunerações seja atribuído aos trabalhadores numa proporção que relacione o salário mínimo com o salário do topo. Hoje temos remunerações de quadros superiores que são manifestamente desproporcionadas. Sem alterar os custos de pessoal da empresa seria possível, e a meu ver desejável, não só por ser mais equitativo, mas por ser um elemento dinamizador da própria economia, que se introduzissem regras de proporcionalidade nos salários. Depois haveria todo um conjunto de medidas que se podem tomar, como o trabalho a meio tempo, a dois terços do tempo... Acho fundamental dar lugar aos mais novos. 

Excertos da entrevista da economista Manuela Silva ao Público de hoje. Manuela Silva é coordenadora do Grupo Economia e Sociedade (GES) da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP) da Igreja Católica. Uma voz inconformada. Vale a pena ler a sua avaliação da proposta de Orçamento de Estado para 2014: de facto, “empobrece o presente” e “hipoteca o futuro”.

Adenda. Informaram-me que apesar de ter nascido no âmbito da CNJP, o GES é um grupo autónomo desde há dois anos e por isso as suas posições só comprometem os membros do Grupo. Fica feita a correcção.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Hoje



Hoje à tarde, por todo o país. Mais informações aqui.

Arcade Fire - After Life


O tão esperado novo álbum dos "Arcade Fire", "Reflektor", já anda por aí.

Isto não está, nem vai, correr bem

É sabido que o problema estrutural da zona euro que deu origem à crise esteve foram os desequilíbrios externos dos países pertencentes ao euro. No quadro da moeda única, os países do Sul foram acumulando défices, os países do Norte excedentes. Os excedentes do norte serviram para financiar os défices do Sul. Tomando a zona euro como um todo, a sua posição era, no entanto, razoavelmente equilibrada em relação ao exterior. Entretanto, com a imposição dos programas de austeridade e empobrecimento geral dos países do Sul, a posição internacional da zona euro alterou-se. Os excedentes do Norte mantém-se, mas os défices do Sul quase desapareceram (ver primeiro gráfico). O resultado é um excedente crescente da zona euro em relação ao exterior. Como pode ser uma posição excedentária um problema?


Duas razões. Primeiro, se a zona euro se mantiver sem grandes sobressaltos internos (na verdade, um cenário inverosímil), a tendência será para o euro se valorizar em relação a outras moedas. O tão propagandeado motor da recuperação económica do Sul, as exportações, estará assim comprometido, por maior que seja a “desvalorização interna”. Segundo, os excedentes externos têm como natural contrapartida a acumulação de activos (créditos) da banca dos países excedentários da zona euro sobre o exterior (ver segundo gráfico abaixo). Em caso de sobressalto financeiro, estes activos estarão em risco sem que a banca europeia possa, ao contrário do que acontece hoje dentro da União Europeia, garantir politicamente o reembolso dos seus créditos. Assistimos assim a um retomar dos mesmos mecanismos que estiveram na origem da crise financeira internacional, com a banca europeia numa posição bem mais vulnerável. Isto não vai correr bem.

Para onde vão os nossos impostos?


Prosseguindo os exercícios feitos em anos anteriores, o Nuno Moniz criou, para o Orçamento de Estado de 2014, uma aplicação que permite conhecer, com bastante detalhe, a repartição dos impostos em função da composição dos agregados familiares e dos seus níveis de rendimento salarial. Assim, uma família com dois filhos menores e com rendimentos líquidos mensais na ordem dos 2.000€ (em que, por exemplo, cada membro do casal aufere um rendimento de 1.000€), desconta em IRS quase 30% dos seus proventos brutos.

Deste volume global de impostos (818€ mensais), a maior fatia vai para o Ministério das Finanças (379€), que supera assim, em volume, os impostos afectos aos ministérios da Segurança Social (131€), Saúde (107€) e Educação e Ciência (88€), que perfazem no seu conjunto cerca de 326€ mensais. Aliás, esta família contribui por mês para a gestão da Dívida Pública (102€) quase tanto como para o Ministério da Saúde (107€) e acima do que dela recebe o Ministério da Educação e Ciência (88€). E quem continua a achar que o equilíbrio das contas públicas se resolve com simples cortes orçamentais no núcleo duro do Estado democrático (da Assembleia à Presidência da República, de Tribunais como o Constitucional ou de Contas, passando pelas transferências para as Regiões Autónomas e o Poder Local), retenha este número: a hipotética família de que partimos desconta mensalmente em impostos cerca de 42€ para todos os órgãos e organismos que integram esta área (Estado).

Mas há um outro dado que importa sublinhar e que resulta da comparação entre o exercício de 2014 e o de 2013. Se calcularmos a distribuição percentual, por funções e ministérios, dos respectivos impostos pagos anualmente por esta família (9,8 mil euros), verificamos que apenas as Finanças aumentam o seu peso relativo no conjunto (de 38,2 para 46,4%), passando as principais áreas de despesa social do Estado (Saúde, Educação e Segurança Social) de um peso relativo de 44,1% (2013) para 39,8% (2014). Ou seja, desconfiem quando vos repetirem, pela enésima vez, que «têm que decidir que tipo de Estado Social» estão dispostos a pagar. E concentrem-se no problema central, o dos encargos com uma dívida crescentemente insustentável e que devora a capacidade produtiva e a coesão social do país.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Redução ao absurdo


Que grande momento no Prós & Contras da passada 2ª feira, quando ficámos a conhecer a mais recente estratégia argumentativa do campo pró-austeritário para promover a inacção, ou de preferência extinção, do Tribunal Constitucional: a redução ao absurdo. Basicamente, Ricardo Arroja alegou que vivemos num período cuja excepcionalidade deverá sobrepor-se à Constituição e, como argumento, invocou o pretenso facto do Tribunal Constitucional há muito não assegurar o cumprimento do artigo 105, nº 4, que segundo Arroja diz algo como “O Orçamento prevê as receitas necessárias para cobrir as despesas”, pelo que, ipso facto, a existência de défices públicos constituiria em si mesma uma inconstitucionalidade reiterada. Passo seguinte na argumentação: se o Tribunal Constitucional pode deixar passar esta inconstitucionalidade, pode com certeza deixar passar outras – sobretudo todas aquelas que ele, os seus correligionários e o Governo defendem. A julgar pelos comentários no sempre divertido blogue luso-austríaco da nossa praça, o brilhantismo desta pérola argumentativa terá levado ao êxtase os defensores da austeridade supra-constitucional permanente.

Pela minha parte, ainda me estou a rir com aquele que terá sido certamente um dos argumentos mais disparatados da história do debate político-económico-constitucional em Portugal. É que Ricardo Arroja não conhece, ou esqueceu-se de referir, o resto do nº 4 do artigo 105:

4. O Orçamento prevê as receitas necessárias para cobrir as despesas, definindo a lei as regras da sua execução, as condições a que deverá obedecer o recurso ao crédito público e os critérios que deverão presidir às alterações que, durante a execução, poderão ser introduzidas pelo Governo nas rubricas de classificação orgânica no âmbito de cada programa orçamental aprovado pela Assembleia da República, tendo em vista a sua plena realização.”

Ou seja, a interpretação do artº 105 que Ricardo Arroja & Cia. pretendem fazer passar como correcta – segundo a qual todo e qualquer défice público e toda e qualquer contracção de dívida pública seriam inconstitucionais – consegue, de uma penada:

·         ignorar a classificação consagrada dos empréstimos contraídos pelo Estado como constituindo receitas creditícias (e dos reembolsos desses empréstimos como constituindo despesas);
·         implicar a inconstitucionalidade da própria existência do Instituto de Gestão do Crédito Público, cujo objecto estatutário (nº4) consiste na “(...) gestão da dívida pública directa e do financiamento do Estado (...); 
·         tornar incompreensível o debate em torno da inclusão na Constituição, ou em lei de valor reforçado como acabou por se verificar aqui há meses, de enunciado normativo relativo ao saldo orçamental primário equilibrado; e ainda
·         ter como consequência que o nº 4 do artº 105 da CRP se contrarie a si próprio, na medida em que estabelece expressamente a possibilidade de algo (o recurso ao crédito público) que, segundo a interpretação por parte de R. Arroja de parte inicial do artigo em questão, estaria vedado por esse mesmo artigo.

Em suma, este economista não só tem um conhecimento, digamos, limitado da estrutura orçamental (na Proposta de Lei do Orçamento para 2014, por exemplo, lá estão, com o código 12.00.00, quase 130 mil milhões de Euros de novos empréstimos no mapa das receitas), como considera que a Constituição é inconstitucional. Tendo em conta a estratégia argumentativa, é um sucesso estrondoso de Ricardo Arroja: conseguiu reduzir-se a si próprio ao absurdo.

Marx hoje

Começa hoje em Lisboa (FCSH) o II Congresso Internacional Karl Marx. Mais informações aqui.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

“Aguentem lá mais um bocadinho, que isto vai ao sítio” ou a estratégia da mentira

O governo está a basear a defesa da proposta do OE para 2014 numa ideia central: a de que, por muito desagradável que seja, vale a pena fazer mais este esforço para que Portugal recupere a sua soberania face aos credores.

Até agora, a mensagem tem passado com sucesso, não só entre os comentadores do regime (o que não surpreende), mas até entre muita da comunicação social habitualmente mais atenta. Valeria a pena registar cinco ideias:

1. A proposta de OE aumenta, não diminui, a incerteza para os investidores internacionais. Se ‘tranquilizar os mercados’ fosse efectivamente o objectivo, o governo teria feito tudo o que está ao seu alcance para diminuir os riscos de inconstitucionalidade das medidas determinantes para o cumprimento das metas. 'Bastaria', para tal, manter a Contribuição Extraordinária de Solidariedade nos moldes actuais (assegurando uma receita próxima daquela que conseguirá com a convergência das pensões da CGA), manter parte dos cortes aos funcionários públicos introduzidos em 2011 e mexer no IRS. Ao invés, o governo preferiu acumular medidas que dificilmente poderão ser consideradas constitucionais. Com esta opção, o governo junta austeridade desastrosa a incerteza acrescida.

2. A proposta de OE aumenta, não diminui, a probabilidade de incumprimento das metas orçamentais. FMI, Banco de Portugal e, agora, Comissão Europeia convergem na ideia de que a redução do défice orçamental tem efeitos recessivos mais acentuados quando é feita pelo lado da despesa do que quando assenta no aumento de receitas. Ou seja, ao fazer incidir a quase totalidade do esforço nos salários da função pública e nas pensões, o governo não só aumenta os riscos de inconstitucionalidade do OE como aumenta os riscos de aprofundamento da recessão – e, logo, de incumprimento das metas orçamentais para 2014.

3. O governo impõe custos desnecessários para se salvar a si mesmo - e não ao país. Os pontos anteriores permitem perceber que a proposta de OE para 2014 implica custos desnecessários (juros mais elevados, maior desemprego e emigração, maiores riscos de falência das empresas, adiamento dos investimentos necessários ao crescimento e ao desenvolvimento), ao mesmo tempo que aumenta os riscos de uma crise política no primeiro trimestre de 2014. Porquê? Há duas explicações possíveis, não mutuamente exclusivas:

i) o governo não tem coragem para tomar medidas que seriam ainda mais impopulares, como seriam um maior aumento de impostos (que o governo não quer por motivos ideológicos e eleitorais; e que implicaria a continuação da austeridade destruidora por outros modos, mas que seria preferível ao que está a ser proposto) ou cortes ainda mais drásticos na saúde e na educação públicas (que o governo deseja, mas hesita em assumi-lo); logo, o governo e a maioria preferem sujeitar o país a custos elevados e desnecessários apenas para poder culpar o Tribunal Constitucional (TC) pelas medidas que vierem a tomar mais tarde;

ii) o governo está a criar as condições para poder atribuir ao TC a responsabilidade por um segundo resgate, caso este venha a confirmar-se.

4. A eventual necessidade de recorrer a segundo resgate tem muito pouco a ver como o que vierem a ser as decisões do TC. Como já aqui tentei demostrar, a menos que haja alterações substanciais ao nível da dívida e do enquadramento macroeconómico europeu (e/ou de Portugal na UE), o país continuará a depender do financiamento por parte de credores oficiais durante muitos anos. Isto tem muito pouco a ver com as decisões que vierem a ser tomadas pelo TC, sendo antes determinado pelo nível de endividamento público e privado e pela fragilidade da nossa estrutura produtiva (aspectos que têm sido agravados após três anos de austeridade), bem como pelas regras vigentes na UE. Em suma, Portugal terá de recorrer a um segundo resgate (mais ou menos disfarçado) porque a estratégia de ‘ajustamento’ que foi adoptada nos últimos três anos pelo governo e pela troika não só não resolve os problemas fundamentais da economia portuguesa, como os agrava.

5. Mesmo que o segundo resgate venha disfarçado de ‘programa cautelar’, não ganharemos soberania com isso – e, seguramente, não sairemos por essa via da trajectória de empobrecimento. Este é o mito da moda, o eixo central da propaganda do governo: o de que um ‘programa cautelar’ representaria o fim do ‘protectorado’. Tal como o Nuno Teles explica aqui em maior detalhe, o chamado ‘programa cautelar’ não é senão a continuação da austeridade e da ingerência externa por outros meios. Poderemos não ter visitas trimestrais da troika, mas continuaremos sujeitos a uma vigilância e uma chantagem permanentes por parte das instituições que mais têm insistido na estratégia até aqui seguida (o BCE e o eurogrupo, que controla o Mecanismo de Estabilidade Europeu). Aqueles que defendem que um ‘programa cautelar’ é mais ligeiro e menos intrusivo do que um segundo resgate baseiam-se num ‘feeling’: não têm nenhum documento ou experiência passada que sustente a sua posição, antes pelo contrário. Com programa cautelar ou sem ele, Portugal não terá mais instrumentos para contrariar a estratégia do “empobrecimento como via para a redenção”. Até que decida tê-los.

Programa cautelar

Chamam-lhe “seguro”, “programa cautelar”, “regresso aos mercados”, ”pós-troika”, etc. A ideia é simples. A União Europeia dotou-se de um fundo de 500 mil milhões de euros, o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE), através do qual futuros resgates seriam financiados. Além disso, este fundo está disponível a apoiar o acesso dos Estados aos mercados através de compras directas ou em mercado secundário de títulos de dívida de cada Estado. A ideia por detrás deste mecanismo de apoio é garantir o financiamento dos Estados a taxas de juro consideradas razoáveis no mercado. Não adiantará a um investidor em dívida pública europeia exigir taxas de juro muito elevadas já que, nesse caso, o MEE actuará como substituto a taxas mais baixas. Na prática, esta é uma forma de mutualização da dívida. Contudo, tem vários senãos. O primeiro está na condicionalidade imposta aos Estados que necessitem de ajuda. Trocado por miúdos, os Estados europeus só acedem a este apoio em troca de memorando de compromisso. É o que já acontece em Espanha, onde a recapitalização da banca foi financiada por este fundo. Em Portugal, sabemos bem o que isso quer dizer: imposição cega de uma austeridade contraproducente. Recuperar soberania é uma miragem neste contexto.

Mas com isto o FMI vai-se embora e teremos uma austeridade mais ligeira, não? Não. Segundo o próprio MEE, a assistência do FMI será sempre solicitada nestes programas. De qualquer forma, é sabido que, dentro da troika, o FMI é o “polícia bom”, mais preocupado com a balança de pagamentos nacional do que com o défice orçamental e a dívida pública. Qual a relação entre o MEE e o programa anunciado, mas não testado, de compras ilimitadas do BCE em mercado secundário (as famosas OMT)? Um dos problemas do MEE é o fraco poder financeiro para fazer frente a uma crise em economias como a espanhola ou a italiana, cujas dívidas soberanas facilmente esgotariam os fundos necessários. A anunciada intervenção do BCE – esta sim uma instituição com o músculo financeiro para socorrer países grandes - serviu assim para apaziguar os mercados em relação a estes dois países e não em relação a Portugal, Grécia ou Irlanda.

Se há um mecanismo pronto a financiar-nos e estando nós a cumprir à risca o programa imposto pela UE, porquê tanta discussão entre a possibilidade de um segundo resgate e o programa cautelar? Aqui a coisa complica-se. Devido ao fraco poder financeiro deste fundo, os Estados terão que obter financiamento em mercado. Nos casos de Portugal e Irlanda, este será necessariamente a taxas de juro mais elevadas do que aquelas agora praticadas nos empréstimos da troika. No caso da Irlanda, com uma dívida mais baixa e com perfil mais sustentável do que a nossa, este encarecimento da dívida poderá não se traduzir num entendimento de que a sua dívida está numa trajectória insustentável. Em Portugal, o caso é bastante mais complicado. A intervenção do MEE poderá diminuir as taxas de juro agora praticadas no mercado secundário, ainda que serão sempre mais elevadas do que o actual empréstimo da troika. Convém, contudo, lembrar que vivemos num contexto de taxas de juro internacionais historicamente baixas. Qualquer evolução da economia internacional e reversão da actual política monetária, como a que foi anunciada nos EUA, traduz-se num aumento generalizado das taxas de juro. Ou seja, os juros a que o MEE se financia nos mercados tenderão a subir, reduzindo a margem de pressão que poderá exercer sobre os juros cobrados a um país como Portugal. Daí que a hipótese de segundo resgate não possa estar totalmente fora da mesa. Nesse caso, a julgar pelo exemplo grego, a austeridade será agravada.

De qualquer forma, o que importa sublinhar é que tudo isto não depende dos mercados, mas de decisões políticas europeias. A imposição de austeridade, a não intervenção do BCE no caso português, o modelo condicional e limitado do MEE foram todas decisões de carácter político com o mesmo objectivo: o controlo e fustigação orçamentais da periferia europeia por forma a salvaguardar os interesses dos credores. Hoje, no quadro europeu estamos assim perante diferentes versões da austeridade permanente. Só confronto e ruptura com este modelo poderá devolver a esperança ao nosso país e à Europa.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Guerra de posição

É muito útil ler os intelectuais orgânicos dos grandes negócios e os divulgadores do Consenso de Bruxelas, até para ver a sua total convergência. É muito útil ler, por exemplo, Daniel Bessa no último Expresso e Teresa de Sousa no Público de Domingo. Percebemos melhor a força e o destino do actual programa em curso: a confrontação com a Constituição, a promoção da sua radical alteração, usando o enquadramento monetário e financeiro externo como instrumento insubstituível para alcançar tal objectivo, começando por transferir para a Constituição e para o Tribunal o ónus do segundo resgate, com esse ou com outro nome. Passos pode estar a um passo de retomar o objectivo constitucional. 

Neste sentido, percebe-se a insistência do governo e da troika na austeridade recessiva, um excelente meio para acelerar essa confrontação. Vale a pena “queimar” doze mil milhões de euros para eliminar o que resta da economia política do 25 de Abril, para residualizar o Estado social, consolidando um perfil assistencialista em que os pobres terão esmolas e Estado penal, a tal “piedade ou a forca” clássica, no fundo. O resto será para os grupos económicos: a extracção de rendas na saúde ou na insegurança social sempre à custa dos salários. Bessa há muito que não diz outra coisa, que não sonha com outra coisa: pensar com os grupos económicos tem a virtude de promover a clareza estratégica.

Teresa de Sousa ofusca um pouco mais, é mais contraditória, mas, por outras vias, chega ao mesmo modelo de sociedade de Bessa. Indigna-se com os usos óbvios do patriotismo – contestar o poder constituinte de Bruxelas –, esquece que os que contestam Bruxelas também têm de contestar a subserviência em relação ao capital angolano e que os que se vergam a um vergam-se ao outro, tem o topete de ainda dizer que o euro é um projecto de “soberania partilhada”, enganando felizmente cada vez menos, explora as contradições do PS em matéria europeia, que, na realidade, são as contradições de todos os que querem mais “Europa” sem assumirem que isso implica mais transferências de soberania, o esvaziamento da democracia por aqui, e por aqui é onde ela pode existir, lamento, e chega ao tal momento constitucional, já que o euro e os “duros” amanhãs mudos o exigem: o poder constituinte está mesmo lá fora, como nos arriscamos seriamente a ver se continuarmos por aqui. Esta gente sabe onde é que está a força.

Travar isto exige mesmo fazer da Constituição uma trincheira numa guerra de posição, mas a Constituição tem de ser a última, tem de estar protegida por outras trincheiras, construindo um sistema: da desobediência à troika, passando pela reestruturação da dívida e acabando na primeira, aquela onde a exposição ao fogo inimigo e até amigo é maior, ou seja, na exigência de libertação deste colete-de-forças monetário. De resto, e politicamente, para esta gramsciana guerra de posição precisamos mesmo de uma “frente única”, uma frente que seja capaz de fazer emergir uma verdadeira “vontade colectiva nacional-popular”, para usar os termos do autor dos Cadernos do Cárcere. Qual é a alternativa contra-hegemónica, face a elites objectiva e irremediavelmente colaboracionistas e que dispõem de recursos em múltiplas escalas?

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Consistências problemáticas

Dois meses de discussão pública e dezenas de colóquios e audiências depois continuam por responder duas perguntas fundamentais sobre a "reforma" do IRC. Quanto custará aos contribuintes? E em que medida o interesse geral do País justifica que se abdique de uma receita substancial numa altura em que se cortam salários e pensões de 700 euros a um milhão de portugueses.

Não percam o artigo de Elisabete Miranda - “As inconsistências problemáticas da ‘reforma’ do IRC” - no Negócios de hoje. Para o governo e para António Sonae Mota-Engil fundo Vallis Riopele Fundação Serralves SIC Notícias Morais Leitão Galvão Teles Soares da Silva & Associados ACEGE Associação Comercial do Porto Têxtil Manuel Gonçalves Jerónimo Martins CDS Lobo Xavier o interesse dos grandes grupos económicos é o interesse geral. Os outros têm de suportar o custo desse interesse de classe. Essa é a consistência de problemáticas corridas para o fundo em matéria fiscal e não só.

Prós-e-Contras

«Estão os cortes a afundar o Estado e as instituições? Devem os funcionários públicos aguentar mais austeridade? O risco de convulsão social está a aumentar?»

O Ricardo Paes Mamede participa hoje, segunda-feira, no Prós-e-Contras: "A Pressão". É a partir das 23h00, na RTP1.

domingo, 20 de outubro de 2013

Juro cumprir a Constituição (mas só se não for muito caro)


O Presidente da República não pergunta se “o orçamento é constitucional”. O que ele pergunta é se os custos de o considerar inconstitucional são ou não superiores aos de fechar os olhos à inconstitucionalidade. Para ele a substância da questão não interessa.

O Presidente da República, para nossa desgraça, é economista. Um daqueles economistas que aprendeu que uma ação é boa se os seus benefícios são superiores aos seus custos, que a melhor ação de todas é aquela que proporciona um maior rácio entre benefícios e custos e que fez disto uma máxima moral que orienta toda a sua (muitas vezes triste) conduta. Assim se compreende que o Presidente transforme o juramento que fez numa questão de cálculo.

Será que o Presidente quando promete qualquer coisa aos amigos, aos filhos ou à primeira-dama, pensa sempre de si para si “sim, mas só se os custos de cumprir a promessa não forem superiores aos respetivos benefícios”? Não deve ser fácil viver com alguém assim.

Felizmente, para a generalidade dos juristas a máxima moral em que o Presidente e muitos economistas acreditam é repugnante. Felizmente, porque a recusa dos juristas em violar princípios tende a espevitar a imaginação. A possibilidade de uma recusa do Tribunal Constitucional a normas fundamentais do orçamento até já fez com que um banqueiro que prefere tosquiar as ovelhas a esfolá-las vivas recomendasse ao Governo um plano B em caso de veto: suspender os pagamentos das PPP durante o tempo que for necessário. Ora aí está. É um bom começo.

Espevitem lá um pouco mais a imaginação. 

Entornar o caldo

«A Comissão Europeia é provavelmente hoje o espelho da falência da gestão da crise da dívida e dos resgates - mais do que o FMI inclusive, que sempre insistiu em mais capacidade de manobra (como no caso, hoje de antologia, da Grécia, ao defender desde cedo a reestruturação de dívida e uma não concentração de chofre do ajustamento). Por debaixo daquela prosápia do dr Barrosão ou do inefável Òllio de Rehna está uma sequência de políticas que falharam os seus próprios propósitos:
● A austeridade expansionista, uma patranha pseudo-académica miseravelmente denunciada pela realidade; ● O incumprimento de metas de défices orçamentais absurdas em 3 anos, sucessivamente "revistas"; ● A surpresa cínica com o disparo do desemprego e da emigração desesperada; ● A destruição do tecido económico para além de um shumpeterianismo de algibeira de "destruição criativa"; ● Uma pseudo-reforma dos Estados "despesistas", "reforma" que vive do confisco dos seus funcionários, dos reformados e dos contribuintes; ● Uma concentração financeira e da oligarquia empresarial ainda maior do que no início da crise, e contra o propalado discurso inicial contra os pecados da finança (na altura, "americana") que levaram ao colapso de 2008; ● O ludibriar dos companheiros de estrada que acreditavam na promoção do "empreendedorismo" e da meritrocracia, do mundo florescente das PME "globais" e da limpeza das anti-competitividades; salvo alguns que vivem no ecossistema, a maioria está hoje arrasada. (...) Dar guia de marcha a esta Comissão no próximo ano é um acto de higiene europeia.»

Jorge Nascimento Rodrigues (via facebook)

1. Quem acompanhe os artigos e comentários de Jorge Nascimento Rodrigues, no Expresso e no facebook, sabe bem que os chumbos (e riscos de chumbo) do Tribunal Constitucional (TC) não contam para a história dos factores que determinam as oscilações dominantes das taxas de juro da dívida soberana. A inversão da tendência de descida, em Maio, deveu-se fundamentalmente ao anúncio de que a Reserva Federal Americana iria alterar a sua política de estímulos monetários à economia. Em Julho, é sobretudo à crise política provocada por Gaspar e Portas que deve assacar-se um novo agravamento, não se regressando contudo, desde então, a níveis idênticos aos registados antes de Maio. Mais recentemente, o anúncio de Draghi quanto a uma nova operação de liquidez de longo prazo (LTRO) e a acalmia temporária do risco de bancarrota nos EUA parecem explicar as tendências de descida.

2. É por isso no domínio do mais alarve despudor - e gravidade institucional - que se devem enquadrar as pressões da Troika, do FMI, do Eurogrupo e da Comissão Europeia sobre o Tribunal Constitucional. Na Declaração saída da Oitava e Nona avaliação do Memorando, a Troika ensaia uma primeira acusação ao TC, responsabilizando-o por «reverter» os resultados obtidos, em termos de «confiança dos mercados», e escusa-se a proceder a qualquer espécie de auto-avaliação e mea culpa quanto ao fracasso da austeridade. Aliás, toma implicitamente os falaciosos «sinais» de recuperação como resultando das políticas impostas, quando justamente os chumbos do TC continuam a ser a explicação mais plausível para o surgimento desses putativos sinais de abrandamento da recessão.

3. E quando a preparação do Orçamento de Estado de 2014 estava já na forja, sucedem-se a esta ofensiva inicial as declarações de Christine Lagarde (FMI), que se refere à «dificuldade particular» de se saber «o que é ou não constitucional», e a primeira alusão ao «activismo político» daquele órgão de soberania, por parte de um «alto representante» do Eurogrupo, que considerou o TC como o tribunal mais interventivo no contexto europeu (revelando assim, como está bem de ver, absoluto desconhecimento sobre os níveis de activismo político do Tribunal Constitucional alemão). Mas a cereja em cima do bolo surgiria com a formalização das críticas da Comissão Europeia, num documento datado de 15 de Outubro que se associa a duas iminências pardas (Katalin Gonczy e Luiz Pessoa) da delegação da CE em Lisboa. Nas primeiras linhas desse texto pode ler-se que «qualquer ativismo político» por parte do Tribunal Constitucional terá «consequências muito pesadas para o país», aludindo-se aos riscos na «implementação do Memorando de Entendimento» (vide, vem aí o segundo resgate).

4. Face a esta intolerável chuva de ataques, pressões e ameaças ao TC, que ultrapassam qualquer linha vermelha que se pudesse imaginar, Cavaco Silva permaneceu (e permanece) mudo e quedo, obrigando Jorge Sampaio - o último Presidente da República que o país teve - a vir a terreiro defender a instituição. O significado global desta ofensiva é fácil de perceber: o Tribunal Constitucional é não só o único bode expiatório à mão de semear para tentar encobrir as responsabilidades do governo e da Troika pelo fracasso da austeridade e do «ajustamento português», como constitui, ao mesmo tempo, o último alvo a abater, para que se possa prosseguir a estratégia de empobrecimento e desmantelamento dos serviços públicos e dos sistemas de direitos e de protecção social. Ainda que não da forma que supõe, Durão Barroso, o invertebrado presidente da Comissão Europeia, tem toda a razão: é mesmo preciso «entornar o caldo» perante tanta desfaçatez, subserviência e mediocridade.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Desobediências


Será que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária” (Artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa)? A Comissão Europeia, agora através do inenarrável relatório de um seu representante por cá, acha que não. O resto da troika concorda com esta posição, claro. A austeridade permanente está aí. No fundo, os credores, julgam que mandam em primeira e última instâncias, sobretudo quando o poder de ser credor de última instância está em Frankfurt e as regras de um jogo económico desequilibrado são definidas em Bruxelas. O governo colabora, até porque sabe que a sua força interna está lá fora.

Dada a convicção dos credores e as estruturas muito objectivas que a suportam, a questão talvez tenha de ser reformulada: será que Portugal ainda quer ser “uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”? No fundo, quem manda aqui? Como tenho aqui insistido, o Tribunal Constitucional ajuda também a responder a esta questão. A mais importante resposta, como sempre, terá de caber ao povo português: a soberania é popular nos termos das regras que por aqui devem vigorar.

Pela minha parte, julgo que responder positivamente implica recusar a chantagem externa, desobedecer nacionalmente, aqui onde a democracia ainda está, procurar recuperar o máximo de soberania perdida e ser intransigente na recusa de qualquer perda adicional. Quem manda aqui? Temos de ser nós, mas para isso temos de ter instrumentos: e este nós é uma questão de dignidade social e nacional, as duas estão imbricadas hoje. Desobedecer a Bruxelas é imperioso. Todos os actos que defendem os valores da Constituição, nas presentes conjuntura e estrutura, fazem-no de forma intencional ou não.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Ainda a narrativa dos credores

O défice orçamental e o défice externo rondavam os 10% do Produto Interno Bruto [2010]. A crise financeira expôs os desequilíbrios da economia portuguesa, não os criou.

Maria Luís Albuquerque, apresentação do OE-2014

Vamos por partes. A crise financeira “criou” o défice orçamental, variável endógena, como se vê, já que, em 2007, o défice orçamental era de 3,2% do PIB, tendo subido para 3,7%, em 2008, e para 10,2%, em 2009. Isto foi sobretudo o resultado do colapso das receitas fiscais (6,1 mil milhões dos 8,9 mil milhões de euros de crescimento do défice, entre 2008 e 2009, por exemplo), devido à crise, bem como do aumento automático da despesa e da ajuda à banca e muito menos o resultado de qualquer estimulo discricionário (pouco mais de 800 milhões). O que é facto é que, graças aos chamados estabilizadores automáticos, a economia já estava a crescer em 2010. A dívida pública, que era de 68% do PIB, em 2008, está agora mais próxima de duplicar, em percentagem do PIB, do que outra coisa, graças à dinâmica recessiva e à diferença imparável desta com a dinâmica dos juros. A dívida tinha passado de 51% para 68% do PIB nos primeiros anos do novo milénio, marcados pela estagnação e austeridade latente, antes da crise internacional e da austeridade aberta provocarem danos ainda maiores.

O problema dos défices externos não foi de facto criado pela crise financeira, mas foi criado pela adesão à UEM, instituição que serve para justificar todos os sacrifícios, pela inserção dependente e pelo perfil de especialização que cristalizou, pela perda de instrumentos de política – cambial e industrial, por exemplo – que acarretou. De resto, a dívida externa liquida, medida pela posição de investimento internacional, residual até meados da década de noventa, andava pelos 110% do PIB, em 2010 e 2011, para subir para 120%, em 2013.

Desequilíbrios há muitos e não podem ser confundidos, mas as suas causas comuns fundamentais encontram-se no enquadramento externo que as elites criaram para a nossa economia. De resto, creio que este livro pode ajudar a desmontar a narrativa dos credores e do seu governo.

A narrativa dos credores

Tivemos de pedir ajuda internacional para conseguirmos pagar salários, pensões e assegurar as funções essenciais do Estado. E poucos terão a noção de quão perto estivemos de uma situação de falência desordenada.

Maria Luís Albuquerque, apresentação do OE-2014

Nunca é demais repetir:

É verdade que não havia e não há dinheiro suficiente para pagar salários, pensões e todas as outras despesas públicas, sobretudo se se incluir, decisivamente, o fardo de uma dívida pública crescente, que tem de ir sendo amortizada, e cuja despesa anual, só com juros, aumentou mais de 50%, entre 2010 e 2013, sendo já bastante superior à totalidade das receitas previstas com as privatizações no memorando.

É também verdade que, como sublinhou o ex-secretário de Estado do Orçamento, Emanuel dos Santos, mesmo quando se assinou o memorando havia dinheiro para pagar salários e pensões, já que, só no decisivo primeiro semestre de 2011, as receitas de IRS e IRC ultrapassavam as despesas com salários, e as contribuições para a Segurança Social chegavam e sobravam para pagar as pensões.

De qualquer forma, estando exclusivamente dependente dos agentes dos mercados financeiros ou, na falta de interesse destes, da "bondade de estranhos", um Estado sem a possibilidade de financiar monetariamente os seus défices não é bem um Estado e a sua dívida não é definitivamente soberana. Estes estranhos constituíram, em 2011, uma troika, nada bondosa, que nos emprestou dinheiro para garantir que os credores privados, sobretudo os bancos, não tivessem perdas com a dívida portuguesa num mundo ainda traumatizado com as consequências da falência do Lehman Brothers. Estas perdas adviriam de uma decisão, que hoje é mais difícil do que era em 2011, mas que é igualmente necessária: recusar o memorando e declarar uma moratória ao pagamento da dívida, isto é, uma suspensão dos pagamentos dos juros e das amortizações ao longo de um processo negocial que terá na agenda, entre outros temas, a reestruturação da tal dívida, reduzindo em profundidade o seu montante.

Esta é a hora!


O país está em estado de choque. O governo preparou um Orçamento para 2014 que atinge brutalmente funcionários e ex-funcionários públicos, tanto pelo lado do emprego (“mobilidade”) como pelo lado do rendimento (salários e pensões). A partir de um limiar que entretanto já subiu, as pensões de sobrevivência também não escapam e serão cortadas numa escala inimaginável. O universo dos que lutam pela sobrevivência aumenta, como aumentam as filas dos que recorrem a uma refeição distribuída à noite, no anonimato, sem “condição de recursos”. Até agora, o rendimento das pensões constituiu para muitos uma rede solidária que minimizou os estragos desta política alucinada. Muitos filhos e netos estão parcial ou totalmente dependentes dos seus velhotes, no alojamento, no rendimento ou em ambos. Com este Orçamento, em muitas famílias a rede que os mais velhos garantiam vai rasgar-se. A situação é dramática para muitos portugueses, mas também o é para Portugal como nação. Quando a classe média é dilacerada, rompem-se os laços de solidariedade que sustentam o corpo social.

Quer o governo quer as instituições da troika sabem muito bem que esta política não reduz os défices nem sequer estabiliza a dívida. Hoje todos sabem que não há “austeridade expansionista”. Porém, a insistência nas “reformas estruturais” e a cada vez mais aberta aceitação do deslizamento das metas orçamentais são sinais de que há uma estratégia implícita na política económica que nos é imposta pelo ordoliberalismo germânico e seus agentes na periferia da zona euro. Assumida ou não, a estratégia é cada vez mais evidente: aniquilar o Estado de bem-estar que fomos construindo após o 25 de Abril. Numa sociedade cada vez mais desigual, os pobres e os estratos de baixos rendimentos serão amparados por um Estado assistencial, os restantes já estão a ser empurrados para os mercados da saúde, da educação e dos fundos de pensões.

Esta estratégia estava latente no projecto da moeda única desde Maastricht. A retórica da Europa social era apenas um véu que iludia o essencial: perda da soberania dos estados-membros nas diversas vertentes da política económica e submissão da zona euro à política económica alemã, seja na gestão da moeda e da taxa de câmbio do euro, seja na proibição de uma política orçamental activa, ou ainda na política comercial europeia de abertura à China. Acontece que sem política económica não podia haver desenvolvimento. Mas algum crescimento sustentado por crédito era possível. E os nossos bancos aproveitaram: transferiram muito dinheiro da Europa rica para sustentar o seu negócio de crédito fácil aqui. Sabemos como a euforia acabou.

E agora? Sujeitos a uma estratégia de submissão que visa fazer da periferia da zona euro um território de lazer da Europa rica, hoje virada para o comércio com a Ásia, como se vai recuperar o emprego? Como se consegue pagar a bola de neve do serviço da dívida? Como pode sobreviver Portugal enquanto comunidade? A resposta é simples: se não rompermos com o quadro institucional que nos conduziu aqui – as responsabilidades externas e internas são imbricadas, são sistémicas –, a emigração intercontinental será em massa, a dívida será parcialmente perdoada mas permanecerá um garrote, o país será gerido por marionetes nomeadas pelos interesses da finança europeia e pelos novos capitalistas angolanos. A questão da sustentabilidade do Estado social, tal como o conhecemos, já não se levantará então porque o país, enquanto polis com autonomia, terá desaparecido. As pressões que têm sido dirigidas ao Tribunal Constitucional pelas entidades credoras são reveladoras, em si mesmas, do destino que nos está reservado.

O país está em choque. Mas para reagir à ameaça letal que sobre ele se abateu precisa de adrenalina no corpo social. Precisa de tomar em mãos o seu destino. Este é o tempo em que se decide o futuro, esta é a hora!

(O meu artigo no jornal i)

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Leituras


«O OE de 2014 é herdeiro de uma famosa carta enviada pelo Governo à troika, ainda no consulado do anterior Ministro das Finanças. Mas sem personalidade. Do programa do PSD "para além da troika" de 2012, ao "enorme aumento de impostos" de 2013, segue-se agora algo sem nome, envergonhado e que se deu a conhecer aos soluços. (...) Se o erro económico e financeiro é fácil de detectar, mais difícil é compreender as suas origens. Há dois anos, podia-se falar de excesso de zelo e incompetência teórica; há um ano, já só se podia falar de interesses financeiros instalados. E este ano? Este ano apenas se vêem pessoas erradas, com poder e sem capacidade de mudança. O erro banalizou-se.»

Pedro Lains, «O terceiro orçamento de Vítor Gaspar»

«Os anteriores OE cumpriram um objectivo: desvalorizaram o trabalho, aceleraram o desmantelamento do Estado Social, convulsionaram compromissos sociais básicos, colocaram os fracos em situação de maior fraqueza, retirando-lhes a esperança e asfixiando-lhes as expectativas, e impuseram a convicção ideológica de que a vida é um assunto de mercados. (...) Hoje, as pessoas comuns sabem com clareza laboratorial como não funciona uma economia: não funciona com crueldade salarial e fiscal e destruição da procura interna (...) que, sendo destruída, destrói a economia. E, com ela, a sociedade. (...) A alternativa a tudo isto existe e tem várias dimensões. Uma delas é um compromisso de estabilização salarial e de reposição de níveis mínimos de justiça social que quebre o vício destruidor instaurado.»

José Reis, «Os liliputianos: "não fazem por menos - tornam-se fatais"»

«Todo o discurso sobre o "novo ciclo" resume-se, afinal, ao seguinte: o "novo ciclo" é igual ao anterior, mas em pior. Em pior por duas razões: porque estas medidas vão fazer regressar a espiral recessiva e agravar a situação no mercado de trabalho; e porque, nesta "nova" fase, o governo reforçou o clima de autofagia nacional. Ao invés de mobilizar os seus cidadãos contra uma política que condena o País à servidão, o Governo prefere fomentar um clima de guerra civil: pobres contra remediados, pobres e remediados contra a classe média, trabalhadores contra pensionistas, público contra privado, novos contra velhos, etc. É a luta de classes, mas ao contrário: não constrói laços entre as pessoas, corrói os que existem; não aproxima ninguém, antes explora o ressentimento e a inveja. Aconteça o que acontecer, uma coisa é certa: não se reforça uma comunidade por esta via.»

João Galamba, «Eterno retorno do mesmo»

«Esta parece uma corrida para o fundo, em que vamos devastando o nosso país e o nosso modo de vida em nome de uma dívida pública que não é possível pagar. Estamos, portanto, mais pobres em nome de nada. Não deixa de ser um fenómeno que perante o fracasso completo do actual rumo não se tenha simplesmente parado. Ainda que com dificuldade, é possível compreender o autismo dos credores internacionais - como se estão a marimbar para um povo que não é o seu, querem apenas assegurar que recebem tudo a que acham ter direito. O que já não se pode compreender e aceitar é a atitude subserviente e antipatriótica dos governantes portugueses. (...) Actualmente, só um discurso e um programa patrióticos poderão salvar, não só os estados europeus mais atingidos pela crise, mas sobretudo a ideia de uma Europa unida, solidária e democrática.»

Pedro Nuno Santos, «Em nome da democracia e da UE»

Billy Bragg: Accident waiting to happen

 

O crescimento que vem de fora


Perante um cenário macroeconómico com resultados negativos óbvios, como atenuar um novo orçamento altamente recessivo? Elementar: prevendo crescimento!

Explicar esse crescimento não é difícil: se não pode vir de dentro, vem de fora.

Na base macro do Orçamento de Estado na prevê-se um crescimento do PIB de 0,8%, inteiramente justificado pela procura externa líquida, cujo efeito positivo é suficiente para compensar o resultado negativo na procura interna.

Do lado da procura interna, a queda de consumo público é de 2,8%, muito por via do corte dos salários dos funcionários, ao mesmo tempo que o desemprego continua a aumentar para uns escandalosos 17,7%. Curiosamente, o consumo privado aumenta 0,1%, como se os novos cortes,  sobretudo os dos salários da função pública, fossem inóquos...

Deixar nas exportações a responsabilidade exclusiva do crescimento não é apenas mais uma prova de decadência da economia interna, é usar a variável mais imprevisível e manipulável para projetar um crescimento em que ninguém acredita. É também uma forma de manter o discurso de subserviência perante o exterior - nomeadamente perante os países europeus e Angola - e ajuda o governo a manter o discurso da tão proclamada “necessidade” da descida dos salários e dos direitos, em nome de competitividade.

A melhoria da balança comercial é importante mas não é garantida e, mesmo que fosse, não se substitui à necessidade de uma reanimação imediata da procura interna que reflita uma melhoria na vida das pessoas e que melhore as expetativas das empresas. 

O único caminho fiável para o crescimento e o aumento das condições de vida em Portugal vem de dentro, não de fora, e começa nos salários.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Quantas vezes mais?

Recentemente, o Banco que não é de Portugal estimou que por cada euro de cortes na despesa pública, o PIB cai cerca dois euros. Mais recessivo do que cortes na despesa pública não há. Mais regressivo também não há. Despesa pública que se corta é rendimento que desaparece, no público e no privado, por toda a economia. Se isto é assim, e sabemos como a realidade tem tido um intenso enviesamento keynesiano, o injusto corte planeado nos salários, pensões e serviços públicos, representando mais de 80% de uma nova ronda de austeridade no valor de 3,9 mil milhões de euros prevista no Orçamento de 2014, terá um impacto negativo de cerca de 4% do PIB. Não há economia que resista à austeridade permanente inscrita no memorando e nas regras europeias para lá dele. Não há economia que resista ao governo dos credores.

Inscrita numa perversa lógica europeia de concorrência fiscal entre Estados despojados de instrumentos de política económica soberana está, entre outras, a anunciada descida do IRC, que supostamente servirá para promover o investimento neste desolador contexto. Perante o choque na procura anunciado, e sabendo que, de longe, o que mais trava o investimento empresarial é a expectativa em relação às vendas, são os empresários que o dizem, esta opção servirá para promover a perda de receita e o chamado Estado fiscal de classe.

Uma vez mais, insistem numa política que falhou para a maioria do país. Uma vez mais, esperemos que o Tribunal Constitucional possa bloquear algumas das opções da política de austeridade. Uma vez mais, resta-nos esperar mobilizações populares, um país que ainda não desistiu. Quantas vezes mais?

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Deprimente


O Prémio “em memória de Alfred Nobel” do Banco Central da Suécia foi atribuído a Eugene Fama, um dos defensores da hipótese dos mercados eficientes, imbatíveis máquinas de processamento de informação, que por definição não se enganam. Crises financeiras geradas pelos mercados financeiros liberalizados também por inspiração de Chicago? Nem pensar, já que a culpa é dos governos, disse Fama recentemente. Mas o “Nobel” também foi atribuído a Robert Shiller, um dos que deu fundamentos comportamentais, a tal economia com humanos lá dentro, à mais robusta hipótese crítica da instabilidade financeira dos mercados com rédea demasiado solta, pondo alguma, pouca, água na fervura do entusiasmo mercantil. Dar uma no cravo e outra na ferradura, mesmo que a linguagem do comunicado de imprensa procure eliminar estas questões? Mais ou menos, já que Shiller é conhecido por advogar que a solução principal para as eventuais falhas dos mercados é a construção de ainda mais mercados, para mais contingências, construídos com a ajuda de economistas pagos para o efeito, como Shiller. O neoliberalismo, nas suas várias versões, está bem e recomenda-se do ponto de vista político. As crises financeiras não existem e se existem resolvem-se com mais do mesmo. Deprimente. 

sábado, 12 de outubro de 2013

«A Crise, a Troika e as Alternativas Urgentes»: de novo nas livrarias



Esgotado há várias semanas, o livro sobre «A Crise, a Troika e as Alternativas Urgentes», editado pela Tinta da China, foi reimpresso e estará nos próximos dias de regresso às livrarias. Entretanto, estarei hoje com o Hugo Mendes numa sessão de apresentação e debate na Feira Anual de Vila Franca de Xira. É no Parque Urbano (Pavilhão Multiusos), a partir das 18h30.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Um jornal com saídas

Começam a faltar palavras para descrever o que está a acontecer. Não porque seja difícil explicar em que consiste o regime austeritário. É uma engenharia política de destruição do Estado social, democrático e de direito (…) Quais são, então, as palavras que faltam? São as palavras capazes de descrever a actuação dos que impõem este novo modelo de sociedade e os efeitos que este modelo tem, na nossa pele ou na pele dos nossos. Que palavras podem traduzir com justiça a sádica programação do sofrimento? (…) As palavras ficam aquém do necessário. Se nada for feito, crescerá a impotência com que se recebe a notícia de cada novo corte indutor de desigualdades, pobreza, desemprego, emigração e recessão (…) Por onde passa, a austeridade permanente destrói a liberdade, a autonomia, a democracia, a vida digna. 
(…) 
 Há que repor o contrato social, que exige uma fiscalidade justa, o que implica enfrentar as ferozes resistências dos que detêm os mais altos rendimentos, do capital financeiro, dos lucros accionistas, etc. E há que compreender que a universalidade do acesso ao serviços públicos, às funções sociais do Estado – que sabemos ser o melhor garante de igualdade e coesão social – só pode ser garantida com a defesa da sua gratuitidade para todos. Foi muito por aqui, que alastrou o cancro das engenharias neoliberais que corroeram o Estado: uma educação, saúde e segurança social cada vez mais para pobres, com o preço e a degradação da qualidade a levar os que têm mais posses para os privados. 

Recuperando estas condições de autonomia, canalizando os recursos para finalidades socialmente dignas e gerando novos recursos, podemos construir força social e política para compreender também que a participação na actual arquitectura institucional e monetária europeia não permite tornar tais finalidades sustentáveis. Aí teremos escolhas difíceis a fazer, mas já centradas num exercício de palavra e de acção que nos tirem daquilo que, de outro modo, parece um beco sem saída, um corte com todas as pontes que nos ligam a Abril. Há pontes e há saídas, como mostram as iniciativas populares marcadas para os próximos dias 19 e 26 de Outubro.

Excertos do artigo da Sandra Monteiro, “pontes de saída”, sugestivo título, no Le Monde diplomatique - edição portuguesa de Outubro de 2013.