domingo, 31 de janeiro de 2021
Dos lugares dos outros
«Gerir a atual crise é um jogo de equilíbrios entre a proteção da saúde e da vida, a prevenção de outras futuras doenças e de atrasos de desenvolvimento, e também a proteção da economia. Nenhuma solução é boa, todas trazem consequências nefastas quando se defende apenas um destes aspetos. E mesmo neste jogo, o equilíbrio é sempre desequilibrado. (...) Tomamos decisões na educação tendo em conta a saúde pública e de todos os que trabalham na escola, os impactos nas aprendizagens, no desenvolvimento das crianças e na sua proteção social. Esta é a equação irresolúvel, porque também aqui, na esfera estrita da educação, qualquer solução é demasiado fácil e, ao mesmo tempo, perturbadora daquilo que se conseguiria com outras soluções. (...) E é preciso apreciarmos as soluções possíveis a partir dos lugares dos outros: um aluno com computador e internet que vive num T1 com o quarto partilhado com o irmão e os pais em teletrabalho, a aluna cuja mãe sai sozinha de madrugada para ir trabalhar na caixa do supermercado e fica sozinha, deixando-se dormir e não tendo a mãe ao lado para ajudar nas suas dúvidas, os pais que não valorizam a escola e até impedem o filho de aceder ao computador, os que não têm boa rede ou bom computador, todos juntos estes são a maioria. Olhar para isolamentos, aberturas ou fechos implica pormo-nos a ver através de muitos outros olhos além dos nossos.»
João Costa, Covid e empatia
Para lá da miséria editorial
Como é bom perceber, mesmo com alguma angústia à mistura, que a Comissão Europeia está na luta por aquilo que vai fazer toda a diferença, o ritmo de fornecimento das vacinas pelas farmacêuticas. Que diferente seria a nossa capacidade negociadora se não estivéssemos integrados na UE...
sábado, 30 de janeiro de 2021
Ciclo Formativo: «Como reorganizar um país vulnerável?»
Esta formação tem como base o mais recente estudo do Observatório, coordenado por José Reis e recentemente publicado em livro, estruturado em 15 capítulos, elaborados por 21 autores. A ideia de partida do estudo é a de «identificar um problema e propor uma alternativa», sendo nesse âmbito tratadas questões relacionadas com a «macroeconomia e organização económica, políticas públicas, trabalho, emprego e produção, territórios urbanos, ambiente, famílias, interdependências sociais e desigualdades».
Cada capítulo corresponde a uma sessão do curso, que está aberto a todos os interessados, podendo optar-se pela inscrição no ciclo completo ou apenas em algumas sessões. Os resumos dos capítulos podem ser consultados aqui.
sexta-feira, 29 de janeiro de 2021
O ruído do ressabiamento
É realmente penoso ver os ex-Ministros da Saúde do PS, Adalberto Uma Porção Cada Vez Mais Relevante da Saúde Deve Ser Privada Campos Fernandes e Maria Espírito Santo Saúde Belém, a queixarem-se do ruído, eles que têm sido tão ruidosos na actual desgraça. Independentemente de uma ou outra divergência política, tenho imenso respeito político, admiração, por Marta Temido, dadas as tarefas, as circunstâncias e os ataques sistemáticos ao serviço nacional de saúde pelos do sistema. Uma campanha como nunca se viu, no fundo.
Assim, a antiga avençada Maria de Belém, cuja campanha presidencial desabou ignominiosamente faz cinco anos, assinou um artigo a atacar a Ministra da Saúde por falha ética, isto não se inventa, dado que se deu prioridade aos trabalhadores do SNS na vacinação, deixando os do fugidio negócio da saúde para segundo lugar. Dá vontade de dizer só neste país, mas sabemos que só neste país é que se diz só neste país, como lembrava Sérgio Godinho.
Adalberto Campos Fernandes, que não deixou qualquer registo relevante na saúde, deve ter agora um divã nas televisões, já que está em campanha permanente, alternando com o bastonário da desordem dos médicos, cuja função social passa de resto por manter o número de profissionais abaixo das necessidades do país e por promover o negócio privado. Aliás, para quando a extinção das desordens, essa rara sobrevivência do corporativismo de má memória?
Por mim, críticas de fundo devem ser dirigidas sobretudo às estúpidas regras europeias que não saem das cabeças do Ministério das Finanças, já que esse é o bloqueio principal de uma política pública que não dá mesmo respostas suficientes às necessidades do país neste contexto. Mas essa campanha, que seria crucial, ninguém a vê na tv. E sabemos bem porquê.
Sabedoria
Falta de desígnios estratégicos
O deputado Cotrim de Figueiredo do partido "Ilusão Liberal" defendeu, hoje, no debate sobre a privatização da Efacec (ver 3h32m), agendado pelo PCP, que o caderno de encargos de reprivatização da Efacec proibisse a sua venda - como empresa estratégica - a "empresas detidas ou dependentes de Estados estrangeiros" (3h48).
Tudo em nome da "independência estratégica". E em vez da nacionalização da Efacec defendida por PCP e Bloco de Esquerda, criticada por toda a direita parlamentar, porque... quem pagaria no final era o contribuinte.
A mesma defesa do contribuinte foi feita, tão pouco originalmente, pela extrema-direita no Parlamento, embora sibilamente tenha criticado o PS por nunca ter negociado com os... trabalhadores. Uma esquizofrenia que se espera, um dia, seja resolvida... (4h11m)
Mas retome-se a proposta de Cotrim de Figueiredo.
Que "liberais" tão rígidos! Nunca os imaginaria a impor limites ao mercado, mas sim a vigilância dos resultados pós-venda, a fazer pelo Estado. E parece que o único mal para a "independência estratégica" advem apenas da venda a um outro Estado (aqui imagina-se que seja a China!). Para o deputado, não virá mal ao mundo se for detida por empresas estrangeiras...
Mas admita-se por momentos que esta ideia da consignação a apenas puros empresários nacionais ou internacionais tem pés para andar. Se assim é, talvez fosse bom que o deputado esclarecesse como vai impedir a revenda por parte desses novos proprietários, a empresas "detidas ou dependentes de Estados estrangeiros".
É que conviria relembrar-se o que aconteceu com a banca reprivatizada por Cavaco Silva em nome da criação de grupos nacionais (aqui eram mesmo nacionais!) e que, no final, foi toda parar à banca estrangeira! E também era um sector estratégico.
Relembre-se o escândalo que foi
1) a entrega secreta a António Champalimaud de 10 milhões de contos (qualquer coisa hoje como quase uma centena de milhões de euros!) para que o famoso empresário viesse ao processo de privatizações e recuperasse o grupo financeiro que perdera entre um famoso caso familiar e nacionalização da banca;
2) a compra das acções de bancos nacionalizados por testas de ferro portugueses de bancos espanhóis a quem, mais tarde, revenderam as acções compradas;
3) a venda de todo o grupo financeiro adquirido por Champalimaud - sem gastar um tostão - a bancos espanhóis, tendo a mais-valia dessa operação - que violou o acordo inicial (sem qualquer penalização!) - servido para criar... a Fundação Champalimaud!
E foi assim que se tentou que um sector estratégico como a banca ficasse em mãos "portuguesas". E é desta maneira que os recém-criados e imberbes "liberais" querem defender os interesses estratégicos nacionais.
GameStop: quando a especulação se vira contra os especuladores
2021 mal começou, mas os mercados financeiros já estão a viver aquela que se pode tornar na história do ano. A protagonista é a GameStop, empresa norte-americana de comércio de videojogos fundada em 1984 em Dallas, no Texas. Isso e um conjunto de pequenos investidores anónimos que fez com que a empresa tenha registado, só neste mês, uma valorização bolsista de cerca de 1.800%. Como explicar esta ascensão meteórica?
Comecemos pelo princípio. A GameStop encontra-se numa situação financeira difícil, já que boa parte dos seus estabelecimentos de venda está fechada devido ao confinamento. À semelhança de muitas outras empresas no setor do comércio, tem passado por dificuldades durante a pandemia. Foi nesse contexto que dois grandes fundos de investimento norte-americanos, a Citron Capital e a Melvin Capital, viram uma oportunidade de negócio. Os fundos decidiram, por isso, apostar na queda do valor das ações da empresa, à semelhança do que costumam fazer noutras situações. A ideia é relativamente simples: os fundos apostam na queda do valor das ações, o que envia um sinal ao resto do mercado de que a empresa poderá estar a enfrentar problemas de liquidez, reforçando a desconfiança dos investidores. Uma espécie de profecia auto-realizada.
Os dois fundos de investimento começaram a fazer aquilo a que se chama “shortselling”, que se pode traduzir como a tomada de “posições a descoberto”: os fundos pediram emprestadas ações da GameStop e venderam-nas de imediato ao seu valor de mercado, ficando a dever as ações a quem as emprestou. A expectativa é a de que, quando o seu valor cair substancialmente, podem voltar a comprá-las e devolvê-las a quem inicialmente as emprestou, ficando com a diferença. Se a aposta for bem-sucedida, os fundos lucram com a desvalorização da empresa. A GameStop parecia, assim, um alvo evidente.
Mas a história não ficou por aqui. Um grupo de pequenos investidores no Reddit, site de discussão e partilha de conteúdos, decidiu contrariar a aposta. Para isso, o grupo que se reuniu no fórum r/WallStreetBets começou a investir nas ações da GameStop de forma concertada com o objetivo de impedir o seu valor bolsista de cair e, com isso, contrariar a estratégia dos grandes fundos de investimento. É que, se a aposta na queda da empresa não for bem-sucedida e a sua cotação de mercado subir, quem vende a descoberto tem de assumir perdas que podem ser astronómicas.
Foi o que aconteceu desta vez. A ação dos pequenos investidores traduziu-se num crescimento meteórico do valor das ações da GameStop – as ações fecharam ontem a um preço unitário de $347,51, face aos $3,25 que se registavam em Abril do ano passado – causando uma enorme dor de cabeça para os fundos de investimento. Um representante da Melvin Capital admitiu que o fundo desistiu deste combate e fechou a sua posição na GameStop depois de perdas da ordem dos 3,75 mil milhões de dólares nas primeiras 3 semanas de Janeiro, embora tenha rejeitado “categoricamente” a ideia que o fundo se encontrava em falência. Já a Citron Capital parece ter assumido perdas de 100% do valor que investira inicialmente. Tudo devido à ação dos pequenos investidores que decidiram desafiar os gigantes do mercado.
Mas desengane-se quem pensa que este é um caso isolado. As transações bolsistas diárias e a atividade de pequenos investidores têm crescido nos últimos meses, alimentada por fóruns de discussão online como o Reddit e aplicações como o Robinhood. O caso da GameStop mostra que o seu impacto nos mercados financeiros está longe de ser residual, tanto para as empresas cotadas, que podem ver o preço das suas ações disparar, como para os grandes agentes do mercado, que encontram um cenário de maior incerteza. “Se és um gestor de risco de um grande hedge fund, tens de mudar os teus cálculos”, admite Greg Tuorto, gestor de portfolios na Goldman Sachs Asset Management, citado pelo Financial Times.
É difícil descortinar as motivações dos pequenos investidores, entre o desejo de derrotar os gigantes financeiros, a vontade de construir fortunas pessoais ou o puro niilismo. Por um lado, há uma componente importante de anarquia e “trolling”: como escreve Dan Dixon no The Guardian, muitos participantes dos fóruns encaram a atuação nos mercados financeiros como uma espécie de piada, uma oportunidade de rutura com a monotonia do dia-a-dia, sem grandes objetivos além da adrenalina momentânea. No caso da GameStop, um dos moderadores do fórum do Reddit disse que se tratava de “um meme que explodiu verdadeiramente”. Por outro lado, as perspetivas de enriquecimento podem ser aliciantes, mas o risco é elevado e as perdas podem levar muitos à falência.
Certo é que o peso dos pequenos investidores já está a forçar os decisores políticos a considerar novas opções. Jen Psaki, secretária de imprensa da Casa Branca, adiantou que a nova administração de Joe Biden está a “monitorizar a situação”, abrindo a porta a novas formas de regulação que diminuam a volatilidade dos preços. Anthony Scaramucci, ex-conselheiro de Trump e conhecido investidor, disse que “estamos a testemunhar a Revolução Francesa na finança”. Os fundos de investimento foram, aliás, os primeiros a argumentar que este tipo de atuação concertada em fóruns online pode ser visto como manipulação de mercado.
Mas a verdade é que os pequenos investidores se limitam a expor uma dura realidade: a de que a única lógica dos mercados financeiros é o caos, e a de que este acaba quase sempre por beneficiar os mais ricos. Há muito que se sabe que a bolsa se encontra desligada da economia real, embora seja muitas vezes utilizada, erradamente, como indicador da saúde de uma economia. Em 1936, na sequência da Grande Depressão de 1929, John Maynard Keynes explicou este fenómeno de forma bastante clara: “quando o desenvolvimento de capital de um país se torna um subproduto das atividades de um casino, é provável que o trabalho esteja a ser mal feito”. O casino é, hoje, extraordinariamente maior e mais poderoso do que há um século. E os problemas da especulação financeira só se acentuaram.
É isso que leva John Authers a descrever o caso da GameStop como uma “revolta contra a máquina financeira”. O que os pequenos investidores fizeram não foi desvirtuar um mercado que, de outra forma, funcionaria adequadamente e serviria o interesse da sociedade. Foi um ato de revolta contra um sistema que foi montado para enriquecer os grandes investidores que especulam sobre o preço de ações, decidindo o valor (e o futuro) das empresas com base na lógica do casino. Como explica Zachary Carter no Huffington Post, “os mercados financeiros não nos conseguem dizer o que é bom ou mau. Apenas nos conseguem dizer em que é que muitas pessoas acharam que podiam ganhar dinheiro num determinado período. O verdadeiro trabalho de decidir em que tipo de mundo é que queremos viver é um assunto próprio da democracia, e não da alta finança”.
É por isso que há quem defenda soluções coletivas para resolver o problema coletivo. Ideias como a de um imposto sobre transações financeiras, através do qual o Estado cobraria um valor por cada transação, permitem não só combater a especulação (uma vez que desincentivam as operações de curto prazo e as transações de alta frequência) como aumentar a receita com que se pode financiar serviços públicos como escolas, hospitais ou transportes. No fundo, trata-se de uma forma de canalizar recursos para atividades que sejam verdadeiramente úteis para a sociedade. O caso da GameStop expôs a disfunção da alta finança desregulada. A democracia pode definir regras diferentes.
Artigo publicado inicialmente em Esquerda.Net (ver aqui).
Do mau jornalismo em tempos de pandemia
São dois exemplos clamorosos do que não deveria ser nunca o jornalismo, e menos ainda em tempos de pandemia. Mais duas peças que funcionam como recurso pedagógico útil, pela negativa, de cursos de jornalismo e comunicação social. Como assinalou aqui André Barata, estamos perante duas entrevistas conduzidas em tom de «frenesim justiceiro, obcecado por descortinar erros e culpas», em que se confunde «a tarefa de informar, e assim esclarecer factos e opiniões, com a agenda de desinformação, que, sabe-se, para ser bem-sucedida apenas precisa de dar visibilidade a falsidades, rumores, contribuindo para mobilizar artificialmente zanga social».
Nesta perspetiva, pode ser visto aqui (a partir do minuto 29'25'') um excerto lapidar da «entrevista» de Fátima Campos Ferreira à insuperável ministra Marta Temido, na passada segunda-feira. E aqui (a partir do minuto 11'50''), a breve «entrevista» de José Rodrigues dos Santos ao Diretor Clínico do Hospital da Luz, Rui Maio, na passada quarta-feira. Se ainda não viram, não deixem de ver.
quinta-feira, 28 de janeiro de 2021
O diabo anda à solta
Dado o interesse suscitado pelas análises do Francisco Melro, depois de publicado anterior post, em que se mostrava correlações estranhas - como a forte existência de ciganos nos bairros nobres de Lisboa - vamos insistir com mais umas contas por si feitas.
Como é que o Marcelo teve o seu resultado mais alto em Lisboa na freguesia de Marvila, 58,1%, quando o conjunto CDS+PSD só tinha atingido 15,5% nas legislativas de 2019? Ou dito de outra forma, como é que PSD+CDS obtiveram em conjunto entre 50% e 51,4% na Estrela e Avenidas Novas e o Marcelo obteve nestas freguesias das mais baixas votações em Lisboa, inferiores a 50%?
Acompanhe-nos no desvendar deste e doutros mistérios.
A tendência parece ter sido, quanto mais direita, menos Marcelo; ou quanto menos direita, mais Marcelo. Uma correlação inversa. Meu Deus, ao que o País chegou!
O diabo parece ter andado à solta em Lisboa porque logo a seguir percebemos que quanto mais PS mais votos em Marcelo. Parece quase uma correlação perfeita, onde o PS é fraco, o Marcelo fica abaixo dos 50% onde o PS mais se destaca, o Marcelo tem o seu máximo resultado. Aonde é atingido o climax? Em Marvila, 47,4% para o PS e 58,2% para o Marcelo.
O Costa tem que ir entregar a factura ao Marcelo.
E à esquerda?
O conjunto dos candidatos da esquerda (Ana Gomes, Marisa Matias e João Ferreira) teve em Lisboa um resultado por freguesia e global tendencialmente em sintonia com a soma das votações dos partidos BE, PCP, PAN e Livre nas legislativas de 2019.
A votação destes candidatos nas presidenciais foi globalmente superior à dos referidos partidos nas legislativas de 2019, graças à votação recebida por Ana Gomes. Este confronto de resultados revela que Ana Gomes recebeu em Lisboa uma parte importante de votos do PS. O conjunto dos três candidatos recebeu em Lisboa 27,6% dos votos, quando os referidos partidos tinham recebido 23,5% nas Legislativas de 2019.
Não vale a pena insistir na propaganda
Por cá, a comunicação social anda sobretudo entretida com critérios ético-políticos de vacinação. A contradição principal está a montante, claro. Semanas depois de termos chamado a atenção para isto, com base numa notícia da imprensa alemã, a incompetência de Bruxelas começa realmente a ficar bem patente, mas, substituindo jornalismo por propaganda, os correspondentes em Bruxelas ainda se esforçam por papaguear a versão cada vez mais desesperada da Comissão Europeia.
quarta-feira, 27 de janeiro de 2021
Espero que ainda haja tempo
Há ciganos na Estrela?
Os resultados das eleições presidenciais geraram múltiplas análises, vários mitos e múltiplos aproveitamentos políticos.
Permitam-me partilhar um texto do Francisco Melro, economista e ex-funcionário do organismo estatístico nacional, o INE, ex-colunista no jornal Público e ex-director da CMVM.
Na justificação do sucesso do Ventura nas Presidenciais de 2021 têm-se vulgarizado dois fundamentos: o descontentamento dos deserdados do sistema e os problemas causados pelos ciganos nas comunidades, escandalizando pelos subsídios públicos de que beneficiam. Com base nestas premissas, fui à procura dos deserdados e dos ciganos da região de Lisboa que votaram nos candidatos da direita e particularmente no Chega.
Embora surjam vestígios de deserdados e de ciganos nas freguesias menos favorecidas de Lisboa, fui encontrá-los especialmente nas freguesias tidas por mais ricas. Deparei-me com acampamentos clandestinos de ciganos e com deserdados nos lares e arredores dos residentes das freguesias de Belém, da Estrela e das Avenidas Novas.
Essa descoberta é visível no gráfico acima, em que se somou os resultados dos candidatos da esquerda (Ana Gomes, Marisa e João Ferreira), por um lado, e os da direita (Ventura e Mayan), pelo outro, encontrando-se aquela distribuição de resultados nas freguesias de Lisboa.
Ou seja, o Ventura e o Mayan obtêm em conjunto entre 25% e 28% dos votos nas freguesias da Estrela, Belém e Avenidas Novas, freguesias onde o conjunto dos candidatos da esquerda obtém os resultados mais baixos, entre 22% e 25%. Os mesmos candidatos da direita obtêm os seus resultados mais baixos (entre 11% e 13%) nas freguesias da Penha de França, Santa Maria Maior e São Vicente que eram tidas como menos favorecidas, sendo nestas, afinal, abastadas freguesias que os candidatos da esquerda obtêm os melhores resultados (entre os 34% e os 38%). Quem diria que por detrás e à volta das paredes dos palacetes da Lapa, das vivendas do Restelo e dos apartamentos das Avenidas Novas se escondia tanta miséria e alastravam tantos acampamentos de ciganos! Que inveja deve ter a malta do Restelo da malta que mora na Ajuda…
Poderão pensar que pode haver falta de rigor nesta mistura dos candidatos da direita incivilizada (Ventura) com a da mais civilizada (Mayan), mas parece que, no essencial, as freguesias que gostam muito de um gostam também muito do outro, tendo ambos os melhores resultados no mesmo tipo de freguesias. Com uma ligeira diferença, algumas freguesias, até agora, tidas por menos favorecidas gostam mais do Ventura do que do Mayan, especialmente o Beato, Marvila e Santa Clara. Nas restantes freguesias, os resultados de ambos os candidatos distribuem-se ao longo da mesma linha de tendência.
Mas surge ainda uma surpresa maior.
A incompetência da Comissão Europeia nunca é, já não é, notícia?
Afinal de contas, Israel já vacinou mais de um terço da população, o Reino Unido ultrapassou 10% e os tão criticados EUA 5%. Na UE, que não é um Estado, óbvia e felizmente, mas está desenhada para enfraquecer o braço esquerdo dos Estados existentes, ainda não se vacinou 2% da população, em média. Dado o ritmo, estas diferenças previsivelmente não cessarão de se aprofundar. Os Estados nacionais não ficam parados, claro: da Hungria à Alemanha. E as vacinas russas e chinesas estão aí, manifestações de um mundo mais multipolar.
Na comunicação social portuguesa, pelo que leio e vejo, é quase como se não se passasse nada. O europeísmo esquece que a solidariedade mais competente sempre esteve nos Estados. No quadro do é porreiro, pá, da presidência portuguesa domina a propaganda. Só os truques mediáticos da Comissão Europeia para tentar alijar responsabilidades são notícia. Os infernos das notícias falsas são os outros.
Por contraste, o insuspeito europeísta Wolfgang Munchau assinala a lógica de austeridade da UE e agora a prioridade que a Comissão Europeia deu às questões pecuniárias, em detrimento da quantidade segura e atempada, na provisão de vacinas. As ligações são evidentes, digo eu. E sublinha-se como, graças ao Brexit, o Reino Unido não se deixou enredar nesta incompetência continental da Comissão. Trata-se no fundo de uma instituição competente, mas para fragilizar os serviços nacionais de saúde, dadas as dezenas de recomendações neoliberais dos anos anteriores, não o esqueçamos.
Coisas que não ajudam mesmo nada
Cerca das 21h00 de ontem (terça-feira), pelo menos a TVI, SIC e Expresso difundiram a informação de que o Hospital Amadora-Sintra já não dispunha de oxigénio para os doentes («esgotara a capacidade de oxigénio»), sem a devida confirmação junto da unidade hospitalar. Na TVI, surge passados poucos minutos a Bastonária Ana Rita Cavaco, qual abutre, a comentar. A versão inicial da notícia do Expresso era perentória: «o oxigénio para tratamento de doentes acabou ao final da tarde desta terça-feira. Vários doentes transferidos para unidades mais próximas».
Em comunicado, o Hospital informou que não estava «em causa a disponibilidade de oxigénio» nem o «colapso da rede» (a nova formulação adotada pela TVI e Expresso/SIC para tentar corrigir o precipitado tiro de partida), mas sim a necessidade de assegurar a administração de «oxigénio em alto débito» (pressão), procedendo-se para esse efeito à transferência de 48 doentes ventilados (não invasivos) para outras unidades. Diana Ralha, assessora do Hospital, acrescentaria ainda que os dois tanques do Amadora-Sintra tinham «imenso oxigénio», estando a unidade igualmente «muito bem fornecida» relativamente a botijas e cilindros de oxigénio.
É de facto muito difícil compreender como é que num momento como o que o país está a atravessar se difundem «notícias» destas, cujo potencial de alarme é desmesurado, sem a devida confirmação. E que, constatado o erro e a precipitação, não se removam de imediato os títulos anteriormente publicados nas redes sociais, deixando apenas a notícia entretanto corrigida. É que existe hoje, dada a facilidade com que os boatos alastram, potenciando o pânico e podendo afastar pessoas dos hospitais, uma redobrada exigência de rigor informativo.
terça-feira, 26 de janeiro de 2021
Onde cresce a extrema-direita? Algumas pistas
A sondagem da Aximage que compara o voto nas presidenciais vs. legislativas deve ser encarada com prudência. Amostras pequenas nem sempre dão resultados fidedignos, sobretudo quanto menor a expressão eleitoral dos partidos. Além disso, a transferência de votos é um fenómeno de determinação difícil e complexa. Mas a sondagem pode dar algumas pistas: os números apontam para que, embora a extrema-direita cresça devido ao descontentamento, boa parte da votação é de eleitorado de direita (mesmo que o CDS não apareça no gráfico). Não deixa de ser curioso que a comunicação social, na maioria das análises sobre o crescimento de AV, dê pouco destaque aos 33% de eleitores seus que dizem votar no PSD nas eleições legislativas.
Opacidade Covídica
Apesar de, por diversas vezes e há várias semanas, os responsáveis do Ministério do Trabalho, Segurança Social e Solidariedade terem sido instados a explicar esse "apagão" estatístico, nada dizem.
Há uma semana, foi respondido que o site estava a ser remodelado. Perguntou-se em que sentido iam as mudanças ser feitas e por que razão se interrompeu durante 3 meses (!) a informação para remodelar o site. Mais uma semana sem resposta.
Esta gestão de informação lembra casos semelhantes. O ministro das Finanças Jorge Braga de Macedo pura e simplesmente não divulgava qualquer informação sobre as receitas fiscais (quando se tentava escamotear que a economia de 1991/92 estava em queda). O ministro das Finanças Joaquim Pina Moura decidiu suspender a informação mensal da Direcção-Geral do Orçamento para a transformar depois numa divulgação trimestral (para evitar notícias mensais sobre o défice público). Os dois acabaram por ceder.
Neste caso, o assunto não é igualmente dispiciendo.
Há um ano, quando foram adoptadas as primeiras medidas contra a pandemia e se antevia os efeitos catastróficos na economia e na sociedade portuguesas, cientistas exortaram o Governo a que divulgasse - de forma o mais transparente possível - os dados estatísticos sobre a pandemia e sobre os efeitos das medidas. Era uma forma de a sociedade poder aferir - num estado de extrema necessidade - se as medidas adoptadas eram as mais convenientes e poder propor em tempo ideias e correcções para melhor salvaguardar o que estava em causa: como disse ainda ontem o primeiro-ministro, a protecção do emprego e das empresas, a protecção do rendimento.
E assim foi. O Ministério do Trabalho começou a 16/4/2020 a divulgar dados que antes nunca divulgara com uma prontidão inusitada. Como é visível pela consulta desses elementos, passaram a ser divulgados dados diários - repito, diários! - sobre baixas por isolamento, lay-off simplificado, apoio à redução de actividade, despedimentos colectivos, inscrições de desempregados nos centros de emprego, requerimentos de subsídio de desemprego - e mais informações analíticas. Os dados permitiam perceber o ritmo de adesão às medidas, de acesso aos apoios ou o grau com deixavam de ser usados, fosse qual fosse a razão. Eram números que permitiam seguir o pulso da crise.
Mas os dados não eram totalmente transparentes. Por exemplo, os números da principal medida de apoio - o lay-off simplificado - estavam empolados porque omitiam informação sobre os apoios às empresas. Nomeadamente, era impossível saber com rigor: 1) quantos trabalhadores estavam a ser apoiados; 2) quais os montantes salariais envolvidos; e pior, 3) quem no universo das empresas estava a receber a parte de leão dos apoios públicos.
Sobre esta última parte, contas grosseiras - nomeadamente as que foram feitas neste blogue - permitiam concluir que, pelo menos, metade dos apoios públicos ia para as grandes empresas, que, na verdade, não tinham necessidade desse apoio. Mais tarde essas mesmas contas grosseiras acabaram por ser confirmadas. Ou seja, tratava-se de uma medida que consagrava uma transferência de rendimento dos trabalhadores para as empresas, já que as empresas poupavam 84% dos seus custos salariais enquanto os trabalhadores perdiam 33% dos seus rendimentos.
Ora, como se vê, a maior transparência pode ser perigosa para quem queira gerir a informação como arma de arremesso de curto prazo e não como instrumento necessário ao conhecimento que, através do seu uso, permita a mudança da realidade. No fundo, é para isso que há estatísticas.
É natural que a realidade não seja perfeita. É natural que a política não seja perfeita. Senão não haveria necessidade de pessoas dedicadas à política e viveríamos num estado de comunismo moderno (por oposição ao comunismo primitivo). Ora, faltará muito tempo até lá. Mas até lá, era importante que todos os cidadãos interessados pudessem ter acesso a informação útil para poderem pensar.
Sobretudo, quando é essencial ultrapassarmos todos esta crise em directo.
Para quê?
“O Alentejo votou em Ventura em 2.º lugar. Os extremos tocam-se e a ditadura do proletariado cruza-se com a da extrema-direita. Há valores de ordem e segurança comuns, assim como de uma liderança forte, autocrática.” Como é que um intelectual de esquerda, que até apoiou Marisa Matias, pode escrever tais despautérios, como é que André Lamas Leite pode escrever isto no Público?
As falsidades encavalitam-se em tão pouco espaço. Comecemos pelo fim. Alguém com o mínimo de seriedade pode colocar no mesmo saco André Ventura e Jerónimo de Sousa, as manipulações de Ventura e a legitimidade de Jerónimo? Alguém pode colocar no mesmo saco a experiência de décadas de poder local democrático, de trabalho honesto, e as aldrabices do Chega? Alguém que tenha estudado alguma coisa destes assuntos políticos pode colocar no mesmo saco a segurança social e o securitarismo, o Estado social e o Estado penal? O preconceito de classe não substitui a análise.
Será que Lamas Leite ignora que os comunistas foram parte essencial do combate anti-fascista, que há muitas décadas têm um programa de democracia avançada, valorizando as diferentes componentes da democracia, incluindo a política, de resto em linha com o contributo decisivo que deram para a Constituição de 1976? Que houve milhares de experiências de participação democrática por este país afora que foram espoletadas por esta cultura e pela sua militância?
Finalmente, será que Lamas ignora a projeção nacional, esperemos que circunstancial, de Ventura, a forma como qualquer análise de transferências eleitorais entre presidenciais expõe o ridículo empírico de um argumento que está na moda no desinformado extremo-centro? Aconselho a leitura da parte informativa do jornal de hoje onde escreveu isto, atentando nos mapas coloridos que lá estão.
Estes colunistas de esquerda, para quê?
As Fake News do prof. Miranda Sarmento
Fizeram-me chegar (e eu confirmei) que o prof. Miranda Sarmento, atual presidente do Conselho de Estratégia Nacional do PSD, fez um post na sua página de Facebook (aqui) a atirar na lama o nome de Carlos Antunes, recentemente falecido, e por arrasto ainda o de Isabel do Carmo.
Miranda Sarmento acusa Carlos Antunes de ter pertencido às FP-25 e de estar associado a crimes de sangue.
A acusação é falsa, como saberá qualquer pessoa que leia história para além de panfletos. Carlos Antunes foi dirigente do PCP e depois das Brigadas Revolucionárias, que mais tarde, desembocariam no partido PRP-BR.
As Brigadas Revolucionárias foram constituídas antes do 25 de Abril e usaram a luta armada contra o fascismo, através de ações bombistas em locais estratégicos. Muitas dessas ações obedeciam a uma estratégia simbólica e tinham como missão alertar para a guerra colonial portuguesa, que vitimou milhares de jovens portugueses e africanos. Exemplo disso foi a bomba detonada nas instalações da NATO em 1971.
Avisem o prof. Miranda Sarmento que nenhuma das ações das Brigadas Revolucionárias teve vítimas mortais. A exceção foi um militante da própria organização, que faleceu acidentalmente enquanto fabricava um engenho explosivo.
Carlos Antunes e Isabel do Carmo são combatentes da liberdade que eu, e certamente muitos outros autores deste blogue, temos a honra de tomar por camaradas. Todos lhes somos tributários do seu profundo sentido de justiça e das ações de resistência perante o fascismo. Não foram responsáveis por nenhuma morte.
Coisa diferente pode dizer-se de outras pessoas com quem Miranda Sarmento se costuma sentar à mesa. Herdeiros do bombismo de extrema-direita que, sobretudo a norte do Tejo, ceifou a vida a militantes de esquerda.
Miranda Sarmento, que no passado já me acusou de "desonestidade intelectual", mentiu sem pudor. Mentir é feio. Estimo que lhe possam dizer isso.
O «wishful thinking» da direita no momento da sua reconfiguração
De facto, segundo a sondagem, e em linha com os exercícios que temos feito no blogue, não só a esquerda manteria a maioria dos assentos no parlamento (52% das intenções de voto), como a «direita convencional» (PSD e CDS-PP) teria uma queda substancial, passando dos 32% obtidos em 2019 para cerca de 25% das intenções de voto (isto é, menos 7 pontos percentuais face às legislativas). Ao contrário do que se passa à esquerda, em que os «novos partidos» (PAN e Livre) regridem ligeiramente face a 2019, as novas formações políticas à direita (IL e Chega), perfazem já cerca de 16% das intenções de voto, numa subida de 13 pontos percentuais face ao resultado obtido em 2019 (3%).
Pouco ou nenhum fundamento têm portanto o PSD e o CDS-PP para proclamar mudanças de ciclo e amanhãs que cantam, empoleirados na reeleição de Marcelo. E menos ainda quando, enfrentando uma crise pandémica sem precedentes, com os seus duríssimos impactos económicos e sociais, o Governo e o conjunto das esquerdas revelam, apesar de tudo, menores níveis de desgaste do que se poderia antever.
segunda-feira, 25 de janeiro de 2021
Extrema-direita em Lisboa: quantas histórias cabem na mesma região?
Não consegui chegar à meia dúzia
1. Com a prestimosa ajuda da maioria da elite dirigente do PS, que recomendou um voto de que terá tempo para se arrepender, já começou, como Vítor Dias indica, a manobra de pura propaganda para “inculcar a ideia de que estas presidenciais seriam umas novas legislativas e mostrariam um país já maioritariamente voltado para a direita.” Esta campanha beneficia do monopólio da direita na televisão controlada por piratas. Sem grande contraditório, é mais fácil ignorar as próprias sondagens para as legislativas, que, de facto, só indicam mudanças significativas dentro das direitas que dizem cada vez mais chega, praticamente sem redução global dos apoios nas esquerdas.
2. A conversa do voto útil é sempre danosa, uma jogada de soma negativa numa luta pelo segundo lugar: afinal de contas, em 2016, havia 4 candidaturas de esquerda, talvez em sentido demasiado amplo, que tiveram conjuntamente cerca de 40%. Ainda para mais a conversa seria para benefício de uma candidatura, a de Ana Gomes, que, por má direcção de campanha, abandonou uma certa disposição populista de esquerda e acabou a fazer declarações euro-federalistas sobre progressismos e outras irrelevâncias internas ao PS.
3. Em relação ao candidato de extrema-direita e ao seu meio milhão de votos, creio que temos de ter duas atitudes que podem e devem ser complementares: continuação do escrutínio às aldrabices de Ventura e companhia, da intransigência anti-fascista em relação às suas elites dirigentes e militantes, acompanhada de um exercício empático, de colocação nos sapatos de tantos eleitores, tentando compreender melhor motivações e aspirações. E fazê-lo sem precipitações interesseiras e grosseiras, que tão bem servem Ventura e o seu esforço de transversalidade, digamos, como as que dizem que atrás de cada votante comunista existe um eleitor do Chega em potência. Olhe-se antes, politicamente, para as direitas e, socialmente, para as classes intermédias em empobrecimento, tantas vezes em sítios deixados para trás, aposto. Ou seja, veja-se a economia política e moral destas multidões.
4. Realmente, a luta continua: quando se faz o melhor de que se é capaz, com candidato encarnando brilhantemente os valores que temos boas razões para subscrever, há um sentimento de tristeza perante os resultados, mas também a tranquilidade de se ter ido à luta, acompanhada de uma continuada intensidade da vontade.
E há mesmo muito trabalho a fazer
«Há centenas de milhares de pessoas em Portugal que votaram em quem quer destruir o SNS e o ensino público, que é racista, machista e homofóbico. Alguém que quer destruir o Estado Social e que fala em ditadura de portugueses de bem. É um dia triste para a democracia portuguesa.»
Diogo Faro (twitter)
domingo, 24 de janeiro de 2021
O serviço público não é melhor
Entretanto, na noite eleitoral da RTP teremos uma jornalista de direita, um jornalista de extrema-direita e um jornalista a moderar três apoiantes mais ou menos assumidos de Marcelo (talvez um ou outro seja apoiante do candidato da Iniciativa Liberal) e um apoiante de Ana Gomes.
Uma vez mais, apoiante de João Ferreira não comenta. Globalmente, em 12 comentadores de televisão (11 homens e uma mulher), teremos 8 comentadores de direita, dois de centro-centro-centro-esquerda, apoiantes mais ou menos assumidos de Marcelo, e dois de esquerda, apoiantes de Ana Gomes e de Marisa Matias. É o pluralismo a que temos direito.
Do pluralismo
sexta-feira, 22 de janeiro de 2021
Chega e Ventura: o mimetismo ao milímetro não parou
É uma espécie de «Chega List», um guião de campanha meticulosamente preparado, composto por um conjunto de ações-chave a levar a cabo. Na internet, sites como Uma Página Numa Rede Social e Chega de Ventura desenvolveram um importantíssimo e louvável trabalho de informação e serviço público durante a campanha para as presidenciais. Dia a dia, foram sinalizando os episódios, entre o insólito e o grotesco, desconstruindo falsidades, repondo factos, desmontando encenações e revelando, desse modo, a natureza antidemocrática e perigosa de Ventura e do seu partido.
Como já tínhamos assinalado aqui, citando um dos sites referidos, «tudo copiado do mesmo livro de estilo usado por Trump ou Bolsonaro. As mesmas mentiras, o mesmo embrutecimento das massas, as mesmas contradições constantes, os mesmos grupos de apoiantes - desde interesses ligados aos bens de luxo até às seitas religiosas». É impressionante a imitação dos truques das candidaturas de Trump e Bolsonaro. O que nos diz muito, por sua vez, sobre os perigos que o Chega e o seu candidato presidencial comportam. Sabemos bem o que aconteceu nos EUA e no Brasil, países onde se pensava que, apesar de tudo, a nova extrema-direita fascista não chegaria ao poder.
Pistas esperançosas
Estamos em Coimbra, uma cidade que ilustra as contradições do nosso país: por um lado, graças às forças engendradas por Abril, foi aqui possível desenvolver um polo público de saúde, educação e ciência, capaz de servir as necessidades das populações e de ser motor potencial de desenvolvimento; por outro lado, Coimbra carrega as cicatrizes de um desastroso processo de desindustrialização e este não pode ser desligado da forma como sucessivos governos abdicaram de instrumentos de política de desenvolvimento no quadro de um processo de integração supranacional crescentemente contrário aos interesses do sujeito coletivo onde reside a soberania: o povo português.
quinta-feira, 21 de janeiro de 2021
Obstrução do direito de voto sem paralelo na democracia portuguesa
Nas eleições do próximo dia 24 janeiro, assistiremos a uma obstrução do direito constitucional de voto sem paralelo na democracia portuguesa. A lei orgânica 03/2020, que regula estas eleições, não prevê nenhuma modalidade de voto para os que estão em confinamento obrigatória a partir de 14 de janeiro por infeção ou isolamento profilático. São dez dias em que qualquer cidadão com um teste positivo ou um contacto de risco ficará privado de votar. Com o intensificar da pandemia, não falamos de pouca gente. No total, estima-se que estejam nesta situação 170 000 pessoas. 170 000 pessoas que se vêm impedidas do mais básico direito constitucional de voto.
Se tem dúvidas, façamos contas simples. A um ritmo de casos médio de 10.000 pessoas por dia, em média estarão privadas de votar cerca de 100.000 pessoas devido a infeção. Mas não são só os casos positivos que ficam impedidos de votar: os que se encontram em isolamento profilático também. Ontem, entraram em isolamento profilático cerca de 9000 pessoas. Este número varia muito: no sábado, tinham sido cerca de 12000. Assumamos grosseiramente 10.000 isolamentos profiláticos por dia. Para os dez dias de intervalo, passam a ser 100.000 pessoas. A somar aos infetados, chegamos ao valor de 200 000. Temos de retirar 15%, que corresponde a uma aproximação dos casos até aos 18 anos, que não são, por isso, eleitores. Chegamos, então, aos 170 000 Para ilustrar comparativamente, o distrito de Castelo Branco tem cerca 170000 eleitores. É como se a um distrito inteiro de Portugal fosse negada a expressão democrática do voto.
Há argumentos que não podemos aceitar.
O primeiro argumento é que não havia alternativa. Esse argumento, é falso. Mesmo entendendo o esforço logístico que a operação requer, dez dias é uma extensão de tempo excessiva. Teria de ter sido possível estreitar este intervalo para o voto domiciliário numa melhor articulação com o poder local. Cada dia a menos representaria menos 17000 cidadãos que não seriam impedidos de votar. Cada dia a menos teria significado 17000 portugueses a quem não seria negado um direito constitucional.
De igual modo, temos de rejeitar aqueles que desvalorizam o número por afirmarem a pandemia atinge aleatoriamente a população eleitoral, não tendo assim efeitos nos resultados percentuais da eleição. Isso é falso. A pandemia atinge com diferente intensidade diferentes áreas do país e diferentes grupos geracionais e económicos. É do conhecimento comum, quer por anteriores resultados eleitorais quer por resultados de sondagens, que diferentes grupos sociais, geracionais e territoriais têm padrões de voto diferentes. Com efeito, esta situação afetará os candidatos a estas eleições de forma desigual, distorcendo o real resultado da votação. Em democracia, isso não é coisa pouca.
Haverá ainda os que virão dizer que este não é o momento para estas exigências, porque o país vive dramas maiores. É verdade que atravessamos momentos difíceis, mas o Estado democrático tem de saber atender à salvaguarda dos diferentes direitos constitucionais. O direito à saúde é fundamental, sem dúvida. Mas exigia-se que o mesmo Estado fosse capaz de proteger o direito constitucional de voto. As duas missões não são incompatíveis nem envolvem a mobilização dos mesmo tipo de recursos.
Nos últimos dias, assistimos ao que nunca deveria ter de acontecer em democracia. Eu, tal como centenas de cidadãos, muitos deles infetados e em situação de saúde fragilizada, alguns com febre, tiveram de lutar com o melhor das suas forças pelo seu direito de voto. O silêncio que receberam como resposta das várias instituições e candidaturas foi ensurdecedor. Ouvir o ministro Eduardo Cabrita chamar ao voto domiciliário por confinamento um avanço democrático, quando este exclui 170 000, pessoas, é um insulto.
Neste momento, não tenho já esperança que nada seja feito. Mas serve este testemunho para que se não esqueça que o que acontecerá domingo é uma vergonha para a representatividade da democracia portuguesa. 170 000 cidadãos não votarão por estarem legalmente impedidos de o fazer. Não era uma inevitabilidade. Foi só displicência e incapacidade de planeamento das instituições. Uma incapacidade que irá ferir 170 000 cidadãos num dos seus mais básicos direitos constitucionais.
Numas eleições em que também os valores da democracia são sufragados, causa-me angústia ter falta de comparência por tamanho desleixo.Numa recessão histórica, os défices ainda importam?
Visões
Seja como for, registei algumas ideias de Adorno, na tradição da economia política, no meio de pontos de interrogação e de exclamação, polvilhados pelo pequeno livro, incluindo o posfácio, que ocupa metade da obra.