domingo, 31 de janeiro de 2021

Dos lugares dos outros


«Gerir a atual crise é um jogo de equilíbrios entre a proteção da saúde e da vida, a prevenção de outras futuras doenças e de atrasos de desenvolvimento, e também a proteção da economia. Nenhuma solução é boa, todas trazem consequências nefastas quando se defende apenas um destes aspetos. E mesmo neste jogo, o equilíbrio é sempre desequilibrado. (...) Tomamos decisões na educação tendo em conta a saúde pública e de todos os que trabalham na escola, os impactos nas aprendizagens, no desenvolvimento das crianças e na sua proteção social. Esta é a equação irresolúvel, porque também aqui, na esfera estrita da educação, qualquer solução é demasiado fácil e, ao mesmo tempo, perturbadora daquilo que se conseguiria com outras soluções. (...) E é preciso apreciarmos as soluções possíveis a partir dos lugares dos outros: um aluno com computador e internet que vive num T1 com o quarto partilhado com o irmão e os pais em teletrabalho, a aluna cuja mãe sai sozinha de madrugada para ir trabalhar na caixa do supermercado e fica sozinha, deixando-se dormir e não tendo a mãe ao lado para ajudar nas suas dúvidas, os pais que não valorizam a escola e até impedem o filho de aceder ao computador, os que não têm boa rede ou bom computador, todos juntos estes são a maioria. Olhar para isolamentos, aberturas ou fechos implica pormo-nos a ver através de muitos outros olhos além dos nossos.»

João Costa, Covid e empatia

Para lá da miséria editorial


Como é bom perceber, mesmo com alguma angústia à mistura, que a Comissão Europeia está na luta por aquilo que vai fazer toda a diferença, o ritmo de fornecimento das vacinas pelas farmacêuticas. Que diferente seria a nossa capacidade negociadora se não estivéssemos integrados na UE... 

Esta miséria editorial fica para memória futura como expressão máxima do dogmatismo eurófilo do Público, o que só gera vulnerabilidade e desconfiança em relação às capacidades do país. E estamos em plena pós-verdade. Como já aí argumentei há uns anos, esta tem mesmo origens europeias, o que de resto se confirma se atentarmos na correspondente desse jornal em Bruxelas, Rita Siza. Mais valia darem um espaço à Comissão Europeia. Seria mais honesto para com os leitores. 

Até Teresa de Sousa, que pelo menos resume com alguns dias de atraso a imprensa internacional de referência, e que distância em relação ao que passa por referência por cá, consegue aflorar a verdade na sua coluna: A União Europeia quis poupar nas vacinas. Está a colher o que semeou. Uma desorientação e incompetência totais, com volte-faces diplomáticos humilhantes em relação ao Reino Unido. E, sim, na Alemanha devem estar ainda mais cheios de vontade de transferir dinheiro para Bruxelas e daí para as elites do sul, mesmo que seja em troca da aquiescência face a um sistema económico-político que beneficia as elites do norte.  

Entretanto, se nem um sistema de provisão de vacinas conseguem organizar, ao contrário de tantos Estados desenvolvidos, podemos mesmo contar com esta gente, toldada pelo dogmatismo liberal e pelo austeritarismo, para enfrentar a urgência climática ou a crise socioeconómica. E o problema é mais profundo, já que a UE está desenhada para um mundo pós-nacional, uma utopia liberal que gera consequências distópicas, como se vê. 

Só podemos contar com as capacidades colectivas nacionais, com a cooperação internacional, entre nações, notem, e com uma política externa reconstruída, que começa por uma política interna decente, recuperando instrumentos de política perdidos graças a uma integração disfuncional. E isto reconhecendo que a política externa é mais do que um prolongamento da política interna, já que tem de dar alguns saltos realistas.

Enfim, perguntar não custa neste contexto desgraçado: quando vamos deixar de esperar e aproveitar as vantagens de sermos relativamente pequenos e bem vistos, virando-nos muito mais para leste em busca de outras vacinas e eventualmente dos meios para as produzir, como já estão a fazer a Hungria ou a Sérvia, está última com 4,6% da população já vacinada a meio da semana, o segundo país europeu a seguir ao Reino Unido, aproveitando que Marcelo Rebelo de Sousa recebeu um telefonema de Xi Xiping a parabenizá-lo pela reeleição ou que o Primeiro-Ministro António Costa cultiva boas relações com a Índia? 

Realmente, é preciso pelo menos tentar pensar fora da caixa negra do europeísmo. O mundo mudou, a multipolaridade gera oportunidades, e estamos muito atrasados no reconhecimento consequente de que há vida fora da UE. Mas para isso também precisamos de jornais com outra linha editorial. Tudo conta.

sábado, 30 de janeiro de 2021

Ciclo Formativo: «Como reorganizar um país vulnerável?»

Organizado pelo Observatório sobre Crises e Alternativas (CES/UC), em parceria com a Edição Portuguesa do Le Monde Diplomatique, o Ciclo Formativo «Como reorganizar um país vulnerável?» decorrerá entre 24 de fevereiro e 28 de abril de 2021, num total de 15 sessões.

Esta formação tem como base o mais recente estudo do Observatório, coordenado por José Reis e recentemente publicado em livro, estruturado em 15 capítulos, elaborados por 21 autores. A ideia de partida do estudo é a de «identificar um problema e propor uma alternativa», sendo nesse âmbito tratadas questões relacionadas com a «macroeconomia e organização económica, políticas públicas, trabalho, emprego e produção, territórios urbanos, ambiente, famílias, interdependências sociais e desigualdades».

Cada capítulo corresponde a uma sessão do curso, que está aberto a todos os interessados, podendo optar-se pela inscrição no ciclo completo ou apenas em algumas sessões. Os resumos dos capítulos podem ser consultados aqui.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

O ruído do ressabiamento


É realmente penoso ver os ex-Ministros da Saúde do PS, Adalberto Uma Porção Cada Vez Mais Relevante da Saúde Deve Ser Privada Campos Fernandes e Maria Espírito Santo Saúde Belém, a queixarem-se do ruído, eles que têm sido tão ruidosos na actual desgraça. Independentemente de uma ou outra divergência política, tenho imenso respeito político, admiração, por Marta Temido, dadas as tarefas, as circunstâncias e os ataques sistemáticos ao serviço nacional de saúde pelos do sistema. Uma campanha como nunca se viu, no fundo. 

Assim, a antiga avençada Maria de Belém, cuja campanha presidencial desabou ignominiosamente faz cinco anos, assinou um artigo a atacar a Ministra da Saúde por falha ética, isto não se inventa, dado que se deu prioridade aos trabalhadores do SNS na vacinação, deixando os do fugidio negócio da saúde para segundo lugar. Dá vontade de dizer só neste país, mas sabemos que só neste país é que se diz só neste país, como lembrava Sérgio Godinho.

Adalberto Campos Fernandes, que não deixou qualquer registo relevante na saúde, deve ter agora um divã nas televisões, já que está em campanha permanente, alternando com o bastonário da desordem dos médicos, cuja função social passa de resto por manter o número de profissionais abaixo das necessidades do país e por promover o negócio privado. Aliás, para quando a extinção das desordens, essa rara sobrevivência do corporativismo de má memória? 

Por mim, críticas de fundo devem ser dirigidas sobretudo às estúpidas regras europeias que não saem das cabeças do Ministério das Finanças, já que esse é o bloqueio principal de uma política pública que não dá mesmo respostas suficientes às necessidades do país neste contexto. Mas essa campanha, que seria crucial, ninguém a vê na tv. E sabemos bem porquê. 


Sabedoria

Sei que as pessoas todas juntas não somam inteligências, multiplicam. É um fenómeno que faz parte da natureza humana, assim a humanidade sobreviveu.

 Por favor, leiam o testemunho de Isabel do Carmo.

Falta de desígnios estratégicos

O deputado Cotrim de Figueiredo do partido "Ilusão Liberal" defendeu, hoje, no debate sobre a privatização da Efacec (ver 3h32m), agendado pelo PCP, que o caderno de encargos de reprivatização da Efacec proibisse a sua venda - como empresa estratégica - a "empresas detidas ou dependentes de Estados estrangeiros" (3h48). 

Tudo em nome da "independência estratégica". E em vez da nacionalização da Efacec defendida por PCP e Bloco de Esquerda, criticada por toda a direita parlamentar, porque... quem pagaria no final era o contribuinte

A mesma defesa do contribuinte foi feita, tão pouco originalmente, pela extrema-direita no Parlamento, embora sibilamente tenha criticado o PS por nunca ter negociado com os... trabalhadores. Uma esquizofrenia que se espera, um dia, seja resolvida... (4h11m)

Mas retome-se a proposta de Cotrim de Figueiredo. 

Que "liberais" tão rígidos! Nunca os imaginaria a impor limites ao mercado, mas sim a vigilância dos resultados pós-venda, a fazer pelo Estado. E parece que o único mal para a "independência estratégica" advem apenas da venda a um outro Estado (aqui imagina-se que seja a China!). Para o deputado, não virá mal ao mundo se for detida por empresas estrangeiras... 

Mas admita-se por momentos que esta ideia da consignação a apenas puros empresários nacionais ou internacionais tem pés para andar. Se assim é, talvez fosse bom que o deputado esclarecesse como vai impedir a revenda por parte desses novos proprietários, a empresas "detidas ou dependentes de Estados estrangeiros".

É que conviria relembrar-se o que aconteceu com a banca reprivatizada por Cavaco Silva em nome da criação de grupos nacionais (aqui eram mesmo nacionais!) e que, no final, foi toda parar à banca estrangeira! E também era um sector estratégico.

Relembre-se o escândalo que foi 

1) a entrega secreta a António Champalimaud de 10 milhões de contos (qualquer coisa hoje como quase uma centena de milhões de euros!) para que o famoso empresário viesse ao processo de privatizações e recuperasse o grupo financeiro que perdera entre um famoso caso familiar e nacionalização da banca; 

2) a compra das acções de bancos nacionalizados por testas de ferro portugueses de bancos espanhóis a quem, mais tarde, revenderam as acções compradas; 

3) a venda de todo o grupo financeiro adquirido por Champalimaud - sem gastar um tostão - a bancos espanhóis, tendo a mais-valia dessa operação - que violou o acordo inicial (sem qualquer penalização!) - servido para criar... a Fundação Champalimaud! 

E foi assim que se tentou que um sector estratégico como a banca ficasse em mãos "portuguesas". E é desta maneira que os recém-criados e imberbes "liberais" querem defender os interesses estratégicos nacionais. 


GameStop: quando a especulação se vira contra os especuladores

2021 mal começou, mas os mercados financeiros já estão a viver aquela que se pode tornar na história do ano. A protagonista é a GameStop, empresa norte-americana de comércio de videojogos fundada em 1984 em Dallas, no Texas. Isso e um conjunto de pequenos investidores anónimos que fez com que a empresa tenha registado, só neste mês, uma valorização bolsista de cerca de 1.800%. Como explicar esta ascensão meteórica?

Comecemos pelo princípio. A GameStop encontra-se numa situação financeira difícil, já que boa parte dos seus estabelecimentos de venda está fechada devido ao confinamento. À semelhança de muitas outras empresas no setor do comércio, tem passado por dificuldades durante a pandemia. Foi nesse contexto que dois grandes fundos de investimento norte-americanos, a Citron Capital e a Melvin Capital, viram uma oportunidade de negócio. Os fundos decidiram, por isso, apostar na queda do valor das ações da empresa, à semelhança do que costumam fazer noutras situações. A ideia é relativamente simples: os fundos apostam na queda do valor das ações, o que envia um sinal ao resto do mercado de que a empresa poderá estar a enfrentar problemas de liquidez, reforçando a desconfiança dos investidores. Uma espécie de profecia auto-realizada.

Os dois fundos de investimento começaram a fazer aquilo a que se chama “shortselling”, que se pode traduzir como a tomada de “posições a descoberto”: os fundos pediram emprestadas ações da GameStop e venderam-nas de imediato ao seu valor de mercado, ficando a dever as ações a quem as emprestou. A expectativa é a de que, quando o seu valor cair substancialmente, podem voltar a comprá-las e devolvê-las a quem inicialmente as emprestou, ficando com a diferença. Se a aposta for bem-sucedida, os fundos lucram com a desvalorização da empresa. A GameStop parecia, assim, um alvo evidente.

Mas a história não ficou por aqui. Um grupo de pequenos investidores no Reddit, site de discussão e partilha de conteúdos, decidiu contrariar a aposta. Para isso, o grupo que se reuniu no fórum r/WallStreetBets começou a investir nas ações da GameStop de forma concertada com o objetivo de impedir o seu valor bolsista de cair e, com isso, contrariar a estratégia dos grandes fundos de investimento. É que, se a aposta na queda da empresa não for bem-sucedida e a sua cotação de mercado subir, quem vende a descoberto tem de assumir perdas que podem ser astronómicas.

Foi o que aconteceu desta vez. A ação dos pequenos investidores traduziu-se num crescimento meteórico do valor das ações da GameStop – as ações fecharam ontem a um preço unitário de $347,51, face aos $3,25 que se registavam em Abril do ano passado – causando uma enorme dor de cabeça para os fundos de investimento. Um representante da Melvin Capital admitiu que o fundo desistiu deste combate e fechou a sua posição na GameStop depois de perdas da ordem dos 3,75 mil milhões de dólares nas primeiras 3 semanas de Janeiro, embora tenha rejeitado “categoricamente” a ideia que o fundo se encontrava em falência. Já a Citron Capital parece ter assumido perdas de 100% do valor que investira inicialmente. Tudo devido à ação dos pequenos investidores que decidiram desafiar os gigantes do mercado.


Mas desengane-se quem pensa que este é um caso isolado. As transações bolsistas diárias e a atividade de pequenos investidores têm crescido nos últimos meses, alimentada por fóruns de discussão online como o Reddit e aplicações como o Robinhood. O caso da GameStop mostra que o seu impacto nos mercados financeiros está longe de ser residual, tanto para as empresas cotadas, que podem ver o preço das suas ações disparar, como para os grandes agentes do mercado, que encontram um cenário de maior incerteza. “Se és um gestor de risco de um grande hedge fund, tens de mudar os teus cálculos”, admite Greg Tuorto, gestor de portfolios na Goldman Sachs Asset Management, citado pelo Financial Times.

É difícil descortinar as motivações dos pequenos investidores, entre o desejo de derrotar os gigantes financeiros, a vontade de construir fortunas pessoais ou o puro niilismo. Por um lado, há uma componente importante de anarquia e “trolling”: como escreve Dan Dixon no The Guardian, muitos participantes dos fóruns encaram a atuação nos mercados financeiros como uma espécie de piada, uma oportunidade de rutura com a monotonia do dia-a-dia, sem grandes objetivos além da adrenalina momentânea. No caso da GameStop, um dos moderadores do fórum do Reddit disse que se tratava de “um meme que explodiu verdadeiramente”. Por outro lado, as perspetivas de enriquecimento podem ser aliciantes, mas o risco é elevado e as perdas podem levar muitos à falência.

Certo é que o peso dos pequenos investidores já está a forçar os decisores políticos a considerar novas opções. Jen Psaki, secretária de imprensa da Casa Branca, adiantou que a nova administração de Joe Biden está a “monitorizar a situação”, abrindo a porta a novas formas de regulação que diminuam a volatilidade dos preços. Anthony Scaramucci, ex-conselheiro de Trump e conhecido investidor, disse que “estamos a testemunhar a Revolução Francesa na finança”. Os fundos de investimento foram, aliás, os primeiros a argumentar que este tipo de atuação concertada em fóruns online pode ser visto como manipulação de mercado.

Mas a verdade é que os pequenos investidores se limitam a expor uma dura realidade: a de que a única lógica dos mercados financeiros é o caos, e a de que este acaba quase sempre por beneficiar os mais ricos. Há muito que se sabe que a bolsa se encontra desligada da economia real, embora seja muitas vezes utilizada, erradamente, como indicador da saúde de uma economia. Em 1936, na sequência da Grande Depressão de 1929, John Maynard Keynes explicou este fenómeno de forma bastante clara: “quando o desenvolvimento de capital de um país se torna um subproduto das atividades de um casino, é provável que o trabalho esteja a ser mal feito”. O casino é, hoje, extraordinariamente maior e mais poderoso do que há um século. E os problemas da especulação financeira só se acentuaram.

É isso que leva John Authers a descrever o caso da GameStop como uma “revolta contra a máquina financeira”. O que os pequenos investidores fizeram não foi desvirtuar um mercado que, de outra forma, funcionaria adequadamente e serviria o interesse da sociedade. Foi um ato de revolta contra um sistema que foi montado para enriquecer os grandes investidores que especulam sobre o preço de ações, decidindo o valor (e o futuro) das empresas com base na lógica do casino. Como explica Zachary Carter no Huffington Post, “os mercados financeiros não nos conseguem dizer o que é bom ou mau. Apenas nos conseguem dizer em que é que muitas pessoas acharam que podiam ganhar dinheiro num determinado período. O verdadeiro trabalho de decidir em que tipo de mundo é que queremos viver é um assunto próprio da democracia, e não da alta finança”.

É por isso que há quem defenda soluções coletivas para resolver o problema coletivo. Ideias como a de um imposto sobre transações financeiras, através do qual o Estado cobraria um valor por cada transação, permitem não só combater a especulação (uma vez que desincentivam as operações de curto prazo e as transações de alta frequência) como aumentar a receita com que se pode financiar serviços públicos como escolas, hospitais ou transportes. No fundo, trata-se de uma forma de canalizar recursos para atividades que sejam verdadeiramente úteis para a sociedade. O caso da GameStop expôs a disfunção da alta finança desregulada. A democracia pode definir regras diferentes.

Artigo publicado inicialmente em Esquerda.Net (ver aqui).

Do mau jornalismo em tempos de pandemia


São dois exemplos clamorosos do que não deveria ser nunca o jornalismo, e menos ainda em tempos de pandemia. Mais duas peças que funcionam como recurso pedagógico útil, pela negativa, de cursos de jornalismo e comunicação social. Como assinalou aqui André Barata, estamos perante duas entrevistas conduzidas em tom de «frenesim justiceiro, obcecado por descortinar erros e culpas», em que se confunde «a tarefa de informar, e assim esclarecer factos e opiniões, com a agenda de desinformação, que, sabe-se, para ser bem-sucedida apenas precisa de dar visibilidade a falsidades, rumores, contribuindo para mobilizar artificialmente zanga social».

Nesta perspetiva, pode ser visto aqui (a partir do minuto 29'25'') um excerto lapidar da «entrevista» de Fátima Campos Ferreira à insuperável ministra Marta Temido, na passada segunda-feira. E aqui (a partir do minuto 11'50''), a breve «entrevista» de José Rodrigues dos Santos ao Diretor Clínico do Hospital da Luz, Rui Maio, na passada quarta-feira. Se ainda não viram, não deixem de ver.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

O diabo anda à solta

Dado o interesse suscitado pelas análises do Francisco Melro, depois de publicado anterior post, em que se mostrava correlações estranhas - como a forte existência de ciganos nos bairros nobres de Lisboa - vamos insistir com mais umas contas por si feitas. 

Como é que o Marcelo teve o seu resultado mais alto em Lisboa na freguesia de Marvila, 58,1%, quando o conjunto CDS+PSD só tinha atingido 15,5% nas legislativas de 2019? Ou dito de outra forma, como é que PSD+CDS obtiveram em conjunto entre 50% e 51,4% na Estrela e Avenidas Novas e o Marcelo obteve nestas freguesias das mais baixas votações em Lisboa, inferiores a 50%? 

Acompanhe-nos no desvendar deste e doutros mistérios. 

A tendência parece ter sido, quanto mais direita, menos Marcelo; ou quanto menos direita, mais Marcelo. Uma correlação inversa. Meu Deus, ao que o País chegou! 

O diabo parece ter andado à solta em Lisboa porque logo a seguir percebemos que quanto mais PS mais votos em Marcelo. Parece quase uma correlação perfeita, onde o PS é fraco, o Marcelo fica abaixo dos 50% onde o PS mais se destaca, o Marcelo tem o seu máximo resultado. Aonde é atingido o climax? Em Marvila, 47,4% para o PS e 58,2% para o Marcelo. 

O Costa tem que ir entregar a factura ao Marcelo.

 

E à esquerda? 

O conjunto dos candidatos da esquerda (Ana Gomes, Marisa Matias e João Ferreira) teve em Lisboa um resultado por freguesia e global tendencialmente em sintonia com a soma das votações dos partidos BE, PCP, PAN e Livre nas legislativas de 2019. 

A votação destes candidatos nas presidenciais foi globalmente superior à dos referidos partidos nas legislativas de 2019, graças à votação recebida por Ana Gomes. Este confronto de resultados revela que Ana Gomes recebeu em Lisboa uma parte importante de votos do PS. O conjunto dos três candidatos recebeu em Lisboa 27,6% dos votos, quando os referidos partidos tinham recebido 23,5% nas Legislativas de 2019. 

 


Não há propaganda europeísta que apague isto

Uma boa fonte de informação

Não vale a pena insistir na propaganda


Por cá, a comunicação social anda sobretudo entretida com critérios ético-políticos de vacinação. A contradição principal está a montante, claro. Semanas depois de termos chamado a atenção para isto, com base numa notícia da imprensa alemã, a incompetência de Bruxelas começa realmente a ficar bem patente, mas, substituindo jornalismo por propaganda, os correspondentes em Bruxelas ainda se esforçam por papaguear a versão cada vez mais desesperada da Comissão Europeia. 

No entanto, alguns factos parecem ser teimosos: a UE assinou um contrato para 400 milhões de doses três meses depois, três meses depois, notem, do Reino Unido (100 milhões) e duas das quatro fábricas da multinacional AstraZeneca, cuja vacina dependeu da colaboração com a Universidade de Oxford, estão localizadas no território do nosso mais antigo aliado e estão a laborar em pleno, ao contrário das duas fábricas continentais, tendo resolvido atempadamente problemas de fabrico entretanto aí surgidos e privilegiado quem encomendou primeiro, naturalmente. O vermelho no mapa ficará ainda mais carregado nas ilhas, dada a importância crucial do ponto de partida. As multinacionais têm sempre de ser vigiadas de perto e enraizadas no território. Até o dogmaticamente eurófilo The Guardian reconhece o contraste.

Parece que a localização e a agilidade dos Estados soberanos contam e que afinal o mundo não é plano, ao contrário do que afiançavam os dogmas globalistas bem enraizados na bolha pós-democrática de Bruxelas. Portugal faria bem em depender menos da UE. Parece que há vida fora da UE e vacinas também. 

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Espero que ainda haja tempo

Depois da experiência dos Açores, ficou à vista que em Portugal também ocorrerá uma recomposição partidária, à semelhança do que aconteceu em vários países da UE. Uma análise preliminar dos resultados eleitorais, a aprofundar por quem estuda estas matérias, mostra que o crescimento do Chega provém essencialmente do eleitorado da direita tradicional, da abstenção e, provavelmente, também de jovens que votaram pela primeira vez. As transferências de voto provenientes do PS e dos partidos da esquerda serão marginais e muito localizadas.

Assim sendo, enquanto o PS mantiver o apoio popular que as sondagens mostram, a direita não terá acesso ao governo. Com a entrada em cena do Chega, o BE e o PCP estão condenados a apoiar o PS até ao fim da legislatura, mesmo que não gostem do resultado das negociações. Se, e quando, o PS gerar desencanto e frustração numa parte significativa do seu eleitorado, por exemplo em resultado da gestão da crise actual e das políticas que nos forem exigidas pela UE como condição para o uso do Fundo de Recuperação, então poderá ocorrer uma transferência de voto do PS para o PSD. Nesse dia, e é doloroso imaginar tal cenário, teremos aquilo que André Ventura anunciou na noite das presidenciais, governo do PSD + Chega.

Por agora, não me parece que estejam no horizonte mudanças significativas na linha política do PS e na dos partidos à sua esquerda, o que lamento porque deixar tudo na mesma não oferece uma alternativa ao voto de protesto. O povo que se sente (e foi mesmo) abandonado com as políticas neoliberais tem direito a uma alternativa de esquerda para sair do buraco em que foi lançado. Após o controlo da pandemia, é muito provável que a UE atravesse alguma turbulência política, o que pode dificultar (ainda mais) as políticas internas de que precisamos para atenuar esta profunda crise económica e social.

As esquerdas têm a obrigação de oferecer uma interpretação alternativa para o caminho que fizemos até aqui e para os obstáculos que impedem o nosso desenvolvimento. A meu ver, têm de oferecer um projecto de sociedade que seja mobilizador, capaz de trazer para o seu lado uma parte importante do voto dos desiludidos com o que a democracia lhes deu, além de outros. E isto exige muitíssimo mais do que trabalho parlamentar; exige diálogo unitário e exige militância de base ao lado dos que ficaram para trás em todo o país. Espero que ainda haja tempo.

Há ciganos na Estrela?

Os resultados das eleições presidenciais geraram múltiplas análises, vários mitos e múltiplos aproveitamentos políticos.

Permitam-me partilhar um texto do Francisco Melro, economista e ex-funcionário do organismo estatístico nacional, o INE, ex-colunista no jornal Público e ex-director da CMVM. 

Na justificação do sucesso do Ventura nas Presidenciais de 2021 têm-se vulgarizado dois fundamentos: o descontentamento dos deserdados do sistema e os problemas causados pelos ciganos nas comunidades, escandalizando pelos subsídios públicos de que beneficiam. Com base nestas premissas, fui à procura dos deserdados e dos ciganos da região de Lisboa que votaram nos candidatos da direita e particularmente no Chega. 

Embora surjam vestígios de deserdados e de ciganos nas freguesias menos favorecidas de Lisboa, fui encontrá-los especialmente nas freguesias tidas por mais ricas. Deparei-me com acampamentos clandestinos de ciganos e com deserdados nos lares e arredores dos residentes das freguesias de Belém, da Estrela e das Avenidas Novas. 

 Essa descoberta é visível no gráfico acima, em que se somou os resultados dos candidatos da esquerda (Ana Gomes, Marisa e João Ferreira), por um lado, e os da direita (Ventura e Mayan), pelo outro, encontrando-se aquela distribuição de resultados nas freguesias de Lisboa.

Ou seja, o Ventura e o Mayan obtêm em conjunto entre 25% e 28% dos votos nas freguesias da Estrela, Belém e Avenidas Novas, freguesias onde o conjunto dos candidatos da esquerda obtém os resultados mais baixos, entre 22% e 25%. Os mesmos candidatos da direita obtêm os seus resultados mais baixos (entre 11% e 13%) nas freguesias da Penha de França, Santa Maria Maior e São Vicente que eram tidas como menos favorecidas, sendo nestas, afinal, abastadas freguesias que os candidatos da esquerda obtêm os melhores resultados (entre os 34% e os 38%). Quem diria que por detrás e à volta das paredes dos palacetes da Lapa, das vivendas do Restelo e dos apartamentos das Avenidas Novas se escondia tanta miséria e alastravam tantos acampamentos de ciganos! Que inveja deve ter a malta do Restelo da malta que mora na Ajuda… 
Poderão pensar que pode haver falta de rigor nesta mistura dos candidatos da direita incivilizada (Ventura) com a da mais civilizada (Mayan), mas parece que, no essencial, as freguesias que gostam muito de um gostam também muito do outro, tendo ambos os melhores resultados no mesmo tipo de freguesias. Com uma ligeira diferença, algumas freguesias, até agora, tidas por menos favorecidas gostam mais do Ventura do que do Mayan, especialmente o Beato, Marvila e Santa Clara. Nas restantes freguesias, os resultados de ambos os candidatos distribuem-se ao longo da mesma linha de tendência.

Mas surge ainda uma surpresa maior.

Censos


A incompetência da Comissão Europeia nunca é, já não é, notícia?


No Reino Unido, por vezes, ainda há quem se lembre da economia moral

Do Financial Times à The Economist, o escrutínio ao atraso da UE no que às vacinas diz respeito não pára de crescer, confirmando a nossa
desconfiança.

Afinal de contas, Israel já vacinou mais de um terço da população, o Reino Unido ultrapassou 10% e os tão criticados EUA 5%. Na UE, que não é um Estado, óbvia e felizmente, mas está desenhada para enfraquecer o braço esquerdo dos Estados existentes, ainda não se vacinou 2% da população, em média. Dado o ritmo, estas diferenças previsivelmente não cessarão de se aprofundar. Os Estados nacionais não ficam parados, claro: da Hungria à Alemanha. E as vacinas russas e chinesas estão aí, manifestações de um mundo mais multipolar.

Na comunicação social portuguesa, pelo que leio e vejo, é quase como se não se passasse nada. O europeísmo esquece que a solidariedade mais competente sempre esteve nos Estados. No quadro do é porreiro, pá, da presidência portuguesa domina a propaganda. Só os truques mediáticos da Comissão Europeia para tentar alijar responsabilidades são notícia. Os infernos das notícias falsas são os outros.

Por contraste, o insuspeito europeísta Wolfgang Munchau assinala a lógica de austeridade da UE e agora a prioridade que a Comissão Europeia deu às questões pecuniárias, em detrimento da quantidade segura e atempada, na provisão de vacinas. As ligações são evidentes, digo eu. E sublinha-se como, graças ao Brexit, o Reino Unido não se deixou enredar nesta incompetência continental da Comissão. Trata-se no fundo de uma instituição competente, mas para fragilizar os serviços nacionais de saúde, dadas as dezenas de recomendações neoliberais dos anos anteriores, não o esqueçamos. 


Coisas que não ajudam mesmo nada


Cerca das 21h00 de ontem (terça-feira), pelo menos a TVI, SIC e Expresso difundiram a informação de que o Hospital Amadora-Sintra já não dispunha de oxigénio para os doentes («esgotara a capacidade de oxigénio»), sem a devida confirmação junto da unidade hospitalar. Na TVI, surge passados poucos minutos a Bastonária Ana Rita Cavaco, qual abutre, a comentar. A versão inicial da notícia do Expresso era perentória: «o oxigénio para tratamento de doentes acabou ao final da tarde desta terça-feira. Vários doentes transferidos para unidades mais próximas».

Em comunicado, o Hospital informou que não estava «em causa a disponibilidade de oxigénio» nem o «colapso da rede» (a nova formulação adotada pela TVI e Expresso/SIC para tentar corrigir o precipitado tiro de partida), mas sim a necessidade de assegurar a administração de «oxigénio em alto débito» (pressão), procedendo-se para esse efeito à transferência de 48 doentes ventilados (não invasivos) para outras unidades. Diana Ralha, assessora do Hospital, acrescentaria ainda que os dois tanques do Amadora-Sintra tinham «imenso oxigénio», estando a unidade igualmente «muito bem fornecida» relativamente a botijas e cilindros de oxigénio.

É de facto muito difícil compreender como é que num momento como o que o país está a atravessar se difundem «notícias» destas, cujo potencial de alarme é desmesurado, sem a devida confirmação. E que, constatado o erro e a precipitação, não se removam de imediato os títulos anteriormente publicados nas redes sociais, deixando apenas a notícia entretanto corrigida. É que existe hoje, dada a facilidade com que os boatos alastram, potenciando o pânico e podendo afastar pessoas dos hospitais, uma redobrada exigência de rigor informativo.

Adenda: À hora a que escrevo (01h49 de quarta-feira) ainda encontro ativas, na página do facebook do Expresso, as ligações para a notícia «Covid-19. Hospital Amadora-Sintra esgotou capacidade de oxigénio» (com 812 partilhas) e para a notícia «Hospitais pressionados ajudam Amadora-Sintra depois de colapso da rede de oxigénio», para lá da notícia, já mais recente e mais consentânea com a realidade, «Sobrecarga na rede de oxigénio. Amadora-Sintra e Hospital da Luz abrem enfermaria conjunta».

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Onde cresce a extrema-direita? Algumas pistas


A sondagem da Aximage que compara o voto nas presidenciais vs. legislativas deve ser encarada com prudência. Amostras pequenas nem sempre dão resultados fidedignos, sobretudo quanto menor a expressão eleitoral dos partidos. Além disso, a transferência de votos é um fenómeno de determinação difícil e complexa. Mas a sondagem pode dar algumas pistas: os números apontam para que, embora a extrema-direita cresça devido ao descontentamento, boa parte da votação é de eleitorado de direita (mesmo que o CDS não apareça no gráfico). Não deixa de ser curioso que a comunicação social, na maioria das análises sobre o crescimento de AV, dê pouco destaque aos 33% de eleitores seus que dizem votar no PSD nas eleições legislativas.

Opacidade Covídica

Por que razão o Governo deixou de divulgar desde Outubro passado os dados estatísticos sobre os efeitos da pandemia e sobre a aplicação das medidas de apoio?

Apesar de, por diversas vezes e há várias semanas, os responsáveis do Ministério do Trabalho, Segurança Social e Solidariedade terem sido instados a explicar esse "apagão" estatístico, nada dizem.

Há uma semana, foi respondido que o site estava a ser remodelado. Perguntou-se em que sentido iam as mudanças ser feitas e por que razão se interrompeu durante 3 meses (!) a informação para remodelar o site. Mais uma semana sem resposta.

Esta gestão de informação lembra casos semelhantes. O ministro das Finanças Jorge Braga de Macedo pura e simplesmente não divulgava qualquer informação sobre as receitas fiscais (quando se tentava escamotear que a economia de 1991/92 estava em queda). O ministro das Finanças Joaquim Pina Moura decidiu suspender a informação mensal da Direcção-Geral do Orçamento para a transformar depois numa divulgação trimestral (para evitar notícias mensais sobre o défice público). Os dois acabaram por ceder. 

Neste caso, o assunto não é igualmente dispiciendo.

Há um ano, quando foram adoptadas as primeiras medidas contra a pandemia e se antevia os efeitos catastróficos na economia e na sociedade portuguesas, cientistas exortaram o Governo a que divulgasse - de forma o mais transparente possível - os dados estatísticos sobre a pandemia e sobre os efeitos das medidas. Era uma forma de a sociedade poder aferir - num estado de extrema necessidade - se as medidas adoptadas eram as mais convenientes e poder propor em tempo ideias e correcções para melhor salvaguardar o que estava em causa: como disse ainda ontem o primeiro-ministro, a protecção do emprego e das empresas, a protecção do rendimento.

E assim foi. O Ministério do Trabalho começou a 16/4/2020 a divulgar dados que antes nunca divulgara com uma prontidão inusitada. Como é visível pela consulta desses elementos, passaram a ser divulgados dados diários - repito, diários! - sobre baixas por isolamento, lay-off simplificado, apoio à redução de actividade, despedimentos colectivos, inscrições de desempregados nos centros de emprego, requerimentos de subsídio de desemprego - e mais informações analíticas. Os dados permitiam perceber o ritmo de adesão às medidas, de acesso aos apoios ou o grau com deixavam de ser usados, fosse qual fosse a razão. Eram números que permitiam seguir o pulso da crise.

Mas os dados não eram totalmente transparentes. Por exemplo, os números da principal medida de apoio - o lay-off simplificado - estavam empolados porque omitiam informação sobre os apoios às empresas. Nomeadamente, era impossível saber com rigor: 1) quantos trabalhadores estavam a ser apoiados; 2) quais os montantes salariais envolvidos; e pior, 3) quem no universo das empresas estava a receber a parte de leão dos apoios públicos.

Sobre esta última parte, contas grosseiras - nomeadamente as que foram feitas neste blogue - permitiam concluir que, pelo menos, metade dos apoios públicos ia para as grandes empresas, que, na verdade, não tinham necessidade desse apoio. Mais tarde essas mesmas contas grosseiras acabaram por ser confirmadas. Ou seja, tratava-se de uma medida que consagrava uma transferência de rendimento dos trabalhadores para as empresas, já que as empresas poupavam 84% dos seus custos salariais enquanto os trabalhadores perdiam 33% dos seus rendimentos.

Ora, como se vê, a maior transparência pode ser perigosa para quem queira gerir a informação como arma de arremesso de curto prazo e não como instrumento necessário ao conhecimento que, através do seu uso, permita a mudança da realidade. No fundo, é para isso que há estatísticas.

É natural que a realidade não seja perfeita. É natural que a política não seja perfeita. Senão não haveria necessidade de pessoas dedicadas à política e viveríamos num estado de comunismo moderno (por oposição ao comunismo primitivo). Ora, faltará muito tempo até lá. Mas até lá, era importante que todos os cidadãos interessados pudessem ter acesso a informação útil para poderem pensar.

Sobretudo, quando é essencial ultrapassarmos todos esta crise em directo.

Para quê?


“O Alentejo votou em Ventura em 2.º lugar. Os extremos tocam-se e a ditadura do proletariado cruza-se com a da extrema-direita. Há valores de ordem e segurança comuns, assim como de uma liderança forte, autocrática.” Como é que um intelectual de esquerda, que até apoiou Marisa Matias, pode escrever tais despautérios, como é que André Lamas Leite pode escrever isto no Público?

As falsidades encavalitam-se em tão pouco espaço. Comecemos pelo fim. Alguém com o mínimo de seriedade pode colocar no mesmo saco André Ventura e Jerónimo de Sousa, as manipulações de Ventura e a legitimidade de Jerónimo? Alguém pode colocar no mesmo saco a experiência de décadas de poder local democrático, de trabalho honesto, e as aldrabices do Chega? Alguém que tenha estudado alguma coisa destes assuntos políticos pode colocar no mesmo saco a segurança social e o securitarismo, o Estado social e o Estado penal? O preconceito de classe não substitui a análise.

Será que Lamas Leite ignora que os comunistas foram parte essencial do combate anti-fascista, que há muitas décadas têm um programa de democracia avançada, valorizando as diferentes componentes da democracia, incluindo a política, de resto em linha com o contributo decisivo que deram para a Constituição de 1976? Que houve milhares de experiências de participação democrática por este país afora que foram espoletadas por esta cultura e pela sua militância?

Finalmente, será que Lamas ignora a projeção nacional, esperemos que circunstancial, de Ventura, a forma como qualquer análise de transferências eleitorais entre presidenciais expõe o ridículo empírico de um argumento que está na moda no desinformado extremo-centro? Aconselho a leitura da parte informativa do jornal de hoje onde escreveu isto, atentando nos mapas coloridos que lá estão.

Estes colunistas de esquerda, para quê?

As Fake News do prof. Miranda Sarmento


Fizeram-me chegar (e eu confirmei) que o prof. Miranda Sarmento, atual presidente do Conselho de Estratégia Nacional do PSD, fez um post na sua página de Facebook (aqui) a atirar na lama o nome de Carlos Antunes, recentemente falecido, e por arrasto ainda o de Isabel do Carmo.

Miranda Sarmento acusa Carlos Antunes de ter pertencido às FP-25 e de estar associado a crimes de sangue.

A acusação é falsa, como saberá qualquer pessoa que leia história para além de panfletos. Carlos Antunes foi dirigente do PCP e depois das Brigadas Revolucionárias, que mais tarde, desembocariam no partido PRP-BR.

As Brigadas Revolucionárias foram constituídas antes do 25 de Abril e usaram a luta armada contra o fascismo, através de ações bombistas em locais estratégicos. Muitas dessas ações obedeciam a uma estratégia simbólica e tinham como missão alertar para a guerra colonial portuguesa, que vitimou milhares de jovens portugueses e africanos. Exemplo disso foi a bomba detonada nas instalações da NATO em 1971.

Avisem o prof. Miranda Sarmento que nenhuma das ações das Brigadas Revolucionárias teve vítimas mortais. A exceção foi um militante da própria organização, que faleceu acidentalmente enquanto fabricava um engenho explosivo.

Carlos Antunes e Isabel do Carmo são combatentes da liberdade que eu, e certamente muitos outros autores deste blogue, temos a honra de tomar por camaradas. Todos lhes somos tributários do seu profundo sentido de justiça e das ações de resistência perante o fascismo. Não foram responsáveis por nenhuma morte.

Coisa diferente pode dizer-se de outras pessoas com quem Miranda Sarmento se costuma sentar à mesa. Herdeiros do bombismo de extrema-direita que, sobretudo a norte do Tejo, ceifou a vida a militantes de esquerda.

Miranda Sarmento, que no passado já me acusou de "desonestidade intelectual", mentiu sem pudor. Mentir é feio. Estimo que lhe possam dizer isso.

O «wishful thinking» da direita no momento da sua reconfiguração

Como aqui assinalou o João Rodrigues, citando Vítor Dias, o PSD e o CDS tentaram ontem apresentar os resultados das presidenciais como se de legislativas se tratasse, sugerindo que estes «mostrariam um país já maioritariamente voltado para a direita», como se estivesse em curso uma evidente mudança de ciclo político. Sucede, porém, que a sondagem realizada à boca das urnas pelo CESOP-UC, questionando os eleitores de domingo sobre como votariam se fossem eleições legislativas, não só não dá qualquer suporte a pensamentos desejosos nesse sentido como realça o enorme problema que estes partidos têm pela frente.


De facto, segundo a sondagem, e em linha com os exercícios que temos feito no blogue, não só a esquerda manteria a maioria dos assentos no parlamento (52% das intenções de voto), como a «direita convencional» (PSD e CDS-PP) teria uma queda substancial, passando dos 32% obtidos em 2019 para cerca de 25% das intenções de voto (isto é, menos 7 pontos percentuais face às legislativas). Ao contrário do que se passa à esquerda, em que os «novos partidos» (PAN e Livre) regridem ligeiramente face a 2019, as novas formações políticas à direita (IL e Chega), perfazem já cerca de 16% das intenções de voto, numa subida de 13 pontos percentuais face ao resultado obtido em 2019 (3%).

Pouco ou nenhum fundamento têm portanto o PSD e o CDS-PP para proclamar mudanças de ciclo e amanhãs que cantam, empoleirados na reeleição de Marcelo. E menos ainda quando, enfrentando uma crise pandémica sem precedentes, com os seus duríssimos impactos económicos e sociais, o Governo e o conjunto das esquerdas revelam, apesar de tudo, menores níveis de desgaste do que se poderia antever.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Extrema-direita em Lisboa: quantas histórias cabem na mesma região?

A votação que a extrema-direita obteve nas eleições presidenciais deste fim-de-semana promete marcar o debate nos próximos dias. Em Loures, periferia marcada pela pobreza e exclusão, AV conquistou boa parte do eleitorado descontente, como se pode ver nos dados desta freguesia (1952 votos). À primeira vista, podia confirmar uma leitura sobre um determinado tipo de voto de protesto. No entanto, AV teve uma votação bastante parecida na Estrela (1374 votos), uma das freguesias mais ricas de Lisboa, com composição social muito diferente da periferia urbana. Na Área Metropolitana de Lisboa - a mais desigual do país - os votos contam histórias desiguais.

A AML é a região do país com maior desigualdade: 10 dos 18 municípios têm poder de compra per capita inferior à média nacional, enquanto que 2 (Lisboa e Oeiras) apresentam um nível bastante superior à média. Lisboa é, também, o concelho mais desigual: tem o maior índice de Gini do continente (36,4, face à média nacional de 30,7) e quase metade dos agregados familiares da cidade tem rendimento inferior a 1/2 do rendimento médio registado na cidade, de acordo com os inquéritos mais recentes do INE. Isto significa que a riqueza se concentra no pequeno grupo dos mais ricos, ao passo que, entre as classes médias e baixas, muitos enfrentam dificuldades devido ao elevado nível de preços.

As duas freguesias são, também, o espelho destas desigualdades: se Loures pertence à periferia urbana, onde uma maior densidade populacional se conjuga com a precariedade habitacional e com maior proporção de deslocações diárias entre concelhos em transportes públicos (muitas vezes sobrelotados), a Estrela é uma freguesia de classes médias-altas, com boas condições e perto do centro da capital. As condições para a polarização são evidentes. Ainda assim, a extrema-direita conquista votos entre excluídos e privilegiados, pobres e ricos, na periferia e no centro. Uns por descontentamento com as más condições de vida e a ausência de perspetivas, outros por descontentamento com os partidos da direita tradicional. Ambos incontornáveis para perceber o que se passa na cidade. E ambos relevantes para perceber o trabalho que, à esquerda, temos pela frente. Não é pouco.

Não consegui chegar à meia dúzia

1. Com a prestimosa ajuda da maioria da elite dirigente do PS, que recomendou um voto de que terá tempo para se arrepender, já começou, como Vítor Dias indica, a manobra de pura propaganda para “inculcar a ideia de que estas presidenciais seriam umas novas legislativas e mostrariam um país já maioritariamente voltado para a direita.” Esta campanha beneficia do monopólio da direita na televisão controlada por piratas. Sem grande contraditório, é mais fácil ignorar as próprias sondagens para as legislativas, que, de facto, só indicam mudanças significativas dentro das direitas que dizem cada vez mais chega, praticamente sem redução global dos apoios nas esquerdas.  

2. A conversa do voto útil é sempre danosa, uma jogada de soma negativa numa luta pelo segundo lugar: afinal de contas, em 2016, havia 4 candidaturas de esquerda, talvez em sentido demasiado amplo, que tiveram conjuntamente cerca de 40%. Ainda para mais a conversa seria para benefício de uma candidatura, a de Ana Gomes, que, por má direcção de campanha, abandonou uma certa disposição populista de esquerda e acabou a fazer declarações euro-federalistas sobre progressismos e outras irrelevâncias internas ao PS.

3. Em relação ao candidato de extrema-direita e ao seu meio milhão de votos, creio que temos de ter duas atitudes que podem e devem ser complementares: continuação do escrutínio às aldrabices de Ventura e companhia, da intransigência anti-fascista em relação às suas elites dirigentes e militantes, acompanhada de um exercício empático, de colocação nos sapatos de tantos eleitores, tentando compreender melhor motivações e aspirações. E fazê-lo sem precipitações interesseiras e grosseiras, que tão bem servem Ventura e o seu esforço de transversalidade, digamos, como as que dizem que atrás de cada votante comunista existe um eleitor do Chega em potência. Olhe-se antes, politicamente, para as direitas e, socialmente, para as classes intermédias em empobrecimento, tantas vezes em sítios deixados para trás, aposto. Ou seja, veja-se a economia política e moral destas multidões.

4. Realmente, a luta continua: quando se faz o melhor de que se é capaz, com candidato encarnando brilhantemente os valores que temos boas razões para subscrever, há um sentimento de tristeza perante os resultados, mas também a tranquilidade de se ter ido à luta, acompanhada de uma continuada intensidade da vontade.

 

E há mesmo muito trabalho a fazer


«Há centenas de milhares de pessoas em Portugal que votaram em quem quer destruir o SNS e o ensino público, que é racista, machista e homofóbico. Alguém que quer destruir o Estado Social e que fala em ditadura de portugueses de bem. É um dia triste para a democracia portuguesa

Diogo Faro (twitter)

domingo, 24 de janeiro de 2021

O serviço público não é melhor


Entretanto, na noite eleitoral da RTP teremos uma jornalista de direita, um jornalista de extrema-direita e um jornalista a moderar três apoiantes mais ou menos assumidos de Marcelo (talvez um ou outro seja apoiante do candidato da Iniciativa Liberal) e um apoiante de Ana Gomes.

Uma vez mais, apoiante de João Ferreira não comenta. Globalmente, em 12 comentadores de televisão (11 homens e uma mulher), teremos 8 comentadores de direita, dois de centro-centro-centro-esquerda, apoiantes mais ou menos assumidos de Marcelo, e dois de esquerda, apoiantes de Ana Gomes e de Marisa Matias. É o pluralismo a que temos direito.

Do pluralismo

Este é o painel de comentadores de uma TVI controlada por piratas laborais para a emissão presidencial: Paulo Portas, Miguel Sousa Tavares, Manuela Ferreira Leite, Fernando Medina e Rui Moreira. Na SIC, pelo menos, permitem a entrada de um intelectual de esquerda, que chega e sobra para dois facilitadores de direita e de extrema-direita: Luís Marques Mendes, José Miguel Júdice e Francisco Louçã são os comentadores. Apoiantes de João Ferreira ou até de Ana Gomes são excluídos do comentário dito independente. Comunista nunca comenta, claro. Este é o pluralismo de análise nas televisões ditas privadas criadas pelo cavaquismo.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Chega e Ventura: o mimetismo ao milímetro não parou


É uma espécie de «Chega List», um guião de campanha meticulosamente preparado, composto por um conjunto de ações-chave a levar a cabo. Na internet, sites como Uma Página Numa Rede Social e Chega de Ventura desenvolveram um importantíssimo e louvável trabalho de informação e serviço público durante a campanha para as presidenciais. Dia a dia, foram sinalizando os episódios, entre o insólito e o grotesco, desconstruindo falsidades, repondo factos, desmontando encenações e revelando, desse modo, a natureza antidemocrática e perigosa de Ventura e do seu partido.

Como já tínhamos assinalado aqui, citando um dos sites referidos, «tudo copiado do mesmo livro de estilo usado por Trump ou Bolsonaro. As mesmas mentiras, o mesmo embrutecimento das massas, as mesmas contradições constantes, os mesmos grupos de apoiantes - desde interesses ligados aos bens de luxo até às seitas religiosas». É impressionante a imitação dos truques das candidaturas de Trump e Bolsonaro. O que nos diz muito, por sua vez, sobre os perigos que o Chega e o seu candidato presidencial comportam. Sabemos bem o que aconteceu nos EUA e no Brasil, países onde se pensava que, apesar de tudo, a nova extrema-direita fascista não chegaria ao poder.

Pistas esperançosas


Estamos em Coimbra, uma cidade que ilustra as contradições do nosso país: por um lado, graças às forças engendradas por Abril, foi aqui possível desenvolver um polo público de saúde, educação e ciência, capaz de servir as necessidades das populações e de ser motor potencial de desenvolvimento; por outro lado, Coimbra carrega as cicatrizes de um desastroso processo de desindustrialização e este não pode ser desligado da forma como sucessivos governos abdicaram de instrumentos de política de desenvolvimento no quadro de um processo de integração supranacional crescentemente contrário aos interesses do sujeito coletivo onde reside a soberania: o povo português.

Uma vez mais, a Constituição da República Portuguesa dá-nos pistas interessantes para um projeto que pode ser acalentado também a partir da Presidência da República: a ideia constitucional da coexistência de três regimes de propriedade dos meios de produção, público, privado e cooperativo, no quadro de uma economia mista que pode e deve ser estrategicamente planeada, permite vislumbrar um processo de reconstrução de um sector público robusto, que controle nacionalmente áreas estratégicas para o desenvolvimento do país, permitindo guiar o sector privado, uma rede vasta de pequenas e médias empresas, para as áreas de bens ditos transacionáveis, em particular na agricultura e indústria com capacidade de substituir algumas das nossas importações; a ideia constitucional de um sector financeiro ao serviço do desenvolvimento permite-nos vislumbrar um polo bancário público dominante, capaz de dirigir o bem público que é o crédito para uma reindustrialização ambientalmente sustentável, a que aposta, por exemplo, em produzir as componentes das energias renováveis ou os comboios de que o país precisa para expandir a sua rede ferroviária pública; a exigência constitucional de uma política de pleno emprego permite-nos vislumbrar um espaço soberano dotado dos instrumentos de política económica entretanto perdidos e sem os quais este objetivo é uma quimera; a exigência constitucional da redução das desigualdades socioeconómicas e territoriais permite-nos vislumbrar uma comunidade de prosperidade partilhada.

Excertos de umas notas tiradas para uma intervenção numa sessão sobre soberania, produção e desenvolvimento. Realizada no dia 8 de janeiro, no vetusto e renovado Convento de São Francisco, em Coimbra, esta sessão decorreu com toda a segurança e foi para mim, nestes tempos tão sombrios, um momento de alegria e de esperança.
   

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Obstrução do direito de voto sem paralelo na democracia portuguesa


Nas eleições do próximo dia 24 janeiro, assistiremos a uma obstrução do direito constitucional de voto sem paralelo na democracia portuguesa. A lei orgânica 03/2020, que regula estas eleições, não prevê nenhuma modalidade de voto para os que estão em confinamento obrigatória a partir de 14 de janeiro por infeção ou isolamento profilático. São dez dias em que qualquer cidadão com um teste positivo ou um contacto de risco ficará privado de votar. Com o intensificar da pandemia, não falamos de pouca gente. No total, estima-se que estejam nesta situação 170 000 pessoas. 170 000 pessoas que se vêm impedidas do mais básico direito constitucional de voto.

Se tem dúvidas, façamos contas simples. A um ritmo de casos médio de 10.000 pessoas por dia, em média estarão privadas de votar cerca de 100.000 pessoas devido a infeção. Mas não são só os casos positivos que ficam impedidos de votar: os que se encontram em isolamento profilático também. Ontem, entraram em isolamento profilático cerca de 9000 pessoas. Este número varia muito: no sábado, tinham sido cerca de 12000. Assumamos grosseiramente 10.000 isolamentos profiláticos por dia. Para os dez dias de intervalo, passam a ser 100.000 pessoas. A somar aos infetados, chegamos ao valor de 200 000. Temos de retirar 15%, que corresponde a uma aproximação dos casos até aos 18 anos, que não são, por isso, eleitores. Chegamos, então, aos 170 000 Para ilustrar comparativamente, o distrito de Castelo Branco tem cerca 170000 eleitores. É como se a um distrito inteiro de Portugal fosse negada a expressão democrática do voto.

Há argumentos que não podemos aceitar.

O primeiro argumento é que não havia alternativa. Esse argumento, é falso. Mesmo entendendo o esforço logístico que a operação requer, dez dias é uma extensão de tempo excessiva. Teria de ter sido possível estreitar este intervalo para o voto domiciliário numa melhor articulação com o poder local. Cada dia a menos representaria menos 17000 cidadãos que não seriam impedidos de votar. Cada dia a menos teria significado 17000 portugueses a quem não seria negado um direito constitucional.

De igual modo, temos de rejeitar aqueles que desvalorizam o número por afirmarem a pandemia atinge aleatoriamente a população eleitoral, não tendo assim efeitos nos resultados percentuais da eleição. Isso é falso. A pandemia atinge com diferente intensidade diferentes áreas do país e diferentes grupos geracionais e económicos. É do conhecimento comum, quer por anteriores resultados eleitorais quer por resultados de sondagens, que diferentes grupos sociais, geracionais e territoriais têm padrões de voto diferentes. Com efeito, esta situação afetará os candidatos a estas eleições de forma desigual, distorcendo o real resultado da votação. Em democracia, isso não é coisa pouca.

Haverá ainda os que virão dizer que este não é o momento para estas exigências, porque o país vive dramas maiores. É verdade que atravessamos momentos difíceis, mas o Estado democrático tem de saber atender à salvaguarda dos diferentes direitos constitucionais. O direito à saúde é fundamental, sem dúvida. Mas exigia-se que o mesmo Estado fosse capaz de proteger o direito constitucional de voto. As duas missões não são incompatíveis nem envolvem a mobilização dos mesmo tipo de recursos.

Nos últimos dias, assistimos ao que nunca deveria ter de acontecer em democracia. Eu, tal como centenas de cidadãos, muitos deles infetados e em situação de saúde fragilizada, alguns com febre, tiveram de lutar com o melhor das suas forças pelo seu direito de voto. O silêncio que receberam como resposta das várias instituições e candidaturas foi ensurdecedor. Ouvir o ministro Eduardo Cabrita chamar ao voto domiciliário por confinamento um avanço democrático, quando este exclui 170 000, pessoas, é um insulto.

Neste momento, não tenho já esperança que nada seja feito. Mas serve este testemunho para que se não esqueça que o que acontecerá domingo é uma vergonha para a representatividade da democracia portuguesa. 170 000 cidadãos não votarão por estarem legalmente impedidos de o fazer. Não era uma inevitabilidade. Foi só displicência e incapacidade de planeamento das instituições. Uma incapacidade que irá ferir 170 000 cidadãos num dos seus mais básicos direitos constitucionais.

Numas eleições em que também os valores da democracia são sufragados, causa-me angústia ter falta de comparência por tamanho desleixo.

Numa recessão histórica, os défices ainda importam?


No Financial Times de ontem, podíamos ler um dos executivos de topo do Morgan Stanley a defender que o Estado não deve gastar demasiado na resposta à crise, já que a prioridade deve ser a contenção do défice e da dívida pública. O artigo de Ruchir Sharma, com o título “Caro Joe Biden, os défices ainda importam”, talvez pudesse ser mais credível se o banco a que o gestor de investimentos pertence não tivesse recebido um enorme resgate público (cerca de 10 mil milhões de dólares) em 2008, no auge da última crise financeira. Ainda assim, vale a pena olhar para os argumentos.

Sharma começa por notar que o espetro da inflação, normalmente utilizado pelos economistas conservadores para desaconselhar os governos a incorrerem em défices orçamentais, perdeu bastante força depois de, nas últimas décadas, ter ocorrido precisamente o oposto nos EUA. Nota, também, que algumas das principais instituições internacionais, como o FMI, reconhecem hoje que o contexto de taxas de juro historicamente baixas deve ser aproveitado pelo Estado para estimular a economia. No entanto, o gestor argumenta que esta visão negligencia os “efeitos corrosivos que défices e dívidas ainda mais altas terão na economia global”, e cita suposta evidência empírica do Bank of International Settlements (BIS) e da OCDE para afirmar que “décadas de intervencionismo governamental crescente conduziram à desaceleração da produtividade – reduzindo o bolo total produzido – e ao aumento da desigualdade de riqueza.” Na sua opinião, as taxas de juro baixas não são “um caminho para a liberdade”, mas sim “uma armadilha”, já que “encorajam o endividamento, o que prejudica a produtividade e leva a menor crescimento”, alimentando “o populismo ressentido”.

O problema é que os factos teimam em dizer o contrário. Mesmo aqueles que são citados pelo próprio gestor, como notou a economista Daniela Gabor: o estudo do BIS diz respeito à relação entre a desigualdade e a política monetária (e não os estímulos orçamentais), ao passo que o artigo da OCDE diz respeito à proliferação das chamadas “empresas zombie”, que são ineficientes e prejudicam a produtividade da economia, sendo que apenas sobrevivem devido ao acesso a crédito barato. Ambas as tendências estão relacionadas com a política dos bancos centrais, independentes do poder político, e não com a atuação dos governos. Ou seja, foi a enorme injeção de liquidez por parte dos bancos centrais, desenhada para recuperar o valor dos ativos e salvar o sistema financeiro de que a Morgan Stanley faz parte, que contribuiu para aumentar o fosso entre os mais ricos e o resto da sociedade, além de facilitar a sobrevivência das empresas zombie e, com isso, prejudicar a produtividade. Esse é precisamente o motivo pelo qual a política monetária não pode ser aplicada isoladamente e tem de ser complementada com uma atuação bastante mais abrangente do Estado, tanto ao nível da redistribuição da riqueza como ao nível da regulação do setor empresarial. Sharma identifica os problemas, mas erra no diagnóstico.

Por outro lado, a relação entre o endividamento do Estado e o crescimento económico está longe de ser linear. O estudo mais conhecido de Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff, "Growth in a Time of Debt", que procurava provar que uma dívida pública acima de 90% do PIB seria um entrave ao crescimento, foi entretanto desmentido por um estudante de doutoramento, Thomas Herndon. Em co-autoria com Michael Ash e Robert Pollin, Herndon encontrou vários erros na metodologia e nos cálculos do estudo inicial, invalidando a sua conclusão. Hoje, é a própria Carmen Reinhart, agora à frente do Banco Mundial, que apela aos países para se endividarem, reconhecendo que a dívida pode ser útil se for utilizada para financiar a recuperação, algo que foi defendido também pela economista-chefe do FMI, Gita Gopinath.

Na prática, o gestor ignora o que se tornou consensual desde o início da crise que atravessamos: os governos não se podem dar ao luxo de não gastar. A eficácia dos estímulos orçamentais em períodos de crise é hoje reconhecida até por algumas das instituições, como o FMI, que a negligenciavam no passado. Sharma parece demasiado confiante de que “à medida que a vacinação avança e a normalidade regressa, injetar mais estímulos num paciente em recuperação fará mais mal do que bem”. Parece esquecer-se que os programas de vacinação têm decorrido com naturais atrasos em diferentes países e que a normalidade não regressará tão cedo. E parece também menorizar o impacto severo que a pandemia teve na generalidade dos países, onde a contração da atividade económica, do emprego e da procura agregada deixarão cicatrizes a longo prazo. É nesse sentido que os estímulos orçamentais e o investimento público se tornam cruciais: são o que permite apoiar os diferentes setores de atividade, sustentar o emprego e os rendimentos e financiar investimentos estruturais nas infraestruturas e serviços públicos como hospitais, escolas ou transportes.

Não há dúvida de que os défices importam. Podem e devem ser geridos como instrumento de política macroeconómica e utilizados para financiar estímulos orçamentais que cumpram o triplo objetivo de responder aos problemas sociais de curto prazo, sustentar o emprego e promover as mudanças estruturais das economias face ao desafio da transição energética. Sobretudo em países que detêm moeda própria, como os EUA, e que não precisam de estar dependentes de decisões dos mercados ou de um banco central supranacional como o BCE. O que alimenta o ressentimento e os populismos é a ausência de resposta coletiva e séria aos problemas coletivos. Por muito que os gestores de investimentos deste mundo continuem a escrever artigos em que o ignoram.

Visões

A revista semanal Visão é realmente capaz do pior, a promoção do porno-riquismo, indissociável do capitalismo monopolista de herdeiros e de outras taras socioeconómicas, mas também do melhor, a investigação ao apoio capitalista à extrema-direita, em linha com práticas passadas conhecidas. Talvez o pior e o melhor estejam imbricados. A verdade está na totalidade, já dizia um velho filósofo. 
Li recentemente um ensaio de Theodor Adorno, uma transcrição de uma conferência realizada em Viena em 1967, primorosamente editada pelas Edições 70, as que têm uma mancha recente no catálogo. Conheço mal a Escola de Frankfurt, criticada pela minha principal referência germânica actual porque teria abandonado a análise do capitalismo e subestimado a força de uma série de instituições nacionais fundamentais. Junte-se-lhe um certo psicologismo de Adorno e companhia, em torno da contestada hipótese da personalidade autoritária, desenvolvida nos EUA e ainda popular em tantas análises demasiado centrados no indivíduo.

Seja como for, registei algumas ideias de Adorno, na tradição da economia política, no meio de pontos de interrogação e de exclamação, polvilhados pelo pequeno livro, incluindo o posfácio, que ocupa metade da obra. 


Assim, entre “os pressupostos sociais dos movimentos fascistas” contam-se a “tendência para a concentração do capital” e a associada “possibilidade de degradação de classes sociais que, de acordo com a sua consciência de classe subjetiva, se considerariam realmente burguesas”, sublinhando o “medo das consequências da evolução da sociedade” e considerando que “os movimentos fascistas poderiam ser considerados as cicatrizes de uma democracia que continua, até hoje, a não corresponder plenamente ao seu próprio conceito”. 

O problema central da economia política é hoje a tendência do capitalismo para a desdemocratização, particularmente acelerada na e pela UE. Olhem à vossa volta: a insegurança social fruto da impotência democrática nacional, o desespero, o medo, a vontade de dar uma abanão nisto em segmentos despolitizados e em despromoção social acentuada das classes intermédias, a eficácia de uma certa propaganda que chega à televisão controlada por piratas laborais, “meios racionais para fins irracionais”, como assinala Adorno, muito pode laborar a favor de Ventura; ainda para mais no contexto de um confinamento de duração indefinida, que não terá, nem de perto, nem de longe, o mesmo grau de consentimento do anterior. 

Quem não quer falar de capitalismo, não pode falar de fascismo, como lembrava um co-autor de Adorno chamado Max Horkheimer. Hoje, aqueles, à esquerda e à direita, que não querem falar criticamente de neoliberalismo, da forma ainda dominante de economia política, e que ainda são capazes, por exemplo nesta campanha presidencial, de defender as instituições supranacionais que garantem a sua perpetuação em parte do continente europeu, não têm grande autoridade para falar sobre tendências fascizantes que lhe são endógenas. 

Neste contexto, uma certa oferta racista, promovida por gente com todos os pergaminhos universitários, contribui para gerar uma certa procura, perante a complacência de quem tem a obrigação de fazer respeitar uma Constituição desenhada para impedir objectivamente certas ofertas: “ou se está com a policia ou com os ciganos”, declarou Ventura. Se sublinho os pergaminhos académicos de gente como Ventura é para contrariar a ideia perversa, segundo a qual o problema político residiria na, se resumiria à, falta de qualificações. Sim, o discurso fascizante também é promovido por doutorados, de André Ventura a Fátima Bonifácio. Isto não é novo, claro.

E, sim, as organizações da classe trabalhadora foram e são dos melhores baluartes democráticos e anti-fascistas. O problema é mesmo a desorganização, a fragmentação, promovida por esta forma de capitalismo. Quem não quer falar do trabalho organizado, não pode falar de anti-fascismo, quer como programa negativo, de resistência, quer sobretudo como programa positivo, de construção de um Estado fundado na defesa de quem cria tudo o que tem valor. 

Cumprir e fazer cumprir a nossa Constituição, a que ainda tem traços de Abril, no fundo.