quinta-feira, 31 de março de 2022

Incentivos estrangeiros


Era perceptível que forçar a entrada da Ucrânia e da Geórgia [na NATO] poderia desencadear uma crise geopolítica com esta gravidade. A responsabilidade política em tudo o que tem a ver com a violência, com o uso da força é sempre incontornável, mas a responsabilidade das lideranças políticas das grandes potências no desencadeamento de uma crise geopolítica é muitíssimo maior. Se há crise que é preciso evitar é uma crise entre grandes potências. (...) [A China] não me tem surpreendido pela forma muito cautelosa com que tem abordado o tema.
  

Há várias passagens da entrevista de Luís Amado ao Público surpreendentemente razoáveis, tendo em conta que, na linha de Jaime Gama, seu mentor, já foi um peixe de águas profundas do Atlântico Norte, do Consenso de Washington, o do fim da História. Mais recentemente, parece que mudou para as águas do Pacífico, para o emergente Consenso de Pequim, o do reinício da História num quadro multipolar mais sadio. 

Afinal de contas, Amado está na EDP, sendo presidente do Conselho Geral e de Supervisão de uma empresa estratégica nacional, hoje controlada pelo Estado chinês e que nunca devia ter sido privatizada, claro. Os chineses não o fizeram, porque sabem que sem empresas estratégicas nas mãos do Estado não há estratégia de desenvolvimento: da banca à energia, passando pela ferrovia. 

Com esta burguesia compradora, fórmula de Mao, é simples: os incentivos estrangeiros explicam tudo.

quarta-feira, 30 de março de 2022

O parque habitacional público não se vende, reforça-se

É sabido que Portugal tem um parque habitacional público muito limitado, que representa apenas cerca de 2% do total de alojamentos. Em 2021, na Europa dos 15, esse valor coloca-nos na cauda da Europa, com apenas três países (Espanha, Luxemburgo e Grécia) a registar valores ainda mais reduzidos e também eles significativamente abaixo da média do conjunto, a rondar os 9%. A política de habitação minimalista, em termos de promoção pública direta, que prevaleceu durante décadas, e a aposta prevalecente nos apoios à aquisição de casa própria - sem reflexo na descida dos preços - ajudam a compreender como se chegou até aqui.


Como se não bastasse, este défice estrutural de oferta pública foi agravado por práticas de alienação de habitação social, limitando ainda mais a capacidade de resposta pública neste domínio. Uma estimativa do impacto desta opção, de venda de património habitacional do Estado, sugere que foram retirados do parque público mais de 50 mil fogos desde 1981. De facto, existiam nesse ano cerca de 122 mil alojamentos sociais, um universo praticamente igual ao registado em 2011, apesar de terem sido construídos 56 mil fogos ao longo do período. Ou seja, caso toda a promoção pública se tivesse mantido como propriedade pública, ter-se-ia atingido um valor de 178 mil fogos sociais em 2011, permitindo falar de um setor habitacional público de 3,7% (acima dos 3,1% registados nesse ano).


Suscita por isso grande perplexidade a intenção, por parte da coligação de direita que hoje governa Lisboa, de integrar na política habitacional local a alienação de fogos municipais, reduzindo a já de si escassa capacidade de resposta às carências e necessidades existentes. Intenção essa que, felizmente, foi entretanto travada pelos partidos de esquerda. De facto, mesmo que se esteja a falar da venda dessas habitações às famílias que nelas residem, tratar-se-á sempre da alienação de um recurso, limitando de forma permanente e definitiva a oferta pública construída e disponível.

Apenas em casos muito excecionais, como sucede em situações de realojamento que permitiram, com o tempo, a constituição de comunidades estáveis, esta opção deverá ser equacionada. Mas mesmo nessas situações, sempre com o pressuposto assumido de que o resultado financeiro das respetivas operações seja exclusivamente destinado à promoção de novos fogos sociais e reforço da oferta, de modo a pelo menos manter, e não reduzir, o parque habitacional público existente.

terça-feira, 29 de março de 2022

Tempos anacrónicos


Lembram-se deste episódio televisivo da recém-estreada CNN Portugal?

O lapso cómico inflamou num ápice as redes sociais, ressoando como uma enorme e sonora gargalhada. Era uma gargalhada sincera pelo momento irracional daquela falsa ligação sináptica, mas ao mesmo tempo representava um gozo crítico à arrogância com que a TVI irrompera à cowboy na concorrência informativa, batendo-a, com a imagem "de qualidade" e o apoio da CNN norte-americana. Era como se tudo estivesse muito bem embrulhado, mas cheio de lacunas de base por parte das estruturas montadas. Era a imagem simbólica de que parecia informação, voava como informação, mas era outra coisa qualquer.

Pois bem, a todos os que riram da situação, saibam no que dá esse momento hilariante, num ambiente cegamente concorrencial: há propostas de despedimento da pessoa que foi dada como responsável pelo lapso!

É como se quem está a frente da TVI visse o filme "Tempos Modernos" de Charlie Chaplin (de 1936!) e aplaudisse o despedimento daquele operário que não conseguiu acompanhar o ritmo infernal das máquinas, que o obrigava - a ele e a todos os operários - a laborar sem descanso, sem pensar, sem lógica humana que não o resultado final favorável a quem era dono da máquina.

Passaram quase 100 anos, mas ainda há não tenha ainda percebido o filme...


segunda-feira, 28 de março de 2022

Meias verdades do Instituto +Liberdade: a taxa de IRC e o rendimento dos países

Uma das publicações mais recentes do Instituto +Liberdade diz respeito às taxas de imposto sobre as empresas. O gráfico apresenta-nos o conjunto dos países europeus da OCDE e compara a taxa estatutária máxima de IRC existente em cada um destes com o seu nível de rendimento por habitante (medido por um indicador que representa o rendimento nacional bruto per capita de cada país face à média da região). O instituto destaca o facto de Portugal ter a taxa estatutária mais elevada entre os países escolhidos e de ser também um dos mais pobres. Não é difícil adivinhar a prescrição dos liberais: se descermos os impostos sobre as empresas, estaremos a dar-lhes mais condições para criar riqueza e pôr a economia a crescer. No entanto, os problemas deste raciocínio começam no próprio gráfico partilhado.

Por um lado, o que o gráfico mostra é que não existe qualquer relação entre a taxa nominal de IRC de um país e o seu nível de rendimento per capita. Há países com taxas mais elevadas e níveis de rendimento per capita mais elevados (Alemanha, Áustria, Bélgica ou França), países com taxas mais baixas e níveis de rendimento inferiores (Hungria, Lituânia) e países com taxas semelhantes e níveis de rendimento profundamente diferentes (veja-se, por exemplo, os casos da Suécia e da Turquia, ou do Luxemburgo e da Grécia). O que não há é qualquer relação observável entre a taxa nominal de IRC e o rendimento per capita dos países.

Por outro, há também países cujo valor do rendimento nacional bruto se encontra bastante inflacionado, por exemplo, pela presença de multinacionais no país. É o caso da Irlanda, acerca da qual o indicador escolhido não nos diz quase nada, uma vez que não reflete o nível de vida realmente existente no país.

Além disso, o instituto usa os valores da taxa estatutária de IRC e não os valores da taxa efetiva. Se se olhar apenas para a taxa estatutária máxima, não se tem em conta as isenções ou reduções de impostos de que as empresas beneficiam em cada país. As taxas efetivas são calculadas comparando o valor que é pago em impostos com o valor dos resultados das empresas antes de impostos, dando uma ideia mais aproximada daquilo que estas efetivamente pagam. De acordo com os dados da OCDE, as empresas em Portugal pagam uma taxa efetiva de 25%, ligeiramente acima de países como a Holanda (23,7%), a Áustria (23,4%) ou a Espanha (23,3%), e abaixo de outros, como a Alemanha (28%) ou a França (29,4%).

Baixar o IRC melhorava a situação do país?

A direita tem repetido à exaustão que os cortes de impostos para as empresas estimulam o crescimento económico. A ideia é relativamente intuitiva: menos impostos sobre as empresas permitem-lhes aumentar os montantes que reinvestem, contribuindo para melhorar a produção e os salários. O problema é que os factos teimam em desmenti-la, como mostra a recente revisão de literatura feita pelos economistas Philipp Heimberger e Sebastien Gechert. Heimberger e Gechert analisaram dezenas de estudos empíricos sobre os impactos de cortes de impostos para as empresas e procuraram perceber se havia algum padrão identificável, mas concluíram que, ao contrário do que os partidos de direita têm dito, não há evidência empírica que nos permita afirmar que esses cortes promovem o crescimento económico.

Temos até exemplos recentes do contrário, como o dos EUA: depois de o governo de Donald Trump cortar a taxa de IRC de 35% para 21% (o valor mais baixo desde 1939), o investimento privado não acelerou e os salários não beneficiaram da medida. Quem beneficiou da medida foram os acionistas e gestores de topo, cujos rendimentos aumentam com o reforço da capitalização bolsista das empresas. Para os trabalhadores com salários médios ou baixos, o saldo acaba por ser negativo, dado que o Estado perde receita fiscal com que se financiam os serviços públicos de que todos beneficiam.

Na página do Instituto +Liberdade, pode ler-se que um dos seus objetivos é o de “melhorar a literacia financeira e económica no país” para que “as pessoas tomem decisões informadas”. No entanto, têm sido várias as publicações que constroem argumentos a partir de meias verdades ou da omissão dos factos que não encaixam nestes (por exemplo, aqui, aqui, aqui ou ainda aqui). E isso dificilmente contribui para o debate informado.

 

domingo, 27 de março de 2022

Presenças e ausências marxistas


A força do impacto dos textos de Losurdo sobre mim se deve a dois elementos diferentes mas interligados: a vinculação da luta comunista à questão colonial/racial e a retomada de uma visão realista das experiências de socialismo real quando estávamos todos hipnotizados pela verdade absoluta da superioridade moral e política do chamado 'mundo livre'.

Caetano Veloso resume muito bem o impacto de Domenico Losurdo (1941-2018), grande filósofo e historiador marxista italiano, a que já aqui várias vezes aludimos, no prólogo que escreveu a uma coletânea de textos inéditos em português. No Brasil existe uma cultura marxista digna desse nome e a editora Boitempo é a expressão editorial dessa realidade. 

Em Portugal, se virmos bem, com excepções conhecidas, a cultura marxista peca pela ausência. No Público, por exemplo, Alexandra Prado Coelho consegue fazer uma análise das relações internacionais a um Domingo, ignorando o contributo do marxismo, como se tudo se passasse entre realistas e liberais, com vantagem, claro, para os últimos; como se o desastre do liberalismo armado, da forma ideológica dominante do imperialismo, não estivesse à vista. Na realidade, está muito por fazer e tudo por traduzir...


sexta-feira, 25 de março de 2022

Escutar Francisco


«Senti vergonha quando um grupo de Estados se comprometeu gastar 2% do PIB para comprar armas, em resposta ao que se está a passar. Uma loucura. (...) A verdadeira resposta, no entanto, não são mais armas, mais sanções, mais alianças político-militares, mas sim um foco diferente, uma forma diferente de governar o mundo, agora globalizado, e de configurar as relações internacionais. (...) Para os que pertencem à minha geração é insuportável ver o que aconteceu e está a acontecer na Ucrânia. Mas, desgraçadamente, isto é fruto da velha lógica política de poder que continua a dominar a chamada geopolítica. (...) As guerras regionais nunca faltaram, até se chegar a esta, que tem uma dimensão maior e ameaça o mundo inteiro. (...) O problema básico é o mesmo, continuamos a governar o mundo como um “tabuleiro de xadrez”, onde os poderosos tramam os seus movimentos para alargar o seu domínio em detrimento dos outros».

Papa Francisco (citado em artigo no DN)

Meias verdades do Instituto +Liberdade: os preços dos combustíveis


O Instituto +Liberdade publicou um gráfico sobre o aumento do preço dos combustíveis ao longo do ano. O gráfico destaca a evolução da cotação internacional do petróleo, dos custos de armazenagem, distribuição e comercialização e da receita fiscal por cada litro de gasóleo. O instituto destaca que “a subida da cotação do barril de Brent tem conduzido ao aumento da receita fiscal associada aos combustíveis”. A Iniciativa Liberal, que conta com vários membros nos órgãos deste instituto, seguiu a mesma linha e concluiu que “o único depósito cheio é o do Governo”.

O problema desta análise é aquele a que tanto o instituto como o partido nos têm habituado: a omissão de variáveis que são decisivas para explicar o fenómeno em causa, de forma a enviesar as conclusões. Uma análise séria da evolução dos preços dos combustíveis tem de ter em conta todos os fatores que os influenciam, o que inclui, além dos que já foram referidos, as margens de lucro das empresas da energia. Vamos então aos factos:

Facto nº 1: as taxas de imposto sobre a gasolina e o gasóleo não aumentaram. Na verdade, o governo até reduziu o ISP (imposto sobre produtos petrolíferos, que corresponde a um valor fixo por litro) no ano passado, e voltou a fazê-lo este mês de forma a compensar o aumento da receita de IVA (que é proporcional aos preços).

Facto nº 2: o peso destes impostos em Portugal não se afasta substancialmente da média europeia. De acordo com os dados publicados pela Comissão Europeia no início deste mês, representam cerca de 52,5% do preço da gasolina e 46,5% do gasóleo, face às médias de 50,5% e 44,6% na Zona Euro, respetivamente. Pode-se questionar se este é excessivo ou não, mas a situação é semelhante nos vários países.

Facto nº 3: se há coisa que aumentou consideravelmente no último ano, foram os lucros das grandes petrolíferas. As sete maiores empresas mundiais do setor da energia registaram lucros extraordinários e anunciaram que vão distribuir cerca de 50 mil milhões de euros aos acionistas. Em Portugal, a Galp também registou lucros avultados – 457 milhões – e propôs um aumento dos dividendos e das operações de recompra das próprias ações.

Facto nº 4
: desde o início da guerra na Ucrânia, as margens de refinação dispararam. Estas margens refletem a diferença entre os custos de aquisição do petróleo e o preço de venda dos produtos refinados. A margem de refinação do grupo Neste, da Finlândia, que era de 5 dólares por barril em setembro de 2021 e rondava os 7 dólares por barril no início deste ano, passou para 42 dólares com o começo da guerra. O mesmo se passou nas restantes grandes empresas, o que levou a agência de notação S&P Global a constatar que “as margens europeias de refinação atingiram um pico no quadro de extrema volatilidade na cadeia petrolífera, após a invasão da Ucrânia pela Rússia”. A Galp ainda não revelou os dados deste trimestre, mas é expectável que a tendência não seja muito diferente.

Há um depósito que está a ficar cheio na sequência do aumento dos preços: o das grandes empresas da energia. A resposta ao problema também passa por medidas que contrariem essa tendência.

Uma dezena de telegramas

1. O complexo militar-industrial é a forma norte-americana de política industrial consensual e agora reforçada, o chamado estado desenvolvimentista escondido; 

2. Reforçar o complexo militar-securitário é a forma que a Alemanha tem de contornar os limites ordoliberais auto-impostos ao investimento público; 

3. Confirmando que a globalização e a desglobalização são armas políticas, as sanções económicas são contraditórias: exibem o poder do centro capitalista e podem acentuar a desconexão económica num mundo assim mais multipolar; 

4. A inflação é definitivamente um fenómeno real, tendencialmente puxada pelos aumentos dos custos; 

5. Os principais preços numa economia capitalista, a começar na taxa de juro e a acabar na energia, são ou podem ser politicamente determinados; 

6. O preço do pão continua a ser um termómetro da legítima insatisfação plebeia e dos correspondentes riscos para as hierarquizadas ordens estabelecidas; 

7. A guerra é o teste à resiliência das formas de economia política dominantes: pode exportar-se violência e importar-se lutas de classes intensificadas; 

8. A aparentemente etérea economia dita da informação e do conhecimento depende de coisas bem materiais, confirmando que a economia é sempre geopolítica. 

9. As desigualdades económicas cavadas e os impérios capitalistas sempre armados continuam a ser a principal fonte de guerras e de inimizades entre os povos.

10. A economia convencional, ahistórica e pretensamente apolítica, sem tempo e sem espaço, é imprestável.

quinta-feira, 24 de março de 2022

Para compreender


Como escreveu Sandra Monteiro num editorial claro sobre condenações claras, assim no plural: 

“Compreender as origens deste ataque implica acompanhar as relações internacionais, a política externa dos países, os movimentos geopolíticos, geoeconómicos e geoestratégicos. Exige acesso a fontes plurais e o seu confronto, e é incompatível com visões do mundo a preto e branco, povoadas por agentes do bem e agentes do mal.” 

No meio de uma decadente comunicação social, que às vezes parece um somatório de porta-vozes da OTAN-UE, atentem, por contraste, no dossiê do Le Monde diplomatique – edição portuguesa sobre a crise na Ucrânia que está disponível gratuitamente no site de um jornal a assinar.
 

quarta-feira, 23 de março de 2022

Há infografias da Pordata que são todo um programa

Fica a dúvida sobre se é apenas enviesamento ideológico enquistado, mera ignorância ou simples sonsice. Provavelmente é de tudo um pouco, sem que isso torne as coisas mais aceitáveis, num portal que é consultado por milhares de pessoas e que tem o mérito de ter feito o que o INE não fez no tempo devido: coligir séries longas de dados estatísticos em vários temas. Mas o facto é que se encontram na página do facebook da Pordata publicações que suscitam perplexidade. A título de exemplo, atentemos em três, publicadas nos últimos dois meses.


A primeira (imagem da esquerda) é recorrente, remontando a uma infografia pulicada no 1º de Maio do ano passado. Sugere, num erro grosseiro, que a produtividade depende do «desempenho dos trabalhadores», ignorando que este indicador resulta de um conjunto diverso de fatores (ver aqui) e não, simplesmente, do volume de horas trabalhadas. Razão pela qual, aliás (como assinalado aqui), há países com um volume de tempo de trabalho inferior ao de Portugal e que atingem níveis de produtividade bem mais elevados. Mas não, o importante para a Pordata é passar a ideia de que os trabalhadores são responsáveis pela baixa produtividade no nosso país.

A segunda (imagem ao centro), toma como referência os dados dos Censos de 2021 para dar destaque ao ligeiro aumento (0,6%), nesse ano, da população em situação de pobreza material severa, face a 2020. Ignorando portanto, para além da omissão da pandemia como fator explicativo dessa variação, a tendência de fundo que mais importa reter. Isto é, a queda continuada da taxa de privação material severa desde 2013, ano em que se atingiu o valor de 10,9% (ou seja, no tempo em que a maioria de direita se entretia a empobrecer o país) para os 6,0% registados em 2021. Mas não, a Pordata prefere assinalar a subida de 0,6% entre 2020 e 2021, como se o país andasse a empobrecer.

A terceira publicação destaca a ideia de que «foram perdidos» dias a «reivindicar direitos». Isto é, não resiste à tentação de dar relevo a esta formulação na imagem, preterindo a que consta do texto de entrada, bem mais objetiva e ideologicamente neutra («quantos dias cada trabalhador se ausentou, por motivo de greve»). O desprezo pela melhoria das condições de vida e de trabalho, pelo combate à precariedade e pela valorização salarial e redução das desigualdades, entre outras questões relevantes para a economia como um todo, torna-se indisfarçável. O que mais importa é sugerir nas entrelinhas, com a subtileza possível, que dias de greve são dias perdidos, prejudiciais ao país.

Por mais que tudo isto fosse inadvertido, o resultado configura toda uma agenda ideológica, todo um programa.

terça-feira, 22 de março de 2022

Abril e a luta estudantil


«No próximo dia 24 de março assinalam-se mais dias de democracia do que ditadura em Portugal. Este momento, de um profundo simbolismo, é o ponto de partida para as comemorações oficiais dos 50 anos da revolução em Portugal – e, coincidência feliz, é também a data em que se cumprem os 60 anos da crise académica de Lisboa. (...) O papel do movimento associativo estudantil, traduzido nas várias crises académicas que enfrentaram a ditadura, é, por isso, um dos temas em destaque nas celebrações».

Para assinalar a data, realiza-se na quinta-feira, a partir das 9h30, o colóquio Primaveras Estudantis: Da crise de 1962 ao 25 de Abril, promovido pela Comissão Comemorativa do 25 de Abril e pela Universidade de Lisboa. A entrada é livre, sujeita a inscrição.
No decurso da sessão, será apresentado o documentário «Sampaio, Caetano e Salazar: o confronto de 1962», realizado pelo jornalista Jacinto Godinho e produzido pela RTP. Também amanhã, às 18h00, será inaugurada a exposição alusiva ao tema do colóquio, que ficará patente no Museu Nacional de História Natural e da Ciência, em Lisboa.

segunda-feira, 21 de março de 2022

Revista Manifesto nº6 - Apresentação em Vila Franca de Xira


O nº6 da Revista Manifesto será apresentado no próximo domingo, dia 27 de Março, às 15h30, na Biblioteca Municipal de Vila Franca de Xira.

Com apresentação de Manuel Carvalho da Silva, Nuno Serra e Diogo Martins. Moderação de Maria José Vitorino.

Relembramos que a aquisição da revista, bem como a consulta do seu editorial e da sua lista de artigos, pode ser feita aqui. A revista pode ainda ser adquirida em várias papelarias e livrarias do país.

Sem máscaras


Deixo por aqui a introdução e a primeira secção, sem notas de rodapé, de uma recensão, que acabou por se transformar num artigo, com mais de duas dezenas de páginas, escrito a convite da Vértice há umas semanas atrás e que sairá no próximo número da revista:

As máscaras dos Estados nos capitalismos: os trabalhos de António Avelãs Nunes 

A convite das Edições «Avante!», no dia 23 de Novembro de 2021, tive o privilégio de apresentar o livro O Estado Capitalista e as suas Máscaras, da autoria de António Avelãs Nunes, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC), a sua instituição há mais de seis décadas e uma que me é literalmente familiar: o meu saudoso pai aí se licenciou, em 1976, e a minha irmã o fez também, exatamente trinta anos mais tarde. Um economista político, um historiador das ideias económicas, não pode esquecer o Direito, porque as formas institucionais que a economia historicamente assume também devem algo a um tipo muito relevante de norma, que, por sua vez, muito deve aos complexos entrelaçamentos entre forças produtivas e relações sociais de produção. 

Num livro recente – que aliás tem marcado os debates anglo-saxónicos na interseção entre a Economia Política e o Direito – a Professora da Universidade Columbia, Katharina Pistor, sem deixar de fazer um enorme esforço para não parecer marxista, argumenta detalhadamente que “o capitalismo é um uma economia de mercado em que a certos ativos são dados esteroides legais”, prática estatal reconhecidamente incrementada pela derrota dos freios e contrapesos socialistas e acentuada pela globalização neoliberal, sem esquecer que “a mobilidade de capital é função de uma estrutura legal em última instância suportada pelos Estados”. 

Tendo sido desafiado a transformar em artigo para a Vértice as notas tiradas para essa ocasião, o que se segue, como o que já o precede, está algures entre a apresentação de um distinto autor, que aliás dispensaria tal momento, a recensão dum livro e o pretexto para trocar, agora com os leitores de uma revista com história, umas ideias sobre alguns dos mais cadentes assuntos levantados por um livro em desenvolvimento, ponto de chegada e ponto de partida. 

Nacionalizar


Macron pode ser “o último neoliberal”, mas o governo francês pondera aumentar o controlo público da EDF, na qual o Estado francês ainda detém 84%. Em França são mais pragmáticos do que em Portugal: a ameaça e a prática de nacionalizações serviram historicamente para disciplinar as grandes empresas. Entretanto, nesta periferia energética, António Costa vai implorar qualquer coisa a Bruxelas. Até quando esta dependência política em relação à UE?

domingo, 20 de março de 2022

Leituras adversativas


«Estudar história não é apenas importante para conhecer o passado. É também indispensável para perceber o presente e até para planear o futuro. Os comentários mais interessantes sobre o presente conflito, decorrente da invasão da Ucrânia pela Rússia, vieram precisamente de quem sabe história, a dos países envolvidos, a dos vizinhos como a Polónia e até a de outras negociações de paz, mostrando como a humilhação excessiva dos vencidos pode virar-se contra os vencedores. É aí que a discussão tem saído da bolha emocional das redes sociais.»

Maria Manuel Leitão Marques, Saber história

«A transmissão principalmente nas televisões, o meio mais poderoso na sua comunicabilidade e empatia, de 24 horas por dia, levanta sérias dúvidas de qualidade do jornalismo e da sua função de dar a todos, em democracia, informações para poderem ter opinião e decidirem. Uma guerra é um tema emocionalmente forte, e 24 horas de guerra por dia presta-se a dois efeitos aparentemente contraditórios: um, o efeito de viciação; outro, do cansaço. Quer num caso, quer noutro, o rasto comunicacional torna-se essencialmente emotivo e pouco racional, o que o deixa muito propício à manipulação. No contexto atual de mentalidade cultural, social e política, torna-se mais um factor agravante da radicalização numa sociedade em que já o é em demasia. Numa democracia, as emoções têm um papel decisivo e tudo as favorece, enquanto a necessidade da razão tem uma vida difícil. As emoções moldam a opinião pública com facilidade. E a razão, não.»

José Pacheco Pereira, Razão, excitação, cansaço, desintoxicação

«A invasão russa da Ucrânia provocou uma tempestade emocional, em alguns dos nossos comentadores da imprensa e do audiovisual, que está a atingir os limites da decência. Mesmo sem fazer nenhum esforço de pesquisa para tal orientado, já surpreendi estrategistas instantâneos a corrigirem militares profissionais, por escritos ou entrevistas televisivas, ou a censurarem cronistas como Miguel Sousa Tavares, ou académicos como Boaventura Sousa Santos, pelo simples facto de estes tentarem oferecer aos seus espectadores e leitores uma visão mais alargada e historicamente contextualizada da complexidade de causas e problemas que nos conduziram à actual guerra. Repare-se que nenhum dos visados deixou de condenar o ataque de Putin, e de sentir solidariedade com as vítimas da ofensiva russa. Para aqueles plumitivos censores, traindo esse obscuro conformismo que também mora na nossa tradição cultural, tudo o que não se acolhe na sua grelha bicolor e binária, que arruma os contendores em demónios e anjos, implica uma cedência indesculpável ao "putinismo"...»

Viriato Soromenho Marques, A guerra das paixões

«Novamente nesta guerra se revela a nossa incapacidade de problematizar, de fazer uma reflexão para lá do óbvio que nos é servido. A recusa de grande parte dos europeus em aceitar que se faça uma contextualização da guerra, que se apontem as falhas da governação ucraniana, que se diga que existe ali um problema de extrema-direita (…) mostra que continuamos com pés de barro. A forma como tratamos os refugiados ucranianos em comparação com os restantes e a comoção com as vítimas desta guerra comparativamente às de outras guerras revelam uma falha na compreensão do significado dos direitos humanos. Qualquer questionamento que se faça à narrativa é interpretada como um apoio a Putin e à própria invasão. As pessoas não toleram que se pense. Quem não adere na íntegra à versão Hollywood desta guerra é desconsiderado. (…) É claro que a invasão da Ucrânia deve ser condenada e é certo que nada a justifica. Mas em que é que mais uma fábula pode ser útil?»

Carmo Afonso, Os falsos defensores das democracias ocidentais

«Sobre a guerra na Ucrânia e o seu horror, agora quero apenas dizer o mesmo que venho dizendo desde o primeiro texto que sobre ela escrevi, muito antes de começada e quando ainda acreditava que não aconteceria: que a paz acabe por se impor, pois que, além das razões óbvias, não vejo razão determinante que a impeça. Espero veementemente que, por estes dias, os únicos que continuam os esforços reais para encontrar um entendimento que leve à paz – e que, significativamente, são os beligerantes – consigam lá chegar. E à data de hoje, quarta-feira, não obstante as imagens de morte e destruição que continuam presentes e não obstante as cirúrgicas provocações que nestas alturas vêm sempre do lado de cá, há também sinais de esperança para a paz mais fortes do que nunca antes. Porém, não consigo afastar esta sinistra suspeita de que, fora da Ucrânia martirizada, há muitos que não a desejam.»

Miguel Sousa Tavares, O clube liberal

sábado, 19 de março de 2022

O que disse o Papa?


Deve haver um pecado para quem mal cita um Papa.

No passado dia 13, as emissões televisivas fizeram eco da intervenção do Papa Francisco, no Vaticano, diante da Praça de S.Pedro. As emissões da SIC e RTP pareceram iguais, indiciando ter vindo montada de fora, via agência internacional. Já a peça daRádio Renascença, passou a intervenção na íntegra. Transcreva-se então a intervenção completa e coloque-se parêntesis rectos nas partes retiradas:
"Frente à barbárie da matança das crianças, das pessoas inocentes e dos civis indefesos, não há razões estratégicas que valham: Há que cessar a inaceitável agressão armada, antes que reduza as cidades a cemitérios. Com dor de coração uno a minha voz à da gente comum, que implora o fim da guerra. [ Em nome de Deus, escutem o grito dos que sofrem, ponham o fim aos bombardeamentos e aos ataques... ] Em nome de Deus, peço-vos: detenham essa matança! [ Em nome de Deus, escutem o grito e ponham fim aos bombardeamentos e atentados! Que se trabalhe real e resolutamente na negociação e que os corredores humanitários sejam efectivos e seguros. Em nome de Deus, peço-vos: detenham essa matança!" ]
O que disse então o Papa: "Parem esta matança!" ou "parem esta matança e negoceiem!"?

Parece um pormenor, mas não é. Na primeira, a interpelação dirige-se à Rússia (enquadrando-se na mensagem dita ocidental - "a Rússia começou, a Rússia tem de parar") e portanto mostra aos cidadãos ocidentais que o Papa está também na sua campanha militar. Na segunda, a mensagem dirige-se às diversas partes envolvidas no conflito, independentemente das responsabilidades directas ou indirectas (e aí desenquadra-se da mensagem dominante passada nos Media). E que até é passível de ser extensível à responsabilidade pela Paz por parte dos principais países do Mundo que, afinal, estão envolvidos no conflito, caso nos lembremos do material militar já remetido para o território ucraniano. Alguém, parece estar pois, a editar a palavra do Papa, ao arrepio do que ele diz, embrulhando-o num dado sentido.

Ora, este tipo de reinterpretação da mensagem papal não é, porém, caso único. Pesquisando a palavra "Ucrânia" no site oficial do Vaticano, encontram-se outras intervenções do Papa Francisco que - acho eu - não surgiram em emissões televisivas e que poderiam ter inúmeros destinatários que não apenas a Rússia.

Aceitem-se os sublinhados nossos:

Um «mindset» de conversa de café sobre trabalho em Portugal

O artigo de José Crespo de Carvalho no Observador (ia dizer «where else?», mas há mais imprensa que publicaria o texto de bom grado), bem podia ter sido escrito por «um gajo de Alfama». Mas não, sai da pena de um professor catedrático, presidente do INDEG - ISCTE Executive Education (transitando da NOVA SBE), especialista na formação de executivos.

Dedicado ao impacto que a vinda de refugiados ucranianos terá no mercado de trabalho em Portugal, o texto está recheado de falsas perceções de senso comum, sobejando em precoceito e em clichés de mesa de café o que lhe falta em factos e conhecimento. Como se não bastasse, revela ainda total insensibilidade para com a condição dos que chegam vindos da guerra (encarados como mera mão-de-obra), dispensando-se José Crespo de qualquer referência à prioridade humanitária do seu acolhimento (apesar de, curiosamente, ser co-fundador da «We Help Ukraine», sabe-se lá, portanto, com que motivações).

O que desperta o interesse do catedrático é mesmo essa «nova força de trabalho» que está a chegar, 30 mil ucranianos que «trabalham mais e reclamam menos» do que os que cá estão («ninguém espere que sejam trabalhadores das nove às cinco», adverte Crespo), e que por isso podem, ao trazer um «mindset diferente daquele a que estamos habituados, (...) mudar o perfil do trabalho» no nosso país. Ou seja, todo um quadro mental que denota, nas entrelinhas, a defesa de muitas horas de trabalho (em nome de uma ideia obsoleta de «produtividade»), baixos salários (em nome de uma noção falhada de «competitividade») e poucas reivindicações (a bem de uma capciosa «paz social»). Um mimo.

José Crespo ainda não percebeu, por exemplo, que em Portugal se trabalha muito. Antes da pandemia, em 2019, o nosso país ocupava o 4º lugar, no conjunto dos 28 da UE, em termos de horas anuais por trabalhador, sendo apenas precedido pela Grécia, República Checa e Polónia. Mas quando se tem uma noção serôdia e ideologicamente enviesada de produtividade, como aquela que é dada pela Pordata (que interpreta este indicador como reflexo direto do «desempenho» dos trabalhadores), não há de facto muito a fazer.

sexta-feira, 18 de março de 2022

A actualidade da Constituição


Portugal preconiza a abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer outras formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos, bem como o desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos político-militares e o estabelecimento de um sistema de segurança coletiva, com vista à criação de uma ordem internacional capaz de assegurar a paz e a justiça nas relações entre os povos.

Das relações internacionais na Constituição da República Portuguesa. Quais são as forças intelectuais e políticas que defendem o respeito pelo nº2 do artigo 7º e, já agora, pelo nº1, o da independência nacional na condução da política externa?

Infelizmente, o arco constitucional tem sido muito circunscrito nesta área crucial. Mesmo à esquerda, no campo que se proclama soberanista, há quem já só veja a nossa política externa no quadro da imperialista UE.

Entretanto, é lamentável ver tantos intelectuais ditos esquerda caídos nos braços da OTAN e da chamada civilização ocidental, a que lançou tantas bombas - EUA e aliados lançaram 46 bombas por dia durante 20 anos - e cometeu tantos estatocídios por este sistema internacional afora. A China é cada vez mais o alvo final, claro. Há quem não se conforme com a multipolaridade.

Felizmente, há quem navegue, de forma intelectual e politicamente consequente, contra a corrente belicista: de Pedro Tadeu a Carlos Branco. Intelectuais corajosos.

quinta-feira, 17 de março de 2022

Afinal para que existem as regras orçamentais?

"As leis são para os pobres"; "Borsalino & Cia" (1975)

Começa a tornar-se um hábito.

Nos últimos anos, têm sido vários os momentos em que as instituições comunitárias chegam à conclusão de que, face às conjunturas mais graves (Covid, guerra na Ucrânia), os cânones económicos dominantes não estão desenhados para ser eficazes economicamente. Rapidamente, são postos de lado e passam a funcionar outros: o banco central europeu passa a intervir nos mercados para apaziguar a ansiedade e avidez dos donos dos mercados; as regras orçamentais são suspensas até melhores dias e os Estados passam a poder aumentar a despesa pública sem problemas, para aguentar a quebra da procura interna e os empresários desgraçados com a crise.

É como se dissesse: "Nós sabemos que vos estamos a mentir, mas vocês têm que aceitar a mentira porque é a nossa mentira. E nós mandamos. Da mesma forma que vão ter de aceitar, de novo, a retirada do BCE dos mercados e a imposição das regras orçamentais sob o pretexto de que é melhor para a sanidade económica dos países e do euro. Vão aceitar porque é a nossa forma de vos impor o que queremos. A vossa política há-de ser aquela que vos dissermos para ser, independentemente de quem ganha as eleições. Não precisamos de tanques nem de bombas: basta-nos dominar o sistema sanguíneo do sistema. Não quiseram pertencer ao pelotão da frente? Não há democracias no pelotão da frente. Também não há fora dele, mas pelo menos têm a ilusão de que podem influenciar alguma coisa. É bom para a opinião pública e publicada, não é?

Não é, senhor ministro as Finanças que concorda com qualquer que seja a decisão que seja adoptada pelo Conselho Europeu em Maio próximo?
O ministro das Finanças disse que houve ontem um “consenso” entre os 27 sobre reavaliar, em Maio, a reactivação das regras de disciplina orçamental em 2023, e adiantou que Portugal considera que a sua suspensão por mais um ano seria “prudente”.
“É importante, neste contexto, manter a política orçamental ágil e flexível e, portanto, a nota que ficou é que, tal como o Governo português pretendia, em Maio vai mesmo voltar a estar em cima da mesa a questão de se manter ou não a cláusula de escape que mantém as regras suspensas por mais um ano”, disse, à saída de uma reunião de ministros das Finanças da União Europeia (Conselho Econ), em Bruxelas.
Recordando que “as regras orçamentais têm estado suspensas há já três anos, entre 2020 e 2022”, e “era suposto voltarem a estar em vigor em 2023”, Leão disse que “há um consenso de que se deve chegar a Maio e, na altura, ponderar para perceber se vale a pena ou não manter mais um ano as regras suspensas”.
O ministro especificou que houve “consenso no sentido em que ninguém se opôs a que em Maio se voltasse a colocar a questão em cima da mesa e se ponderasse manter as regras orçamentais suspensas por mais um ano”. “Vários países mostraram-se favoráveis, muitos disseram que havia ainda uma grande incerteza e que era preciso esperar pelo pacote da Primavera [do semestre europeu de coordenação de políticas económicas] e da avaliação da situação macroeconómica para perceber” se se justica ou não manter as regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento suspensas até 2024.
Leão classicou como “prudente” fazer “essa ponderação, porque os efeitos da crise são muito incertos”, e adiantou que a posição de partida de Portugal é de concordar com a manutenção da suspensão das regras por mais um ano. “Portugal chamou a atenção de que, da nossa parte, nos parece prudente que se repondere o fim da suspensão das regras, pois estamos num contexto de grande incerteza e é suposto a economia europeia ter capacidade de reagir a esta crise e não colocarmos em causa a recuperação económica por causa de uma decisão de retomar de forma demasiado cedo as regras”, disse. Concordando que a avaliação seja feita em Maio, o ministro revelou então que a “inclinação de partida é de abertura para a suspensão por mais um ano quando chegar essa avaliação”.
“Portanto, Portugal mantém-se com uma posição favorável. Achamos que, nesta fase, em que não só estamos ainda a recuperar da crise pandémica, [como] temos o impacto da crise na Ucrânia, ao mesmo tempo temos uma situação do ponto de vista da política do Banco Central Europeu bastante exigente — porque, com uma inflação tão alta, o BCE pode ter menos margem para ajudar a economia nesta fase —, e é, portanto, mais uma razão para haver margem para os países terem capacidade de resposta aos efeitos da crise”, disse. Questionado sobre se o prolongamento da cláusula de escape por mais um ano não poderá conhecer resistência de alguns países, o ministro admitiu que “em Maio esta discussão já seja mais difícil ou mais exigente”. Lusa, 15/3/2022

Realismos

Um livro a traduzir...

Concordo com Vital Moreira num ponto: independentemente da crítica que possamos fazer ao realismo ofensivo de John Mearsheimer, e todo o marxista tem de ter um momento realista, a verdade é que tem diagnosticado de forma presciente os riscos para a paz internacional de levar a OTAN até às fronteiras da Rússia e as correspondentes responsabilidades na crise ucraniana.

No entanto, é preciso não esquecer que tal crítica se inscreve, saudavelmente na minha opinião, num diagnóstico anti-liberal na condução da política externa, sublinhando a perigosa belicosidade inerente a esta utopia armada, sempre cheia de fervor militante, ordenadora na teoria e desordenadora na prática.

De resto, todos concordamos com o “perigo” que os guerreiros nacionais de sofá, de Manuel Carvalho a Ana Gomes, representam nas suas felizmente modestas possibilidades. Como é evidente, as negociações em curso terão de levar a um credível estatuto de neutralidade para a Ucrânia. E todos os adultos nas salas das negociações sabem isso, esperemos...

quarta-feira, 16 de março de 2022

Ficções pouco amigas


Vital Moreira defende, em linha com a OCDE, um imposto temporário sobre os inesperados ganhos, caídos do céu, das petrolíferas, garantindo que é uma solução conforme com o mercado (“market-friendly” no seu jargão anglo-saxónico neoliberal ou “marktkonform” na versão alemã do neoliberalismo que, em geral, prefere).    

Sabemos que o mercado é uma ficção conveniente nesta e noutras áreas, naturalmente centralizadas, dominadas por mastodontes empresariais, mais valendo que o seu controlo pelo menos parcial seja público: por exemplo, a Galp nunca devia ter sido privatizada e os preços liberalizados.

Sabemos que famílias como a Amorim, símbolo do rentismo das Galp desta vida e do porno-riquismo, tudo farão para evitar perder este poder e os ganhos associados. 

Sabemos que um governo de maioria absoluta do PS é muito vulnerável ao poder deste capital grande, que vive em cima das possibilidades da maioria: o Estado fiscal é de classe, afinal de contas. 

Sabemos que qualquer medida fiscal nesta área tem de ser complementada por controlos de margens e de preços e que tal mudança requer, por questões de informação e de melhor controlo, alterações nas tais relações de propriedade, sempre cruciais para se ser consequente. 

Sim, taxar para redistribuir não chega por si só. As amizades ao mercado não nos levam longe. E à UE, que torna o Estado menos ágil e logo mais preso aos interesses, ainda menos. 

Talvez o protesto agilize as coisas...

A memória é um país distante (IX)


«Moscovo cometeu um ato de agressão ilegítimo. Mas não é o único. Ilegítima e de agressão foi, para citar apenas a mais gritante e de que ainda sofremos os efeitos, a invasão do Iraque pelos EUA e Reino Unido em 2003. A diferença está em que, em 2003, não se assistiu a este orquestrado clamor “universal”, a esta avalanche de sansões económicas que todos vamos, ou antes, já estamos a suportar. Não recordo, em 2003, apesar de, como hoje, a invasão ter sido condenada pela grande maioria da opinião pública e pela própria ONU e ter arrastado consequências humanitárias, económicas e polemológicas dramáticas, a nível regional e global que ainda hoje persistem, não recordo, repito, que se tenha recorrido a qualquer medida retaliatória contra o agressor. Afinal também os agressores, como as armas nucleares, não são todos iguais, há os bons, os nossos e os maus, os outros.
(...) Ao contrário, na comunicação social ninguém se indigna com a obscena presença, como comentador da guerra da Ucrânia num dos canais generalistas de televisão, evidentemente alinhado no coro dos his master’s voices, da personagem que, como ministro da defesa do Governo Português, apoiou conscientemente a fraude das armas de destruição maciça que justificou a invasão do Iraque em 2003, na qual ele e o primeiro ministro envolveram Portugal! É um testemunho desacreditado e não fiável, mas com direito a cátedra. O homem não tem vergonha nem lhe pesa nada na consciência. Esta presença é um insulto!
»

Pedro Pezarat Correia, Ucrânia, uma guerra preventiva (a ler na íntegra, no blogue A Viagem dos Argonautas)

terça-feira, 15 de março de 2022

A torrefação da oligarquia portuguesa


O semanário NOVO, cujo lema é "original e livre", sugeriu-me, em apenas uma tarde, dois artigos de colunistas do CH. Impressionante, mas não surpreendente.

O Novo é apenas um de muitos projetos editoriais semelhantes, instrumentais para moldar o espaço mediático português. Para fins analíticos, podem a ele juntar-se o Observador, o SOL ou o I. Em comum têm serem projetos editoriais sem qualquer propósito de lucro económico para para quem neles investe. São verdadeiras máquinas de torrar dinheiro, onde a oligarquia portuguesa investe para suscitar uma ambiência política que lhe seja favorável.

Para lá da simples torrefação de dinheiro, estão os grandes grupos de comunicação. Têm maior viabilidade económica, mas amiúde à custa da precarização as relações laborais dos seus jornalistas ao mesmo tempo que remuneram sumptuosamente editores que garantem a linha editorial conveniente a quem paga. Também estes espaços passaram por processos de recomposição de propriedade nos últimos anos. Destaca-se a aquisição da Global Media por Marco Galinha, o novo e misterioso mega capitalista português cujas estranhas ligações foram recentemente denunciadas por Mariana Mortágua, e a aquisição da Media Capital por Mário Ferreira, empresário proprietário da Douro Azul, empresa sobejamente reconhecida pelas suas relações laborais abusivas.

Embora os projetos editorias dentro desses grupos económicos sejam em geral mais sólidos, com bolsas de resistência nas redações à interferência dos acionistas, a verdade é que a deterioração editorial e a permeabilidade ao poder económico começa a ser evidente. A mais recente vendetta de Marco Galinha em relação a Mariana Mortágua, através do editorial da vice-diretora do DN e da primeira página do Tal e Qual, são disso uma irrefutável manifestação. Assim como ninguém ignora o estilo sensacionalista e neo-conservador da CNN Portugal.

Na comunicação social portuguesa, o clima é de verdadeira asfixia democrática. Entre a simples torra de dinheiro e a manobra política dos grandes grupos de comunicação, a pluralidade no espaço público está agonizante, com tendência a morrer.

E, com suprema desfaçatez, há ainda quem observe este cenário distópico e diga que a comunicação social está tomada pela esquerda.

Repensar o financiamento da comunicação social em Portugal tem de ser uma grande reforma estrutural da nossa democracia.

Servir


O que têm em comum Fredric Jameson e Francis Fukuyama? Para lá de serem leitores norte-americanos de Hegel, um marxista e um antigo neo-conservador têm em comum a defesa de um serviço militar obrigatório, por razões de cultivo de virtudes cívicas, num caso, e por razões adicionalmente anti-imperialistas, no quadro da provocadora construção de uma utopia viável nos EUA, partindo das forças armadas, no outro. 

Desde os meus tempos de militante “marxista heterodoxo” da juventude comunista portuguesa que neste ponto sempre alinhei com a boa “ortodoxia” marxista-leninista: precisamos sempre de forças armadas e mais vale que estas sejam civilizadas pela difusão do conhecimento mínimo da violência entre um povo em armas. 

Umas forças armadas exclusivamente profissionais são um corpo mais fechado e melhor calibrado para intervenções externas, que pouco ou nada interessam numa saudável lógica realista defensiva. 

Além disso, o serviço militar-cívico obrigatório bem organizado contribuiria para uma socialização entre cidadãos e cidadãs de diferentes proveniências sociais e geográficas, gerando uma certa solidariedade, feita de direitos e de obrigações, valor que nunca pode ser deixado à ordem espontânea. E as missões de defesa podem ter hoje uma dimensão ecologista fundamental, não por acaso a “guerra” faz parte do vocabulário de combate nesta área: sim, o imaginário nacional da limpeza e vigilância de matas, por exemplo, pode ter sempre uma declinação progressista. 

Há outros argumentos, mas estes para mim são mais do que suficientes para denunciar um erro: o saudoso deputado João Amaral bem que alertou em 1999. Vários países estão aliás a reverter esta orientação por boas e por más razões, como sempre. Este debate tem de regressar. Convém que seja pela esquerda.

segunda-feira, 14 de março de 2022

Querido diário - as confusões nacionais de Durão Barroso

Jornal Público, 12/3/2002

Há 20 anos, o jornal Público trazia um artigo interessante de Vital Moreira, que indiciava já ao que vinha este personagem que passou por Portugal. 

Nele, abordava-se a promiscuidade de Durão Barroso com a então equipa dirigente do Sport Lisboa e Benfica (SLB). O clube apoiava institucionalmente o candidato do PSD e este prometia resolver o problema de dívidas fiscais do clube. Este problema que não era apenas do SLB. Na verdade, constituía um imbróglio que atravessou sucessivos governos. Começou nos mandatos de Cavaco Silva em que se deixou os clubes de futebol acumular volumosas dívidas fiscais sem que a lei fosse aplicada. Depois, o governo Guterres tentou desde 1995/96 resolver o problema com um expediente - que ficou conhecido por totonegócio - em que os clubes cediam durante anos receitas futuras por conta das dívidas passadas. Mas este não foi um processo linerar sem isento de críticas (ler aqui). 

Três meses depois da vitória do PSD nas eleições legislativas, a nova ministra das Finanças - Manuela Ferreira Leite - viria a embrulhar-se também no caso. Primeiro, porque escollheu para secretário de Estado dos Assuntos Fiscais quem pelo clube negociara o dossier junto da administração fiscal. E depois porque tomou uma decisão polémica: aceitou as acções da SAD do clube - na altura, de valor muito discutível - como garantia para a impugnação da dívida fiscal, evitando que o clube tivesse de prestar uma garantia bancária. (ver aqui). 

No mesmo jornal, outra notícia dava conta do conselho de Miguel Beleza, economista e ex-ministro das Finanças de Cavaco Silva, para que PS e PSD se entendessem sobre "questões essenciais" como a reforma da segurança social e os aumentos salariais da Função Pública. 

E na mesma coluna, falava-se das críticas do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos (STI) ao pacote fiscal do PSD - vulgo "choque fiscal. Nomeadamente sobre a suposta ideia de que uma baixa da taxa de IRC  conduziria, a prazo, a uma subida da receita fiscal do imposto. 

Isto foi há 20 anos, sabe-se lá porquê mas hoje ainda há quem espere resultados diferentes...


 

Ainda o cherne


“Fomos complacente com Putin”, diz Durão Barroso em entrevista ao Público. Ao observar o declínio editorial da imprensa convencional, é caso para dizer: foram, são e serão complacentes com o cherne.

Se o direito internacional não fosse um instrumento seletivo do imperialismo, este assistente de criminosos de guerra teria sido punido.

Se a ética capitalista não fosse uma contradição nos termos, este serventuário medíocre do capital financeiro seria ignorado.

domingo, 13 de março de 2022

Laurinda e os que chegam da guerra


No momento em que muitos municípios portugueses se mobilizam para acolher ucranianos que fogem da guerra, sobretudo mulheres e crianças, a vereadora dos Direitos Humanos e Sociais da capital, Laurinda Alves, adverte que a autarquia lisboeta «não se responsabiliza, não paga, não dá sequência a mais nada após o acolhimento de emergência», num sinal claro de descompromisso institucional.

Preocupada com as «centenas de famílias que se oferecem!» para ajudar, Laurinda recua assim face ao disposto no programa de apoio a refugiados da Ucrânia (VSI TUT - «Todos Aqui»), proposto pelos vereadores de esquerda e aprovado por unanimidade. Um programa que compromete diretamente o município com a adoção de medidas de integração nas áreas da habitação, emprego, transportes, educação, saúde e cultura, para lá do acolhimento de emergência («durante algumas horas», no pavilhão com 100 camas preparado para o efeito).

Assumindo-se como uma pessoa «bastante 'obcecada' com a gestão das expetativas», a vereadora recusa portanto o prometido papel de «pivot» do município na concretização das respostas, enjeitando para terceiros, com quem devia eferivamente cooperar (Segurança Social e a SCML) a responsabilidade pela integração dos refugiados. Quanto às «expetativas a gerir», presume-se que sejam as de quem quer acolher e de quem, vindo de uma guerra, precisa ser acolhido. Mas o que sobressai é a ideia de que, uma vez mais, convém não ter muitas (expetativas) quanto à preparação e capacidade de quem ocupa, neste momento, o pelouro dos Direitos Humanos e Sociais na autarquia de Lisboa.

sábado, 12 de março de 2022

Para lá dos negócios estrangeiros


Andei armado em fotógrafo ali para as bandas do fascismo em betão...

O embaixador Seixas da Costa está em grande forma: uma mentirosa piadola anti-comunista aqui, um apelo já vitorioso à mobilização ideológica e mediática de militares NATO ali, uma tentativa de condicionar um partido democrático do arco constitucional de 1976 acolá (acusa-o de “provocação” por ter convocado um comício pela paz...). E isto no meio da mais condicionadora campanha político-mediática, com afloramentos fascizantes e tudo. É imperdoável, sobretudo para quem cultiva a memória e a história, como é o caso. 

Pelo meio, memórias diplomáticas sempre bem escritas, grande convergência patriótica na gastronomia e na meta-política: afinal de contas, existe uma realidade, sempre em reconstrução, chamada interesse nacional, “só” havendo divergências na sua concretização socioeconómica e sociopolítica. Como defende José Manuel Pureza, a questão é sempre: “quem é o interesse nacional?”. 

Apesar de uma ou outra heterodoxia, Seixas da Costa não deixa de fazer parte do tumular consenso de Bruxelas-Washington, o que tem neste governo um executor pindérico, imaginando-se António Costa ao comando marcial não se percebe bem do quê, coadjuvado pelo inevitável Santos Silva, que já não deve ter muita vontade de sair do MNE, com a relevância que tem no presente contexto. 

Este é um campo ainda mais conformado do que aquele que existe na mais periclitante economia política. Não há razão nenhuma para este facto, já que Portugal só perde, em termos de segurança, com preparos militaristas lá para as bandas do oriente. Precisamos, isso sim, de uma política de não-alinhamento e de uma defesa assente no virtuoso serviço militar-cívico obrigatório, sem discriminações de género ou outras, questão de direitos e de obrigações. E nunca se sabe se o Vox tomará o poder em Espanha... 

Realmente, o pensamento crítico tem perdido muito por falta de comparência no que à política de defesa e externa diz respeito. Bem sei que o debate público é aí particularmente policiado. Bem sei que há excepções militares e partidárias preciosas, em torno da ideia, elaborada entre outros pelo notável Yevgeni Primakov, de multipolaridade ou, mais entre nós, de superação da OTAN e da UEM. Bem sei que no Le Monde diplomatique – edição portuguesa procuramos dar um contributo para o pluralismo. Mas ainda não chega. 

Até quando durará este estado intelectual e político de coisas, num mundo tão diferente da unipolaridade que nos tinha sido vendido nos anos noventa, os anos cruciais da perversa imaginação do centro depois do fim da história?

sexta-feira, 11 de março de 2022

Querido diário - Direita contraditória

Há dez anos, no mesmo jornal, havia duas peças que deveriam quadrar. E no entanto, a sua contradição é clara. Mas não para a direita nacional. 

JornalPúblico, 11/3/2012


A redução do número de trabalhadores abrangidos pela contratação colectiva foi o resultado, primeiro, da aprovação em 2003 de um Código do Trabalho, apresentado então por um ministro próximo do CDS (Bagão Félix), num governo PSD/CDS (Durão Barroso). Essa lei previu, entre muitas alterações à legislação laboral, a caducidade das convenções colectivas e a redução do papel dos sindicatos na salvaguarda dos salários dos trabalhadores. Os sindicatos passaram a ter de negociar sob a espada da caducidade das convenções. Em 2008, essa lei foi aprofundada (desta vez através da iniciativa do PS no Governo), nomeadamenmte ao reduzir a oposição dos trabalhadores aos seu despedimento, ou seja, contribuindo para engrossar o desemprego e, com isso, pressionando para a descida dos salários. 

Em 2012, já se sentiam os efeitos dessa legisação na cobertura - cada vez menor - da negociação colectiva. Cada vez menos trabalhadores eram abrangidos pela negociação colectiva. E, como tal, cada vez mais trabalhadores ficavam com salários mais baixos. O efeito pretendido com essa redução do papel dos sindicatos foi esse:  a redução salarial. A caducidade das convenções colectivas mantém-se, aliás, em vigor.  

Segundo recorte: 


 

O então dirigente do CDS e "soldado disciplinado" António Pires de Lima, que chegou a ministro da Economia em julho de 2013, manifesta-se contra a ideia de que "baixar salários é a única receita que há para sermos competitivos". "Isso é um disparate". Mostra-se contra o que está na base da queda do consumo privado. Defende uma "austeridade selectiva e inteligente". Nem um ano antes, a direita no Governo Passos Coelho/Portas abraçava o Memorando de Entendimento com a troica como uma "base de trabalho", sustentava que era preciso "ir além da troica", aplicando a austeridade entusiasticamente, como não havendo alternativa. Depois, quando o desemprego chegou aos 25% da população activa em 2013, disse que não tinha sido bem assim. 

Mas o ponto é que, para a direita, há coisas que não jogam. Por um lado, achou-se por bem rebaixar e eliminar os sindicatos tidos como correias de transmissão política da esquerda nas relações laborais e não os vendo como a organização dos próprios trabalhadores numa relação desigual. Entendeu-se os sindicatos como obstáculos a uma flexibilidade laboral, defensores de "interesses corporativos retrógrados" a anular. Reduziu-se, pois, a cinzas aquilo que constituía um dos elementos chave da estabilidade salarial. Mas depois, quando os seus efeitos se fazem sentir, descartam responsabilidades, atiram-na para a troica e dizem não ver algum nexo de causalidade entre essas medidas e a baixa salarial. 

Foi assim  há dez anos. E continua a ser.  Quando se suscita a necessidade de acabar com a caducidade das convenções, a direita cola-se à visão de curto prazo das conferações patronais e, no Parlamento, vota contra. Tanto o PSD, CDS, a IL e o Chega, como o próprio PS, temeroso como parece estar de pôr em causa compromissos europeus. 

Veremos e esperemos que a maioria absoluta do PS o faça inclinar para o lado de uma efectiva revalorização salarial que não se fique por aumentar apenas os mais baixos salários, ainda por cima subsidiados pelo Estado ou pela Segurança Social.


Querido Diário - tão bom, uma maioria absoluta durante a guerra


Jornal Público, 11/3/2002

Foi há 20 anos, durante a campanha eleitoral em que PS e PSD, cada um por si, pediam uma maioria absoluta. António Guterres tinha se demitido, cansado, depois da vitória eleitoral autárquica a 16/12/2001, em que Santana Lopes ganhara em Lisboa de forma muito polémica e, segundo o Ministério Público, pleno de irregularidades eleitorais praticadas por autores desconhecidos. O PSD galvanizava-se. E Durão Barroso, à frente da lista do PSD, anunciava já uma guerra de "consequências graves e imprevisíveis". 

Na altura, usou o argumento negativo para pedir uma maioria absoluta - que não conseguiu. Meses mais tarde, serviu de mordomo, nas Lages (Açores), para uma cimeira para o qual não foi convidado (pouco tempo depois seria, sim, convidado para presidente da Comissão Europeia), que lançaria uma nova doutrina americana, uma nova missão para o oriente, apoiada por uma coligação de forças pertencentes à NATO (ver a Carta dos Oito, embora sem a França nem a Alemanha) numa guerra - fora do conceito "defensivo" da NATO - responsável por centenas de milhares de mortos e de milhões de refugiados. 

A comunicação social ocidental acompanhou, entusiasmada, a "guerra ao terror" (como se nota nestas páginas do jornal Público).

 

Jornal Público, 11/3/2002

Uma guerra que, afinal, iria estar na base - como se depreende dos dados da Europol - não da instauração de democracias políticas, mas da sua instabilidade; não do fim, mas do crescimento exponencial das iniciativas terroristas em diversos países ocidentais nos anos seguintes que, por sua vez, justificariam mais acções militares e, por arrasto, uma militarização das sociedades, que quadra cada vez melhor com as necessidades de segurança interna decorrentes de um ambiente em que se abrem desigualdades sociais crescentes, sobre um elevado nível de desemprego e de exclusão, fruto dos efeitos cumulativos de uma política neoliberal globalizada. No fim, o Iraque ficou como ficou. Já nem se fala do Afeganistão. E Médio Oriente então, a situação é cada vez mais explosiva, mas pouco acompanhada pela comunicação social ocidental

Desigualdades, guerra e segurança interna andam tão bem de braço dado.