sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Fiabilidade dos números ou manobra de evasão?

Volksvargas, A vida e a morte de uma aldrabice em três actos

1. Em mais uma surpreendente notícia veiculada através do Expresso, o ministro da Educação Fernando Alexandre vem agora dizer que, por falta de fiabilidade dos dados, afinal não é possível aferir o objetivo a que se propôs em junho: no final do 1º período, a «redução em pelo menos 90% do número de alunos sem aulas desde o início do ano letivo em relação a 2023/24» (Plano +Aulas +Sucesso, página 12). Isto é, uma redução relativamente aos alunos que, em dezembro do ano passado, não tinham aulas a pelo menos uma disciplina.

2. Sejamos claros: o problema começa aqui, o problema está aqui e sempre esteve aqui. Na forma como o governo fixou a fórmula de cálculo do seu objetivo, que num erro grosseiro e inaceitável manipulação de dados compara o que não é comparável. Fernando Alexandre não pode, seriamente, ponderar o universo de alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina desde o início do ano letivo, com o total de alunos sem aulas a uma disciplina num dado momento (e que inclui, portanto, os alunos que começaram o ano letivo com todos os professores). O erro da fórmula é, nestes termos, alheio à fiabilidade dos dados. Mesmo com dados fiáveis a fórmula continua a ser errada.

3. Mas o argumento tem um outro problema, não menos grave. Se é legítimo duvidar da capacidade dos serviços para apurar, passo a passo, o número de alunos sem aulas desde o início do ano letivo, já não colhe a dúvida relativamente à capacidade de saber, a cada momento, quantos alunos estão sem aulas a uma ou mais disciplinas. Duvidar disso seria duvidar dos horários não preenchidos que as escolas comunicam regularmente ao ministério da Educação, e que permitem estimar o número de alunos sem aulas, independentemente de estes se encontrarem, ou não, nessa situação desde o início do ano letivo.

4. Aqui entramos numa dimensão ainda mais problemática. Foi o próprio ministério da Educação que referiu, ao Expresso da semana passada, a existência de um total de 41 mil alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina. Estando ou não nessa situação desde o início do ano letivo, a verdade é que é este o universo que importa considerar para aferir a melhoria da situação face a 2023. E o que nos dizem as estimativas, como a da Fenprof (cerca de 31 mil alunos no final de novembro do ano passado), é que o universo global de alunos sem aulas a todas as disciplinas se agravou.

5. Face ao total de alunos que chegou ao final do 1º período do ano passado sem aulas a pelo menos uma disciplina (os tais cerca de 21 mil), isto significa que o ministério da Educação tem agora menos de um mês para se aproximar desse valor, objetivo que se afigura pouco exequível. Por isso - e não pela questão relativa ao grau de fiabilidade dos números - é legítimo supor que o ministro Fernando Alexandre, ao desqualificar os dados (e o trabalho da DGEstE), está na verdade apenas a tentar não ser confrontado pela realidade, que o obrigaria a reconhecer o fracasso das medidas adotadas. Se assim não é, espera-se que pelo menos compare a situação do total de alunos sem aulas no final de dezembro deste ano com a situação no ano anterior. Para que não suceda, a uma aldrabice descarada, uma desculpa esfarrapada.

Poucochinho


António Costa foi, é e será sempre tão poucochinho. É um desperdício da experiência. O seu principal problema é o problema da elite do poder e foi diagnosticado por um socialista com outra estatura político-ideológica, histórico-filosófica, José Medeiros Ferreira: foi, é e será bom aluno de maus mestres, cada dia piores. Bem que pode alardear princípios, já que estes são negados pela vassalagem permanente ao imperialismo, em linha com Lagarde e von der Leyen, de resto. É a UE realmente existente, afinal de contas.

Liberdade de escolha? Para quem?


Não se iludam, a alegada liberdade de escolha, na saúde e na educação, financiada com recursos públicos, acaba sempre por ser sempre a liberdade de escolha dos privados que prestam o serviço, e não dos utentes e dos alunos, como a direita tenta fazer crer. A recusa desta lógica, centrada nos lucros e não nas pessoas, é aquilo a que recorrentemente chamam de «preconceito ideológico». Está bem, abelha.

Solidariedade com a Palestina


Respetivamente, na embaixada israelita, na praça da Palestina e na Estação Nova.

Divisão


Na divisão internacional do trabalho jornalístico financeiro, não cabe ao Financial Times estes tão flagrantes preparos ideológicos antidemocráticos. Isso é para os ecos periféricos. Na realidade, têm de saber que, tal como na Grécia, só há crise da dívida que não é soberana se o tão supranacional quanto pós-democrático BCE quiser. O banco central controla as taxas de juro dos títulos denominados na moeda que emite.

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Cada dia piores

Senhoras e senhores, meninas e meninos, a elite europeísta em toda a sua decadência. 

Lê-se a entrevista ao Financial Times e acredita-se: afinal de contas, estamos a falar de uma antiga advogada de negócios transatlântica, que foi colocada no FMI, depois de ter passado dubiamente pelas finanças de um governo francês de direita. É responsável, enquanto Presidente do BCE, por um ganho extraordinário oferecido à banca, à boleia de perversas subidas das taxas de juro.

Lagarde defende agora que a UE deve ir aos EUA, de “livro de cheques na mão”, comprar ainda mais armas e gás caro, tudo em nome da globalização transatlântica, tudo em nome de uma cada vez mais acentuada submissão ao sistema imperialista comandado pelos EUA. 

Tal preparo está no ADN da UE, tal como o austeritarismo e o seu euro, meio de fazer convergir os Estados sociais nacionais europeus com o plutocrático modelo norte-americano, à custa do investimento e da prosperidade partilhada. 

Trata-se de um processo já com décadas, autêntico jogo de soma negativa, mas em que uma minoria social ganha e muito. A social-democracia foi destruída nesse processo de integração assimétrica, note-se, tendo a sombra que resta ainda agora apoiado esmagadoramente uma Comissão Europeia onde a extrema-direita está bem presente.
 
Por cá, a elite nacional é “boa aluna de maus mestres”, cada dia piores, cada dia mais desajustados à realidade da economia política internacional.

E ainda isto, como se explica?

Vê-se e não se acredita. Na página 7 da Nota Explicativa que o ministério da Saúde enviou ao Parlamento, no âmbito da discussão do OE para 2025, consta uma tabela sobre a evolução das consultas nos Cuidados de Saúde Primários (CSP). Ao contrário do que se possa pensar, não se trata de um lapso, dado que uma segunda tabela, na página seguinte, é contruída da mesma forma.

Como a hipótese da iliteracia se torna pouco plausível (e inadmissível), tudo indica que a tutela pretendeu, à força toda, poder dizer que o número de consultas aumentou com a entrada em funções do novo governo. Para tal, procedeu à comparação do valor acumulado entre janeiro e abril (4 meses) com o valor acumulado (também desde janeiro) até setembro. Sugerindo assim, ao calcular a variação entre os dois valores, que houve um aumento de consultas entre o primeiro quadrimestre e o segundo (sendo que este último «quadrimestre» tem, segundo o governo, 5 meses).


Não surpreende assim que, nos termos da tabela, o aumento de consultas nos CSP, com a AD no governo, tenha sido estonteante. Segundo o ministério da Saúde, esse aumento, entre abril e setembro, mais que duplicou, atingindo um valor a rondar os 116%. Aliás, na verdade, quando feitas as contas desta forma - com ambos os valores acumulados desde janeiro - bastaria ter sido realizada apenas uma consulta entre maio e setembro para que a variação fosse positiva. Espantoso, não é?

Ora, o que se constata quando se corrigem os cálculos - comparando o número de consultas realizadas entre janeiro e abril com o número de consultas realizadas de maio a agosto (e não setembro, para que a comparação se faça por iguais períodos de quatro meses), lá se vai o aumento esfusiante das consultas realizadas desde a entrada em funções do novo governo. Pelo contrário, o que emerge é uma redução, em cerca de 6%, do total de consultas entre maio e agosto, face ao total de consultas entre janeiro e abril.


Este não é o primeiro exercício de contabilidade criativa do governo. Em junho, o atual ministério da Educação inflacionou o número de alunos que começou o ano letivo anterior sem aulas a pelo menos uma disciplina, de modo a criar a ilusão de que o atual ano letivo teria já começado com um valor inferior. E como se não bastasse, para ficcionar ter atingido a meta a que se propôs (diminuição em 90% dos alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina desde o início do ano), ponderou os alunos nessa situação com o total de alunos sem aulas em dezembro do ano passado. Isto é, comparando indevidamente dois universos distintos.

O padrão começa, portanto, a tornar-se cada vez mais claro. Em vez de responder efetivamente aos problemas, que são estruturais e complexos, o governo prefere inventar e manipular números, para criar junto da opinião pública a falsa ilusão de que os mesmos estão a ser ultrapassados, por obra e graça do executivo. Até que as ilusões se desfaçam.

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Nos ombros de gigantes


A correta relação entre investimento e poupança escapa à sabedoria convencional, mas não escapou à melhor tradição keynesiana. Há tantas relações que escapam a tantos economistas convencionais sem memória, vivendo num eterno e tão ilusório presente...

terça-feira, 26 de novembro de 2024

Os números que Marques Mendes não mostrou

Saindo em socorro do governo, na habitual missa de domingo sem contraditório, Luís Marques Mendes exibiu um gráfico (ver aqui, ao terceiro minuto), em que cautelosamente apenas apresentou a evolução do número de alunos sem aulas desde o início do ano letivo. Isto é, desvalorizando - tal como o governo - os alunos que, tendo começado o ano com todos os professores, se encontram sem aulas a pelo menos uma disciplina (e que representam, neste momento, cerca de 94% do total de alunos sem aulas, como se assinalou aqui).

Optando por construir o gráfico apenas com a evolução do universo de alunos sem aulas desde o início do ano letivo, Marques Mendes não se coibiu, porém, de incluir na infografia a informação relativa ao total de alunos sem aulas em dezembro de 2023 (cerca de 21 mil), a partir da qual, indevidamente, o governo chegou à dita redução, em 90%, do número de alunos sem aulas desde o início do ano letivo. Ou seja, à semelhança do governo, o comentador da SIC não resistiu à tentação, conveniente, de misturar «alhos com bugalhos».


Comparando o que é comparável, isto é, o total de alunos sem aulas, por um lado, e o número de alunos sem aulas desde o início do ano letivo, por outro, Marques Mendes teria chegado a conclusões distintas daquelas a que chegou. E poderia assim reconhecer que o problema da falta de professores se agravou em termos homólogos. De facto, como mostram os gráficos aqui em cima, o total de alunos sem aulas é hoje de cerca de 41 mil (21 mil em dezembro de 2023), sendo idêntico o número de alunos sem aulas a uma disciplina desde o início do ano (6% do total) e que, por isso mesmo, não permite neste âmbito falar de uma melhoria da situação face a 2023).

Não é a primeira vez, como sabemos, que Marques Mendes faz eco das narrativas do governo nesta matéria. Há cerca de dois meses caucionou igualmente o exercício de contabilidade criativa do ministério da Educação, através do qual a tutela inflacionou o número de alunos sem aulas no arranque do ano letivo em 2023 (de cerca de 72 mil para 324 mil), de modo a criar a perceção de que o ano letivo em curso tinha já começado de modo mais favorável. Só que não, como se procurou demonstrar aqui e se poligrafou aqui.

Combates pela história


[P]rocurarei responder à controversa questão dos dias de hoje sobre a natureza, as origens e os perigos da nova extrema‐direita europeia emergente, recorrendo ao método de historiar o fenómeno contextualizadamente e resumidamente, partindo da interpretação dos factos e das fontes que eles carregam.

Isso significa, do ponto de vista da metodologia, o contrário do que alguma literatura sobre o assunto tem feito, ao cindir previamente, de acordo com a subjetividade criativa de cada autor, a realidade complexa do campo da extrema‐direita em taxonomias classificativas substancialmente arbitrárias e que rompem a unidade essencial do objeto e das suas variantes, tornando‐o historicamente ilegível e fracionado. Fazem‐no, frequentemente, com o propósito ideológico de repescar para a boa causa a fatia da direita radical que consideram «útil» ou «respeitável» — de alguma forma, repetindo para o estudo da nova extrema-direita o que certa politologia se tem entretido a fazer com a análise do fascismo canónico: retalhá‐lo e anulá‐lo como época e como fenómeno global entre as duas guerras mundiais quase até ao seu «cancelamento» como realidade histórica, ou à sua redução ao caso isolado da Itália mussoliniana, onde nasceram o nome e a «coisa».

Fernando Rosas, Direitas velhas, direitas novas, Lisboa, Tinta da China, 2024, p. 12.

Ontem, foi um dia muito triste, dado o espetáculo deplorável de desmemória histórica promovido pelas direitas velhas e pelas que parecem novas, cada vez mais extremadas, com a participação de certa esquerda, cada vez mais desorientada. Felizmente, houve quem tivesse resistido, quem tivesse dito não. Haja esperança.

Ontem, ao fim da tarde, passei pela Almedina do Estádio e deparei-me, no escaparate globalmente deprimente do ensaísmo, com uma exceção, o mais recente livro de Fernando Rosas, um historiador que leio desde os anos 1990, um intelectual público marxista sempre combativo, com uma escrita de exemplar clareza. Li de pé a introdução e continuei a ler em casa, bem sentado. Tudo começa pela metodologia, realmente.

Ao contrário da inventona do marxismo cultural, a verdade é que são raros os intelectuais de cultura marxista em Portugal. Esta falta sente-se por todo o lado, sobretudo quando a realidade insiste em ter um viés tão brutalmente marxista. Afinal, o capitalismo sem freios e contrapesos está sempre prenhe do fascismo.

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Descarada aldrabice

Na passada quinta-feira, através do Expresso, o ministro da Educação Fernando Alexandre assegurou que o governo tinha alcançado, graças às suas medidas, o principal objetivo fixado no «Plano +Aulas +Sucesso». Isto é, a redução em 90% dos alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina desde o início do ano letivo, com apenas 2.338 alunos a permanecer, à presente data, nessa circunstância (antecipando até em um mês, nesses termos, a meta fixada).

Leitão Amaro, ministro da Presidência, exultou com a boa nova, afirmando tratar-se de «um dia histórico», alcançado por «um governo que enfrentou um problema [e] o resolve», qualificando a alegada queda como «um dos melhores resultados, uma das melhores novidades que os portugueses tiveram». Dando sinais de estar mais ciente do embuste, Luís Montenegro apressou-se a desvalorizar a «discussão sobre números», acrescentando que o governo os utiliza «apenas para poder aferir se as decisões estão a ter bom ou mau resultado».


Sucede, porém, que a suposta redução em 90% do número de alunos sem aulas desde o início do ano letivo, face ao ano letivo anterior, suscita várias questões, que comprometem, de forma séria e factual, a alegada façanha:

a) Ao tomar como referência, para aferir o cumprimento do objetivo, o total de alunos sem aulas no final do 1º período em 2023 (20.887 alunos) - e não, apenas, os alunos sem aulas desde o início do ano letivo (cerca de 2.000) - o governo compara o que não é comparável. Os alunos sem aulas a uma disciplina desde o início do ano letivo, em dezembro de 2023, representam apenas 10% de todos os alunos que, nesse momento, não tinham aulas a uma disciplina.

b) Ao focar-se apenas nos alunos sem aulas desde o início do ano letivo, o governo descurou o universo de alunos que, por diversas razões (baixas médicas, licenças de paternidade dos docentes, etc.) estiveram sem aulas a pelo menos uma disciplina, por períodos de tempo muito variáveis. Como mostra o gráfico aqui em cima, este universo foi assumindo um peso cada vez maior, passando de cerca de 38% do total de alunos sem aulas a 10 de outubro (26 mil alunos), para 94% do total (39 mil alunos), a 20 de novembro.

c) Regista-se, além disso, a partir de 6 de novembro, uma inversão na tendência de redução do valor global de alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina. Se nessa data o total de alunos (incluindo, portanto, os que estavam sem aulas desde o início do ano letivo e os restantes) era de 37 mil, atinge-se a 20 de novembro um valor já próximo dos 42 mil (agravamento de 12,5%). O que, de acordo com a estimativa da Fenprof, traduz um aumento de cerca de 10 mil alunos face ao período homólogo de 2023 (27 de novembro).

d) Os cerca de 41 mil alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina significam, ainda, que o governo tem cerca de um mês para se aproximar do valor registado no final do 1º período do ano letivo anterior. Isto é, os quase 21 mil alunos registados em dezembro de 2023 e que o governo tomou, indevidamente, como referência para a alegada redução de 90%. Ou seja, o governo tem cerca de um mês para reduzir para metade (em cerca de 20 mil), o número de alunos que estão neste momento sem aulas a pelo menos uma disciplina.

Resulta daqui, portanto, neste momento, um agravar da situação face ao ano anterior, ao contrário do feito histórico que Leitão Amaro propagandeia. E tem razão o Primeiro-ministro: se os números não devem servir para alimentar «querelas», mas antes para aferir «se as decisões estão a ter bom ou mau resultado», fica hoje claro que as medidas do governo, face ao objetivo traçado, fracassaram. Afinal, não bastava mudar de governo para que os problemas se resolvessem, ao contrário do que Luís Montenegro assegurava há cerca de um ano.

domingo, 24 de novembro de 2024

Generosidade


O domingo estava luminoso no passado fim de semana, ao contrário do céu de chumbo de hoje. Descemos as escadas, “não olhes ainda”, fomos em direção ao Rossio e subimos. Lá estava o painel de azulejos, formando um cravo, com a incisiva palavra “cumprir” inscrita.

Miguel Januário “transformou o mural num objeto artístico, numa modelação de cores que valoriza cada um dos azulejos, emergindo o cravo com toda a naturalidade e harmonia”, explicaram-me. 


Teve o contributo de 924 cidadãos, cada um com o seu azulejo, aquilo deve ter parecido uma orquestra e quem disse o contrário foi tolo: “eles têm um protagonismo individual que é democrático e que eleva o mural, criando um sujeito coletivo”, explicaram-me ainda. 

A liberdade individual genuína começa e acaba na ação coletiva. Que bela e generosa a oferta dos comunistas à cidade de Lisboa pelos 50 anos de abril.

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Um parágrafo, dois gráficos, algumas palavras.


O parágrafo é da autoria de Domenico Losurdo, em A luta de classes - uma história política e filosófica, editado, em 2015, pela Boitempo no Brasil. Já devia ter sido editado em Portugal, mas, como acontece com o melhor marxismo contemporâneo, não o foi.

Os dois gráficos são da insuspeita revista liberal. Todas as semanas populariza uma ideologia que se quer global, mas que é cada vez mais parcial, com cada vez menor poder explicativo e prescritivo. A República Popular da China representa 90% do investimento na cadeia de valor ligada às energias limpas; investimento que é em parte feito, e totalmente guiado, pelo Estado, como é óbvio. 

A mensagem é clara e é para a decadente esquerda ocidental, para uma certa “teoria crítica” que abandonou a promessa iluminista de crítica radical e de emancipação: parem de alinhar com o imperialismo e olhem para o mundo com olhos de ver, aproveitando para reparar nas várias modernizações necessárias. 

O pessoal é político: no dia a seguir à vitória de Trump, almocei com o meu filho luminoso na esplanada com sombra de um restaurante vegetariano. Parecia verão. Assim que chegou disse com o otimismo que o caracteriza: a China é mesmo o futuro, tenho de ler sobre a China. 

Antes disso, eu tinha desabafado, em modo de provocação, com um amigo: apesar de tudo o que me afasta do modelo político chinês em abstrato, reconhecendo em concreto que o contexto histórico da República Popular é tudo menos geopoliticamente distendido, hoje consegui dormir melhor, porque me apaziguou pensar nos quase cem milhões de militantes do Partido Comunista Chinês e nos dois milhões de soldados do Exército de Libertação Popular. 

Não escolhemos as circunstâncias em que escolhemos o que nos dá segurança.

Dois pesos e uma impunidade total


«Senhora presidente, o mundo não devia habituar-se à morte de palestinianos. A ver morrer crianças palestinianas à fome. A ver mães carregar os seus filhos de um lado para o outro, deslocados à força. Não devia habituar-se a ver jornalistas serem assassinados, nem trabalhadores humanitários a serem mortos.
A ver palestinianos serem detidos, sequestrados, carregados em camiões para serem torturados, abusados sexualmente e violados. O facto de sermos palestinianos não torna isso menos chocante, nem menos ultrajante. Talvez para alguns nós tenhamos a nacionalidade errada, a fé errada, a cor de pele errada. Mas nós somos humanos! E devíamos ser tratados como tal. Existe uma Carta das Nações Unidas para Israel que é diferente da carta que todos aqui têm? Digam-nos!
Existe uma lei internacional para eles e uma lei internacional para nós? Têm eles o direito de matar e o único direito que nós temos é o de morrer?
»

Da intervenção de Majed Bamya, Vice-embaixador palestiniano na ONU, no dia em que os Estados Unidos vetaram mais uma resolução que apelava a um cessar-fogo imediato em Gaza. Isto é, os Estados Unidos ainda sob a administração de Joe Biden, que de forma consistentemente trágica, além de ceder armas, pouco ou nada mais fez, ao longo do último ano, que verter mediáticas lágrimas de crocodilo.

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Fascismo e antifascismo


Recordar é viver: um trol de extrema-direita, encerrado numa bolha reacionária estrangeira, usou a expressão “wokismo” nas cerimónias do 25 de abril e alguém o apanhou bem na RTP, com uma magnífica gralha. 

Agora, as extrema-direitas, IL-Chega, hifenizados por desejo de um certo capital, conseguiram transformar, com o decisivo contributo do PSD, uma mentira histórica numa cerimónia sem cravos vermelhos, num dia de novembro ao calhas. Quem fez abril, quem distribuiu cravos vermelhos, não estará lá, os comunistas não estarão lá, outros democratas não estarão lá. 

Razão têm os que, fiéis à melhor tradição marxista, identificam naqueles dois partidos de extrema-direita as expressões políticas da burguesia mais reacionária, a que quer confrontar o regime democrático de matriz constitucional antifascista. 

Perante este confronto, não há mesmo terceiras vias.

Obsessões que resistem a factos: João Marôco e o alegado «retrocesso educativo» de Portugal


Trazendo à memória o ex-ministro Nuno Crato e a sua peregrina tese da «década perdida» na educação – que corresponde justamente ao período em que o nosso país alcançou os progressos mais notáveis na aferição internacional PISA –, João Marôco insistiu recentemente, no Público de 4 de novembro, na ideia de que Portugal regista um «retrocesso educativo que ninguém quer ver».
O recente debate sobre a disciplina de Cidadania foi o pretexto para o regresso a esta tese, com João Marôco a lamentar que a relevância concedida a esse debate não permita que se discuta aquilo que, em seu entender, realmente importa: o recuo, «sem precedentes, nas literacias de leitura, matemática e ciências dos alunos, evidenciado no último PISA».
Sucede, porém, que a ideia de um recuo de Portugal no PISA de 2022, que em termos comparativos caracterize o nosso país como um caso isolado de fracasso – por não acompanhar uma tendência internacional generalizada – carece de fundamento. De facto, a descida verificada face ao PISA de 2018 está em linha com o decréscimo de resultados registado à escala da OCDE e da UE, refletindo assim, em idêntico grau, o impacto da pandemia nas aprendizagens. Ou seja, sem que as diferenças observadas sejam estatisticamente relevantes, como a própria OCDE e o Iave cuidaram oportunamente de assinalar.
(...) Em suma, o que a evolução dos resultados de Portugal neste exercício internacional de aferição das literacias demonstra é, portanto, algo muito claro. Depois de uma aproximação progressiva à OCDE em todos os domínios, conseguida com diferentes governos, passa-se a uma situação em que os alunos portugueses acompanham a evolução de valores à escala da organização.

O resto do artigo pode ser lido no Público de ontem.

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Choque de procuras

Contrariando a narrativa dominante e que persiste, de que a atual crise de habitação resulta simplesmente de um problema de falta de casas (bastando construir para que tudo se resolva), o Banco de Portugal tem sido uma das poucas instituições a assinalar a importância do surgimento das novas procuras na subida vertiginosa dos preços (ver por exemplo aqui ou aqui).

Nesta linha, foi recentemente divulgado um novo estudo, em que se procede a uma comparação entre Portugal e Espanha, constatando-se que as semelhanças entre os dois países, em termos de trajetória macroeconómica, não se refletem na evolução do preço das casas. De facto, desde 2013, «os preços da habitação em termos reais cresceram mais de 80% em Portugal e menos de 30% em Espanha».

Dando nota que os preços das casas em Portugal estão sobrevalorizados desde 2017, os autores do estudo concluem que «o crescimento dos preços em Portugal tem sido impulsionado maioritariamente por forças da procura, com a oferta a ser ineficaz em contrabalançar essas pressões, ao contrário do que sucede em Espanha».


A expressão «choque de procuras», sugerida no estudo, é particularmente feliz para descrever o essencial da génese e natureza da crise de habitação, contribuindo para refutar a tese simplista e ilusória da falta de casas, que tende a ignorar, desde logo, a relação entre população e alojamentos. Aliás, deste ponto de vista, tudo indica que Portugal até construiu mais ao longo da última década do que o nosso país vizinho, como ilustra o gráfico aqui em cima. Em média, entre 2010 e 2023, foram licenciados 1,8 fogos por mil habitantes em Portugal e apenas 1,5 em Espanha.

Ora, se a crise de habitação decorresse simplesmente da falta de construção, como dominantemente se afirma (ao arrepio do que nos dizem as comparações internacionais), os preços das casas em Espanha teriam até subido mais que em Portugal. Porque, de facto, como assinalam os autores do estudo, «o crescimento dos preços é marcadamente guiado pelas forças da procura», sendo a oferta «incapaz de contrabalançar este efeito» e contribuindo até, «em alguns períodos, ainda que de forma ligeira, para o crescimento dos preços».

terça-feira, 19 de novembro de 2024

Teses


Estas duas passagens, tão claras e justas, das teses que estão em discussão no PCP, no quadro do seu XXII Congresso (13, 14 e 15 de dezembro), são duas das principais razões para o meu apoio a um partido que é condição necessária, mas naturalmente não suficiente, para uma alternativa digna desse nome neste país. Não sou militante, mas ainda assim fui convidado, com outros independentes de Coimbra, para trocar umas ideias sobre este documento. Vamos a isso, então. 
 

Apresentação e debate


A hipótese de que se parte neste livro é a seguinte: nos capitalismos contemporâneos alteraram-se significativamente os equilíbrios que conhecemos noutras épocas entre público e privado, entre interesse comum e interesses individuais, e produziu-se um desequilíbrio a favor de poderes de mercado e de esferas particulares desses poderes, mas isso não quer dizer que tudo assente no mercado e muito menos no poder individual de cada um que nele participe. Pelo contrário, formaram-se novos poderes, que se tornaram dominantes, e a sociedade carece de um nível de concertação capaz de lhes contrapor o interesse comum, a sustentabilidade da vida coletiva e objetivos estratégicos de organização que estão para lá de cada esfera; nisto consiste o exercício do que deve ser designado planeamento.

Licínia Simão, José Reis e eu estaremos a apresentar e a debater este livro na próxima quinta-feira, dia 21 de novembro, às 17h, na sala Keynes (ora bem) da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Aparecei.

Pela minha parte falarei do capítulo que para aí escrevi sobre a história da economia política internacional em torno do planeamento no capitalismo. Deixo aqui os dois primeiros parágrafos, com referências omitidas:

Num livro já clássico sobre o “capitalismo moderno”, o britânico Andrew Shonfield argumentou que “o planeamento económico é a expressão mais característica do novo capitalismo”. Pelo mesmo diapasão alinhava Max Milikan, também nos anos 1960, num volume sobre “planeamento económico nacional”, da Índia à França, editado pelo influente National Bureau of Economic Research (NBER) dos Estados Unidos da América (EUA). Falando de uma “moda entre os economistas”, constatava então que um volume destes seria “inconcebível há trinta e cinco anos, há vinte e cinco anos seria sobre a União Soviética, há dez sobre o planeamento em países em vias de desenvolvimento e nos últimos dez sobre qualquer economia nacional”. 

O passado é feito de formas de economia política – de ideias e interesses cristalizados em instituições – distantes. Passadas cerca de quatro décadas de “desplaneamento”, há quem diagnostique atualmente “o grande regresso do planeamento”, dadas as lições extraídas da pandemia, a tendência para a desglobalização, os choques geopolíticos ou a crise ecológica e climática. A necessidade não garante, por si só, o regresso. Seja como for, neste contexto, pode ser útil revisitar brevemente algumas das práticas e das justificações subjacentes ao planeamento, muitas vezes dito indicativo, no quadro de uma “economia concertada”, sublinhando o contexto internacional que o favoreceu, mas também, ainda que de forma mais breve, as razões internacionais para a sua crise a partir dos anos 1980.  

Sábado, workshop Causa Pública sobre a crise de habitação


«A crise na habitação está hoje na ordem do dia em diferentes países como um dos problemas políticos que emergiram depois da crise financeira de 2008. Mas em Portugal a situação é pior do que na esmagadora maioria das economias desenvolvidas. A crise habitacional é hoje um dos mais graves problemas que a sociedade portuguesa enfrenta.
A Causa Pública tem vindo a trabalhar sobre a questão da habitação, sob a coordenação de Guilherme Rodrigues. No dia 23 de novembro iremos realizar um workshop em que apresentamos o primeiro de um conjunto de três relatórios dedicados a este tema.
Pretende-se apresentar o diagnóstico da crise habitacional portuguesa, discutir os seus custos sociais, mas também o seu impacto económico – que é muito relevante e que tende geralmente a ser ignorado no debate público. Finalmente, depois de anos em que foram lançados diferentes pacotes legislativos, queremos começar a debater políticas públicas que respondam efetivamente ao problema
».

Com a participação de Alexandre Abreu e João Pereira dos Santos, num debate moderado por Ana Drago, sobre o estudo que será apresentado por Guilherme Rodrigues. Sábado, 23 de novembro, a partir das 14h30, no SPGL (Lisboa). A participação é gratuita, devendo as inscrições ser feitas por email: iniciativas@causapublica.org.

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Haja luz e esperança


«Estive na primeira reunião de líderes do G20, convocada em Washington no contexto da crise financeira de 2008. Dezesseis anos depois, constato com tristeza que o mundo está pior.
Temos o maior número de conflitos armados desde a Segunda Guerra Mundial e a maior quantidade de deslocamentos forçados já registrada. Os fenómenos climáticos extremos mostram seus efeitos devastadores em todos os cantos do planeta. As desigualdades sociais, raciais e de género se aprofundam, na esteira de uma pandemia que ceifou mais de 15 milhões de vidas.
Segundo a FAO, em 2024, convivemos com um contingente de 733 milhões de pessoas ainda subnutridas. É como se as populações do Brasil, México, Alemanha, Reino Unido, África do Sul e Canadá, somadas, estivessem passando fome. São mulheres, homens e crianças, cujo direito à vida e à educação, ao desenvolvimento e à alimentação são diariamente violados. Em um mundo que produz quase 6 bilhões de toneladas de alimentos por ano, isso é inadmissível. Em um mundo cujos gastos militares chegam a 2,4 trilhões de dólares, isso é inaceitável.
A fome e a pobreza não são resultado da escassez ou de fenômenos naturais. A fome, como dizia o cientista e geógrafo brasileiro Josué de Castro, “a fome é a expressão biológica dos males sociais”. É produto de decisões políticas, que perpetuam a exclusão de grande parte da humanidade.
O G20 representa 85% dos 110 trilhões de dólares do PIB mundial. Também responde por 75% dos 32 trilhões de dólares do comércio de bens e serviços e dois terços dos 8 bilhões de habitantes do planeta. Compete aos que estão aqui em volta desta mesa a inadiável tarefa de acabar com essa chaga que envergonha a humanidade.
Por isso, colocamos como objetivo central da presidência brasileira no G20 o lançamento de uma Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. Este será o nosso maior legado. Não se trata apenas de fazer justiça. Essa é uma condição imprescindível para construir sociedades mais prósperas e um mundo de paz
».

Do discurso de abertura proferido por Lula da Silva, no início da Cimeira do G20, no Rio de Janeiro.

domingo, 17 de novembro de 2024

Obrigado, Celeste Caeiro


Eu trabalhava num restaurante na Rua Braancamp. A casa fazia um ano nesse dia e os patrões queriam fazer uma festa. O gerente comprou flores para dar às senhoras, enquanto aos cavalheiros se daria um porto. Nesse dia, quando chegámos, o patrão explicou que não ia abrir o restaurante, porque não sabia o que estava a acontecer, e disse-nos para levarmos as flores connosco. Chegámos ao armazém e vimos que eram cravos vermelhos e brancos. Cada um levou um molhe.

Celeste Caeiro (1933-2024), empregada da restauração, comunista com cravos, mulher de abril. 

sábado, 16 de novembro de 2024

A ascensão da extrema-direita não começou hoje


Como escreve Manuel Loff, no Público (13/11), a segunda vitória de Donald Trump configura uma viragem histórica. 

Esta vitória parece não encaixar nos modelos dos cientistas políticos da mesma maneira que a crise não existia nos modelos económicos neoclássicos. Abundam as análises, focando-se no papel da inflação e do custo de vida, no apoucamento, com décadas, de grande parte da classe operária americana, bem como o papel da desinformação e das redes sociais ou do jogo sujo da campanha baseada na mentira, no racismo, na xenofobia, na lgbtfobia, e num discurso populista reacionário, que pretende fazer retornar os EUA a um passado idílico que nunca existiu, contra uma suposta elite corrupta de que na verdade o próprio Trump sempre fez parte. Todos estes pontos, e outros, como o apoio demcrata ao genocídio, são válidos e cumulativos. 

O facto é que Trump não ganha apenas nos EUA. Qualquer análise que se preze não pode esquecer que Trump faz, obviamente, parte de uma tendência generalizada nos países do norte dito global, onde a extrema-direita ganha ou, pelo menos, cresce de uma forma tal que influencia os termos do debate, extrema as posições da direita tradicional e coloca a esquerda na defensiva.

Trata-se, portanto, de uma viragem histórica com alcance internacional. Uma tendência óbvia é olhar para outras eras históricas semelhantes. Estamos, de facto, bem próximos do período após a Primeira Guerra Mundial, com a progressiva ascensão dos fascismos, a grande depressão, as guerras civis e que culminou na Segunda Guerra Mundial. As semelhanças são claras e têm sido notadas amiúde. 

O que não tenho visto (e pode ser falha minha) é o encontrar das causas desta viragem na última viragem histórica de dimensões semelhantes – falo dos anos 70 e 80 do século passado. 

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Espaços e tempos


A tese de doutoramento é um momento naturalmente importante do percurso de José Reis, dando origem a um livro, publicado em 1992: Os Espaços da Indústria – A regulação económica e o desenvolvimento local em Portugal

Nele se encontra clarificado um programa de investigação que aponta para um contributo científico: «A análise das expressões singulares da economia (uma formação nacional, um processo de articulações regionais ou um sistema local de organização produtiva) não dispensa que nos interroguemos sobre o seu lugar num contexto mais amplo e sobre a sua lógica interna de funcionamento. Por isso, espaço e tempo deverão ser (...) dois temas permanentes do trabalho dos economistas». 

Espaço e tempo, geografia e história, têm de facto sido permanentes no trabalho em contracorrente de José Reis, bastando atentar no ensaio Cuidar de Portugal, de 2020, ou no artigo na Revista Crítica de Ciências Sociais, de 2023. Também falarei sobre tempos e espaços na apresentação que farei na sua sessão de jubilação, hoje, às 17h, na FEUC.

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Memorável


Graças sobretudo ao sociólogo Carlos Fortuna, Professor Catedrático Emérito da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC), o Mil Folhas já vai no décimo número. É o boletim quadrimestral da excelente biblioteca da FEUC, agora em obras de renovação. 

Tenho uma imensa dívida à biblioteca e às suas bibliotecárias. Nesta vida universitária, há poucas coisas melhores, em matéria de investigação, do que ir aos fundos, na cave, com o seu cheiro inconfundível, resgatar livros do esquecimento. 

Na apresentação do último número, Fortuna anunciou a doação de grande parte da sua biblioteca pessoal de ciências sociais à biblioteca (mais de dois mil livros), num dos momentos mais tocantes e memoráveis em mais de uma década na faculdade. 

Por falar em momentos memoráveis na FEUC, o Mil Folhas pediu a dez pessoas, eu incluído, um breve depoimento sobre um momento marcante no período recente. Este foi o que eu escolhi: 

A FEUC deve ser capaz de nos interpelar, combatendo a indiferença em relação aos grandes problemas e dilemas do nosso tempo. 

No dia 3 de maio de 2023, estava a entrar na FEUC e fui surpreendido por um conjunto de tendas de campismo que, soube depois, tinham sido montadas no nosso belo relvado no dia anterior. Explicaram-me que se tratava de uma ocupação estudantil, exigindo o fim das lucrativas indústrias fósseis, responsáveis maiores pelo fenómeno das alterações climáticas, pelo chamado capitaloceno. Os estudantes perguntaram-me se podiam ir falar por uns breves minutos à minha aula: podem e devem, respondi. 

Os estudantes mobilizados desenvolveram várias atividades de esclarecimento e eram também portadores de reivindicações específicas, como o fim de todas as parcerias da FEUC com bancos e empresas que lucram com estes negócios sujos ou a reforma dos currículos, dando espaço à revelação dos impactos negativos destas atividades empresariais. Contrariavam assim um certo discurso ideológico, encantado com tudo o que venha de um mundo empresarial idealizado, limpo de qualquer forma de exploração e de geração de custos sociais. 

Como professor, estes estudantes deram-me uma lição de empenho cívico inconformado, chamando a atenção para realidades urgentes, que requerem investigação crítica e ação coletiva corajosa. Que haja mais interpelações destas.

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Mais uma lição


Diz que é a última lição, mas não é, haverá muitas mais. É, isso sim, a jubilação, início de um nova etapa de um economista institucionalista enraizado com quem tenho aprendido muito, um mestre da economia e da vida. 

Adenda. Terei a honra de fazer a apresentação. Basear-me-ei numa entrada que escrevi sobre José Reis para o livro, coordenado por André Carmo, Espaço, Lugar e Território. Figuras do pensamento português contemporâneo.

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Amigos, amigos, negócios incluídos


O artigo publicado hoje no esquerda.net é um retrato revelador das ligações entre grupos privados de saúde e o atual Governo, ligações que chegam ao Primeiro-Ministro. É impossível perceber a política do atual Governo com base na propaganda da eficiência dos serviços, na contenção de custos, etc. Isso é tudo conversa. O que está em causa é o favorecimento de grupos privados com dinheiro público que será paulatinamente retirado ao SNS e às suas instituições. A consequente degradação do serviço público e universal será depois pretexto para um ainda maior favorecimento dos privados e assim por diante, até que os travemos. 

Livrai-nos dos verdes com bombas, livrai-nos do Livre


Os verdes alemães, através da sua ministra dos Negócios Estrangeiros, apoiaram incondicionalmente o genocídio: um partido que já foi pacifista é agora uma parte crucial da desgraça moral da elite política alemã. Espero que colapsem. Só se podem queixar do seu liberalismo, da austeridade perpétua às pseudopolíticas ambientais, as que sobrecarregam os de sempre. 

Saiu há uns tempos uma sondagem em que cerca de 60% dos alemães se declarava contra a continuação do criminoso envio de armas a Israel. A maior base de apoio a esta política genocida está nos verdes: “verdes com bombas”, como disse Daniela Gabor, economista e ecologista britânica, na altura. 

O Livre permanece silencioso em relação a um partido muito importante na sua existência: o cosmopolitismo alardeado não pode confundir-se com o internacionalismo consequente, confirma-se. O Livre subscreveu uma tomada de posição que representou uma ingerência inaceitável dos verdes europeus, ou seja, alemães, na vida dos verdes dos EUA. Queriam que a candidata verde desistisse. Jill Stein respondeu bem: metam-se na vossa vida, parem mas é de apoiar o genocídio.

O Livre foi em romaria à embaixada israelita em dezembro passado, em pleno genocídio e tem agido sonsamente em conformidade, afinal de contas. Está alinhado com a história intelectual liberal pouco recomendável, promovida por Rui Tavares, seu fundador, no que questão colonial diz respeito, por exemplo. 

O Livre, que existe no Twitter e na AR, é um partido curioso: tem alguns quadros radicalmente de esquerda e com muito valor, embora geralmente euro-iludidos, mas é a favor da NATO, sendo federalista e logo militarista, colocando esperanças em Draghi e tutti quanti. Já disse querer negociar com a direita, ou não disputasse algum eleitorado liberal à IL. Já não sei quem disse: “IL com empatia”. Seletiva a empatia, claro. 

Dizem-me – pessoas que, entretanto, abandonaram o partido – que há ali elementos de culto da personalidade, ou não tivesse o seu fundador subido para um palco do São Luís, como se dissesse: agora tenho um partido. E é como se tivesse, realmente. 

Organizam americanices individualistas, como as primárias, com grandes trapalhadas, e depois boicotam vencedores, como o ingénuo Paupério, que desagradam ao fundador. E há mais, incluindo RBI, semana de 4 dias e outras frescuras inconsequentes, mas não tenho tempo, nem paciência. 

Sim, livrai-nos do Livre, um partido que pretende partir a esquerda para a unir pela direita; e daí as simpatias liberais e da comunicação social, apostada em que esta promovida oferta condicione a procura.

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Um fazer


Obrigado, José Tolentino de Mendonça: A Vida em Nós - Aforismos

Pistas para compreender o regresso de Trump

 

A vitória de Trump e do Partido Republicano nos EUA foi recebida com surpresa por muitos analistas, sobretudo entre os mais próximos da candidatura dos Democratas. Os números positivos do PIB, do emprego e do salário médio real eram vistos como provas do sucesso da administração de Joe Biden e argumentos a favor da eleição da sua vice-presidente, Kamala Harris.

Os inquéritos de opinião que mostravam preocupação dos eleitores com o custo de vida foram sistematicamente desvalorizadas pelos analistas. Tornou-se comum ouvir que as “sensações” das pessoas não refletiam os números da economia. O termo “vibecession” surgiu para descrever uma situação em que não há uma recessão mas as “vibes”, ou sensações, das pessoas sobre o estado da economia são más. No início do ano, economistas reputados juntaram-se para debater esta questão enigmática: porque é que os norte-americanos estão pessimistas em relação à economia, apesar da sua aparente robustez? No New York Times, o economista Paul Krugman, vencedor do Nobel da disciplina e defensor da candidatura Democrata, garantia que “todas as boas notícias económicas validam [o governo de] Biden”. Na The Economist, chegou a ler-se que os eleitores estavam a demonstrar um “pessimismo irracional”.


A verdade é que os primeiros dados sobre a distribuição dos votos entre Democratas e Republicanos sugerem que houve uma viragem assinalável para os segundos entre os eleitores com menos rendimentos. Uma análise mais fina dos dados mostra que o cenário é bem menos idílico.

É um facto que, depois da perda de poder de compra registada durante o período inicial da inflação, houve uma trajetória de recuperação salarial e que esta foi mais intensa entre os escalões de rendimento mais baixo. Mas será que estes dados são suficientes? Nos artigos "Trump vs. Biden: The Macroeconomics of the Second Coming" (aqui) e Good Policy or Good Luck? Why Inflation Feel Without a Recession (aqui), Servaas Storm e Thomas Ferguson analisam os dados de forma exaustiva e mostram que o salário mediano real estagnou desde 2021.

Em termos cumulativos, a maioria das pessoas perdeu poder de compra face ao período pré-inflação. Olhar para os salários por hora não permite ter em conta a redução no número de horas trabalhadas por semana desde a pandemia.

Em 2021-2023, 9 em cada 10 pessoas perderam poder de compra apesar dos aumentos salariais. Pior: todos os escalões de rendimento tiveram uma evolução pior que a da presidência de Trump (mesmo que os ganhos de 2017-2020 não se devam necessariamente à política económica deste). Se olharmos para a evolução dos salários medianos reais por setor, a presidência de Biden também fica mal na comparação. Independentemente da responsabilidade de ambos os governos nesta evolução, é difícil que a comparação não tenha tido peso nas eleições.

Outros indicadores apontam para conclusões semelhantes. O "employment cost index" (que inclui no cálculo alguns benefícios oferecidos pelos empregadores além do salário) caiu em quase todos os setores entre 2019 e 2024 e só subiu em dois setores marcados por salários baixos.

Storm e Ferguson calculam ainda a evolução do rendimento das famílias (que, além dos salários, inclui também outras fontes de rendimento como as transferências públicas, especialmente relevantes para quem ganha menos, ou a propriedade). Mais uma vez, a conclusão não é positiva.

Os dados sugerem que devemos pôr alguma água na fervura das análises mais entusiastas sobre a economia dos EUA. Os ganhos recentes parecem concentrar-se nos "salários de subsistência", demasiado baixos para uma vida minimamente digna (percebe-se que não motive grande celebração). Mas há mais aspetos a ter em conta. A forma como a inflação é calculada baseia-se no cabaz de consumo típico das famílias, mas sabe-se que os padrões de consumo variam bastante consoante o rendimento. Ou seja, algumas subidas de preços afetam mais uns grupos do que outros.

O exemplo dos bens alimentares é ilustrativo. Em média, as famílias americanas gastam 11% do seu rendimento em comida (e é esse peso que é usado para calcular a inflação total). Mas os 20% mais pobres gastam quase 1/3 do seu rendimento nestes bens, pelo que são mais penalizados. Como a subida dos preços foi mais acentuada em bens essenciais (comida, energia ou habitação, em que os mais pobres gastam proporcionalmente mais), comparar o salário com a inflação oficial pode não refletir inteiramente a evolução do poder de compra de quem ganha menos.


Uma análise dos dados do Instituto de Estatísticas do Trabalho dos EUA mostra que o grupo dos 20% com menos rendimentos foi o que experienciou uma inflação mais acentuada desde a pandemia. Para este grupo, a subida dos preços terá sido 8,3% maior do que a inflação média. E os autores desta análise sublinham que mesmo estes valores não têm em conta outras dimensões, como a capacidade de substituição de consumos. As famílias mais pobres são provavelmente as que já consomem marcas mais baratas à partida. Há dados que que apontam para a existência de um fenómeno de “cheapflation”, isto é, subidas mais acentuadas dos preços nos produtos que eram mais baratos à partida, face às marcas que eram mais caras (o que, novamente, penaliza quem ganha menos).

Por último, o indicador usado para medir a inflação não inclui o custo do crédito. A subida das taxas de juro aumentou os custos de empréstimos à habitação, cartões de crédito ou empréstimos dos estudantes universitários. Este é outro problema das análises convencionais: não terem em conta que o aumento das taxas de juro representa um aumento (bastante significativo) dos custos na vida das pessoas.

No período em que a inflação foi mais intensa, as dificuldades financeiras foram sentidas sobretudo entre quem ganha menos. Além da incapacidade de pagar as contas, muitas pessoas reportaram a necessidade de saltar refeições ou adiar cuidados de saúde. Mesmo que a perda de poder de compra acabe por ser compensada ao fim de 1 ou 2 anos, isso não apaga a experiência de muitas famílias com rendimentos baixos que passaram por grandes dificuldades. Se tudo o resto não fosse suficiente, o aumento significativo do número de pessoas em situação de pobreza e de insegurança alimentar seria motivo para preocupação com o verdadeiro estado da economia.


Ainda que estas tendências não se devam necessariamente ou exclusivamente às políticas dos Democratas - sobretudo tendo em conta que o choque dos preços da comida e da energia, que resultou da reabertura das economias após a pandemia e da invasão russa da Ucrânia, foi historicamente elevado -, a perceção das pessoas sobre os governos depende da sensação de justiça/injustiça face às medidas adotadas.

Nesse sentido, vale a pena ler a análise do historiador Andrew Elrod sobre a forma como a política económica de Biden foi perdendo os seus eixos iniciais, centrados no custo de vida das famílias e na provisão pública de serviços essenciais. Por oposição do Senado, alterações das prioridades políticas ou outros motivos, a orientação mudou para uma versão de política industrial baseada em incentivos fiscais ao capital privado e assente numa retórica de "segurança nacional" face à competição da China. Além disso, muitas das medidas aprovadas no início da pandemia para combater o risco de pobreza foram descontinuadas (sem que os problemas deixassem de ser preocupantes).


Mesmo que contribua para a transformação estrutural da economia norte-americana - o que está longe de ser garantido -, é justo admitir que a política industrial leva tempo a produzir efeitos visíveis na vida das pessoas. O aumento do custo de vida requer medidas mais imediatas. A ausência de medidas mais robustas para regular preços de bens essenciais num contexto de crise, taxar lucros extraordinários e combater o aproveitamento das grandes empresas pode ter contribuído para as dinâmicas que observamos no voto.

Nada do que foi descrito pode ser lido como justificação do voto no programa autoritário e desigualitário oferecido por Trump, que não resolve nenhum destes problemas. No entanto, um bom diagnóstico é indispensável para pensar em alternativas.

domingo, 10 de novembro de 2024

A esquerda otanizada


Há uma esquerda, ainda dominante por aqui e por ali, presa mentalmente na geografia ideológica da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN ou NATO, no acrónimo mais conhecido, em inglês). Por exemplo, já se disse que é impossível a uma mulher ganhar num país tão conservador como os EUA. 

Sim, nem sequer se digna a olhar para sul, para o México, por exemplo, onde a valorosa Claudia Sheinbaum ganhou há tempos de forma esmagadora, com um programa progressista na melhor tradição de nacionalismo económico em relação a setores estratégicos, como a energia, herdando também alguns dos resultados impressionantes de Obrador. E está a implementar o seu programa de forma consequente, com todas as contradições do que pula e avança numa formação social concreta, com tantos constrangimentos, tão longe de Deus e tão perto dos EUA.

E, obviamente, essa esquerda otanizada só olha para a República Popular da China com medo e desprezo ignorantes. Nada quer aprender sobre controlo público de sectores-chave, incluindo a finança e as infraestruturas sociais, sobre planeamento indicativo, com instrumentos impositivos de política industrial, indispensáveis para a enfrentar ameaças existenciais, etc. 

Despreza o Estado nacional, onde se pode formar um consenso político consequente para tais tarefas socioeconómicas. Essa esquerda não alcança a perversidade do militarismo e do federalismo europeus e, no fundo, aceita o neoliberalismo, as guerras de classe sem fim contra os povos. Finge não saber que existe uma linha de cor e recusa-se a fazer a conexão com o imperialismo que a traçou e traça. As vidas palestinianas valem menos neste contexto.

Não é anti-imperialista e por isso não valoriza a ascensão pacifica da China e o efeito de freio e contrapeso aos EUA, parte de uma igualização sem precedentes históricos desde a primeira revolução industrial. É da OTAN, afinal de contas. O resto, a esmagadora maioria do mundo, só lhe interessa para o perverso intervencionismo humanitário.

Em O marxismo ocidental, o saudoso Domenico Losurdo denunciou histórico-filosoficamente uma parte dessa esquerda, a que é pseudo-radical na sombra da OTAN, a que desvaloriza o impulso nacionalista anticolonial até aos dias de hoje. Fê-lo talvez melhor do que qualquer outra pessoa: “na medida em que se satisfaz com a crítica e, aliás, encontra sua razão de ser na crítica, sem pôr-se o problema de formular alternativas possíveis e de construir um bloco histórico alternativo àquele dominante, ele é a ilustração da sabichonice do dever ser; quando, pois, desfruta da distância do poder como uma condição da própria pureza, encarna a bela alma”. 
 
Essa esquerda merece todas as aspas. Lamento, mas tem de ser combatida no plano das ideias para vermos surgir um antifascismo digno desse nome. Sim, sem clarificações e cortes continuaremos no mesmo declínio. Sim, eu posso falar, já mudei de opinião e deixei registo. Outros podem fazer o mesmo agora, se calhar. Estamos todos vivos e queremos todos florescer.

Adenda. Título inspirado num dos últimos livros de António Avelãs Nunes: A Europa Otanizada.