segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Entre a esperança e o abismo


Francesca Albanese, relatora especial das Nações Unidas para a situação dos Direitos Humanos nos Territórios Palestinianos ocupados desde 1967, estará no dia 3 de Outubro, quinta-feira, às 18h30, no CCB, em Lisboa, para falar sobre o tema «Palestina e Direito Internacional: Entre a Esperança e o Abismo». Numa altura em que a violência genocida do governo de Benjamin Netanyahu alastra de Gaza e da Cisjordânia ao território libanês, ameaçando toda a região, há razões para temer que as repetidas violações do direito internacional e humanitário, em vez de conduzir a um cessar-fogo, estejam a adquirir proporções cada vez mais graves. O apartheid israelita é parte de um processo de substituição e expansão territorial, contado em mais de 40 000 mortos. Neste contexto internacional, e perante uma degradação das coberturas mediáticas, o posicionamento do governo de Portugal merece reflexão e o escrutínio dos cidadãos.


Aqui e agora


Muitos milhares manifestaram-se anteontem por todo o país, em nome do acesso a uma casa decente para viver, um preceito inscrito na Constituição da República Portuguesa. 

A nova questão da habitação exige ver e superar as conexões que fazem uma forma de economia política neoliberal periférica: quem não quer falar de turistificação sem limites, deve calar-se sobre habitação acessível. 

Felizmente, quem esteve na rua viu e deu a ver as conexões, com toda a irreverência nacional-popular. A mortífera sabedoria económica convencional, a ideologia liberal dos ricos, já não consegue ofuscar o óbvio ululante, aqui e agora.

domingo, 29 de setembro de 2024

Flash de economia política


Anteontem, a procurar na internet imagens da Business Roundtable Portugal, deparei-me com um cartaz que anunciava uma charla de Paula Amorim sobre sucesso, o topete habitual. Paula Amorim encarna o capital fóssil (Andreas Malm) e de herdeiros (Thomas Piketty), duas categorias que circulam internacionalmente e que são muito relevantes na presente e desgraçada economia política nacional. 

Paula Amorim também encarna o porno-riquismo, termo que cunhei há uns anos para o Le Monde diplomatique – edição portuguesa: serve para assinalar o consumo conspícuo na era das desigualdades pornográficas e foi pensado indutivamente a partir da Amorim Luxury. Para quem quer seguir estes temas, revistas como a Flash! são úteis, já agora. 

sábado, 28 de setembro de 2024

Lutar, argumentar, lutar


Até logo, por todo o país. Entretanto, há argumentos casa para viver desenvolvidos pelos Ladrões, em especial por Ana Cordeiro Santos e por Nuno Serra, por escrito ou oralmente

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Encontro Anual de Economia Política


Já estamos perto do final do prazo, mas ainda têm até à próxima segunda-feira (30 de setembro) para enviar propostas de comunicações ao 8º Encontro Anual de Economia Política, que decorrerá em Coimbra entre 30 de janeiro e 1 de fevereiro de 2025. O tema do Encontro será, desta feita, Economia Política para uma Vida Justa: Desafios Teóricos e Práticos.

Tal como é dito na página do Encontro, trata-se do principal evento nacional em que se reúnem “todos/as aqueles/as que, a partir das mais diversas áreas disciplinares e abordagens, entendem os fenómenos económicos como sendo eminentemente configurados por fatores de ordem social, política, filosófica, jurídica, cultural, tecnológica e ecológica e devendo ser estudados nos seus contextos institucionais, históricos e geográficos”.

Mais informações e formulário para envio de propostas aqui.

Políticas erradas agravam a crise

O Expresso dá hoje nota de que os «preços das casas nunca subiram tanto como no 2º trimestre». De facto, tal como já tinha sido assinalado aqui, trata-se não só do maior aumento trimestral desde que há dados (2009), como se assiste a uma inversão da tendência de redução do ritmo de aumentos, que vinha a registar-se desde o segundo trimestre de 2023. Ao que acresce, ainda, como demonstra também o semanário, a descolagem crescente dos preços da habitação face aos rendimentos das famílias, desde 2014.


Deste artigo do Expresso, a ler na íntegra, é possível retirar duas ou três notas importantes, que vale a pena reter.

Por um lado, a subida registada, que ocorre nos primeiros três meses do governo de Luís Montenegro, não reflete ainda medidas como a isenção de IMT e Imposto de Selo (nem a garantia pública a partir de hoje em vigor), na compra da primeira casa por jovens até aos 35 anos. Contudo, como refere Rafael Ascenso (Porta da Frente), o simples anúncio destas medidas «veio mexer com o mercado», considerando que «a mudança de uma política mais restritiva, como a anterior, para esta, fez com que tanto compradores como promotores estivessem mais ativos».

Na mesma linha, outros agentes imobiliários ouvidos pelo Expresso constataram um aumento da procura e de preços na sequência do anúncio das medidas, traçando o seu perfil: «pessoas que não estariam abrangidas pela medida e investidores que se posicionaram no mercado antecipando um novo boom na procura por parte dos jovens», acrescentando que «de forma geral, o aumento de preços quase anula o desconto nos impostos decretado pelo Governo para os jovens».

Ora, tendo estas e outras medidas do governo (nos retrocessos ao nível do Alojamento Local, por exemplo) um efeito contraproducente, é de facto expectável que os preços continuem a subir. Isso mesmo assinala Ricardo Amaro, economista na Oxford Economics, ao Expresso: «ao facilitarem o acesso ao crédito por parte de jovens e reduzirem os custos extra associados a uma compra», trazendo «mais compradores para o mercado» e aumentando «o valor que alguns estão disponíveis a pagar», estas medidas «não baixarão os preços».

As políticas e os seus sinais contam. O retrocesso do atual governo de direita em matéria de habitação, em sintonia programática, aliás, com a IL e o Chega, não só não resolverá, como agravará, a crise habitacional que o país atravessa.

Vira-latista, entreguista, mandonista


Business Roundtable, business schools, CEO talks, summits, meetings: a conversa peçonhenta que aí decorre é, na maior parte das vezes, em português, mas o inglês polvilhado serve para exibir a “internacionalização”.  

Igualmente importante é o uso do inglês, misturado com o português, compondo “palavras” novas, usadas nas redes e na TV para que não se compreenda nada, exceto a suposta sofisticação do emissor direitista: wokismo, que já foi colocado como louquismo numa maravilhosa legenda da RTP, quando falava o trol que dirige a IL, nas cerimónias dos cinquenta anos do 25 de abril na AR; whataboutismo, ouvido recentemente num programa medíocre, daqueles que não dá para ver mais do que cinco minutos. 

É uma elite periférica e que se imagina no centro, algures entre Washington e Bruxelas. Este centro está, felizmente, a deixar de o ser; vivemos as dores deste processo. Mas a elite não dá para mais do que isto. O importante é mesmo cultivar o porno-riquismo e o capitalismo de herdeiros, vender o património público a pataco, emborcar drinks de fim de tarde e ir para casa escrever odes ao genocídio e à terceira guerra mundial, em modo guerreiro de sofá.

É uma elite vira-latitsta, entreguista, mandonista. O português do Brasil tem termos tão expressivos e que deveriam ser de uso corrente por cá. Isto, sim, seria internacionalização. Diz que é a época da brasileirização do mundo, afinal de contas.

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

E agora?


Tirando a segunda-feira, ler a última página do Público tornou-se um exercício politicamente penoso, dada a oscilação entre o extremo-centro e a extrema-direita paroquiais: o internacional praticamente não é abordado hoje em dia. Sim, não se escreve sobre o genocídio na Palestina ou a destruição do Líbano, naturalmente. O colonialismo sionista e o imperialismo norte-americano, sem esquecer a previsível vassalagem da UE, são uma maçada.

No domingo, Adão e Silva falou do risco de “governos crescentemente impotentes a sucederem-se uns aos outros” em Portugal, mas nem por um segundo pensou na óbvia, mas inconveniente, fonte material dessa impotência: a perda de instrumentos de política económica, dada a integração europeia realmente existente.

Para quem gosta tanto de falar de instituições, estranha-se o silêncio atual sobre um quadro institucional em que, por exemplo, a banca em Portugal recebeu milhares de milhões de euros de uma instituição sem controlo democrático chamada BCE, ao mesmo tempo que muitas famílias foram brutalmente oneradas. Sim, o principal preço no capitalismo, a taxa de juro, é diretamente político, mas não é democraticamente definido, como todos temos a obrigação de saber.

Diria que isto, só um exemplo entre tantos, não faz bem à qualidade da democracia, mas que sei eu? E o pior é que sei que Adão e Silva até intui isto. Li o suficiente dos seus escritos da altura da crise da zona euro. O bloco central, que agigantaria a extrema-direita, vale bem esta desmemória? Parece que sim, já que ontem, em modo terceira via zumbi, declarou querer mais discricionariedade capitalista, vulgo mecenato, na cultura e em modo consensual. 

Este foi o ministro que procurou naturalizar a precariedade na cultura, pelo que é natural que defenda os chamados incentivos aos privados, modo aparentemente neutral de ofuscar ideologicamente o que está em jogo nesta opção de política pública: subsidiar as preferências dos ricos, a ainda maior mercadorização de uma cultura orçamentalmente menorizada.

Diz que isto é a social-democracia, só que não.
 

Amanhã, o regresso do planeamento


Um excerto do livro para abrir o apetite.

Sábado, 28 de setembro: Casas para viver


quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Ninguém estranha?...


... a ausência de notícias, e dos diretos das televisões, dia após dia à porta das escolas, sobre a falta de professores, no ano letivo em curso? Ninguém estranha um silêncio que se torna ainda mais ensurdecedor quando é o próprio ministro a reconhecer, sem admitir que a situação se agravou, que há neste momento «mais de 200 mil alunos» sem aulas? Quando eram quase 100 mil no ano passado, segundo o próprio Luís Montenegro?

Não haverá um jornalista que pergunte a Fernando Alexandre - aproveitando por exemplo o contexto de uma entrevista - se a ambição e exigência que assumiu em junho, ao apresentar o powerpoint do seu plano, era tributária do desconhecimento da realidade ou, apenas, da tentação, a que cedeu, de alinhar com a ideia de que bastaria mudar de governo para que tudo se resolvesse?

E que significam, afinal, estes mais de 200 mil alunos referidos pelo ministro, depois da engenharia opaca e criativa com que empolou (quadriplicando) os alunos sem aulas no início do ano letivo anterior? São alunos sem aulas só a uma disciplina ou a mais disciplinas? É desde o início do ano ou também em «algum momento» de setembro, como disse o ministério? Incluem baixas por doença, mesmo as de curta duração, ou refletem apenas o que está em causa, a falta de professores? Também contabilizam «furos»? Não sabemos, pois deixámos de conseguir perceber.

Adenda: Não é verdade, ao contrário do que disse o ministro Fernando Alexandre na tentativa de resposta a João Costa (que denunciou a inflação de valores, de cerca de 71 mil para 324 mil alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina no início do ano letivo de 2023), que a diferença se deve a não haver «uma única maneira de medir», acrescentando que «o ex-ministro da Educação escolheu o número que preferiu». Sucede, contudo, que além de a diferença ser abíssal, quando Fernando Alexandre referiu os 324 mil alunos na apresentação do «Plano +Aulas +Sucesso», estava mesmo a referir-se a «alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina».

OE 2025: a vaca fria e o elefante amoroso

A alegada discussão do Orçamento de Estado para 2020 está a acontecer num clima crescentemente dramatizado. 

Enquanto o governo faz reuniões secretas com uns e alardeia reuniões com outros, enterrado em jogos tácitos que escondem o gato mas lhe deixam o rabo de fora, rasga as vestes e troca acusações com o Partido Socialista, Marcelo ameaça (baixinho) com uma crise política. 

Os colunistas do extremo-centro, com espaço de jornal para preencher e, avaliando a partir da amostra, pouco de substantivo para, sobre este assunto, dizer e muito de politicamente relevante para ignorar, escrevem o seu enésimo texto contra a ‘polarização’ enquanto sugerem que aprovar o orçamento é a única política responsável. Dizem-nos implicitamente que não há alternativa: aprovação ou bulgarização.


Impávidos e aparentemente serenos, todos estes atores políticos discutem a aprovação, ou não, do orçamento de estado para 2025 como se o conhecessem. 

Acontece, porém, que a comunicação social, embora numa notícia em que se confunde imposição com negociação, volta a informar-nos que a Comissão Europeia ainda não esclareceu quanto do nosso dinheiro podemos, afinal, usar; parece que só o saberemos numa “data mais próxima da apresentação da proposta do Orçamento do Estado, agendada para 10 de Outubro”. 

Não há, pois, como não voltar à vaca fria. Sendo que um orçamento trata necessariamente de receitas e despesas, não se conhecendo estas últimas, o que dizer, permanecendo urbano, de toda esta animação política, chamemos-lhes assim por decoro, para além de constatar que o simulacro de discussão orçamental em que o país está atolado está cada vez mais animado? 

A 7 de agosto último, a propósito dos lucros da banca privada, obscenos e politicamente fabricados, que geram prejuízos nos bancos centrais e que são suportados pelo erário público, escrevia neste blogue que, “aqui no retângulo, numa versão requentada do que já está a suceder no Reino Unido, é só esperar pelo simulacro de discussão que vão oferecer-nos a propósito do próximo orçamento de Estado. Muito previsivelmente, seremos informados que andámos novamente a viver acima das nossas possibilidades”. 

E, sem qualquer surpresa, aí está: “Mesmo sem novas medidas, a variação da despesa pública líquida - o indicador de referência das novas regras orçamentais europeias - deverá ficar nos próximos anos acima do crescimento potencial previsto para a economia portuguesa. Um resultado que, alerta o Conselho das Finanças Públicas (CFP), limita fortemente a margem disponível para a adoção nos próximos OE de novas medidas sem que seja garantida uma compensação”, sintetiza o Público

E com isto chegamos ao elefante amoroso, o olimpicamente ignorado paquiderme no meio da sala, ou seja, à política monetária ao serviço do capital financeiro que, dado o seu injustificado e desnecessário impacto negativo nas contas públicas, podia e devia ser revertida no âmbito de uma discussão orçamental que não fosse, de facto, um ritual vazio que apouca a democracia.

Obrigar a banca privada a maiores reservas ou acabar com a remuneração da sua parte excedentária e/ou taxar os seus lucros injustificados constituiria uma das formas mais apropriadas de garantir a compensação que o CFP diz (erradamente) ser necessária mas que de facto só o é no contexto de regras de governação económica opacas e sem fundamento económico e com um fortíssimo viés neoliberal. 

Não o esqueçamos: não só, “[e]m média, as consolidações orçamentais não reduzem os rácios da dívida em relação ao PIB”, como, em 2023, a despesa pública total em percentagem do PIB de Portugal foi 7,7 pontos percentuais inferior à da zona Euro.

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Drinks até dizer chega


Os liberais até dizer chega estiveram representados no drink de fim de tarde para homenagear um embaixador de Israel em Portugal que devia ter sido expulso a seu tempo. São apoiantes do genocídio, mas ninguém na dócil comunicação social os confronta. 

Através de Diogo Faro, fiquei a saber que a maior entusiasta do genocídio perpetrado pelo colonialismo sionista na Palestina, Helena Ferro Gouveia, presença assídua na tal embaixada, foi oradora no “campus da liberdade”. O que lhes falta em humanismo, sobra-lhes em coerência.

É uma iniciativa do menos liberdade, stink tank da IL para a luta ideológica e para contornar a lei de financiamento dos partidos, recebendo centenas de milhares de euros anualmente de milionários. Um pinochetista-videlista da Comissão Executiva da IL veio garantir que não há qualquer ligação entre este partido de extrema-direita e o tal stink tank, mais uma mentira fascista


Entretanto, este padrão de apoio é coerente com a história dominante do liberalismo clássico realmente existente: imperialista, colonialista e racista no longo século XIX e em parte do breve século XX, como assinalou Domenico Losurdo, ou não fosse a ideologia para naturalizar uma forma de capitalismo particularmente exploradora e opressora. 

No breve século XX, figuras gradas do neoliberalismo, por sua vez, detestaram tanto o grande levantamento anticolonial que estiveram disponíveis, por exemplo, para apoiar o Apartheid, como assinalou Quinn Slobodian

Sim, a melhor história da economia política é crescentemente crítica destes liberais até dizer chega.

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

E porque mudou o título da notícia?

Quando se tentam recuperar as declarações da ministra da Juventude e Modernização numa entrevista à SIC Notícias a 1 de agosto, na qual Margarida Balseiro Lopes reconhece que os apoios aos jovens (os que podem) na compra de habitação poderiam fazer subir o preço das casas, constata-se que o título da notícia foi entretanto alterado (tal como o texto da ligação para a mesma, como se pode comprovar aqui).

De facto, onde antes se lia «Governo admite que apoio à Habitação Jovem tenha "efeito marginal" e faça subir ainda mais o preço das casas», passou a ler-se «Compra de casa: apoios a jovens "não são bala de prata" mas "um primeiro sinal", diz ministra».


O que terá levado à alteração do título (sem notificação, à data de hoje, das razões dessa alteração)? A franqueza inoportuna, para o governo, da ministra Balseiro Lopes? Um critério jornalístico que atribui maior relevância à noção (óbvia) de que não há uma medida única para resolver a crise? Não sabemos. O que sabemos é que se registou, no segundo trimestre do ano, a maior subida trimestral do preço das casas desde que há dados disponíveis (2009).

Tal não traduzirá apenas, seguramente, o «efeito marginal» das medidas orientadas para os jovens. Mas pode muito bem refletir o início do efeito cumulativo de vários «efeitos marginais», associados à inversão das políticas para o setor, por um governo que aposta no mercado para superar a crise, promovendo lógicas de desregulação e de subsidiação, com previsíveis efeitos contraproducentes.

Relatório Draghi: competitividade para quem?

 

Há duas semanas, foi apresentado o relatório sobre o Futuro da Competitividade Europeia, elaborado por Mario Draghi, ex-presidente do BCE e ex-primeiro-ministro italiano. Motivado pelo facto de a economia europeia estar a ficar para trás face aos EUA e à China, Draghi apresentou um documento extenso em que analisa a origem dos problemas e discute soluções para o futuro.

O relatório tem o mérito de apresentar um diagnóstico acertado: boa parte dos problemas que a economia europeia atravessa devem-se à falta de investimento. A estagnação do investimento e da produtividade na UE, ao contrário dos outros dois blocos, reflete-se na falta de competitividade das economias europeias.


Draghi também parece ter poucas ilusões sobre a forma como os EUA e a China alcançaram um desempenho económico mais robusto. “A competição chinesa está a intensificar-se em setores como as tecnologias limpas e os carros elétricos, impulsionada por uma combinação potente de política industrial e subsídios massivos, inovação rápida, controlo de matérias primas e capacidade de produção à escala de um continente […] As estratégias industriais de hoje – como se vê nos EUA e na China – combinam múltiplas políticas, desde políticas orçamentais para encorajar a produção até políticas comerciais para penalizar comportamentos anti-competitivos e políticas externas para assegurar cadeias de abastecimento”. No caso da China, é difícil ignorar o facto de o sucesso económico ter acontecido com base em políticas que contrariaram o consenso liberal, desde o investimento público massivo nas infraestruturas do país à promoção de setores considerados prioritários (através de medidas protecionistas e de acesso a crédito), além do Estado não ter abdicado do controlo de setores estratégicos.

O relatório de Draghi não ignora nem subestima o papel do Estado neste processo: além de afirmar que “o setor privado será incapaz de suportar a fatia de leão do financiamento do investimento [necessário] sem apoio do setor público”, avança que o “financiamento conjunto do investimento em bens públicos europeus, como inovações radicais, será necessário”. Ao todo, Draghi estima que os países da UE precisem de aumentar o investimento anual em 800 mil milhões de euros, algo em torno dos 4,4% a 4,7% do PIB da região, o que seria “inédito de um ponto de vista histórico”.

O plano foi recebido com pouco entusiasmo pelos países mais ricos. Na Alemanha, o ministro das Finanças anunciou no próprio dia que o país “não vai concordar com isto”. Nos Países Baixos, o governo também não se mostra recetivo à emissão de dívida conjunta. O ceticismo sobre a possibilidade de avançar com estas ideias estende-se aos jornais de referência, com base na ideia de que os países mais ricos não quereriam “pagar” aos restantes a maior parte do investimento. No entanto, como se discute em seguida, há razões para pensar que os países mais fortes seriam os principais beneficiados. 

Notícias do The Economist e do Politico.

De onde veio a estagnação europeia?

Tendo em conta que o ponto de partida do relatório é o declínio do investimento público e privado na União Europeia, é importante começar por analisar as causas para esse declínio. Draghi menciona a fragilidade do mercado de capitais europeu (por oposição ao dos EUA) e a existência de barreiras regulatórias em alguns setores, mas acaba por não se referir a um aspeto decisivo: as regras orçamentais europeias, que definem limites à despesa e investimento dos Estados.

As regras orçamentais colocaram fortes restrições ao investimento público dos países, ao mesmo tempo que as regras de concorrência no mercado único, que limitam de forma significativa os apoios públicos às empresas e as compras públicas – que, como alguns estudos têm demonstrado, são um instrumento eficaz na promoção da inovação e do crescimento –, impediram os Estados de selecionar setores prioritários e promover a inovação.

A quebra do investimento público é visível em quase todos os países e acentua-se a partir da crise financeira de 2007-08 e da estratégia de austeridade que foi adotada. O investimento privado também foi afetado, já que depende fundamentalmente da procura agregada: as empresas investem em função da procura que esperam vir a encontram no mercado para os seus bens e serviços. Ao contrário dos EUA, que responderam à crise financeira com uma política orçamental expansionista e recuperaram mais rapidamente, a opção dos países da UE pela austeridade traduziu-se numa “política de estagnação”.

Esta opção também tem impactos na produtividade. A produtividade é uma variável endógena, que tende a crescer em períodos de expansão e a cair em períodos de recessão. Há alguns fatores que ajudam a explicar essa tendência: por um lado, boa parte dos setores beneficia de economias crescentes à escala, o que significa que, nessas empresas, um aumento da procura e um reforço da capacidade produtiva (ou seja, um aumento do número de trabalhadores e de equipamentos utilizados) gera um aumento proporcionalmente superior da produção; por outro lado, o crescimento dos salários reais (que tipicamente ocorre em períodos de expansão) incentiva as empresas a inovar para se manterem competitivas e responderem à procura crescente. O primeiro fator é conhecido como o efeito Kaldor-Verdoorn e o segundo como o efeito Marx/Hicks. Alguns estudos empíricos, como este ou estes, sugerem que esses efeitos se verificam nas economias europeias e que a estagnação da procura e dos salários teve um impacto negativo na produtividade.

Se, no caso da estagnação salarial, esse efeito também parece ter ocorrido nos EUA, o caso europeu foi agravado pela austeridade e pela forte restrição do investimento e dos apoios públicos. É difícil falar das atuais necessidades de investimento, no qual o setor público terá de financiar a “fatia de leão”, sem mencionar as regras orçamentais.

O próprio Draghi reconheceu há um par de meses que “prosseguimos uma estratégia deliberada para tentar diminuir os custos salariais uns em relação aos outros – e, combinada com uma política orçamental pró-cíclica, o resultado líquido foi o de enfraquecer a nossa procura interna”. As regras orçamentais, que voltaram a entrar em vigor este ano, não só exigem um esforço significativo de consolidação orçamental à maioria dos países como representam um obstáculo aos investimentos considerados necessários pela própria UE para promover a transição energética.

Competitividade para quem?

A emissão de dívida conjunta poderia ser vista como uma forma de contornar a contradição entre as propostas de Draghi e as regras orçamentais em vigor. Mas isso leva-nos à segunda grande omissão do relatório: as diferenças estruturais entre as economias do centro e das periferias da UE. Não é possível analisar a economia europeia sem compreender a divergência entre o centro (liderado pela Alemanha) e a periferia do Sul (Itália, Espanha, Portugal e Grécia) e os fatores estruturais que a explicam.

A divergência prende-se com os diferentes modelos de crescimento que os países seguiram desde o processo de integração europeia. Os países do centro, com mais capacidade produtiva e maior peso da indústria, cresceram com base nas exportações, favorecidas pela adesão a uma moeda (Euro) subvalorizada face ao que seria expectável para as suas economias. 

Para os países do Sul, a adesão ao Euro trouxe uma moeda sobrevalorizada que tornou mais caras (e, por isso, menos atrativas) as exportações para o resto do mundo. As entradas da China na Organização Mundial do Comércio e dos países de Leste na UE contribuíram para esta tendência, uma vez que se tornou cada vez mais difícil competir com países com salários muito baixos. Nessa altura, a Alemanha não só não se mostrou preocupada com a competição chinesa, como beneficiou do acesso a produtos mais baratos.

Os países da periferia do Sul foram os principais prejudicados, tendo perdido terreno nas exportações e registado níveis crescentes de endividamento externo. Após a crise de 2007-08, a UE apostou na desvalorização interna e na redução dos custos do trabalho – leia-se, salários – como estratégia competitiva. Enquanto a China começava a investir de forma massiva em novas tecnologias, como os painéis solares ou os carros elétricos, em vez de países como Portugal aproveitarem o potencial de produção de energias renováveis, o plano seguido foi o de prosseguir a “vantagem comparativa” do turismo e acentuar a especialização neste setor, caracterizado por baixo potencial de inovação e de ganhos de produtividade e assente em baixos salários.

Sem uma discussão abrangente sobre a melhor forma de orientar os investimentos para promover a convergência entre os países, corremos o risco de que a emissão de dívida conjunta sirva essencialmente para financiar apoios às empresas atualmente mais desenvolvidas e capazes de concorrer nos mercados internacionais, o que beneficia essencialmente os países que já são mais desenvolvidos à partida e deixa as economias do Sul cada vez mais dependentes de setores como o turismo, acentuando um padrão de especialização que tem contribuído para o seu empobrecimento.

Onde entra o interesse coletivo?

Para alavancar a inovação na UE, Draghi argumenta que é necessário reduzir a regulação existente e aprofundar o mercado único europeu, embora oscile entre a defesa das regras anti-monopólio e a necessidade de facilitar as fusões de empresas em setores como o das telecomunicações. Além disso, ao longo do relatório, a discussão centra-se essencialmente na canalização de fundos públicos para as empresas. Neste sentido, o relatório de Draghi parece aproximar-se da abordagem que a economista Daniela Gabor classifica como “de-risking”: os Estados assumem boa parte dos custos e dos riscos do investimento em setores de interesse estratégico, mas a propriedade e gestão ficam nas mãos dos privados, que colhem os lucros. Como outro autor deste blog (Nuno Teles) escreveu sobre esta tendência recente, "assistimos hoje à emergência de um modelo de intervenção alicerçado em incentivos ao capital privado, com poucos ou nenhuns mecanismos de controlo e disciplina".

Os interesses privados não só não estão necessariamente alinhados com as prioridades coletivas como podem entrar em conflito com estas. Em relação à descarbonização da economia, Draghi defende que se deve acelerar a mineração de lítio e menciona especificamente o potencial de Portugal nesta área, mas não discute os impactos ambientais da mineração e os possíveis problemas associados, desde o uso intensivo de recursos como a água à degradação do solo, dos ecossistemas e da qualidade de vida das comunidades. O debate sobre a descarbonização dos transportes merece que se discutam alternativas (potencialmente menos apelativas do ponto de vista comercial), como a redução progressiva do uso de automóveis individuais através da promoção de uma boa rede de transportes públicos.

Os planos para a extração de lítio de Covas do Barroso têm sido contestados pela população

Além disso, o relatório diz muito pouco sobre o papel dos trabalhadores neste processo e não inclui propostas sobre a articulação da estratégia industrial com a qualidade do emprego criado nem sobre a definição de condicionalidades sociais nos apoios públicos – isto é, critérios (sobre a evolução salarial, a negociação coletiva, a prevenção de acidentes no trabalho, etc.) que as empresas têm de cumprir para receber apoios do Estado. O que não é propriamente surpreendente quando se sabe que, na elaboração deste plano, Draghi consultou mais de 60 associações empresariais e apenas 1 (!) sindicato. Não se promove uma transição climática justa sem um processo de decisão verdadeiramente democrático e participativo.

Apesar dos problemas referidos, há aspetos que merecem ser tidos em conta no relatório de Draghi. O facto de reconhecer que “hoje, a competitividade é menos sobre os custos relativos de trabalho e mais sobre o conhecimento e as competências da força de trabalho” contradiz o consenso liberal que tem vigorado na política económica europeia. Valia a pena acrescentar que a competitividade também é menos sobre impostos e mais sobre qualidade das infraestruturas e acesso a recursos em cada país. O desenvolvimento depende muito mais do investimento público numa rede ferroviária abrangente e na promoção das qualificações da população do que da redução de uns pontos percentuais na taxa de IRC, contrariando o discurso que se tornou dominante em Portugal.

No entanto, o relatório centra-se mais na disputa de segmentos dos mercados internacionais e na capacidade do capital europeu face aos seus concorrentes norte-americanos e chineses e menos no tipo de economia que se pretende construir. Uma política industrial que preserva verdadeiramente o interesse coletivo não se resume a uma mera redução de riscos para o setor privado. O planeamento público e a participação ativa do Estado em setores estratégicos da economia são condições necessárias para garantir que se socializam não apenas os riscos, mas também os benefícios dos investimentos necessários.

domingo, 22 de setembro de 2024

Jameson


Morreu o marxista Fredric Jameson, uma das estrelas maiores da galáxia New Left Review, onde escreveu alguns dos seus principais ensaios, incluindo aquele onde li a frase que melhor resume a época: “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. Sim, às vezes parece mesmo que é. Apesar do seu realismo intransigente, ou por causa dele, nunca abandonou o impulso utópico. Nunca se desiste da luz.

No ensaio American Utopia defende a conscrição geral, universalizando os serviços sociais das forças armadas, tornadas operação defensiva, e gerando uma discussão importante. Mostra, creio, o seu método “realista” de pensar uma utopia para aquele país armado, com outras instituições coletivas esventradas.

sábado, 21 de setembro de 2024

Crise de habitação: os primeiros sinais de agravamento?

O INE divulgou ontem os dados mais recentes do Índice de Preços da Habitação (IPH) relativos ao segundo trimestre de 2024 (abril a junho). Em termos homólogos, face ao segundo trimestre de 2023, o preço das casas aumentou 7,8%. Face ao trimestre anterior, a subida foi de 3,9%.

Vale a pena assinalar, desde logo, que estamos perante o maior aumento trimestral desde que há dados disponíveis (2009). Mas também, não menos relevante, que esta subida inverte a tendência de redução do valor de aumento dos preços das casas, que vinha a registar-se desde o segundo trimestre de 2023. Ou seja, ao longo do último ano.


Sendo vários os fatores que influem na variação dos preços, podemos muito bem estar, contudo, a assistir aos primeiros efeitos do retrocesso, em matéria de política de habitação, pelo atual governo. Tanto ao nível do reforço das lógicas de subsidiação, sem ponderar o seu impacto na subida dos preços, como ao nível do recuo na regulação de procuras (fim das restrições ao Alojamento Local e anúncio de regresso dos Vistos Gold, por exemplo).

Ou seja, medidas que, no seu conjunto, traduzem uma linha orientada para «dinamizar o mercado», criando, por si só, expetativas de incremento das transações e de preços. Nada que surpreenda, na verdade, quando foi a própria ministra da Juventude e Modernização, Margarida Balseiro Lopes, por exemplo, a admitir que os apoios aos jovens (com capacidade para comprar casa), podiam fazer subir ainda mais os preços.

Mesa comum


Na melhor tradição francófona de cruzamento entre a filosofia social, a economia política e a histórias das ideias, o filósofo Pierre Crétois vai estar entre nós na próxima semana. Terei o privilégio de participar com ele e com o historiador João Luís Lisboa numa mesa redonda. Aparecei.

Partindo da sua obra, que não está traduzida entre nós, destacarei que aquilo a que chamamos propriedade privada não passa de feixes de direitos e obrigações passíveis de múltiplas e contestadas alocações, obviamente politicamente determinadas, regulando relações sociais com diferentes padrões distributivos. 

Daqui, passarei para a denúncia do regime proprietarista em que vivemos em Portugal e na UE, fruto da destruição da propriedade pública e logo da erosão da autoridade democrática, particularmente intensa nesta periferia. Foi o produto de décadas de iniciativas liberais que existiram realmente, com custos sociais crescentes, como se vê. Haverá um breve momento soberanista.

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Haja memória


Reavivar da memória, por Volskvargas na semana passada, no início de mais um ano letivo, a partir de um debate entre Nuno Crato e João Costa. Não deixem de ver, do princípio ao fim (são apenas 2 minutos). Ou o ex-ministro da Educação da PAF tem um problema, não clínico, de dupla personalidade, ou é detentor de um topete sem limites.

Quando a questão da falta de professores é finalmente consensual na sociedade portuguesa, o responsável, com o seu governo, pela saída de cerca de 30 mil docentes da Escola Pública, entre 2011 e 2015 - e que defendia haver professores a mais - vem agora dizer que o problema da falta de professores «é uma falta de reconhecimento do problema da falta de professores». Isto não se inventa.

Crato chega mesmo a afirmar que, «na realidade, nós sabemos há muito tempo, que há uma falta de professores e que havia uma falta de professores»... Muito tempo? Quanto tempo passou desde que, em 2012, aludindo ao «viver acima das possibilidades», e invocando argumentos demográficos (que operam no tempo longo), o então ministro da Educação e Ciência disse haver «professores a mais», sentenciando que pelo menos em duas legislaturas se iria «continuar a assistir a necessidades muito limitadas de contratação»?

Com que noção se fica da seriedade de Nuno Crato, que em nenhum momento reconhece ter errado, preferindo dar um salto em frente, a ver se ninguém percebe o flic-flac? Bom, pelos vistos a suficiente para presidir ao Conselho Geral do Observador e à Iniciativa Educação, da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), onde é apresentado como «prolífico divulgador científico e interventor em educação».

No plural


Para quem fala tanto dos usos e abusos do passado, o historiador Rui Bebiano, agora militante do Livre, revela ter uma visão particularmente ahistórica e estreita do nacionalismo. É como se este se declinasse no singular. Isto permite-lhe então inventar um “demónio nacionalista que tantos de nós transportamos na alma”, formulação de resto representativa do seu modo habitual de pensar, com abundantes generalizações moralistas. 

Na realidade, sabemos, da melhor historiografia, sociologia histórica e teoria política, que nacionalismos há muitos, sendo estes uma “poderosa bateria”, que serve para “alimentar os mais variados projetos políticos”, como disse uma teórica política liberal nada dada a diabolizações ideológicas equivocadas, useiras e vezeiras em alguns intelectuais daquele agrupamento político, na prática à direita do atual PS. 

Repito as vezes que forem necessárias, porque se trata de uma questão crucial nesta semicolónia, que bem precisa de um nacionalismo progressista, de um projeto de nação corajoso, como se diz no Brasil. Nacionalismos houve e há muitos, então – liberais e antiliberais, progressistas e reacionários, revolucionários e conservadores, das esquerdas e das direitas, de cima e de baixo, fascistas e antifascistas, imperialistas e anti-imperialistas, racistas e antirracistas. 

O meu nacionalismo é o dos camaradas galegos ou palestinianos, o de Cabral ou o de Cunhal, o de todos os que gritaram de forma emancipadora “pátria ou morte, venceremos” –, o nacionalismo internacionalista de que fala detalhadamente um historiador que não perde o fio materialista à meada chamado Vijay Prashad, na sua história do Terceiro Mundo. 

Não, não há contradição necessária entre nacionalismo e internacionalismo, pode haver a mais produtiva complementaridade: a autodeterminação dos povos é passível de reconhecimento recíproco universal, promovendo as formas mais genuínas de cooperação. 

Não me esqueço de uma aposta política ululante, arduamente aprendida no breve século XX e que, se dependesse de historiadores euroliberais, seria esquecida: nenhuma palavra potente, muito menos a que está associada à melhor bateria política, deve ser deixada aos fascistas. 

E, antes que me esqueça, Olivença é espanhola, digam os tratados o que disserem. A história conta, o “plebiscito diário” também.

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

OE 2025: Cavaco não tem razão

Recupero um texto importante de Cavaco Silva, já com uma quinzena. Este texto.

Do conjunto de afirmações que mereceriam considerações, este post cinge-se à seguinte: “Aumentar a despesa pública sem aumentar as receitas do Estado ou a dívida pública é uma impossibilidade”.

A afirmação acima, sendo apenas parcialmente verdadeira, ofusca a essência do que está, de facto, em causa e é, na sua universalização implícita, essencialmente, falsa.

O que Cavaco afirma só é verdade em termos absolutos e é falso em termos relativos, os termos que verdadeiramente são relevantes para as finanças públicas.

Repare-se que, para um rendimento anual de 10 mil euros, uma dívida de 10 mil euros, significa 100% de endividamento. Repare-se também que para um rendimento de 100 mil euros, a mesma dívida de 10 mil representa apenas 10% de endividamento. Como se percebe, está muito longe de ser igual dever 10%, ou 100%, do rendimento. Pelo que também é fácil perceber que uma dívida medida pelo seu valor absoluto, pouco, ou nada, nos diz da sua relevância. E é aqui que reside o truque falacioso de Cavaco.

Se o objetivo de finanças públicas for a sustentabilidade da dívida pública, entendida esta como dívida que não entra numa dinâmica de crescimento infinito - critério de sustentabilidade do Fundo de Monetário Internacional (FMI) – se assim for, interessa, não apenas o montante adicional de dívida (ou seja, o défice) mas, muito mais relevante, a relação entre este défice primário (sem juros incluídos) e o montante adicional de rendimento da economia (PIB) líquido de juros.

Dito de outro modo, se o crescimento do rendimento, expurgado dos juros pagos pelo endividamento previamente acumulado, for superior ao valor do défice primário, a dívida, em termos relativos, cai.

Como se explica neste estudo (página 8) do FMI (minha tradução), “podem decompor-se as variações dos rácios da dívida em relação ao PIB nas componentes de crescimento, de taxa de juro e de défice, utilizando a seguinte identidade:


em que dt é o rácio da dívida em relação ao PIB, gt é a taxa de crescimento do PIB nominal, it é a taxa de juro nominal e o défice é o défice primário (...)”.

Sabendo isto, acima, atentemos num exemplo concreto ilustrado com números:


Neste exemplo, com taxa de juro de 2% e taxa de crescimento do PIB de 7%, nenhum défice inferior, ou igual, a 4,7% resultaria em crescimento da dívida. 

Ao contrário, a dívida recua 1,7 pontos percentuais (p.p.), cai para 98,3%, ou seja, recua a diferença entre o efeito bola de neve (a soma do efeito PIB com o efeito juros) e o défice primário.

De onde se pode concluir que, ao contrário do que afirma Cavaco, é possível aumentar a despesa, não aumentar as receitas e, ainda assim, a dívida recuar. 

Assim sendo, recapitulando, a sua afirmação, aquela com que começamos este texto, é falsa.

Repare-se agora, com mais detalhe e alcance temporal na evolução histórica do efeito bola de neve na dívida pública.


O que significa aquele pico de 10,2 p.p. em 2012, o segundo maior da série?

Significa que em resultado de uma política orçamental como aquela que defende Cavaco Silva (défice zero ou superávite), fazendo cair o PIB numa economia fustigada pela especulação com taxas de juro permitida pelo BCE (política inquestionada por Cavaco e pelo extremo centro em geral), independentemente do défice daquele ano, só em razão desta dinâmica malsã e politicamente induzida, a dívida pública aumentou 10,2 p.p..

Para se ter uma ideia apropriada do desastre que representou aquela política que Cavaco volta agora a defender, tenha-se em consideração que, em toda a série disponível, só uma calamidade como aquela com a gravidade da pandemia de 2020, que obrigou a encerrar parcialmente a economia e gerou um brutal efeito bola de neve no valor de 10,9 p.p., produziu efeitos tão nocivos para a sustentabilidade da dívida pública que possam ser comparáveis aos do descalabro de 2012 engendrado pela troika e pela direita. É obra.

Não esqueçamos que, em 2023, a despesa pública total, em percentagem do PIB, em Portugal, se cifrou em apenas 42,3% e na Zona Euro em 50%, uma diferença de 7,7 p.p..

Recordemos também que, no que a despesa pública com investimento diz respeito, desde 2012 que esta é menor em Portugal, tendo esta divergência atingido o seu pico em 2016, ano em que o investimento público em Portugal foi apenas cerca de metade do realizado na zona euro.

Não. Cavaco está errado. Não era e continua a não ser assim que se levanta um Estado. Por mais livros que tenha publicado no estrangeiro. Por mais que alguns economistas, mergulhados no simulacro de discussão orçamental a que temos direito, lhe dêem razão.

Toda a solidariedade internacionalista


Podem oprimir-vos, podem aprisionar-vos, mas nunca quebrarão o vosso espírito. Gaza, Jenin, Tulkarm, Nablus, nunca caminhareis sozinhas.

A melhor solidariedade internacionalista europeia com a martirizada nação palestiniana vem dali, de onde há uma cultura nacionalista, plebeia e progressista, como na Irlanda ou na Galiza ou no País Basco. Nunca deixar de falar, nunca deixar de lutar. 

Em linha com o melhor da sua história anticolonialista, soberanista e antirracista, a Assembleia-Geral da ONU aprovou a imposição de sanções contra o Estado terrorista de Israel, como tinha feito com a África do Sul do Apartheid. O imperialismo opôs-se, como sempre. 

Saiba a tão silenciosa universidade portuguesa, por exemplo, seguir o gesto da ONU. Esperamos ter novidades para breve sobre quebras de um silêncio tão ruidoso como o genocídio perpetrado por Israel, com apoio de EUA e de UE. É que há cumplicidades insustentáveis, insuportáveis.

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

De que se queixa, afinal, a Iniciativa Liberal?

Nas jornadas parlamentares da IL, a deputada Mariana Leitão acusou a AD de ter prometido mudanças, mas estar apenas a proceder a «ténues alterações», afirmando que a IL é o «único partido (...) com uma proposta concreta para a saúde». Para que não houvesse dúvidas, concretizou: «uma proposta que pretende que se abandonem os preconceitos ideológicos para que se utilizem todos os setores, permitindo que os utentes tenham cuidados de saúde em tempo útil».

Não se justifica, contudo, o queixume da deputada da Iniciativa Liberal. A menos que lhe tenham escapado as declarações proferidas no dia anterior pelo Primeiro-Ministro, Luís Montenegro, considerando que «a saúde não se gere com preconceitos ideológicos». Ou as declarações de Ana Paula Martins, ministra da Saúde, no próprio dia, a pedir um «amplo consenso nacional» para levar a cabo a «reforma estrutural» do SNS, aproveitando «a capacidade instalada de todos os setores» (ou seja, financiar com recursos públicos o setor privado e os seus lucros).


Mas há, claro, uma terceira hipótese. A de a deputada da IL, Mariana Leitão, pretender apenas fazer a síntese do que disse o Primeiro-Ministro e a ministra da Saúde, revelando assim a convergência e plena sintonia programática que existe entre a Iniciativa Liberal, o PSD e o CDS-PP (e o Chega, já agora). Mesmo que sob a aparência de uma falsa indignação, para militante ver, no contexto de umas Jornadas Parlamentares.

Manifestação justa, vida justa


No dia 21 de Setembro, o movimento Vida Justa junta-se à Grande Marcha Cabral de luta e celebração do centenário de Amílcar Cabral, pelas 15h00, com o percurso do Marquês de Pombal até ao Rossio, em Lisboa. A iniciativa carrega o lema cabralista de «unidade e luta contra o fascismo, a xenofobia e o neocolonialismo» ao convidar «todas as forças vivas», «comprometidas com as causas justas» a marchar pelo fim das «fomes, as guerras, a miséria e a injustiça». 

Esta marcha exige a responsabilidade de não negar as ideias de Amílcar Cabral, como o próprio defendia. Unidade não visa «unir todos em torno da mesma causa, por mais justa que ela seja, de realizar a unidade absoluta, de unir-se não importa com quem». 

Neste dia de luta e reflexão, reforçamos o convite a todas as pessoas, «forças vivas», «comprometidas com as causas justas», a juntar-se à Marxa Kabral pela justiça para «Cláudia Simões, Bruno Candé, Daniel Rodrigues, Danijoy Pontes, Giovani Rodrigues, Múmia Abu Jamal», pela dignidade humana.

Dado um ou outro comentário desonesto que circulou por aí, aproveito esta excelente convocatória da Vida Justa para reafirmar o seguinte: criticar a composição de um abaixo-assinado político-partidário, por algumas pessoas que inclui e pelas muitas que exclui, não é criticar uma manifestação antirracista, que de resto é totalmente autónoma em relação a tal iniciativa e que merece ser apoiada. 

E não é criticar a esmagadora maioria das pessoas que foram convidadas a assinar, como é evidente. É simplesmente criticar quem escolheu que certas e determinadas pessoas assinassem. Não vale tudo na unidade, como Cabral tão bem assinalou.

terça-feira, 17 de setembro de 2024

OE 2025: simulacro democrático

A 17 de Julho último, o Expresso noticiou que “por lei, o Governo tem de entregar todos os anos ao Parlamento os quadros com a despesa pública prevista para os próximos anos, fixando um valor para o ano seguinte que tem de ser replicado no Orçamento do Estado. A proposta de lei chegou, desta vez, sem os quadros. A Assembleia da República já o pediu ao Governo, mas ainda não foi entregue”. 

Cerca de dois meses depois, no fim da semana passada, o governo fez, finalmente, chegar aos partidos políticos o tal Quadro Plurianual da Despesa Pública que estava em falta. Este quadro. 


No entanto, apresentando contas não consolidadas, ou seja, não expurgadas do efeito de dupla contabilização de receitas e despesas, os números apresentados naquele quadro são de leitura impossível e, vítima incauta e preguiçosa desta impossibilidade, a imprensa noticia o absurdo ululante: “Governo prevê arrecadar 110% do PIB de 2023 em impostos no próximo ano”. 

Pedro Pratas já aqui tinha tratado este assunto de forma oportuna e cristalina enquanto, simultaneamente, denunciava com desassombro o desinformado e demagógico aproveitamento que a Iniciativa Liberal tentou fazer desta situação. 

Neste contexto, na sua última coluna de opinião no jornal Público, a 13 de setembro,  Susana Peralta, assinala oportunamente que “(...) o Parlamento devia aprovar em abril (digamos, de 2024) um teto de despesa que vincula o Governo no ano seguinte (digamos, 2025)”. 

No mesmo texto afirma-se também que “[a] cacofonia que inunda cada mês de setembro faz crer que o Orçamento nasce algures entre o primeiro e o último mergulho de agosto. Mas não devia ser assim. A Lei de Enquadramento Orçamental prevê que o Orçamento do Estado seja elaborado em duas etapas”, diz-nos a colunista logo a iniciar. 

A economista prossegue desta forma: “Assim, o processo orçamental começa em abril, quando o Governo apresenta à Assembleia da República a Lei das Grandes Opções, para discussão e votação, em conjunto com a atualização do Plano de Estabilidade. Um dos principais ingredientes desta lei é o Quadro Plurianual da Despesa Pública – QPDP para os amigos. O QPDP estabelece tetos de despesa para os cinco anos que se seguem, com a particularidade de o teto ser vinculativo para o primeiro destes anos.” 

“Já vimos este filme. Em 2021, a Lei das Grandes Opções não chegou a ser discutida e votada no Parlamento e acabámos sem Orçamento aprovado e em eleições”, diz-nos também Peralta. 

Neste último parágrafo, Peralta inclui uma ligação para outro texto seu, de 2021, onde reza assim: “O debate orçamental inicia-se em abril, quando o Governo submete ao Parlamento uma proposta de Lei das Grandes Opções. A LGO, tal como o OE, são da competência do Parlamento”.
 
Se leio apropriadamente o que Peralta afirma, do seu texto pode legitimamente inferir-se que este ano não está a acontecer nada de extraordinário e que este atraso e a desinformação que se lhe seguiu é apenas o desacerto habitual. 

É uma leitura que não acompanho. A meu ver, muito pelo contrário, pouco, ou nada, deste simulacro de debate é ordinário.

Repare-se que, como vimos acima, é da competência do Parlamento definir tetos de despesa e que esses tetos devem ser apresentados pelo governo ao parlamento até abril. 

Ora, com a reforma recente das regras de governação na União Europeia, o poder de decidir acerca do teto da despesa foi apropriado pela Comissão Europeia e esta instituição, à data da apresentação pelo governo do Quadro Plurianual da Despesa Pública ao parlamento, 6 de setembro último, ainda não tinha decidido quanto do nosso dinheiro podíamos usar, situação que volta a ser confirmada pelo governo a 8 de Setembro

Obviamente nada disto é habitual ou ordinário. Parte importante da soberania económica do país voltou a ser transferida para instituições não nacionais (o povo deu-se conta?) e, não sendo jurista, diria que a lei da Républica Portuguesa não está a ser cumprida. À falta de nova lei orçamental (será possível redigir alguma que respeite o imperativo constitucional da soberania nacional?), quem deve decidir o teto da despesa pública em Portugal continua a ser a Assembleia da República e esse teto deve ser apresentado ao parlamento em abril. Nenhuma das duas obrigações legais me parece estar a ser respeitada.  

Susana Peralta finaliza o artigo a que tenho estado a aludir afirmando que "(...) temos direito a um debate orçamental substantivo e escrutinável” e perguntando: “Onde está ele?”.

A sua questão leva-me a uma outra: como é possível ter um debate orçamental substantivo e escrutinável se estamos a discutir sem conhecer quanto do nosso dinheiro a Comissão Europeia nos autoriza a usar, ou seja, se estamos a discutir o orçamento sem conhecer o orçamento? 

O que já sabemos é que as ”[n]ovas regras orçamentais europeias retiram mais margem ao Governo do que as antigas”. E também sabemos que o país nunca saberá que pressupostos usou a Comissão para concluir acerca desta margem menor que atribui discricionariamente ao país. Recordemos que, em 2023, a despesa pública total, em percentagem do PIB, em Portugal, cifrou-se em 42,3% e na Zona Euro em 50%, uma diferença de 7,7 pontos percentuais. 

Como pode um debate orçamental substantivo passar ao lado destas questões?

Um problema

Álvaro Cunhal, Um problema de consciência, Diabo, 11 de março de 1939, p. 5. Opúsculo editado pelas Edições Avante!, com ilustrações de Ana Biscaia, impresso na tipografia Damasceno, em Coimbra, no ano de 2021.

O problema


Em resposta ao meu comentário, Pedro Adão e Silva afirma as suas certezas: “É comovente ver a forma como pessoas que nunca votaram no PS e não parece que algum dia tencionem votar têm tantas certezas sobre o que o PS devia ou não fazer. Aliás, é uma história com 50 anos.” 

Não tem grande relevância, mas já que menciona o assunto, aproveito para esclarecer: já votei no PS em eleições legislativas (era Ferro Rodrigues Secretário-Geral), em autárquicas (João Soares, em coligação) e em candidatos do PS nas presidenciais (Jorge Sampaio e Manuel Alegre). 

Apoio o PCP desde 2015 e já não conto mudar, mas o PS, tal como o BE, onde de resto militei, entre 2007 e 2014, interessam-me. Seja como for, será que um apoiante de um partido não pode avaliar outros partidos? Pedro Adão e Silva não o faz? 

Enfim, faltam argumentos e sobra uma linha em que o PS apoia o PSD sem mais, independentemente do OE, por causa do Chega, agigantando um partido em queda, dando-lhe a oportunidade de “polarizar”, como gosta de dizer. 

E não, não seria um tango: o PS ficaria a ver o PSD dançar o que bem entendesse, com a música que bem quisesse. Será que esta linha extremo-centrista se inspira na França do incensado plano inclinado Macron?

Adenda. Na foto está a primeira página do último livro de Bernie Sanders, em que este declara: é ok estar furioso com o capitalismo. Duvido que Kamala Harris o esteja. Com todas as divergências com este social-democrata, que opera num país mais recuado do que o nosso em termos de conquistas das classes trabalhadoras, reconheço que seria difícil ver um social-democrata português, exceção feita à ASD, com esta sua atitude crítica atualmente.