Recupero um texto importante de Cavaco Silva, já com uma quinzena. Este
texto.
Do conjunto de afirmações que mereceriam considerações, este post cinge-se à seguinte: “Aumentar a despesa pública sem aumentar as receitas do Estado ou a dívida pública é uma impossibilidade”.
A afirmação acima, sendo apenas parcialmente verdadeira, ofusca a essência do que está, de facto, em causa e é, na sua universalização implícita, essencialmente, falsa.
O que Cavaco afirma só é verdade em termos absolutos e é falso em termos relativos, os termos que verdadeiramente são relevantes para as finanças públicas.
Repare-se que, para um rendimento anual de 10 mil euros, uma dívida de 10 mil euros, significa 100% de endividamento. Repare-se também que para um rendimento de 100 mil euros, a mesma dívida de 10 mil representa apenas 10% de endividamento. Como se percebe, está muito longe de ser igual dever 10%, ou 100%, do rendimento. Pelo que também é fácil perceber que uma dívida medida pelo seu valor absoluto, pouco, ou nada, nos diz da sua relevância. E é aqui que reside o truque falacioso de Cavaco.
Se o objetivo de finanças públicas for a sustentabilidade da dívida pública, entendida esta como dívida que não entra numa dinâmica de crescimento infinito - critério de sustentabilidade do Fundo de Monetário Internacional (FMI) – se assim for, interessa, não apenas o montante adicional de dívida (ou seja, o défice) mas, muito mais relevante, a relação entre este défice primário (sem juros incluídos) e o montante adicional de rendimento da economia (PIB) líquido de juros.
Dito de outro modo, se o crescimento do rendimento, expurgado dos juros pagos pelo endividamento previamente acumulado, for superior ao valor do défice primário, a dívida, em termos relativos, cai.
Como se explica neste
estudo (página 8) do FMI (minha tradução), “podem decompor-se as variações dos rácios da dívida em relação ao PIB nas componentes de crescimento, de taxa de juro e de défice, utilizando a seguinte identidade:
em que dt é o rácio da dívida em relação ao PIB, gt é a taxa de crescimento do PIB nominal, it é a taxa de juro nominal e o défice é o défice primário (...)”.
Sabendo isto, acima, atentemos num exemplo concreto ilustrado com números:
Neste exemplo, com taxa de juro de 2% e taxa de crescimento do PIB de 7%, nenhum défice inferior, ou igual, a 4,7% resultaria em crescimento da dívida.
Ao contrário, a dívida recua 1,7 pontos percentuais (p.p.), cai para 98,3%, ou seja, recua a diferença entre o efeito bola de neve (a soma do efeito PIB com o efeito juros) e o défice primário.
De onde se pode concluir que, ao contrário do que afirma Cavaco, é possível aumentar a despesa, não aumentar as receitas e, ainda assim, a dívida recuar.
Assim sendo, recapitulando, a sua afirmação, aquela com que começamos este texto, é falsa.
Repare-se agora, com mais detalhe e alcance temporal na evolução histórica do efeito bola de neve na dívida pública.
O que significa aquele pico de 10,2 p.p. em 2012, o segundo maior da série?
Significa que em resultado de uma política orçamental como aquela que defende Cavaco Silva (défice zero ou superávite), fazendo cair o PIB numa economia fustigada pela
especulação com taxas de juro permitida pelo BCE (política inquestionada por Cavaco e pelo extremo centro em geral), independentemente do défice daquele ano, só em razão desta dinâmica malsã e politicamente induzida, a dívida pública aumentou 10,2 p.p..
Para se ter uma ideia apropriada do desastre que representou aquela política que Cavaco volta agora a defender, tenha-se em consideração que, em toda a série disponível, só uma calamidade como aquela com a gravidade da pandemia de 2020, que obrigou a encerrar parcialmente a economia e gerou um brutal efeito bola de neve no valor de 10,9 p.p., produziu efeitos tão nocivos para a sustentabilidade da dívida pública que possam ser comparáveis aos do descalabro de 2012 engendrado pela troika e pela direita. É obra.
Não esqueçamos que, em 2023, a despesa pública total, em percentagem do PIB, em Portugal, se cifrou em apenas 42,3% e na Zona Euro em 50%, uma diferença de 7,7 p.p..
Recordemos também que, no que a despesa pública com investimento diz respeito, desde 2012 que esta é menor em Portugal, tendo esta divergência atingido o seu pico em 2016, ano em que o investimento público em Portugal foi apenas cerca de metade do realizado na zona euro.
Não. Cavaco está errado.
Não era e continua a não ser assim que se levanta um Estado. Por mais livros que tenha publicado no estrangeiro. Por mais que alguns economistas, mergulhados no
simulacro de discussão orçamental a que temos direito,
lhe dêem razão.