sábado, 30 de março de 2013

Traduções necessárias para debates sem espectros


Nem o programa ‘máximo’, nem o programa ‘mínimo’, nem a exigência da impossibilidade utópica, nem a gestão do estado de coisas existente, mas antes um conjunto concreto de exigências estrategicamente formuladas para atingir o adversário no coração, ali onde as contradições da situação se tendem a concentrar, por forma a criar a alavanca necessária para alterar a correlação de forças. Questões como o incumprimento da dívida soberana, o desmantelamento da UEM e a confrontação com a sua autoritária fuga para a frente são o equivalente contemporâneo das exigências de paz, pão, terra e autogoverno popular de que dependeu o resultado do primeiro assalto aos céus no século XX. Urgentemente colocadas como questões de relevância imediata onde a crise está a ser mais duramente sentida – na periferia da Zona Euro, em particular na Grécia –, são centrais para o debate da esquerda no velho continente como um todo. Num tempo em que o pensamento estratégico se tornou cada vez mais raro, sobretudo à esquerda, e em que a crise do capitalismo inspira perplexidade e embaraço entre o que o que resta dos seus adversários organizados, em vez de gerar energias renovadas para travar novas batalhas, este livro merece ser reconhecido por aquilo que é: um grande acontecimento intelectual, combinando investigação académica rigorosa e inovadora com um compromisso político lúcido mas radical. [minha tradução]

Excerto da introdução de Stathis Kouvelakis a Crisis in The Eurozone, um livro saído no ano passado, da autoria de Costas Lapavitsas, Eugénia Pires, Nuno Teles e outros economistas do Research on Money and Finance, onde a questão da saída do euro é colocada com toda a clareza. A traduzir. De Lapavitsas, Pires e Teles, relembro também este artigo num Público de final de Março de 2010, já lá vão três anos. As ideias têm um caminho lento, mas não são inócuas. De resto, de Kouvelakis, teórico político marxista, dos da estrutura e da conjuntura, recomendo também um texto sobre a crise da formação social grega, onde indica de passagem algo que considero fundamental: é da fusão política da “questão nacional”, ou seja, a luta pela recuperação da soberania popular contra tutelas externas, com a “questão social”, ou seja, a luta pela distribuição e pelos direitos de quem trabalha, que se forma o material para as grandes transformações democráticas. Pistas para análises concretas que possam estar ao nível de muitas proclamações abstractas; pistas que serão certamente exploradas e debatidas no Segundo Congresso Internacional Karl Marx, que se realizará entre nós em Outubro e onde Kouvelakis será um dos oradores principais.

quinta-feira, 28 de março de 2013

Sobre a entrevista

Neste blogue já se escreveu muito, e quase sempre de forma crítica, sobre muitas das políticas do governo de José Sócrates, das suas engenharias neoliberais à atitude passiva e subalterna do seu governo em relação a um enquadramento europeu pernicioso. O mas já aí vem. Antes disso, gostaria de apontar uma das principais contradições da entrevista de ontem: por um lado, José Sócrates desmonta, e bem, a narrativa dominante e aldrabona sobre a crise, por outro lado, continua a exibir uma confiança inexplicável num PEC4 de austeridade cuja lógica, instituída por Merkel, pela Comissão e pelo BCE era e é totalmente tributária da narrativa que precisamente denuncia. Sócrates diz que é preciso parar já com a austeridade que destrói a economia. Fica a pergunta: o mesmo não era válido com o PEC4, numa altura que a economia resvalava para a recessão depois de, em 2010, ter crescido 1,4%? Vamos ao mas. Em primeiro lugar, Sócrates aponta a Cavaco e faz muito bem: a duplicidade hipócrita do mais mesquinho político português, calado em relação à crise europeia até à eleição de Passos, apoiante de todas as austeridades subsequentes, é inegável. Em segundo lugar, Sócrates tem toda a razão quando enfatiza de forma adequada o nexo causal: da crise financeira internacional à crise da dívida que não é soberana. Em terceiro lugar, Sócrates tem toda a razão quando recusa acusações de despesismo: o défice é uma variável endógena, que aumentou devido à crise, sobretudo devido à quebra das receitas, como aqui temos insistido, e não devido a qualquer impulso deliberado de despesa pública, como insistem editores e economistas aldrabões em demasiada comunicação social. No entanto, Sócrates, como europeísta acrítico e social-liberal que foi e é, ainda não é capaz de identificar as estruturas internas e externas que colocaram Portugal aqui e que o seu governo não enfrentou (podia tê-lo feito com um Amado no MNE, por exemplo?): um euro disfuncional, uma economia dominada pela finança e por outros grupos económicos rentistas.

quarta-feira, 27 de março de 2013

Cortar nas gorduras


Um consultor cuja empresa recebeu 300.000€ do Estado nos últimos doze meses, como contrapartida por dizer disparates tais que façam o próprio governo parecer relativamente moderado, é o que eu chamo uma gordurinha que bem podia ser cortada. 

O mesmo de sempre


Para além de apoiar os banqueiros e de fazer eco da troika, o Banco que já foi de Portugal também se especializou em fazer revisões das suas previsões e em subestimar o impacto da austeridade recessiva: o PIB cairá 2,3%, em 2013, em vez dos 1,9% previstos há dois meses, e, em 2014, devido às novas rondas de austeridade, agora designadas por “poupanças”, estimadas em 1,5% do PIB, este ficará por um crescimento de 0,3%, em vez dos 1,1% previstos. Continuam a subestimar os efeitos multiplicadores dos cortes. Curiosamente, 0,3% era o crescimento previsto, no início de 2012, para 2013. É tudo tão previsível no círculo vicioso da austeridade apoiada por quem manda no Banco: Carlos Costa, especialista em paraísos fiscais e em evangelismo de mercado, conta com o desemprego de massas para levar a cabo o programa dos seus amigos na banca, em Bruxelas e em Frankfurt.

É claro que o investimento caiu 38% em seis anos e que, só em 2013, serão destruídos mais de 150 mil postos de trabalho, ainda segundo o Banco que não é de Portugal. É a compressão da procura e os seus efeitos. Pouco importa, já que enterrada no meio do relatório de uma primavera que não chega encontramos uma pérola que resume todo o programa ideológico: “a evolução registada deve ser enquadrada na tendência ascendente registada ao longo da última década, a qual tem assumido em parte um carácter estrutural [estimam uma taxa de desemprego dito estrutural perto dos 12%] A actual projecção não incorpora no entanto qualquer efeito associado às medidas de natureza estrutural entretanto tomadas, dada a dificuldade em estimar a sua magnitude e perfil temporal.”

Que dizer desta pérola? Comecemos pelo fim: desconhecem-se os efeitos que as tais medidas estruturais tão propaladas, leia-se redução dos direitos laborais e sociais, aumento das obrigações laborais e dos direitos patronais, terão na economia, o que aliás é bastante sensato, dado o que se sabe sobre o assunto. É um reconhecimento velado de que a conversa sobre as reformas ditas estruturais é pura ideologia. A questão está mesmo no desemprego estrutural, o outro lado do pleno emprego estrutural. Não pensem que estrutural seja o euro ou a sobreapreciação cambial e a austeridade que nele estão inscritas e os seus impactos negativos na procura, incluindo no investimento. Não, desemprego estrutural é o desemprego natural, uma construção imaginária, formulada por Milton Friedman, entre outros, para tentar persuadir os decisores de que as políticas keynesianas nada podiam gerar neste campo a não ser inflação. Trata-se de uma estimativa que parte de um esforço para imaginar uma economia no seu equilíbrio de longo prazo, no seu máximo potencial nesse misterioso horizonte. Bom, a verdade é que o longo prazo é um encadeamento de curtos prazos determinados pela evolução da procura: a sua compressão deixa capacidade produtiva por utilizar, seguindo-se a sua destruição, o que significa que a recessão ao incluir quebras de investimento continuadas comprime a capacidade produtiva, naturalizando novas e mais elevadas taxas de desemprego.

No fim de contas, o Banco que um dia terá de voltar a ser de Portugal diz-nos que tudo isto é inevitável e que a recuperação até está no horizonte se não houver fadigas e outras falhas humanas que consigam inventar. Até lá, podemos não estar mortos, mas cada vez mais estaremos naturalmente desempregados. É toda uma estrutura que temos de reformar...

Teste do algodão



A Troika diz-nos que o seu programa é o caminho para descer a dívida publica portuguesa. Claro que em cada revisão trimestral do programa as previsões pioram, mas mantém-se a ideia de que, algures, a divida lá começará a descer.

Vale a pena testar essas previsões. Saber o que acontece quando o crescimento económico passa de -1% para -2% ou quando se usam saldos orçamentais mais realistas. Usando previsões não-Gasparianas (isto é, credíveis) de crescimento e saldo orçamental, será que é possível atingir realmente uma dívida decrescente nos próximos anos?


No gráfico da imagem podem ver um dos meus testes: Qual seria a evolução automática da dívida se Portugal tivesse um crescimento de -2% em 2013 e crescimento zero nos anos seguintes, mantendo todas as outras previsões dentro dos números da Troika?

Invejosos?


Não há limites para a falta de bom senso dos líderes políticos alemães. Perante as críticas que se avolumam, no Sul da Europa, contra a gestão alemã da crise, o ministro das Finanças alemão responde da forma mais absurda que podia: “Sempre foi assim. É como numa classe [na escola], quando temos os melhores resultados, os que têm um pouco mais de dificuldades são um pouco invejosos.” Desta forma, Wolfgang Schäuble revela o que pensa: eles (os alemães) são os bons alunos – e portanto mais inteligentes ou mais trabalhadores – e os outros (os países do Sul da Europa) são os maus alunos – e portanto mais burros ou mais malandros.

E mais uma vez os líderes políticos alemães atacam-nos recorrendo à moral; nós temos inveja do sucesso da Alemanha. Trabalhamos pouco, somos gastadores, queremos viver do dinheiro dos outros e somos invejosos. Este é o discurso rasca a que muitos políticos alemães têm recorrido para evitar o debate sério e urgente sobre a forma como a União Europeia está construída.

As elites alemãs são as maiores vencedoras do euro, do alargamento a Leste e da liberalização do comércio com a China. E os povos do Sul da Europa os principais derrotados. O euro acrescentou competitividade à Alemanha e retirou-a à nossa economia. O alargamento a Leste e a liberalização do comércio com a China foi benéfico para a indústria alemã e destruidor para a indústria que prevalecia no Sul da Europa. E como se estes desenvolvimentos no processo de integração europeia não fossem vantagem suficiente para a economia alemã, o governo alemão recorreu ainda a uma política organizada de compressão dos salários dos trabalhadores alemães, contribuindo desta forma para agravar as dificuldades da nossa indústria e aumentando as vantagens da sua.

Este modelo de integração europeia gerador de fraco crescimento industrial no Sul só foi possível durante vários anos por causa do fluxo de dinheiro barato do Norte da Europa para a periferia, o outro lado dos défices comerciais. É óbvio que isto não duraria. Chegados aqui, os alemães emprestam-nos mais dinheiro não porque estejam preocupados connosco mas porque querem evitar que os seus bancos sejam afectados pela bancarrota dos nossos países. O dinheiro que cá chega serve apenas para garantir que os seus bancos não sofrem perdas. Quanto ao nosso povo, o problema é nosso.

(crónica publicada às quartas-feiras no jornal i)

terça-feira, 26 de março de 2013

Mais duas notas sobre Chipre

1- O modelo de resolução da banca cipriota impõe perdas a todos os seus credores: accionistas, obrigacionistas e depositantes com mais de 100 mil euros em depósitos. Todos? Todos não, porque os empréstimos do Eurosistema - 9 mil milhões de euros a toda a banca - são totalmente preservados, sendo transferidos para o novo banco entretanto criado e, por isso, garantidos pelos contribuintes cipriotas.

2- O resgate a Chipre está a ser vendido como o castigo europeu a um paraíso fiscal no seio da zona euro. Luxemburgo (banca com balanços 23 vezes o seu PIB)  e Malta (banca com balanços 8 vezes o seu PIB) são os próximos?

A breve calma antes da tempestade


É sabido que fazer previsões a curto prazo não é normalmente boa ideia, pois arriscamo-nos a ser rapidamente confrontados com as insuficiências da nossa análise. Mas uma coisa é certa: a crise bancária cipriota está neste momento, digamos, no intervalo – e a segunda parte vai ser animada.

Coloquemo-nos no lugar de um titular (cipriota ou estrangeiro) de uma conta (com menos ou mais de 100.000 Euros) num banco cipriota, com um mínimo de capacidade de movimentar o montante depositado assim que o banco reabrir – que é como quem diz, quando o acesso às contas for descongelado. Sabemos que: i) o Estado cipriota não dispõe da capacidade de garantir por si próprio os depósitos existentes (68 mil milhões de Euros), nem sequer os de montante inferior a 100.000€ (30 mil milhões de Euros); ii) o primeiro bail-out (resgate) europeu, negociado durante o fim-de-semana, tem uma componente significativa de bail-in (penalização dos credores, neste caso depositantes) –  e, no plano inicial, por diversas razões aliás bem interessantes, nem os pequenos depositantes eram poupados, o que estabeleceu um precedente; iii) todos os outros depositantes do mesmo banco têm esta mesma informação; e iv) quando as contas forem descongeladas, os primeiros a transferirem os montantes depositados para local seguro (para a Holanda, para fora do zona Euro, para debaixo do colchão,…) mantê-los-ão intactos, enquanto aqueles que demorarem a fazê-lo serão apanhados num novo congelamento de contas e sujeitos aos termos de um novo bail-in. O que é que você faria?

A confiança no sistema bancário é um dilema do prisioneiro clássico – e a forma como a crise cipriota foi gerida politicamente empurrou o “jogo” para a solução não-cooperativa. É neste momento bastante provável que o sistema bancário cipriota entre muito brevemente em novo colapso iminente e, se isso acontecer, ou o BCE/União Europeia “nacionaliza” federalmente a banca cipriota, o que muda totalmente as regras do jogo daqui para a frente, ou Chipre vê-se obrigado a sair do Euro. Tudo isto por causa dos 5,8 mil milhões de Euros com que o Eurogrupo exigiu que os depositantes participassem no resgate – um montante tão insignificante à escala europeia, mas aqui com consequências potenciais de tal magnitude, que das duas uma: ou o Eurogrupo é de uma incompetência inimaginável, ou estamos perante um primeiro ensaio, deliberado, de uma saída da zona Euro na modalidade caótica e provocada pelas autoridades europeias. 

Em qualquer dos casos, os dados estão lançados.

segunda-feira, 25 de março de 2013

O muro do silêncio começa a ceder

A edição de hoje do jornal i dá grande destaque às posições de seis economistas que defendem a necessidade de Portugal sair da zona euro e/ou a insustentabilidade da mesma. De notar que metade são Ladrões (o Nuno Teles foi discriminado; não teve direito a lugar na capa). O muro do silêncio na comunicação social começa finalmente a ceder. Não me parece excessivo dizer que este blogue deu um bom contributo para esta mudança. Continuemos a pedalar.


Mais um salvamento

Parece que Chipre está oficialmente num limbo monetário - nem dentro, nem fora do euro. Não está no euro porque, desde sábado passado - e com efeito a partir do momento em que os bancos reabrirem portas, isto é, amanhã -, Chipre vai ter limitação à liberdade de circulação de capitais. Ou seja, o dinheiro que está em Chipre não sai, e, portanto, o que está fora, tirando o de turistas que queiram visitar a ilha, não entra. Como diz Krugman, Chipre fica no pior dos mundos.

A partir de agora, um país que já estava em recessão e onde o desemprego já era superior a 14%, passa a ficar sem sector financeiro, sem a possibilidade de atrair capitais e, também, passa a estar sujeito a um programa de austeridade em tudo semelhante à restante periferia europeia. Em face disto, não se percebe em que medida é que Chipre terá sido 'salvo'.

A única coisa que este plano de resgate conseguiu foi agravar a actual situação - em Chipre, em toda a periferia e, inevitavelmente, na própria zona euro - e garantir que o 'doente' morrerá do 'tratamento'. De loucura em loucura, a zona euro aproxima-se cada vez mais da implosão. Implosão social, implosão económica e, sim, implosão financeira. Aconteça o que acontecer, sabemos uma coisa: não será bonito.

ATTAC: «A crise portuguesa em 10 minutos»

Um dos maiores sustentáculos do bloqueio político em que nos encontramos decorre da forma persistente com que as interpretações simplistas (e fraudulentas) sobre a crise continuam a prevalecer na opinião pública.

Ajudadas pelos tele-economistas cúmplices do desastre (mas que permanecem descaradamente alapados nos espaços televisivos), estas narrativas impedem uma compreensão adequada da crise, instigando os sempre mais populares (e populistas) sentimentos de acusação e de auto-culpabilização.

A desconstrução dessas narrativas continua por isso a ser essencial. E a ATTAC acaba de dar mais um precioso contributo nesse sentido, ao divulgar uma segunda versão, actualizada, do documento «A crise portuguesa em dez minutos». Para além de um diagnóstico muito claro e acessível sobre as causas da crise, o documento aponta alguns dos caminhos alternativos para a superar.

domingo, 24 de março de 2013

A quem serve o euro?


Uma imagem muito expressiva, ontem publicada na Business Insider (via Shyznogud, a quem agradeço a partilha), encimada por um título não menos sugestivo: «Veja num só gráfico porque é que nada está a ser resolvido na Europa».

A explicação, dada no artigo, é tão simples como o gráfico: «Nada pode ser feito sem a aprovação da Alemanha e, francamente, a Alemanha comportar-se-ia de forma insane se alterasse o actual estado de coisas. (...) O acesso difícil ao crédito, a baixa inflação e a austeridade funcionam de modo perfeito para o país que detém o poder», mesmo que «uma desvantagem para a Alemanha pudesse ser mais facilmente acomodada, através de um BCE mais interventivo e de um sistema de maiores transferências entre países. (...) Uma zona euro mais coesa poderia significar um euro mais forte, mas isso poderia prejudicar as exportações alemãs».

O que significa que quem aposta em pensar na saída da crise exclusivamente pela via das mudanças na arquitectura da zona euro (rejeitando desse modo considerar e aprofundar a reflexão sobre possíveis cenários de saída da moeda única), não poderá, honestamente, negligenciar as avultadas dificuldades políticas que subjazem a essa opção.

O contributo do PCP para o debate sobre o euro

Com esta conferência, o PCP deu um importante contributo para o necessário debate sobre o futuro de Portugal na zona euro.

O PCP parte para este debate com a vantagem de ter sido o único partido que nos anos 90 alertou, de forma sistemática e coerente, para as implicações do projecto de União Económica e Monetária (UEM) sobre o modelo de desenvolvimento económico e social europeu e para os riscos da participação de Portugal neste projecto – muitos dos quais são hoje dramaticamente visíveis.

A posição do PCP contrastou, na altura, com o europeísmo pueril e propagandístico adoptado pelo Partido Socialista (que então se esquivou ao debate substantivo), com a adesão ideológica inequívoca (ainda que assente em pressupostos errados, como mostramos na parte 5 deste texto) do PSD ao projecto da UEM, com a nunca justificada transformação do CDS de partido eurocéptico em partido filoeuropeu, ou ainda com o europeísmo crítico mal definido do então recém-criado Bloco de Esquerda.

Os comunistas tomam, novamente, a dianteira do debate, num momento em que as fragilidades da UEM estão à vista de todos e em que se colocam dúvidas crescentes sobre a sustentabilidade das regras e dos arranjos institucionais sobre os quais assenta o projecto de integração económica e monetária da UE.

Correndo riscos de simplificação, a posição transmitida pelos dirigentes do PCP nesta conferência (e vale a pena ouvir todas as intervenções) pode ser resumida em dois pontos:

i) a permanência de Portugal na zona euro é económica, política e socialmente insustentável, pelo que a saída de Portugal do euro – seja por iniciativa própria, seja por pressão dos restantes Estados Membros, ou num cenário de implosão da moeda única – é apenas uma questão de tempo;

ii) Portugal só deve sair do euro por iniciativa própria se e quando estiverem reunidas as condições para que tal processo seja liderado por um governo que garanta a minimização dos custos para as populações, num processo que será necessariamente difícil.

Ao assumir explicitamente que considera a permanência no euro insustentável e as suas consequências inaceitáveis, o PCP faz algo que nenhum outro partido do arco parlamentar fez até ao momento em Portugal.

Todos nós, eleitores, deveríamos exigir aos partidos que se apresentam a eleições que clarifiquem a sua posição relativamente às seguintes questões:

1º) Consideram ou não que a permanência do euro, de acordo com as regras vigentes, é compatível com um modelo de desenvolvimento aceitável para Portugal?

2º) Em caso afirmativo, qual o modelo de desenvolvimento que vislumbram como possível e desejável no quadro da UEM?

3º) Em caso negativo, que alternativa defendem à participação de Portugal na UEM, nos termos em que se verifica actualmente? Que estratégia pretendem prosseguir para a construção dessa alternativa? Quais os riscos, limitações e potencialidades dessa estratégia?

Neste debate, tanto o PCP e como os partidos da direita já responderam à primeira questão – o PCP negativamente, os segundos positivamente. Ainda estamos à espera que PS e BE clarifiquem a sua posição sobre qualquer uma das três questões.

Mas a direita assume a dianteira daqui para a frente, pois o modelo que consideram possível e desejável no quadro da UEM é claro e está definido no Memorando de Entendimento com a Troika. Trata-se de uma economia que aposta na desregulação das relações laborais, nos baixos salários, na minimização das responsabilidades sociais do Estado e na exploração dos recursos naturais como meio de atrair investimento e promover a competitividade, estimulando a mobilidade internacional da mão-de-obra (leia-se, emigração em larga escala) como variável adicional de ajustamento macroeconómico.

Quanto ao PCP, continua a não ser clara a alternativa que defende, nem a estratégia para a construir. Em particular, continua a não ser claro se o PCP considera necessário o país preparar-se para sair do euro por iniciativa própria e, nesse caso, como pretende o PCP contribuir para reunir as condições necessárias a um processo que garanta a minimização dos custos para as populações.

Embora estejam por clarificar as suas respostas a questões fundamentais, o PCP parte para este debate com avanço face aos outros partidos de esquerda, assumindo a coragem de colocar as questões que precisam de ser colocadas. Qualquer que seja o resultado deste debate, começa a ser insustentável que os partidos assobiem para o lado, como se não estivesse em causa o nosso futuro colectivo.

Uma questão incómoda?


A propósito da agudização da crise do euro a partir da falência de dois bancos em Chipre, Francisco Louçã interpelou "os bons espíritos" que defendem a saída do euro com esta questão (ver aqui):

"se o povo reagiu violentamente contra o confisco de 6% dos seus depósitos, com razão e com o apoio da esquerda, o que diria esse povo ao governo de esquerda que lhe anunciasse que amanhã de manhã os depósitos perdem metade do seu valor, porque os euros são substituídos por escudos com uma desvalorização de 50%? Como reagiria a este imposto de 50%? Não é evidente que haveria uma corrida aos depósitos para levantar todos os euros? É evidente e é uma questão incómoda. Procurar alternativas não pode poupar esse incómodo." 

Louçã cometeu um erro surpreendente que o José Castro Caldas, para além de propor um enfoque mais amplo, bem assinalou nos comentários. A resposta foi equívoca, no mínimo, pelo que é preciso insistir para de uma vez por todas afastar raciocínios errados.

Para um pequeno ou médio depositante, o valor das suas poupanças depende da evolução do valor interno da moeda,ou seja, da taxa da inflação no consumidor. Acontece que o consumo importado não é a totalidade do consumo privado, talvez cerca de 13% (ver aqui o consumo importado das famílias em 2008). Assim sendo, para as famílias a inflação importada, decorrente de uma depreciação de 50% do novo escudo (aliás um valor excessivo), seria (50% x 13%) = 6,5%. Octávio Teixeira estima (aqui), para uma depreciação de 30%, uma inflação importada de 8-9%. Jacques Sapir estima, no primeiro ano, uma inflação importada de 25,5% (aqui) que rapidamente se reduz. Quaisquer que sejam os pressupostos e o método da estimativa, falar em 50% de perda do valor dos depósitos é simplesmente um absurdo.

Por outro lado, não é forçoso que a saída do euro implique uma corrida aos bancos, tudo dependendo da estratégia adoptada pelo país que sai (ver texto abaixo), do que estiver a acontecer na zona euro e da cooperação que for possível estabelecer entre vários países. Na realidade, a corrida aos bancos já está a acontecer agora. Mais, o receio de uma corrida aos bancos em Chipre e noutros países está a obrigar a UE a tomar medidas muito mais drásticas do que as que defendi no meu texto para o Congresso Democrático das Alternativas. Termino com alguns parágrafos desse texto:

"Numa sexta-feira à noite, pouco depois das 22h, e após breves consultas com os restantes órgãos de soberania do Estado, o Primeiro-Ministro fala à nação e, com um discurso inspirador de tranquilidade e confiança no futuro, invocando um estado de emergência nacional, anuncia que o país abandona o euro e introduz um novo escudo na paridade de um para um sob regime de câmbio flutuante. Assim, todos os preços e contratos realizados ao abrigo do direito português são convertidos no mesmo valor em escudos. Nesse mesmo discurso, dirá que o Estado português passa imediatamente a utilizar a nova moeda fazendo pagamentos aos funcionários públicos e fornecedores em escudos e recebendo impostos, taxas e outras receitas também apenas em escudos. Mais ainda, dirá aos portugueses que as contas bancárias estão garantidas e permanecem em euros embora, por razões de natureza informática, os bancos tenham de encerrar por três dias. Finalmente, anunciará o fim da política de austeridade com a reposição dos vencimentos retirados aos funcionários públicos e pensionistas, uma revisão do sistema tributário e das contribuições para a segurança social segundo princípios de justiça, um programa de investimento em renovação urbana e um programa de criação directa de empregos.
(...)
Finalmente, vejamos alguns problemas levantados pelos defensores da permanência do país na zona euro a qualquer preço:

- É errado afirmar que uma desvalorização da nova moeda em 40% levaria a um aumento dos preços na economia também de 40%. O que aumenta no imediato é apenas o preço dos bens importados. A sua repercussão no valor da inflação depende da estrutura da economia e, em particular, da estrutura do cabaz de bens e serviços que serve de base ao cálculo do índice de preços no consumidor. Um estudo feito para a Grécia por dois académicos (T. Marolis & A Katsinos, 2011) estima que uma depreciação de 50% da nova dracma levaria no primeiro ano a uma subida do nível geral de preços de 5-9%, enquanto a competitividade aumentaria 37-42%.
- Da mesma forma, é errado afirmar que as poupanças das famílias seriam reduzidas em 40%. As poupanças seriam convertidas à taxa de 1:1 tal como todos os preços de bens e serviços pelo que, no imediato, não há qualquer desvalorização interna. Será o nível da inflação (a controlar pelo governo) que determinará o montante das perdas do poder de compra interno. Em todo o caso, deve assumir-se que a saída do euro tem custos para os aforradores, mas que serão temporários e, na medida em que vêm associados à recuperação dos empregos e rendimentos com a nova política económica, são custos moderados."

sexta-feira, 22 de março de 2013

Neoliberal é o governo

"Neoliberal é a avozinha", diz-nos João Miguel Tavares no Público de hoje. Pede para que deixemos de usar o adjectivo "liberal" para caracterizar a acção deste governo. Pede para que continuemos a alinhar pelo romance do liberalismo de uma certa elite intelectual portuguesa. Pede para que deixemos que a fraude conveniente continue. Nem pensar. Isto é neoliberalismo em acção, como já aqui, por exemplo, se argumentou. Mesmo a questão fiscal é parte de uma estratégia mais vasta. É feio, bruto e mau? É. Mas digo-vos que tenho mais respeito por quem enfrenta isto de frente e o aceita com consciência de classe, Borges e Gaspar, por exemplo, do que por esta gente que sonha com ideologias puras e limpas para dar "mais liberdade aos indivíduos", esquecendo-se que as questões centrais no capitalismo, ou em qualquer outro sistema, já agora, são outras: Quem tem liberdade e quem está vulnerável a essa liberdade? Quem pode impor custos sobre quem? Quem controla o Estado e os outros instrumentos de poder menos visíveis? E não me venha com a conversa da "incapacidade para reformar o país". De que fala? De privatizações? Está a ser feito. De desregulamentação laboral e consequente perda de poder do trabalho organizado? Feito e ainda haverá mais. De regras ambientais menos estritas? Também. De cortes no Estado social? Claro. De despedimentos na função pública? Siga. Sinceramente, já não há pachorra para isto. Neoliberal é o governo que existe, deixe as empobrecidas avozinhas em paz.

And now, for something completely different: a crise europeia explicada em dois gráficos (agora em inglês)

Este post foi publicado em versão inglesa aqui e aqui. Nunca pára de me espantar como ideias tão simples causam tanta surpresa, dentro e fora de portas.

quinta-feira, 21 de março de 2013

O retorno do tempo fascista


O filósofo holandês Rob Riemen, recordando Albert Camus e Thomas Mann, escreveu recentemente: “O bacilo fascista estará sempre presente no corpo da democracia de massas. Negar este facto ou dar outro nome ao bacilo não nos tornará resistentes a ele. Pelo contrário. Se queremos combatê-lo eficazmente, teremos de começar por admitir que está novamente prestes a contaminar a nossa sociedade, teremos de o chamar pelo seu nome: ‘fascismo’” (“O Eterno Retorno do Fascismo”, Bizâncio).
 
A crise que estamos a viver tem muito em comum com a crise de entre as duas grandes guerras do século XX, com destaque para o quadro institucional e ideológico da política económica. A maioria dos economistas acreditava (era mesmo uma crença!) que um orçamento equilibrado dava confiança aos agentes económicos e que medidas de austeridade eram indispensáveis à recuperação da economia. Por outro lado, as taxas de câmbio estavam fixadas pela institucionalização do padrão-ouro. Por isso, com livre circulação de capitais e câmbios fixos, a política monetária não estava disponível. A política económica reduzia-se à engenharia do empobrecimento através do desemprego para reduzir os custos de produção. Esse tempo regressou. Sob a tutela do ordoliberalismo germânico, uma variante da “economia da idade das trevas” na expressão de Paul Krugman, as elites políticas e financeiras da UE enterraram boa parte da sua periferia numa nova grande depressão e induziram uma nova recessão continental. Hoje, milhões de pessoas estão desesperadas e não vêm qualquer luz ao fundo do túnel. Por isso, em alguns países europeus já eclodiu, enquanto noutros está em gestação, o “tempo fascista” que Karl Polanyi tão bem descreveu na “Grande Transformação” (1944, cap. 20).

Dizia Polanyi: “Imaginar que foi a força do movimento [fascista] que criou situações desta natureza e não ver que, neste caso, foi a situação que deu origem ao movimento, significa não aprender a marcante lição das últimas décadas.” Esta passagem devia ser meditada por todos aqueles que se opõem à presente política de neoliberalismo selvagem. É que o “tempo fascista” é um tempo de impasse político, um tempo em que os partidos se revelam incapazes de apresentar uma proposta que rompa com “a situação” geradora do desemprego de massa, lançando assim os cidadãos desesperados para os braços de um demagogo carismático.

Para romper com este impasse, a oposição precisa de mobilizar os cidadãos para acções de protesto pacífico numa escala e numa duração inéditas face às quais, à semelhança do que aconteceu na Islândia e na Bulgária, a queda do governo se tornaria inevitável. Para que tal pudesse acontecer, tendo em conta o descrédito em que caíram, os partidos da oposição teriam de a) participar numa frente política abrangente, liderada por um colectivo de cidadãos sem vínculo partidário e (b) assumir que o desenvolvimento do país, baseado numa política económica visando o pleno emprego, não é possível sem que o país recupere a soberania monetária. Só com uma mudança radical no seu posicionamento estratégico, ilustrado por estas duas condições, seria porventura ainda possível encontrar, antes das legislativas de 2015, uma resposta política progressista para o “tempo fascista” que vivemos.

O sofrimento que atravessa a sociedade portuguesa, o visível desnorte do governo num beco sem saída, a que se junta a irrevogável preocupação com o destino das poupanças suscitada pelo resgate dos bancos de Chipre, tudo junto parece ter criado receptividade a uma proposta política credível que responda de forma construtiva a este “tempo fascista”. A capacidade de regeneração da democracia portuguesa está hoje posta à prova.

(O meu artigo no jornal i)

Conversas sobre o Senso Comum

Hoje, em Coimbra e em Lisboa, as duas últimas sessões da segunda edição das Conversas sobre o Senso Comum, promovidas pela Cultra.

Em Coimbra, Francisco Amaral (realizador, produtor e docente) e Noémia Malva Novais (jornalista e investigadora) perguntam: «É verdade porque deu na televisão?». É na Arte à Parte (Rua Fernandes Tomás, 17), a partir das 21h30.

Em Lisboa, Carlos Carujo e Hugo Dias perguntam: «Sem patrões não há trabalho?». No Espaço MOB (Travessa da Queimada, 33), a partir das 21h30.

Duas linhas, todo um programa

O BCE anunciou, num comunicado de duas linhas, a suspensão do financiamento de emergência (ELA) aos bancos cipriotas na próxima segunda-feira caso o Governo não chegue a acordo com a troika. Três lições: 1- Enganam-se aqueles que apostam numa pura estratégia de tensão dentro do euro com as instituições europeias que "nunca deixariam um país cair". O que o BCE diz com este comunicado é que está disposto a contemplar umas saída do euro por parte do Chipre já na próxima semana; 2- As declarações de Draghi no passado Verão sobre a preservação da zona euro a todo o custo só valem para Espanha e Itália. O tamanho conta; 3- Ainda que o governo cipriota consiga um acordo com agentes russos para o seu resgate, o BCE impõe que haja um acordo com a troika. A problema não é só financeiro.

quarta-feira, 20 de março de 2013

E que tal regressar aos bancos da escola, Vítor Bento?


Está visto que hoje é dia de recordar aos neoliberais da nossa praça a teoria neoclássica que, juntamente com a filosofia política austro-libertária e o conservadorismo social, compõem a sua matriz ideológica.

Presumo que Vítor Bento passasse na cadeira do 1º ano de António Borges. Mas chumbaria com certeza nalgumas outras. Veja-se a pergunta que coloca hoje no Diário Económico: "Pois se [os patrões] acham que se devem pagar mais salários, porque é que não os aumentam? Porque é que precisam de uma ordem do Estado?". Tudo isto para argumentar contra o aumento do SMN e em favor de uma putativa "idiossincrasia cultural" dos portugueses que nos levaria a não conseguir fazer nada sem o Estado.

Pois a resposta, caro Vítor Bento, vem em qualquer manual introdutório de Economia. É que cada empresário tem interesse em que os outros aumentem os seus salários (para que aumente a procura pelos seus bens), mas não tem interesse em aumentar ele próprio os salários que paga (pois isso implica suportar a totalidade do custo, usufruindo apenas de uma ínfima e eventual fracção do benefício). É o chamado problema do free rider - e consta que é bastante falado nas faculdades de Economia.

Precedentes


O meu texto para o Diário Económico de hoje, escrito ainda antes de se saber da rejeição do plano de resgate pelo parlamento cipriota (o essencial, no entanto, não é afectado por isso):

O sistema bancário cipriota, que constitui um off-shore de facto, tem uma dimensão diversas vezes superior à da economia real, funcionando nomeadamente como lavandaria de capital russo. Perante a sua iminente insolvência, designadamente devido ao impacto da reestruturação da dívida grega, as autoridades europeias comprometeram-se a co-financiar em €10 mil milhões de Euros um pacote de resgate. A condição, além da austeridade, é que os depositantes (nomeadamente extra-comunitários) suportem parte do esforço financeiro. E, segundo parece, as autoridades conservadoras cipriotas terão sugerido ou insistido que os pequenos depositantes sejam também penalizados, de modo a espalhar o mal pelas aldeias e não comprometer definitivamente o futuro do país enquanto off shore. Em suma e com muita simplificação, a velhinha reformada cipriota é chamada a apoiar o resgate do oligarca, ainda que este último perca bastante mais: 12,5% versus 3%, segundo as últimas notícias.

Pode isto repetir-se? Bem, se a pergunta se refere a resgates bancários europeus pelos quais os depositantes enquanto tais paguem parte da factura, a resposta é “para já e em geral, não”, pois as elites europeias já mostraram ser tão flexíveis ou arbitrárias quanto seja do seu interesse – e penalizar credores ou provocar corridas a bancos não é normalmente do seu interesse. Já se a questão se refere à penalização das classes populares pelas perversidades estruturais da zona Euro, a resposta é que foi a Grécia o precedente original e vamos já numa mão-cheia de casos "agudos”. Mas há no caso cipriota um precedente: pela primeira vez, os credores são chamados a assumir perdas logo de entrada. O resultado da combinação das considerações geopolíticas de quem manda na Europa com o interesse próprio das elites cipriotas é uma "solução" que agrava a fuga de depósitos do Chipre e restante periferia e, por essa via, acelera o desenlace final do Euro. Fascinantes e perigosos tempos, estes.

O salário mínimo, a árvore e a floresta

(Ou: Brincando à economia neoclássica, com bonecos e tudo, para que o primeiro ministro entenda mais facilmente)

A despeito da posição do governo, várias confederações patronais reuniram ontem com as centrais sindicais para discutirem a actualização do salário mínimo nacional (SMN), mostrando assim entenderem bastante melhor o funcionamento da economia do que o primeiro ministro, que há cerca de duas semanas proclamou na Assembleia da República, em tom professoral, que para reduzir o desemprego seria necessário reduzir o SMN e não aumentá-lo.

Passos Coelho tem em mente o mesmo entendimento da economia que (com um outro grau de sofisticação, é certo) está também subjacente ao estudo que um consórcio de investigadores das Universidades do Porto e do Minho realizou em 2011 por encomenda do governo recém-empossado – estudo esse que serviu de justificação para que o governo rasgasse o acordo (assinado em 2006 em sede de concertação social) que previa a actualização anual do SMN de modo a que este atingisse os 500€ em 2012. Concluía o referido estudo que a actualização do SMN de 485€ em 2011 para 500€ em 2012, a suceder, provocaria “uma diminuição do emprego que variará entre -0,34% (…) e -0,01% (…)”. Recorde-se,  já agora, que a diminuição do emprego que efectivamente se verificou ao longo do ano de 2012, sem a actualização do SMN, foi de -4,3% - isso mesmo, entre 12,6 e 430 vezes superior à redução do emprego que o estudo estimava ser provocado pelo eventual aumento do SMN. Mas os problemas do estudo, e desta visão da economia, não se limitam a ignorar e/ou branquear os factores realmente determinantes do desemprego.

De forma resumida, a explicação do desemprego neste entendimento da economia assenta na ideia que cada empresário, enquanto optimizador racional, decide contratar ou despedir trabalhadores comparando a produtividade marginal destes com o custo (de oportunidade) da sua remuneração. A caixa automática do hipermercado custa 490€/mês, o trabalhador custa 500€/mês, opta-se pela caixa automática se as “produtividades” forem idênticas. E até é verdade que em isto acontece em maior ou menor grau, embora de forma muito mais permeada de incerteza e heurísticas e muito mais mediada por factores institucionais do que o modelo neoclássico reconhece. De qualquer forma, um modelo é uma simplificação, já sabemos, pelo que daí resulta uma curva de procura agregada de trabalho que é decrescente com o preço. A oferta agregada de trabalho é crescente com o preço, pois com uma remuneração mais elevada os trabalhadores estarão tendencialmente dispostos a trabalhar mais horas e mais pessoas estarão tendencialmente disponíveis para trabalhar. O preço (salário, neste caso) de equilíbrio corresponde à intersecção das curvas de oferta e procura de trabalho, sendo o desemprego involuntário causado pela imposição exógena de um limite mínimo “artificial” acima do preço de equilíbrio. Baixe-se o SMN e reduzir-se-á o desemprego; aumente-se o SMN e aumentar-se-á o desemprego.



O modelo é simples de entender, mas não reflecte a realidade. Parafraseando o próprio Passos Coelho, confunde a árvore com a floresta. Isto sucede porque a alteração do salário mínimo altera a distribuição do rendimento (de forma directa e indirecta, uma vez que as tabelas salariais são institucionalmente definidas a partir, entre outras coisas, do SMN como base) e, por sua vez, a alteração da distribuição do rendimento, como é reconhecido pela própria economia "mainstream"(veja-se este estudo do FMI, por exemplo), afecta a procura agregada na economia. Aumentar o salário mínimo aumenta a procura agregada porque altera a distribuição do rendimento em favor dos consumidores que, tendencialmente, exibem menor propensão para a poupança e menor componente importada do seu cabaz de consumo. Aumentando a procura agregada (no mercado de bens), a curva de procura de trabalho não permanece estática – sofre uma deslocação para a direita, uma vez que o acréscimo da procura por bens traduz-se num acréscimo da procura de trabalho para o mesmo nível de preços.  O efeito sobre o desemprego é o que está representado na figura em baixo e é, em termos estritamente teóricos, indeterminado – depende do declive, posição e deslocação das curvas. Em termos empíricos, até pode ser estimado - mas não se pode é assumir que o efeito sobre a procura de trabalho decorrente da alteração da distribuição do rendimento (a deslocação para a direita da curva de procura de trabalho na figura em baixo) é inexistente - como assume este estudo.


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Lembras-te disto, ó Evaristo?


«Não podemos permitir que todos aqueles que estão nas empresas privadas ou que estão no Estado fixem objectivos e não os cumpram. Sempre que se falham os objectivos, sempre que a execução do Orçamento derrapa, sempre que arranjamos buracos financeiros onde devíamos estar a criar excedentes de poupança, aquilo que se passa é que há mais pessoas que vão para o desemprego e a economia afunda-se. (...) Se nós temos um Orçamento e não o cumprimos, se dissemos que a despesa devia ser de 100 e ela foi de 300, aqueles que são responsáveis pelo resvalar da despesa também têm de ser civil e criminalmente responsáveis pelos seus actos e pelas suas acções.»

Pedro Passos Coelho, num Jantar do PSD em Viana do Castelo, a 6 de Novembro de 2010 (via Leonel Brás, no facebook).

Estamos em guerra


O nosso país vive actualmente um processo de destruição sem precedentes. O período que estamos a atravessar já é um dos piores da nossa história em matéria de destruição de empresas, de emprego mas também de vidas. A recessão agrava-se, o desemprego atinge recordes, o défice orçamental fura todas as metas, a dívida pública aumenta mas a estratégia para o ajustamento e para sair da crise continua sem alterações. Entre a estratégia de dominação económica alemã, o fanatismo autista do ministro das Finanças e a incapacidade para liderar e defender o país do primeiro-ministro, os portugueses vão assistindo à destruição de Portugal. Querem que acreditemos que não temos alternativa e que, portanto, teremos de continuar a sujeitarmo-nos aos interesses dos credores externos. Será, no entanto, a política que nos destrói a economia em nome dos interesses dos credores, a principal causa da incapacidade de o nosso país vir a pagar a totalidade do que deve. Sim, estamos em guerra. As armas são diferentes das usadas nas guerras tradicionais mas não deixam de ser devastadoras. As armas usadas contra nós são a austeridade, o programa de ajustamento que a consagra, os juros que os nossos credores nos cobram e a ameaça de isolamento com que nos chantageiam. Enquanto os líderes nacionais não perceberem que têm de fazer política continuaremos a assistir à destruição do nosso país. Sim, também temos as nossas armas. A principal arma de um devedor é a própria dívida e, em nenhum momento, deve sair de cima da mesa das negociações. Não é no entanto a única. Uma verdadeira negociação entre estados, para ter sucesso, não pode ficar confinada a quatro paredes. Portugal deve fazer pressão pública, promover ativamente alianças com outros países, aproveitar a energia dos protestos dos portugueses como instrumento de pressão negocial e, em última análise, rejeitar mesmo a aceitação de condições de ajustamento suicidas.

Ao primeiro-ministro e ao ministro das Finanças exige-se que façam política; ou sabem interpretar e estar à altura do momento histórico que vivemos ou é melhor deixarem que sejam outros a escrever a história.

(crónica publicada às quartas-feiras no jornal i)

Três notas sobre Chipre e a banca


11-   O que se tem passado em Chipre por estes dias ilustra eloquentemente como funciona a banca. Os depositantes são, antes de tudo, credores do seu banco. O que está aqui em causa não é um imposto, mas sim o custo da falência de dois gigantescos bancos e a forma como os credores são afectados.

22- Os depositantes não são credores como os outros. Dada a função social da banca enquanto guardiã das poupanças, o Estado garante parte dos depósitos em caso de falência. Foi essa garantia – da qual depende a confiança dos depositantes – que foi colocada em causa pela troika ao penalizar os depósitos abaixo dos 100 mil euros. A confiança que já não é recuperável aconteça o que acontecer.

33- Os depositantes devem ser os últimos a serem afectados por uma falência bancária e, mesmo assim, de forma limitada graças às garantias públicas. No caso cipriota, não se percebe porque é que os outros credores não são afectados prioritariamente, nomeadamente todos os empréstimos inter-bancários (ver os diferentes azuis do gráfico abaixo, retirado deste artigo). A única justificação é o poder de cada credor face ao poder político.


terça-feira, 19 de março de 2013

Confiar na fada?


As instituições europeias – do Banco Central Europeu à Comissão Europeia – acreditaram, acreditam e acreditarão na “fada da confiança”, para retomar a impagável expressão de Paul Krugman. Esta fada, invocada em todas as análises do Consenso de Bruxelas, seria responsável por tornar a austeridade e as “reformas estruturais”, mais tarde ou mais cedo, em sinónimos de expansão: os capitalistas ficariam tão impressionados e confiantes com políticas públicas “credíveis” de consolidação orçamental e de transformação estrutural regressiva para a maioria que desatariam a investir. O problema é que o mundo não se verga às fraudes classistas de gente com poder. A austeridade é profundamente recessiva, ainda para mais quando praticada ao mesmo tempo por tantos países e sem possibilidade de descer juros e desvalorizar moedas. A austeridade leva ao colapso da procura e logo obriga a uma revisão das expectativas por parte de muitos em relação a vendas futuras, fazendo com que as forças da desconfiança se adensem, levando ao colapso do investimento, no quadro de dificuldades financeiras, públicas e privadas, cada vez mais agudas. Para além disso, as tais reformas estruturais comprimem a procura de bens sociais, aumentam a insegurança laboral, tornando os despedimentos mais fáceis e baratos e dando incentivos pouco recomendáveis aos tais capitalistas. Depois de centenas de milhares de empregos destruídos, a troika acha que uma nova ronda de redução das indemnizações fará com que este país permaneça no “bom caminho” para encontrar a tal fada. Na realidade, esta ideologia inscrita nas instituições europeias trabalha para adensar as forças da desconfiança em relação ao futuro, em relação às instituições e em relação aos outros: depressão económica e aumentos da insegurança e desigualdade sociais criam todas as armadilhas socioeconómicas de que falam cientistas sociais que não acreditam em fadas, mas sim em mecanismos reais com consequências reais. De resto, os que mais invocam a confiança são os que mais têm feito para a destruir. Pode ser que acabem por ser as principais vítimas da desconfiança que cresce em relação ao Consenso de Bruxelas e às instituições que o suportam. Pode ser.

segunda-feira, 18 de março de 2013

Ler e reler


Vale a pena ler o comunicado do Congresso Democrático das Alternativas (CDA) sobre a mais recente autoavaliação da troika e do seu governo: o chumbo definitivo do memorando, do governo e da troika. E, já agora, voltar a ler a actualíssima Declaração do Congresso do ano passado.

Anos decisivos

Nestes anos sombrios, marcados pela crise e pelo austeritarismo, Eduardo Paz Ferreira tem sido uma rara voz lúcida no debate público português e também um organizador incansável de debates académicos plurais sobre os temas fundamentais, em contraste gritante com a monopolizadora sabedoria convencional que nos conduziu ao presente desastre. Amanhã apresenta o seu último livro: Crónicas de Anos de Cumbo (2008-2013). Mais detalhes aqui.

Depois de amanhã, Ricardo Noronha falará, no CES, sobre outros anos e outras lutas: “Política e economia - a banca nacionalizada durante o PREC”. “Descrever e interpretar o funcionamento da banca nacionalizada” é uma tarefa intelectual indispensável também para o futuro. Mais detalhes aqui.

Um não-soberano não garante nada

O mais relevante no plano de resgate do Chipre não é saber se o envolvimento dos depositantes é justo; é perceber a razão pela qual esse envolvimento, justo ou injusto, se tornou necessário.  Se os EUA ou o Reino Unido fizessem exactamente o mesmo que o Chipre e decidissem taxar os depositantes, estaríamos a falar de um imposto sobre a poupança. Podíamos discutir se isto faria ou não sentido e se era justo ou injusto, mas ninguém diria que tal medida poria em risco a estabilidade do sistema financeiro americano ou inglês. No caso do Chipre, a história é radicalmente diferente. Ao contrário do que acontece em Estados com soberania monetária, o Chipre teve de penalizar os depositantes para os salvar. É isto, e não o simpes facto de os ter penalizado, que torna o caso do Chipre relevante.

Sem garantia europeia dos depósitos, não há maneira de garantir a tal separação entre bancos e Estados, o que expõe todo o sistema ao risco de insolvência. No fundo o Chipre mostra que, apesar dos LTRO e das OMT, não é possível garantir a integridade financeira da moeda única sem uma verdadeira união orçamental.  Isto acontece faça o BCE o que fizer. Na ausência de um verdadeiro soberano, a famosa União Bancária - que é a nova utopia para garantir a integridade da moeda única - é um castelo de cartas.

domingo, 17 de março de 2013

Mário Murteira (1933-2013)


“Na realidade, estava interessado em conhecer a lógica do capitalismo, não em ser ‘economista’”. Assim escrevia Mário Murteira sobre Peter Drucker em 2002. 

Uma frase que se pode aplicar ao próprio Mário Murteira. E talvez só pensando assim se pode ser um economista político. Faleceu na passada sexta-feira um dos mais importantes economistas políticos portugueses. 

Este blogue, embora com atraso, não podia deixar de o homenagear de forma singela, mas sentida, até porque demos os primeiros passos na economia com os livros daquele que foi também um divulgador dos temas que contam na nesta ciência social: do desenvolvimento à globalização. 

Compreender as transformações também para intervir e para lhes um cunho democrático: dos governos de Vasco Gonçalves a todos os debates públicos e às revistas onde se tem espaço para pensar, seus suportes essenciais. 

Dele relembro uma frase num debate em que tive o privilégio de participar e que nunca mais esqueci: “só quem tem um núcleo firme de convicções é que pode ter toda a flexibilidade que sempre é necessária para intervir neste mundo”.

sábado, 16 de março de 2013

O impossível acontece


O Chipre está falido porque a sua banca sobre-dimensionada estoirou, em parte devido ao impacto da reestruturação grega no seu sistema bancário.

Reunidos na sexta-feira, os ministros das finanças da zona euro esperaram pelo encerramento dos mercados para aprovar o plano de resgate ao Chipre (ver nota do Ecofin). Esse plano contém uma cláusula inesperada e sem precedentes na UE: uma taxa de 6,75% sobre o valor dos depósitos até 100000 euros (supostamente garantidos pelo Estado em todas as eventualidades, incluindo a falência do banco) e de 9,9% para depósitos acima de 100000 euros. Em troca os depositantes “confiscados” receberiam ações dos bancos. Os bancos estarão fechados pelo menos no fim-de-semana e na segunda-feira. Nesse período as contas serão purgadas do valor da taxa.

Os depósitos acima de 100000 incluem muitas contas de cidadãos russos habituados a recorrer a Chipre como lavandaria. Diz-se que o parlamento alemão jamais aprovaria um “resgate” à banca cipriota que deixasse incólumes os depositantes russos.

O que há de extraordinário aqui não é o confisco das contas gordas, russas ou não, nem a relutância alemã em salvar bancos-lavandaria. Extraordinário é o confisco aos pequenos aforradores. Neste ponto a responsabilidade parece ser do novo governo conservador cipriota. Este governo teria preferido distribuir o mal pelas aldeias, em vez de o situar acima do limite garantido de 100 000, para preservar o “prestígio” de Chipre como porto de abrigo de piratas financeiros. Mesmo assim será interessante saber até que ponto os credores dos bancos cipriotas, inclusive os credores alemães, irão também sofrer perdas.

É cedo para ter certezas quanto à perigosidade dos demónios que esta decisão da EU libertou. Fico-me por citações de duas notícias de jornal. A primeira do grego Ekathimerini, a segunda do britânico The Economist.

Lê-se no Ekathimerini:

“A notícia do acordo foi recebida com choque em Chipre, já que o recém-eleito Presidente Nikos Anastasiades e os seus conselheiros económicos haviam dito ser contra a ideia de uma taxa sobre os depósitos.

Anastasiades reunirá o governo e encontrar-se-á  com lideres políticos rivais no Sábado à tarde e dirigir-se-á à nação no domingo.

O candidato presidencial Giorgos Lillikas apelou a um referendo acerca da aceitação ou rejeição pelos cipriotas da taxa sobre os depósitos. À falta do referendo exigiu a convocação imediata de nova eleição presidencial.

Lillikas disse também que estava em conversações com economistas acerca da criação de um plano para o abandono do euro por parte de Chipre e o regresso à libra cipriota.

O secretário geral do Partido Comunista de Chipre (AKEL), Andros Kyprianou, disse que o seu partido está a considerar aconselhar Anastasiades a convocar um referendo ou retirar Chipre da zona euro.

Desde a manhã de sábado, os cipriotas formaram filas nos bancos para retirar dinheiro e algumas caixas multibanco ficaram sem notas para entregar aos clientes.”

Lê-se no Economist:

“Os lideres da eurozona falarão do negócio como algo que reflete as circunstâncias únicas que rodeiam Chipre, exatamente como fizeram com a reestruturação da dívida Grega no ano passado. Mas se o leitor for um depositante num país periférico que parece precisar de mais dinheiro da eurozona, qual seria o seu cálculo? Que nunca seria tratado como as pessoas em Chipre, ou que havia sido estabelecido um precedente refletindo a exigência consistente dos países credores de uma repartição do peso do fardo? A probabilidade de grandes e desestabilizadores movimentos de dinheiro (para notas e moedas, senão para outros bancos) foi desencadeada.”

sexta-feira, 15 de março de 2013

Das grilhetas

Já temos autoavaliação da troika e foi positiva uma vez mais, disse Gaspar, o seu porta-voz: Governo agrava recessão para 2,3% e desemprego ultrapassa 18% este ano. É claro que, através de mecanismos misteriosos, começaremos a crescer em final de 2013, garantem. Também é absolutamente claro que o desemprego de massas é a principal forma de compulsão subjacente ao programa de ajustamento, levando quem ainda trabalha a aceitar trabalhar mais por menos e em piores condições. O resto vem por acréscimo e contribui para o mesmo processo depressivo e regressivo: a destruição do Estado social, através da continuação de cortes selvagens nos próximos anos, sob pretexto de uma consolidação orçamental que se quer “amiga do crescimento”, como agora dizem na bolha de Bruxelas, quando sabemos que só o crescimento pode ser amigo da tal consolidação. Quando se fala das grilhetas do euro é da continuação indefinida deste processo que se fala.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Hoje, em Coimbra


Mais uma sessão do ciclo Conversas sobre o Senso Comum, organizadas pela Cultra. Francisco Louçã e Joaquim Feio (economistas e professores universitários) perguntam: «Não há dinheiro?». É na Arte à Parte (Rua Fernandes Tomás, 17), a partir das 21h30.

Os vícios do debate político nacional sobre a crise

Sempre que são confrontados com a gravidade da situação actual, os partidos do Governo apontam o dedo aos governos socialistas pela dívida acumulada. Como se os desequilíbrios da economia portuguesa tivessem começado a agravar-se nos últimos 6 anos e não nos últimos 20. Como se a maior crise mundial das últimas oito décadas não tivesse acontecido. Como se os partidos do actual governo tivessem seguido orientações ou práticas governativas substancialmente distintas sempre que estiveram no poder no passado.

O maior partido da oposição, por seu lado, aponta o dedo à falta de solidariedade europeia, acusando ainda o actual governo de ser mais troikista que a troika. Como se as orientações europeias não estivessem inscritas em Tratados e a generalidade das opções do actual governo não estivessem inscritas no Memorando da troika, documentos em que governos socialistas puseram a sua assinatura.

Os partidos mais à esquerda oscilam entre ser oposição ao governo – atacando a estratégia de austeridade – e ser oposição ao maior partido da oposição – enfatizando os erros de governação e as contradições do discurso socialista. Como se apontar o dedo aos partidos do centrão bastasse para encontrar um novo rumo.

Perante este cenário, alguns resolvem culpar o sistema político e as lógicas partidárias. Como se a crise não fosse mais do que um produto das imperfeições da nossa democracia. E como se para sair da crise bastasse uma reforma do sistema político, sem necessidade de uma estratégia de governação com opções políticas claras e fundamentadas.

quarta-feira, 13 de março de 2013

Tempos perigosos

O espectro da deflação ou a realidade dos novos máximos do crédito malparado são apenas dois dos indicadores mais recentes da emergente economia da depressão e dos seus paradoxos. De facto, estes múltiplos paradoxos – da poupança à dívida – assinalam as consequências sociais muitas vezes irracionais do somatório de acções que podem bem, dadas as circunstâncias que cada um enfrenta, ser racionais, o tal fosso micro-macro que as instituições e políticas existentes podem tornar mais ou menos transponível: aquilo que parece o mais certo perante a incerteza radical gerada pelas forças do tempo e da descoordenação mercantil – cortar nos custos, nas despesas, comprimindo a procura – gera  desemprego, quebra dos rendimentos e logo maior dificuldade em poupar, ao mesmo tempo que a dívida se torna um fardo cada vez mais insuportável para cada vez mais. Temos a combinação de que são feitas as depressões, sem esquecer o ingrediente fundamental: um Estado compelido, por construção política e ideológica, a comportar-se como se fosse uma família em crise através da austeridade, o que constitui talvez a maior ameaça que a maioria das famílias realmente existentes pode enfrentar. Será que Catroga ainda não percebeu que cortar na “despesa” pública é também cortar directa e indirectamente na “riqueza” do país? Como sublinha o economista político Mark Blyth no seu último livro prestes a sair – vejam ou revejam este notável vídeo –, a austeridade é mesmo uma “ideia perigosa”, com uma história que tem no desemprego de massas e na destruição das democracias dos anos trinta os seus pontos altos. Os paralelismos são mais do que muitos, até pelas grilhetas monetárias que bloquearam e bloqueiam respostas à altura – padrão-ouro na altura, euro hoje em dia –, sem esquecer as notavelmente comuns grilhetas ideológicas do “liberalismo clássico” e seus derivados contemporâneos.

Soma nula?

Jornal da direita francesa avisa que os impostos progressivos sobre rendimento levarão ao exílio dos milionários franceses para o Reino Unido.

Jornal da direita britânica avisa que os impostos progressivos sobre o rendimento levarão ao exílio dos milionários britânicos para França.

terça-feira, 12 de março de 2013

Lutas com futuro


Numa altura em que está a ser imposta uma mudança estrutural de regime, desta vez regressiva e antidemocrática, por elites políticas, económicas e mediáticas orgulhosas de serem obedientes e boas alunas do neoliberalismo austeritário, as grandoladas e as manifestações vieram recolocar as questões centrais: que escolhas políticas podem inverter o rumo desta catástrofe social e económica?; que negociadores poderão representar-nos condignamente, em Portugal e junto das instituições internacionais da Troika (Banco Central Europeu, Fundo Monetário Internacional e União Europeia)? Como bem sabem o governo de Pedro Passos Coelho e o presidente Aníbal Cavaco Silva, os governados já não acreditam que esta maioria faça o país regressar ao investimento, ao crescimento e ao emprego, nem que ela possa representar-nos numa renegociação da dívida que afronte os credores. Foi por isto que a exigência da demissão do executivo e de marcação de uma consulta popular marcou as manifestações de 2 de Março.

Sandra Monteiro, Grandolar o futuro

Destaque neste número, no âmbito do dossiê sobre as escolhas políticas que são necessárias para um modelo de desenvolvimento sustentável, para o artigo de Hugo Mendes sobre a "lógica política e moral de um Estado social universalista", desenvolvendo um tema que tem vindo a explorar, por exemplo, no jugular, para o artigo de Carlos Farinha Rodrigues sobre desigualdades e crise, no seguimento da sua intervenção na última conferência da rede economia com futuro, ou para o artigo de Manuela Silva que sistematiza agendas para uma economia portuguesa com futuro.

segunda-feira, 11 de março de 2013

O longo prazo terá de esperar


Dizem-nos que vem aí a retoma. Depois da austeridade expansionista se ter revelado um fiasco e do efeito (decretado) das reformas estruturais demorar a materializar-se, o governo português, o Banco Central Europeu BCE) e a Comissão Europeia (CE) parecem ter apostado todas as fichas na ideia de que, uma vez estabilizado o sector financeiro, este pode voltar a ser o motor da economia europeia, relançando o investimento privado e, por arrasto, a criação de emprego.

No meio de uma recessão, onde o desemprego já passou os 17%, a austeridade não liberta recursos para o sector privado nem abre espaço para o crescimento económico; limita-se a contribuir para aumentar a quantidade de recursos não utilizados, isto é, agrava a recessão e aumenta, ainda mais, o desemprego. Mas o governo, o BCE e a CE  acham que não. Juntamente com as reformas estruturais, sobretudo as do mercado de trabalho, a austeridade cria as bases para um crescimento sólido e sustentável. Esta posição reafirma dois axiomas ideológicos: o de que uma economia tende naturalmente para o pleno emprego e os efeitos recessivos da austeridade decorrentes do recuo do Estado são apenas temporários, de curto prazo; e o de que menos Estado e um mercado mais liberalizado equivalem a mais crescimento económico e mais criação de emprego no longo prazo.

Ao contrário do que tem sido assumido, a estabilização do sector financeiro dificilmente poderá contribuir para materializar os alegados efeitos benéficos da austeridade e das reformas estruturais. O que os defensores destas políticas não percebem é que, no contexto actual, a recapitalização da banca, a disponibilidade de liquidez ilimitada e a descida dos juros têm um efeito reduzido, para não dizer nulo, nas dinâmicas de crédito e de investimento numa economia. Um banco sem capital não pode conceder crédito, mas tal não significa que um banco capitalizado o faça. E a existência de liquidez, mesmo que acompanhada por uma descida dos juros, por si só, não altera esse facto.

A tese de que os bancos não financiavam a economia porque estavam limitados por capital, por liquidez ou por juros elevados desvaloriza a restrição mais importante de todas: rentabilidade. O dinheiro que chega aos bancos tem de ir para algum lado, mas não podemos simplesmente assumir que este irá naturalmente para a economia. Enquanto não for estabilizada a situação económica, isto é, enquanto não parar a austeridade e não forem implementadas políticas de dinamização viradas para a procura, ninguém investirá e os bancos continuarão a fazer o que têm feito: inflacionar preços de activos financeiros, criando uma ilusão de rentabilidade. Digo ilusão, porque uma rentabilidade que depende exclusivamente da criação de uma bolha no preço dos activos, sem qualquer contrapartida real, não pode ser sustentável.

Se nada for feito para alterar as dinâmicas de procura numa economia, todas as políticas centradas na oferta estão condenadas ao fracasso. O que temos hoje deteriora/destrói os activos financeiros que já existem, facto demonstrado pela evolução das falências e do crédito mal-parado, e também inviabiliza a criação de novos activos. Se excluirmos os efeitos de valorização de curto prazo que tem levado muitos a dizer que a retoma está aí a chegar, importa responder a uma pergunta: qual o impacto das actuais políticas na viabilidade dos activos financeiros presentes e futuros da economia portuguesa? A resposta só pode ser negativa, o que inviabiliza qualquer retoma sustentável.

O optimismo que alguns insistem em afirmar tem apenas um fundamento: a crença empedernida numa teoria macroeconómica que, como escreveu Keynes nos anos 30, pressupõe um espaço Euclediano num mundo essencialmente não Euclediano. A retoma prevista pelos crentes na bondade da actual estratégia só poderá ocorrer num mundo fundamentalmente diferente daquele onde todos vivemos. Até lá, continuaremos condenados a viver no curto prazo e a ouvir declarações, como a resposta do porta-voz da CE às criticas de Krugman, de que existe ampla evidência de que estas políticas resultam, sendo apenas preciso dar-lhes mais tempo e esperar. Suponho que até à eternidade.

domingo, 10 de março de 2013

As consequências ambientais da dívida


“Emissão de CO2 pela indústria europeia cresceu 3% no ano passado, mas em Portugal desceu 14,5%”, noticiava o jornal de Negócios em Junho de 2011”. Depois disto as emissões de CO2 continuaram a diminuir em Portugal em consequência do declínio da atividade industrial, da quebra do consumo de energia doméstico e da redução do trefego rodoviário.

Para alguns isto sugere que nem tudo é mau na austeridade e na recessão. O ambiente apesar de tudo ficaria a ganhar. No entanto, com a austeridade e a crise, por detrás da redução das emissões de CO2, perfilam-se ameaças ao meio ambiente que podem vir a assumir enorme gravidade.

Na realidade, o serviço de uma dívida externa, em contexto recessivo, levou no passado mais do que um país intervencionado pelo FMI à adoção de um modelo económico extractivista com consequências ambientais arrasadoras. O mesmo pode vir a ocorrer entre nós.

Servir uma dívida externa (pública e privada) com as proporções que conhecemos, ao ritmo acelerado com que se pretende fazê-lo, tem inevitavelmente como consequência não só uma impiedosa extração e transferência para o exterior de uma grande parte dos frutos do trabalho dos portugueses, durante muitos anos, como pode induzir uma intensificação sem precedentes da exploração dos recursos naturais. Se esta exploração for acompanhada de relaxamento de normas de controlo dos impactos ambientais da atividade extrativa, o resultado pode ser catastrófico.

Ouvimos falar de concessões mineiras, de concessões de exploração de recursos mineiros no mar e de mirabolantes investimentos estrangeiros nestes domínios. Tudo isso em nome do aumento das exportações, do reequilíbrio das contas externas e do serviço da dívida. Mas o que exatamente se prepara é pouco conhecido, e não sendo conhecido, não tem sido praticamente discutido.

Qual poderá ser o custo social e ambiental destes mirabolantes projetos? Não sabemos, e pior do que não sabermos é constatarmos que, em nome da atração de capitais, existe a intenção de aligeirar os procedimentos de licenciamento e os requisitos dos estudos de impacto ambiental.

Entre o pouco que sabemos encontra-se o que é possível descobrir em alguns documentos oficiais.

No relatório do orçamento de estado de 2013, por exemplo, pode ler-se que no “âmbito do estímulo do investimento e dos sectores produtivos da economia portuguesa, o Governo irá lançar uma nova iniciativa para reformar, de forma profunda, o regime de licenciamento em Portugal, promovendo a desburocratização e reduzindo os custos de contexto. Os objetivos passam pela simplificação, redução e desmaterialização de todos os procedimentos de licenciamento na economia por forma a reduzir as barreiras ao investimento e ao bom funcionamento da economia”.

No mesmo relatório informa-se que “esta reforma recairá, também, nas áreas transversais do ambiente e do ordenamento do território com a revisão do regime de avaliação de impacto ambiental, já no final deste ano, e com a reforma profunda do enquadramento legislativo do ordenamento do território”.

O que está em causa não é uma mera redução de burocracia inútil. Na realidade quem escreveu estas linhas acredita que a atração de capitais depende de um relaxamento de normas ambientais e de planeamento territorial que são um luxo para países endividados.

No quadro do modelo extractivista cujos contornos é já possível antecipar, crucial é não só intensificar a exploração dos recursos, independentemente da existência de investimentos completares que permitam valorizar estes recursos e não exporta-los simplesmente como matérias-primas baratas, como relaxar tudo o que seja regulamentação da atividade extrativa.

O que transpira destas linhas é a equação do licenciamento e da regulação ambiental a “custos de contexto” que é preciso reduzir em nome da eficiência económica. A exemplo do que acontece nas relações de trabalho, está em preparação um steap tease desregulamentador no ambiente e no planeamento territorial, destinado a seduzir investidores que apreciam pouco limites à sua “liberdade”. 

Em nome da dívida, os custos sociais, ambientais, das atividades extrativas devem ser ocultados, escondidos debaixo do tapete. Tudo isto sugere que a auditoria à dívida pública deve acolher uma dimensão ambiental que os torne visíveis.

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