A ideologia e a historiografia ocidental parecem querer resumir o balanço de um século dramático em uma historieta edificante, que pode ser assim sintetizada: no início do século XX, uma moça fascinante e virtuosa (a senhorita Democracia) é agredida, primeiro por um bruto (o senhor Comunismo) e depois por outro (o senhor Nazi-fascismo); aproveitando também os contrastes entre os dois e através de complexos eventos, a moça consegue enfim libertar-se da terrível ameaça; tornando-se nesse meio tempo mais madura, mas sem perder o seu fascínio, a senhorita Democracia pode agora coroar o seu sonho de amor mediante o casamento com o senhor Capitalismo; cercada pelo respeito e admiração geral, o feliz e inseparável casal adora levar a sua vida entre Washington e Nova Iorque, entre a Casa Branca e Wall Street. Estando assim as coisas, não é mais permitido ter qualquer dúvida: o comunismo é o inimigo implacável da democracia, a qual pôde consolidar-se e desenvolver-se apenas depois de tê-lo derrotado. Todavia, esta historieta edificante nada tem a ver com a história real.
Excerto inicial do artigo “Revolução de Outubro e democracia no mundo”, da autoria de Domenico Losurdo, filósofo e historiador italiano. Losurdo faleceu anteontem aos 77 anos. A melhor forma de homenagear este grande autor marxista é lê-lo e usá-lo. Para quem nunca o fez, este artigo pode ser um bom sítio para começar. Infelizmente, não creio que haja qualquer obra sua editada em Portugal, em linha com grande parte do que há de mais vital nesta tradição, em geral, e nos seus veios mais críticos do chamado marxismo ocidental, em particular.
Para quem, como eu, tem dificuldade com o italiano, a obra de Losurdo está disponível em castelhano (Viejo Topo), em inglês (Verso) ou em português do Brasil (Boitempo). Por coincidência, na passada quarta-feira, fizemos-lhe uma homenagem, no lançamento do livro mais ‘losurdiano’, no método, na erudição e em várias das suas conclusões, que eu conheço em Portugal, o Manual de Sociologia Política, da autoria de João Carlos Graça.
Para alguma editora interessada, eu recomendaria começar pela tradução de duas obras de Losurdo: Liberalismo – uma contra-história e Luta de Classes – uma história política e filosófica. Por aqui, o primeiro livro já foi usado por Alexandre Abreu e o segundo por mim. E já nem falo da ascensão da China, onde Losurdo tem também uma visão relativamente rara nos meios da esquerda ocidental, coerente com o resto de uma obra em contra-corrente. Só conheço outro autor, por sinal italiano, com o mesmo tipo de olhar sobre esta complexa formação social: o economista político Giovanni Arrighi, infelizmente também já falecido.
Depois de se ler Losurdo, a história que se conta do liberalismo não pode ser a mesma. É-se compelido a concluir que o inacreditável à vontade com que gente que se diz de esquerda usa a fórmula “democracia liberal” é apenas o produto da sua submissão a uma poderosa ideologia, a que esquece como o liberalismo foi céptico em relação à democracia, ao poder do povo, ao longo da sua história cheia de “cláusulas de exclusão” elitistas e anti-democráticas e de uma imbricação mais longa e profunda do que se reconhece com o patriarcado, o racismo, o colonialismo ou o imperialismo.
Depois de se ler Losurdo, passa a ser muito mais difícil excluir da luta de classes a dimensão da luta anti-colonial pela independência nacional. Depois de se ver a filosofia a trabalhar numa obra monumental de reinterpretação da história contemporânea, resgatando-a dos vencedores dos anos noventa, a Revolução de Outubro passa a ler lida sobretudo pelos seus efeitos externos emancipadores.
Se mais não houvesse, e há muito mais na leitura critica, comparativa e contextualizada das ideias enquanto forças materiais, associadas a determinados grupos sociais, isto bastava para afirmar que Losurdo merece ser tão lido por cá quanto o é por outros lados. Isto não quer dizer, naturalmente, que todas as suas análises históricas devam ser subscritas.
Seja como for, tivesse a linha de Losurdo tido mais influência política em Itália e talvez a esquerda desse país não se tivesse transformado na ruína actual.
Vai fazer falta.
Se mais não houvesse, e há muito mais na leitura critica, comparativa e contextualizada das ideias enquanto forças materiais, associadas a determinados grupos sociais, isto bastava para afirmar que Losurdo merece ser tão lido por cá quanto o é por outros lados. Isto não quer dizer, naturalmente, que todas as suas análises históricas devam ser subscritas.
Seja como for, tivesse a linha de Losurdo tido mais influência política em Itália e talvez a esquerda desse país não se tivesse transformado na ruína actual.
Vai fazer falta.