sexta-feira, 29 de junho de 2012

Escolhas ideológicas


No debate parlamentar da passada quarta-feira, em que se discutia a preparação da cimeira que está a decorrer em Bruxelas, António José Seguro sugeriu que o governo levasse consigo a proposta de os Estados se poderem financiar a 1% junto do BCE, beneficiando assim - em pé de igualdade - dos juros oferecidos ao sistema bancário por aquela instituição (e que este eleva para taxas bastante superiores quando empresta esse dinheiro aos Estados). Seguro referiu o impacto das poupanças que essa proposta comportaria para as finanças públicas portuguesas e para o próprio défice, estimando que os encargos com a dívida pública desceriam dos 7,3 mil milhões para cerca de 2 mil milhões de euros. Isto é, uma poupança de cerca de 5,3 mil milhões de euros (equivalente a dois subsídios aos funcionários públicos e pensionistas ou cerca de cinco vezes o montante que o governo se vangloria de já ter cortado nos «gastos» com saúde).

Na resposta, Passos Coelho reiterou a ideia de que «o BCE é talvez a instituição da União Europeia com mais credibilidade em momentos tão críticos como o que atravessamos», insinuando assim que a alteração proposta conduziria a uma «descredibilização do seu papel», susceptível de conduzir ao «fim do euro». Isto é, segundo Passos Coelho e o dogma neoliberal ainda reinante, o BCE é credível porque favorece o empréstimo aos bancos e deixaria de o ser se passasse a oferecer aos Estados as mesmas condições de financiamento.

Esta resposta é bem elucidativa do juízo político e ideológico em que o Banco Central Europeu se encontra aprisionado, e que se tenta cinicamente dissimular com a camuflagem retórica da sua suposta «independência». Trata-se, de facto, de estabelecer que os Estados não são credores da mesma confiança que se deposita no sistema bancário, a partir dos mitos que persistem quando à suposta racionalidade e eficiência deste sistema. E, ao mesmo tempo, transmite-se a convicção de que cabe unicamente ao sistema bancário - e não ao Estado e às políticas públicas - revitalizar a economia.

Para além de esta escolha ideológica (no tratamento diferencial que é concedido pelo BCE aos Estados e à banca) carecer manifestamente de fundamento teórico e de demonstração empírica (a realidade, aliás, tem vindo a contradizer de modo sucessivo esse famigerado dogma), confia-se declaradamente que a saída da crise apenas se possa fazer através de quem a provocou. Isto é, mantendo praticamente inalterado o modelo de desregulação e financeirização da economia que esteve na sua génese, com os belos resultados que estão à vista de todos.

Portugal que não se iluda, é o próximo.


Recomendo a leitura desta entrevista de Costas Lapavitsas, professor de economia da SOAS (Escola de Estudos Africanos e Orientais da Universidade de Londres), disponível no Público electrónico.

Se a Grécia sair, segue-se Portugal?

Sim. Não acho que Portugal tenha futuro dentro do euro. Sei que os portugueses acreditam que possa ser diferente com eles, mas estão a iludir-se. Portugal teve 10 a 15 anos de estagnação. A economia é fraca, não pode sobreviver facilmente dentro do euro. Portugal não pode sobreviver na união monetária com algum tipo de dinamismo. O que vale para a Grécia vale para Portugal. E o mesmo para Espanha. A Espanha não conseguirá recuperar facilmente nesta união monetária.


quinta-feira, 28 de junho de 2012

Mais uma cimeira

Como era previsível, a política de austeridade fracassou. A programada recessão produziu uma dramática quebra nas receitas dos impostos, de tal ordem que o governo teve de admitir a necessidade de novas medidas de austeridade para não se afastar dos compromissos do Memorando. No entanto, vai adiar a decisão tanto quanto puder porque espera uma esmola da Alemanha, o alargamento do prazo para a redução do défice. Entretanto, a falência de um grande número de empresas, o desemprego de massa, a queda na pobreza de uma parte da classe média, a fome dissimulada e o desespero de inúmeras famílias que deixaram de pagar os empréstimos, tudo isto foi uma devastação económica e social inútil, infelizmente sem fim à vista.

Agora, também é preciso dizer que o fracasso da austeridade põe em causa a reputação dos economistas que durante o último ano defenderam a estratégia do Memorando. Porque se comprometeram com uma política económica errada e deram a sua caução intelectual e moral ao desastre que atingiu o País. E não podem dizer-se surpreendidos com a situação a que chegámos porque as suas teorias económicas são há muito tempo contestadas por outras escolas de pensamento e, no terreno, esta política já tinha sido posta em causa pelos fracassos da intervenção do FMI em anteriores crises financeiras. Como seria de esperar, estes economistas permanecem em palco e sempre dirão que a política não falhou, apenas precisa de mais tempo, mais uma década para que se vejam os efeitos das reformas estruturais.

Nos próximos dias, os analistas do costume virão dizer-nos que a UE finalmente decidiu promover o crescimento económico com um programa de investimento de 130 mil milhões de euros. Mas esquecer-se-ão de dizer que um futuro empréstimo do BEI, normalmente distribuído em retalho pela banca, sujeitará os projectos de investimento à sua análise de risco e a prestação de garantias. Porém, com uma procura interna deprimida, com uma recessão a instalar-se na Europa, com a incerteza gerada pelo arrastamento da crise e com as tensões políticas que se avolumam na zona euro, quantas empresas esperam fazer bons negócios nos próximos anos para pagar novo endividamento? E quantas empresas estão em condições de apresentar garantias que os bancos aceitem?

É possível que a austeridade venha a ser aliviada nos países sob tutela e que novos fundos para investimento possam ficar disponíveis dentro de alguns meses. Mesmo assim, os juros da dívida de Espanha e de Itália manter-se-ão insustentáveis. E a razão é simples. Os especuladores sabem que as propostas de criação de euro-obrigações, de garantia conjunta dos depósitos bancários, de criação de um fundo de amortização da dívida excessiva, a transformação do BCE num verdadeiro banco central e a colocação dos orçamentos nacionais sob tutela de Bruxelas não serão aprovados por vários parlamentos nacionais, a começar pelo Bundestag. No fundo, eles sabem que as hesitações de Merkel são insanáveis porque se devem ao temor de uma intervenção preventiva do Tribunal Constitucional alemão. A superação das inconstitucionalidades obrigaria a um referendo que ninguém quer convocar porque é crescente o número de eleitores alemães que associa, e com razão, o euro a salários baixos, recuo do Estado Providência e um imenso e crescente volume de dívidas que a Alemanha terá de pagar. Na Holanda, um país que sempre apoiou Merkel, a tendência é igual.

Acossada pelos mercados, crescentemente repudiada pelos cidadãos, a zona euro tem os dias contados. Infelizmente, o povo português não teve acesso a informação séria e plural sobre o que se avizinha.

(O meu artigo no jornal i)

Um manifesto do bom senso

"Como resultado de suas ideias erradas, muitos políticos ocidentais estão a infligir sofrimento em massa aos seus povos. Mas as ideias que eles defendem sobre como lidar com as recessões foram rejeitados por quase todos os economistas depois dos desastres de 1930. É trágico que nos últimos anos, as velhas ideias, mais uma vez, se tenham enraizado."

Paul Krugman and Richard Layard, A manifesto for economic sense

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Politicamente

Numa reunião com o seu grupo parlamentar, Angela Merkel terá afirmado que, «enquanto for viva», não aceitará a mutualização das dívidas públicas na zona euro, através, nomeadamente, da emissão dos chamados eurobonds.

A afirmação terá suscitado bastantes aplausos entre os deputados, tendo um dos participantes na dita reunião chegado a proferir (no esteio do servilismo que caracteriza os regimes totalitários) um «desejamos-lhe uma longa vida!».

Ângela Merkel tem todo o direito a assumir e expressar, com o grau de determinação que entender, as suas posições sobre estratégias de política económica. Mas não lhe ficaria mal ter dito que recusa os eurobonds enquanto estiver «politicamente» viva. Como faria, em consciência, qualquer democrata.

terça-feira, 26 de junho de 2012

A não-solução e as alternativas

«Aquilo a que o governo chama pomposamente “reformas estruturais” não passa de um eufemismo de “empobrecimento generalizado da população”. Um ano depois de Passos Coelho ter tomado posse é claro que este rumo não consegue sequer aquilo que garante fazer: Portugal não vai cumprir as metas draconianas que acordou com a troika. (...) Hoje confirma-se aquilo que muitos diziam sobre esta política ideológica e cega: não só não serve, como nem sequer é capaz de atingir os números que se propõe. O austeritarismo conduziu-nos a uma armadilha: aquilo que cortamos em despesas e aumentamos em impostos foi engolido por tudo o que perdemos em produção e emprego. O resultado é um país mais pobre e menos capaz de criar a riqueza de que necessita para viver.»

Do artigo «Um país de coelhos», de Nuno Ramos de Almeida, que merece ser lido na íntegra. Perante as evidências crescentes do fracasso da solução austeritária – que não só não resolveu os problemas como agravou a situação do país, obrigando-o a entrar numa calamitosa espiral recessiva – continua a preparar-se o terreno (sem subtilezas possíveis), para decretar novas medidas de austeridade.

A frase «não há alternativa», proferida até aqui por crentes convictos e por crentes resignados ao austeritarismo, começa agora a assumir os matizes próprios da auto-justificação («não havia alternativa...»). Como se estivessem ainda, apesar de tudo, a falar de uma receita credível, para assim a distinguir de outras, que tomam como inviáveis logo à partida.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Fórum cidadania pelo Estado social

«Em nome da crise e do combate ao défice e à dívida, promovem-se hoje, em Portugal e na Europa, políticas públicas que agravam dramaticamente as desigualdades e a pobreza e desvalorizam o trabalho. Estas políticas ameaçam o contrato social na base do qual foram estabelecidos os compromissos políticos e sociais que são o alicerce das relações de trabalho, dos direitos sociais e da provisão de serviços públicos que caracterizaram a configuração das democracias liberais europeias a partir da segunda metade do século XX e, mais tardiamente, em Portugal, após o 25 de Abril de 1974.
Defender o Estado de Bem-Estar, o Estado Social consagrado na nossa Constituição, representa hoje defender a responsabilidade central do Estado na provisão e garantia pública de serviços e direitos essenciais dos cidadãos, como são o direito à saúde, à segurança social, à educação, à habitação, ao trabalho decente e com direitos.
Significa assumir a solidariedade e a universalidade como valores intrínsecos do Estado Social. (...) Significa recusar uma política de austeridade que, em Portugal como na Europa, está submetida à lógica dos grandes interesses privados e dos mercados financeiros e que olha para o Estado Social como um fardo incómodo a eliminar em nome de uma pretensa competitividade económica.
Significa debater, propor e defender alternativas que coloquem no centro das políticas públicas as pessoas e que assegurem um Estado Social robusto, sustentável e adequado aos nossos tempos, assim contribuindo para uma mobilização cidadã maior, mais determinada e mais esclarecida em sua defesa.»

Do texto de convocatória do Fórum cidadania pelo Estado Social, promovido pela Associação 25 de Abril, pelo Centro de Investigação em Sociologia Económica e das Organizações (SOCIUS/ISEG), pelo Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT/UL), pelo Centro de Estudos Sociais (CES/UC) e pelo Centro de Investigação em Ciências Sociais (CICS/UM),  que terá lugar a 10 de Novembro na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.

Antecedido por debates preparatórios realizados em diferentes cidades do país, o fórum constitui um projecto de mobilização social e de aprofundamento do debate sobre políticas públicas capazes de assegurar a viabilidade e futuro do Estado Social, tendo em vista formular respostas alternativas às actuais políticas de austeridade, desigualdade e empobrecimento.

sábado, 23 de junho de 2012

Gaspar em jogo

Não por acaso, Vítor Gaspar escolheu a passada quinta-feira, no final da reunião de ministros das finanças da zona euro, para começar a levantar o véu sobre os resultados do último relatório de execução orçamental da DGO. Com a atenção dos portugueses concentrada no jogo com a República Checa, tornava-se mais fácil começar a entreabrir as portas que mostram o desastre em que mergulhou o país.

O ministro reconhece nesse momento que «a informação disponível sobre o comportamento das receitas não é positiva», para acrescentar que os dados «traduzem um aumento significativo nos riscos e incertezas associadas às expectativas orçamentais». Mas assegura, uma vez mais, que «o executivo não vai pedir “nem mais tempo, nem mais dinheiro”» para cumprir o défice. Gaspar chegaria mesmo a glosar uma metáfora futebolística sobre a importância de obter resultados durante o «tempo regulamentar» (isto é, sem recorrer a «prolongamentos»).

Ontem, com a divulgação do relatório da DGO - a que o José Maria Castro Caldas fez referência no post anterior - o descalabro orçamental era conhecido em todo o seu esplendor: em valores homólogos, as receitas caem 3,5% (devido a quebras no IRC, IVA e impostos sobre veículos, tabaco e combustíveis) e a despesa aumenta 2% (dado o acréscimo, entre outros factores, de encargos com o pagamento de subsídios de desemprego e a diminuição das receitas da Segurança Social), dilatando o défice do Estado em 35% nos primeiros cinco meses do ano. Valores que, no seu conjunto, ilustram com clareza a espiral recessiva que a insanidade austeritária desencadeou.

Não querendo pedir nem mais tempo nem mais dinheiro, Vítor Gaspar só conhece uma solução para alcançar o tecto do défice estabelecido para 2012 que, nas suas próprias palavras, «o governo está determinado a cumprir», consciente de que «o esforço necessário para atingir esse valor é muito importante». Voltando às metáforas do futebol, Gaspar já se está nitidamente a preparar para pedir mais esforço (e sacrifícios) a certos jogadores.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

E agora Gaspar?



Falhou Dr. Vitor Gaspar. A austeridade não serve para reduzir défices, nem dívidas. Na realidade não serve para nada, a não ser provocar sofrimento desnecessário. Veja aqui e mais aqui e ainda aqui e acola e acoli. Ufff.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Lições

«Durão Barroso não está a gostar do que ouve na reunião do G-20 no México sobre a UE que devia ajudar a governar. As críticas devem-se ao facto da zona euro e o crescimento na UE serem nestes dias factores de crise mundial. Um atestado de incapacidade portanto. "Que a UE não recebe lições de democracia de ninguém", exaltou-se Barroso. Pois acho que estamos sempre a tempo de melhorar as nossas democracias, e de receber umas valentes lições de economia e finanças vindas de outras e melhores zonas monetárias...»

(José Medeiros Ferreira, Córtex Frontal)

Só por inconsciência ou estado de alienação (que o deveriam tornar inapto para continuar a presidir à Comissão Europeia), ou completo despudor (que o desqualifica face ao lugar que ocupa), Durão Barroso pode - nos tempos que correm - afirmar que a UE não tem que receber lições de democracia de ninguém. Bastará certamente recordar-lhe o défice deliberado de discussão democrática que tem pautado a construção europeia (e que a alergia sistemática a processos referendários tão bem ilustra), ou o atropelo monumental aos mais elementares princípios de respeito pela decisão democrata e soberana dos Estados (que os recentes planos unilaterais de reforço da união política e económica comportam). Já para não falar no seu sistemático silêncio, cúmplice e subserviente, à anomalia institucional que constituíam as reuniões «para-oficiais» entre Merkel e Sarkosy, onde tantas vezes se decidiu, em círculo fechado e autocrático, o trágico futuro da Europa.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

O euro contra a Europa

“Na realidade, o rigor orçamental só teria sentido se a União europeia reencontrasse a via do crescimento e do emprego graças a uma política monetária realista. Querer introduzir o euro carregando ao mesmo tempo nos dois travões – o monetário e o orçamental -, e fazendo-o com a maior força, só pode conduzir à explosão da Europa.” (p. 131-2)

“A identidade política e económica da Europa só pode resultar de uma vontade comum. Ela deve traduzir-se num projecto conforme ao interesse de todas as nações que a constituem. É por isso que, em vez de persistir cegamente no processo em curso (…) convém desde já subordinar o euro à necessária refundação da Europa.” (p. 165)

Em 1997, no seu livro L'Euro contre l'Europe ?, o economista Gérard Lafay argumentava que o euro, na forma e no tempo da sua introdução, representava um desvio na identidade do projecto europeu e poria em risco a própria União. Quinze anos depois, os seus receios foram confirmados.

Organizadamente, o que é pouco provável, ou de forma descontrolada, a União Europeia acabará por deixar cair esta moeda única. Talvez para, mais tarde, iniciar uma refundação que respeite a deliberação democrática dos cidadãos, que preserve a diversidade dos interesses nacionais, e que afirme a dignidade do trabalho e o direito ao emprego como pilares da cultura europeia. Essa desejável refundação será certamente um processo lento até porque, como há dias escreveu João Pinto e Castro, “A inocência, uma vez perdida, não se recupera. O idealismo não se fabrica.”

terça-feira, 19 de junho de 2012

Indigno


[V]árias das suas concretas medidas não cumprem os desígnios constitucionais, infringindo vários dos seus princípios e normas, designadamente, entre outros, o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio do direito ao trabalho e à estabilidade no trabalho, o princípio da conciliação da vida profissional com a vida familiar, o princípio da liberdade sindical, o princípio da autonomia coletiva. 

Manifesto Por um trabalho digno para todos

Sem surpresa, Cavaco Silva promulgou ontem as alterações ao código de trabalho. Uma decisão alinhada com a história da economia política e moral do cavaquismo, com as forças sociais que sempre o apoiaram, com a troika e o seu governo, com o tipo de economistas que sempre promoveu e com a habitual hipocrisia à mistura. Afinal de contas, Cavaco tem andado armado em progressista, dizendo que é contra a estratégia de transferir cada vez mais custos para os trabalhadores, sob a forma de salários cada vez mais baixos e condições de trabalho cada vez mais degradadas. Ontem ainda disse que espera que o investimento e o emprego recuperem. O hipócrita pensamento mágico no seu melhor. Acontece que este código é precisamente um importante acto de uma peça indigna: despedimentos mais fáceis e baratos, mais dias de trabalho, horários mais longos e mais baralhados, contratação colectiva mais frágil são alguns dos mecanismos pensados para um patronato que assim dispõe de opções cada vez mais medíocres, baseadas no medo e no ajustamento salarial regressivo. Entretanto, o desemprego, graças à compressão da procura agregada, continuará a aumentar. Mais de uma década de estagnação e recessão e várias revisões liberais do código de trabalho depois, a taxa de desemprego terá quadruplicado muito em breve. Para esta gente a política não é uma questão de validade, mas apenas de poder…

A cultura e o futuro

«Portugal está hoje equipado de museus, bibliotecas, arquivos, teatros, cineteatros, orquestras, património histórico, material e imaterial, bem como de uma rede de artistas, criadores, programadores, técnicos e produtores, complexa e de reconhecida excelência nacional e internacional. No entanto, todo este edifício apresenta enormes fragilidades. Os investimentos em infraestruturas e em formação não foram acompanhados por uma estruturação mínima da partilha de encargos e responsabilidades, da definição de cartas estratégicas e de regras de gestão independentes dos poderes imediatos.
Neste momento, como resultado de uma governação abertamente hostil à ideia de serviços públicos de cultura e que usa a crise como álibi, assistimos a uma rápida e progressiva desprofissionalização no setor cultural, ao fechamento das agendas culturais e à desagregação da identidade social dos equipamentos públicos. O desinvestimento do Estado, nas diversas dimensões das políticas públicas para a cultura, nega, efetivamente, o acesso dos cidadãos à cultura e desbarata o investimento feito nesta área no Portugal democrático.
O acesso à cultura, na dupla dimensão da criação e fruição, é essencial ao desenvolvimento.»

Da Carta: Cultura e Futuro, que pode ser lida e subscrita aqui, e que constitui o ponto de partida para a sessão pública de debate que tem lugar hoje no Teatro São Luís, a partir das 18.00h, com intervenções de José Luís Ferreira (director artístico), António Capelo (actor), Catarina Martins (actriz, encenadora e deputada do BE), Nuno Artur Silva (autor e produtor), Kalaf (músico e poeta), João Canijo (realizador), Inês de Medeiros (actriz, realizadora e deputada do PS), António Pinto Ribeiro (programador geral do Programa Gulbenkian Próximo Futuro) e Raquel Henriques da Silva (investigadora e professora universitária) e Rui Vieira Nery (musicólogo). Com imagens de Pauliana Valente Pimentel (fotógrafa).

segunda-feira, 18 de junho de 2012

A linha na areia

«Quando duas partes negoceiam, a interacção entre elas comporta um benefício mútuo em potência e uma dimensão de conflito. (...) Por isso, quando a negociação conduz a um acordo (...), consegue-se um benefício para ambos e resolve-se um potencial conflito. (...) Contudo, a negociação só faz sentido se ambas as partes tiverem algum poder para negociar. E o que é que determina esse poder? A resposta simples é: a disponibilidade para traçar "uma linha na areia" e a vontade resoluta de abandonar as negociações caso essa linha seja transposta. (...) Se uma das partes não conseguir definir de antemão as circunstâncias em que prefere rejeitar a oferta do outro, (...) as negociações são inúteis. O partido que não consegue imaginar-se a dizer "não", deve desistir da negociação e, simplesmente, optar por suplicar ao outro lado, apelando à sua bondade, generosidade e, em casos desesperados como o da Grécia, ao sentido de misericórdia.»

Excerto do texto que Yanis Varoufakis escreveu há três dias atrás e que estabelecia, de modo muito claro, o que esteve em jogo nas eleições gregas de ontem. A escolha entre um partido (Syriza), que prometia negociar um novo quadro, radicalmente diferente, de condições de assistência financeira; e dois partidos (Nova Democracia e PASOK), para os quais qualquer simulacro de acordo com a troika seguramente servirá. Justamente porque estes dois partidos (que, face aos resultados eleitorais obtidos, é quase certo acabarão por se coligar), sempre estiveram determinados «em não traçar nenhuma linha na areia», como bem sublinha Varoufakis. Isto é, distantes de qualquer espírito, genuíno e determinado, de negociação. Circunscritos - por subserviente decisão própria - às míseras e ilusórias migalhas que a súplica lhes puder render.

domingo, 17 de junho de 2012

Chantagens

Como lembrou na Entrevista ao Público o presidente do banco central alemão, a política dispensa a chantagem. 

O sonso ou cínico que escreveu isto no editorial do Público de hoje toma os leitores por estúpidos. A entrevista a jornais dos PIGS deste dirigente alemão é um exemplo do quadro intelectual que presidiu à criação do euro e à sua destruição. Segundo o Público, o poder, onde se inclui a capacidade de A para impor um curso de acção a B, associada à capacidade de A para impor custos a B, caso B não siga o curso que convém a A, deve ser atributo exclusivo do capital financeiro, dos credores. A troika tem usado a chantagem desde a primeira hora como instrumento para impor programas que geraram a maior depressão da história grega, um desemprego que se aproxima dos 25% e níveis inauditos de sofrimento social. Desde há dois anos que aqui se defende que as periferias devem ripostar, usando as armas dos devedores, como tem feito a Syriza e proposto alguma esquerda portuguesa. À chantagem responde-se com a chantagem para reequilibrar a relação. É que só assim se pode negociar. Caso a negociação, capaz de superar as políticas vigentes, se revele impossível neste euro, quer porque a miopia dos credores é estrutural, quer porque a oportunidade para negociar já passou e a situação acaba por se precipitar (a fuga de capitais é o rastilho...), será necessário sair deste jogo de qualquer forma viciado. De resto, mais tarde ou mais cedo (a esquerda que não desistiu será governo um dia destes...), teremos uma experiência natural que ajudará a clarificar quem é realista e quem é fantasioso na economia política do euro.

Depois de um dia D (para a Grécia e para a Europa)


sábado, 16 de junho de 2012

Adenda

Ainda sobre a referência, no post anterior, à redução no apoio a doutoramentos no estrangeiro. Perante a notícia, a Fundação para a Ciência e Tecnologia defendeu que a alteração (corte de 60% nas verbas destinadas ao pagamento das propinas) «não terá qualquer espécie de impacto na mobilidade dos bolseiros», atendendo a que a «esmagadora maioria das propinas referentes a instituições estrangeiras» não ultrapassa os 5.000 euros anuais, pelo que a FCT considera o valor «apropriado» (citação na notícia do Público).

Ora, caso os 12.500 euros anuais de propinas pagos até aqui, pela FCT, por cada estudante português a frequentar um doutoramento «lá fora» (e que com esta decisão ficam reduzidos a 5.000 euros anuais), sejam integralmente recebidos pela instituição de acolhimento (independentemente do valor da propina), com o novo Regulamento de Bolsas, os candidatos portugueses a programas de doutoramento passam a ser - do ponto de vista financeiro - opções menos interessantes para as universidades estrangeiras. A mobilidade internacional de bolseiros (com todos os benefícios que daí advém) fica, nesses termos, afectada.

Nota: Fui alertado por uma leitora (a quem agradeço), que no caso dos doutoramentos realizados no estrangeiro o pagamento de propinas é feito através do estudante e não, como sucede em Portugal, por transferência directa e integral para a instituição universitária de acolhimento. O impacto desta alteração far-se-á portanto sentir, sobretudo, em doutoramentos realizados nos EUA (cujos valores de propina superam na maioria dos casos os 5 mil euros). Acresce, ainda, que há situações em que, para além do valor da propina, se verificam encargos com os designados «bench fees» (despesas extra relativas a gastos laboratoriais, por exemplo), que passam com as novas regras a ser suportados pelos alunos.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Três notas sobre um impulso

1. O recentemente anunciado « Impulso Jovem» (abusivamente definido como «Plano estratégico de iniciativas à empregabilidade jovem e de apoio às PME») não passa de uma indisfarçável ficção, destinada a mascarar o aumento vertiginoso do desemprego entre os jovens, que atingiu os 36,6% em Portugal no passado mês de Abril (distanciando-se assim, ainda mais, da taxa média de desemprego, que ascendeu aos 15,2% no mesmo mês). A medida assenta essencialmente em estágios de curta duração (seis meses), com bolsas que oscilam entre 419€ (para jovens com ensino secundário incompleto) e 943€ (doutorados). Como bem sublinha Eugénio Rosa, de criação efectiva e sustentável de emprego este «plano estratégico» nada contém, significando apenas - neste sentido - a tentativa de criar uma almofada (intrinsecamente volátil) para atenuar o agravamento previsto do desemprego nos próximos meses.

2. Para lá da ficção, há contudo um objectivo muito realista que este impulso contém. Trata-se de uma medida que reforça claramente a linha de incremento da competitividade através dos baixos salários (e que é acentuada pelos apoios às empresas aderentes, igualmente previstos no plano, em matéria de pagamentos à Segurança Social, por exemplo). Ou seja, trata-se de uma estratégia que estimula, ainda mais, a lógica medíocre das empresas que apenas conseguem tornar-se competitivas pelo esmagamento do «factor trabalho», para retomar a cínica expressão de Cavaco Silva.
Contudo, esta investida vai ainda mais longe: nada no «plano» acautela a possibilidade de as empresas poderem proceder a despedimentos dos seus actuais trabalhadores (facilitados pelas recentes alterações ao Código do Trabalho), beneficiando assim - através da contratação dos jovens estagiários - de relevantes reduções de encargos com mão-de-obra (e fixando novos parâmetros salariais, mais baixos).

3. Ao ser financiado através de fundos estruturais (FSE e FEDER), a partir de uma reprogramação do QREN, o «plano estratégico» consagra ainda uma monumental perversão, consentida e incentivada pela própria Comissão Europeia. Como sublinha João Galamba (via facebook), «o objectivo é simples: reprogramar verbas do QREN (investimento modernizador) e usá-las para subsidiar baixos salários (investimento no regresso ao passado)». De facto, basta lembrar que aquela que é a finalidade central dos apoios comunitários aponta para o incremento da competitividade do país através da inovação, diferenciação e modernização da sua estrutura produtiva. Ou seja, justamente o contrário do que o «Impulso Jovem» preconiza.

Adenda: Um processo de reprogramação de verbas comunitárias pressupõe, naturalmente, a transferência de financiamento de umas medidas para outras. Seria por isso muito interessante conhecer o que vai deixar de ser financiado para sustentar este retrógrado «impulso». Não custa pensar, por exemplo, que uma parte do financiamento dos 344 milhões de euros deste plano provenha dos recentes cortes nos apoios aos doutoramentos efectuados no estrangeiro, que podem estimar-se em cerca de 90 milhões de euros (valor que se obtém multiplicando a redução do apoio relativa ao pagamento de propinas - 7.500€ - pelo número actual de doutorandos no estrangeiro - cerca de 12 mil).

Três notas sobre nuestros hermanos

1. Será que a Espanha teve afinal uma “década irresponsável”, como defendeu Merkel? Olhem para a dívida e para o défice públicos espanhóis antes da crise, as grandes obsessões do novo tratado, mais bem comportados do que os alemães. O problema começa afinal pela dívida privada que ninguém no fundo quer controlar, porque isso implica controlar os bancos, sair de um regime de baixa pressão salarial ou socializar as rendas dos solos e a provisão de bens associados como a habitação. Em época de crise, essa dívida privada transmuta-se sempre em dívida pública. Mas não foi essa dívida privada mediada por decisões de “mercado”, eficientes por natureza? E não foi essa dívida, na sua decisiva componente externa, o outro lado de decisões de financiamento de bancos alemães, que assumiram a missão de canalizar excedentes para belos e solarengos prédios à beira mal plantados, beneficiando do facto de a Alemanha ter trancado economias menos desenvolvidas numa moeda feita à medida das necessidades dos seus sectores exportadores e do capital financeiro que opera à escala internacional? Isto não foi irresponsável? E não foi com base na hipótese dos mercados financeiros eficientes que se justificaram e justificam todas as transformações liberais associadas a esta integração, a começar na abolição dos controlos nacionais de capitais, na privatização dos bancos, na sua exposição à concorrência e a acabar numa regulação ligeira e nada intrusiva, feita por um banco central obcecado com a suposta rigidez laboral? Não terá sido a politica neoliberal associada à integração uma imensa “irresponsabilidade” a que há que pôr termo de forma tão expedita quanto possível?

2. Vicenç Navarro e Juan Torres López, talvez as duas principais vozes económicas progressistas em Espanha neste momento, escreveram esta semana um artigo conjunto no publico.es que vale a pena ler: El rescate traerá más recortes y no sirve para salir de la crisis. Com as taxas de juro da dívida pública em níveis insustentáveis, tal como foi reconhecido pelo ex-responsável do Lehman Brothers na península e actual ministro da economia espanhol, a Espanha em peso vai cair na rede tóxica europeia e, juntamente coma Itália, furá-la. Os bancos não são separáveis do Estado e da restante economia em crise. É preciso insistir, não desistir de denunciar todas as fraudes convenientes.

3. Entretanto, a denodada luta dos mineiros asturianos, que já dura há várias semanas, confirma a tradição histórica de tal comunidade operária, a sua economia moral. Tem estado à altura da violência das políticas em curso, cujas declinações cada vez mais repressivas são reveladoras da real economia política do neoliberalismo. Perante governos periféricos que crescentemente fazem lembrar forças de ocupação, o movimento operário, confrontado com uma ameaça existencial, será sempre uma componente absolutamente vital das forças sociais de resistência, das forças sociais de libertação…

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Uma saída federalista?

Os comentadores das televisões já não sabem o que dizer. A ajuda aos bancos espanhóis está decidida e, mesmo assim, os mercados financeiros estão a desfazer-se da dívida pública espanhola fazendo subir as taxas de juros implícitas para níveis históricos. Pior ainda, têm a dívida pública de Itália sob mira. Não é verdade que há poucas semanas se pretendia travar o contágio da crise às grandes economias europeias através de um Mecanismo Europeu de Estabilidade com uma grande dotação financeira? Admitia-se que a simples existência desse Mecanismo seria dissuasora da especulação dos mercados. Afinal não foi.

O que é que está a falhar? A resposta é simples: a UE está nas mãos dos mercados financeiros e estes ainda não estão convencidos da bondade das políticas. Repare-se que, no caso espanhol, os mercados estão a dizer que o resgate dos bancos significa um enorme acréscimo na dívida pública espanhola. Mais, num contexto de austeridade reforçada e sob tutela alemã, a recessão aprofundar-se-á. O crédito malparado vai crescer e só fará piorar a situação dos bancos. Ou seja, o montante necessário para evitar a falência dos bancos tenderá a subir. Por outro lado, a recessão também agrava o défice público cujo financiamento nos mercados, a taxas exorbitantes, vai desencadear um efeito bola de neve na dívida acumulada. A verdade é que a dívida pública espanhola é insustentável e por isso, mais adiante, virá um outro resgate para evitar a bancarrota do Estado Espanhol.

Admitindo que na Alemanha ainda há dinheiro e vontade política para liderar o financiamento de Espanha (bancos e Estado), e para dar continuidade ao financiamento da Irlanda e de Portugal, já a perspectiva de que a Itália vem a seguir faz do actual momento a hora da verdade da UE. Neste quadro, o resultado das eleições na Grécia será o detonador de uma sequência de decisões que serão tomadas à revelia dos cidadãos.

Muitos comentadores entendem que, perante o descalabro da zona euro e os prejuízos que teria de suportar, a Alemanha acabará por aceitar a mutualização da dívida pública do clube da moeda única contra a imposição de um controlo férreo das políticas económicas. Porém, esta solução não é tão simples como a têm apresentado à opinião pública. Há duas opções: 1) mutualizam-se as dívidas até 60% do PIB dos respectivos países, mas nesse caso a dívida restante, a cargo dos países em dificuldade, é dificilmente sustentável num clima de permanente austeridade; 2) mutualizam-se as dívidas acima de 60% do PIB dos respectivos países, o que elimina as dificuldades do presente mas cria um modelo que incentiva o desleixo orçamental.

Uma vez tomada a decisão, o recurso à mutualização da dívida poria termo, pelo menos no imediato, à pressão dos mercados financeiros sobre os países em dificuldades. Mas aqui surge uma outra dificuldade. Anular a pressão dos mercados financeiros desagrada profundamente à Alemanha. Sabendo que a eficácia das regras de contenção orçamental seria sempre baixa, a Alemanha apenas abdicou da sua moeda na condição de a Europa se integrar plenamente nos mercados financeiros mundiais.

Seriam estes a impor a normalização das políticas económicas nacionais como hoje o vemos com clareza. Por isso, se vier a aceitar as euro-obrigações, a Alemanha exigirá um controlo total da política económica dos restantes países que, em situações de crise, se tornará num verdadeiro protectorado. Há quem chame a isto federalismo orçamental, mais um passo para um federalismo europeu sem nação, sem Estado, sem escolha dos cidadãos. Era bom que alguém explicasse isto aos portugueses.

(O meu artigo de hoje no jornal i)

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Próximo

Juros disparam em leilão em Itália. Mário Monti já começou implicitamente a dizer que não é a Espanha. Sinal de que se aproxima mais um “resgate” de quem é grande demais para a frágil e tóxica rede criada para apanhar uma crise que seria da responsabilidade de pequenos países mal comportados. O ordoliberal Monti garante que os bancos são mais robustos e a taxa de desemprego é mais baixa. Do que em Espanha, depreende-se. Isto é tudo muito dinâmico, claro. De resto, é sabido que a Itália, juntamente com Portugal e o Haiti, foi o país que menos cresceu a nível mundial na primeira década do milénio, sofrendo com um euro que não foi feito para servir as necessidades da sua economia e com o facto de não ter conseguido arranjar eufóricas bolhas para disfarçar este facto, tal qual Portugal, e ao contrário de uma Espanha com produtividade estagnada, mas com pujante acumulação extensiva de betão. Seja como for, a crise, a austeridade e a total ausência de instrumentos de política para debelar os desequilíbrios criados garantem o mesmo destino. Pena é que governos subalternos não tenham tido a capacidade de extrair as conclusões políticas deste facto há pelo menos dois anos atrás. Um a um, os PIIGS vão sendo postos em cima da mesa...

terça-feira, 12 de junho de 2012

A estratégia do vazio

Um Director Geral do Ministério das Finanças alemão deu-se ao trabalho de responder publicamente a um texto de Martin Wolf, colunista do Financial Times. A contra-resposta de Wolf, ponto por ponto, está aqui e vale a pena ler.

Fica clara a fragilidade dos argumentos oficiais do governo alemão (sobre o risco moral, a relevância das chamadas 'reformas estruturais' como estratégias de resolução de crises, os efeitos de redistribuição dos programas de ajustamento em curso, etc.). Mais claro - e lamentável - ainda é a mediocridade da análise do alto responsável do governo alemão sobre as origens da crise: tudo parece resumir-se ao papel de governos despesistas e irresponsáveis, ignorando-se, por exemplo, o facto de grande parte do endividamento ser privado e de o endividamento público ter crescido dramaticamente depois de 2007 (para responder a uma crise que nasce no sector financeiro).

Há quem ache que a Europa está a ser governada por lunáticos e irresponsáveis. Uma explicação alternativa, cada vez mais convincente, é que os interesses financeiros alemães, que têm lucrado com a crise, estão empenhados em fazê-la durar o máximo de tempo possível - lucrando no presente e reforçando o seu poder negocial para o futuro. Mas isso nenhum responsável governamental pode confessar ao Financial Times.

Razão da luta

Por alguma razão, apenas são resgatados os bancos e não os desempregados.” A razão que tem sido privilegiada por Paul Krugman para as políticas da crise, a “loucura vestida com fatos caros”, é uma forma de destacar o papel de ideias zumbi, mas, de facto, não nos leva muito longe se as forças sociais que as suportam, e nelas se suportam, permanecerem invisíveis, reduzidas a uns pardos “mercados”, como acontece demasiadas vezes. Vicenç Navarro, que nos lembra sempre que tudo se faz, desfaz e refaz nas políticas públicas guiadas por ideias e por interesses, fornece-nos uma razão de economia política que nos leva mais longe: a tal “luta de classes unilateral” das fracções do capital concentradas na finança com escala europeia e declinações centrais e periféricas.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Engaños

Excerto do recomendável artigo do economista Juan Torres López, no Público espanhol, por uma vez sem tradução, já que também é tudo muito claro em castelhano: “Nos han engañado a todos cuando dicen que van a rescatar a España cuando lo que van a hacer es hundirla para años. Nos han engañado los bancos, nos han engañado los gobiernos del PSOE y del PP. Nos han engañado los dirigentes europeos que están borrachos de ideología neoliberal y no se dan cuenta de que las medidas que toman llevan al desastre a los países que las aplican (¿o acaso es que está mejor la economía de Portugal, por no hablar de los ciudadanos portugueses, desde que fue "rescatada"?).” As mentiras não param.

De resto, todos os pretextos são bons para renegociar tudo, a começar pelas desastrosas condições da intervenção externa nas restantes periferias, mas a verdade é que substantivamente a Espanha não terá, ou estará em, melhores condições: a austeridade já está a ser aplicada em Espanha, que está obrigada a um ajustamento recessivo cada vez mais tutelado, às políticas de desvalorização interna inscritas neste euro, obrigada à impossível tarefa de atingir um défice orçamental de 3% em 2014 e a reformas regressivas, em especial na área laboral e social, com uma economia em recessão cada vez mais profunda e com uma taxa de desemprego de 25%.

Todo este desastre será uma vez mais dirigido por um bando de funcionários internacionais que ninguém elegeu, com cumplicidades locais e com memorando de entendimento e tudo. Estará este circunscrito ao sector financeiro? Tal circunscrição é meramente formal e só serve para ofuscar, dada a dimensão do sector financeiro e dos seus problemas, os custos sociais que este gera por toda a economia, a ligação entre o défice e a dívida pública e destino de bancos zumbis e a natureza da governação económica do próprio euro neste contexto, como aliás fazem questão de assinalar funcionários de Bruxelas e governantes de um centro com a mania de clarificar a natureza do arranjo monetário insustentável em que estamos e o tipo de ajustamento que impõe a Estados estruturalmente sem soberania.

domingo, 10 de junho de 2012

A crise da democracia europeia

«Se fosse necessária uma prova de que o caminho para o inferno se faz de boas intenções, a crise económica na Europa estaria aí para o demonstrar. As esforçadas, mas estreitas, intenções dos decisores europeus têm-se revelado desajustadas para uma consolidação da economia e produziram, em vez disso, um mundo de miséria, caos e confusão.
Há duas razões para que assim seja.
Primeiro, porque as intenções podem ser respeitáveis, sem que isso signifique que sejam lúcidas. E porque os fundamentos da actual política de austeridade, combinados com a rigidez da união monetária da Europa (dada a ausência de uma união fiscal), raramente têm sido um modelo de coerência e sagacidade. Em segundo lugar, porque uma intenção, mesmo que boa em si mesma, pode entrar em conflito com uma prioridade mais urgente - neste caso, a preservação de uma Europa democrática, que se preocupa com o bem-estar social. E estes são os valores pelos quais a Europa tem lutado, ao longo de muitas décadas.
Era certamente necessário que alguns países europeus tivessem assumido, desde há muito, uma maior responsabilidade económica e uma melhor gestão da economia. O tempo, contudo, é crucial; uma reforma assente num calendário bem pensado distingue-se de uma reforma feita à pressa. A Grécia, apesar de todos os seus problemas de prestação de contas, não estava em crise económica antes da recessão global de 2008 (de facto, a economia grega cresceu 4,6% em 2006 e 3% em 2007, isto é, antes de começar a contrair-se de forma continuada).
A causa da reforma, independentemente da sua urgência, não é bem servida pela imposição unilateral de cortes súbitos e selvagens nos serviços públicos. Porque estes cortes violentos e indiscriminados são uma estratégia contraproducente, dado o gigantesco desemprego e a falência e subaproveitamento das capacidades produtivas das empresas que a quebra da procura provoca. Na Grécia, um dos países que está a ser deixado para trás pelo aumento de produtividade verificado noutros lugares, o estímulo económico através da política monetária (desvalorização cambial), tornou-se impossível pela existência da união monetária europeia, ao mesmo tempo que o pacote fiscal exigido pelos líderes do continente europeu contraria de forma severa o crescimento. Os resultados económicos da zona euro continuaram a diminuir no quarto trimestre do ano passado e as previsões, na altura, foram tão terríveis que a estimativa de crescimento zero no primeiro trimestre deste ano, inscrita num relatório recente, foi amplamente saudada como sendo uma boa notícia.»

Do recente artigo de Amartya Sen, Prémio Nobel da Economia, no New York Times. Encontra-se aqui uma tradução completa do texto, que merece ser lido na íntegra.

sábado, 9 de junho de 2012

Sem capturas

 A contradição que o «caso Relvas» ilustra pode ser curiosa, mas nem por isso é menos real. Com efeito, ela permite reflectir sobre uma engenharia baseada em três capturas, que funcionam em conjunto: a captura do Estado, a captura das ideias disponíveis e a captura da cidadania.

Não deixem de ler o editorial de Sandra Monteiro sobre capturas inaceitáveis num número de Junho com vários artigos de economia política – do trabalho e suas classes aos “cortes que cegam” no ensino superior e ciência, passando pela auditoria cidadã à dívida em Portugal ou pela “saída da crise, saída do euro” na Grécia.

No es ayuda

O comunicado do eurogrupo é claro: os 100 mil milhões de euros de empréstimo serão canalizados para o “fundo para a reestruturação ordeira da banca”, que actua como agente junto da banca espanhola de um Estado que responde sempre por todos os custos de todas as desordens bancárias no centro do regime de acumulação financeirizado puxado pela rebentada bolha imobiliária. As peças de maior dimensão demoram mais a cair, mas o estrondo é maior. Com quase 25% de taxa de desemprego, a garantia interna e externa de austeridade e de reformas estruturais regressivas aprofunda a crise e cria novas dificuldades de financiamento a um Estado que não é soberano. Qual será o próximo país a dizer que não é a Espanha?

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Eurobasura

Segundo a Fitch, a socialização dos custos das aventuras imobiliárias da banca espanhola, através da capitalização, poderá atingir um montante equivalente a 9% do PIB espanhol. Baixe-se a notação, claro, a caminho do lixo. A crise espanhola que é do euro confirma vários outros custos sociais em que aqui temos insistido: da liberalização financeira e do financiamento por poupança externa, da especulação imobiliária, da perda de soberania monetária, da independência política dos bancos centrais e outros reguladores capturados pelo poder financeiro, da austeridade, das inanidades económicas que justificam estes arranjos, onde se incluí a ideia de que esta crise é da “dívida soberana” que cresceu em excesso ou que a rigidez laboral é parte do problema. A Espanha, com os seus superávites orçamentais, baixa dívida pública e bancos internacionalizados, era o país modelo de disciplina orçamental e de regulação liberal antes da crise. Esta indica pela enésima vez que os défices são uma variável endógena ao ciclo de um capitalismo cada vez mais instável devido às estruturas da finança de mercado, que as dívidas privada e pública estão sempre interligadas, e que os bancos são mesmo nacionais na vida e sobretudo na morte. E, no entanto, mesmo perante o fracasso clamoroso da abordagem convencional à crise, perante a “loucura vestida com bons fatos” e com poder monetário, os meios de comunicação social portugueses continuam a falar da “ajuda externa”. Não ajuda.

Crise na Zona Euro


O trabalho de escrutínio, análise e proposta que o grupo de investigação de que faço parte –  Research on Money and Finance - tem vindo a desenvolver nos dois últimos anos sobre a crise da zona euro, dando origem a três relatórios, foi agora sistematizado e publicado em livro pela Versobooks (editora da New Left Review). Adoptando uma abordagem ancorada na economia política, o livro expõe as causas estruturais da crise europeia e denuncia as ineficazes respostas austeritárias. Os vários cenários que se colocam hoje perante a periferia são aqui analisados, argumentando-se pela saída progressista do euro por parte da Grécia. Um país cujo presente se tem mostrado como o futuro de Portugal.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Velhas ideias

Quando se fizer a história do colectivo intelectual neoliberal em Portugal, ter-se-á de ter em conta o Departamento de Economia da Universidade Nova, a Universidade Católica, na economia ou nos estudos políticos, e o Banco de Portugal, em especial o seu gabinete de estudos económicos. Há outras ramificações, mas aposto que esta será vista como a consequente troika intelectual interna que venceu politicamente todas as oposições. O estudo em preparação pelo Ministério das Finanças e pelo Banco de Portugal, ou seja, pelo Banco de Portugal, para naturalizar o desemprego de massas indicará que o objectivo é sempre, para recorrer a João Galamba, o de consolidar o capitalismo científico. Um excelente jornalista britânico, Owen Jones, veio recentemente a Portugal como correspondente do Le Monde diplomatique e ficou fascinado com o fervor revolucionário de alguns economistas da Nova, com o seu entusiasmo com a oportunidade oferecida pela troika, que com eles se consulta, para destruir os vestígios da economia política do 25 de Abril. Escreveu então um artigo sobre Portugal que se debruça apenas sobre este pequeno mundo do liberalismo português. Um retrato de uma certa elite, onde se incluem professores com cátedras que têm o nome de bancos. De resto, faz-se de tudo, da mais fina elaboração teórica a momentos de propaganda mais descarada. O chamado dia da libertação de impostos, muito bem dissecado por João Pinto e Castro, é um desses momentos mais descarados com rede internacional. Trata-se, na realidade, de fazer com que o dia da libertação do serviço nacional de saúde ou da segurança social se aproxime.

União Política? A democracia faz toda a diferença

Diga lá senhora Merkel de que União Política está a falar? De uma União em que o poder executivo emana de um “consenso” intergovernamental condicionado pelo peso do Governo de um só país (o seu naturalmente), ou de uma União em que o governo resulta do confronto político de projetos para a Europa e do sufrágio universal dos europeus? É que a democracia faz toda a diferença, embora eu não lhe tenha ouvido uma única palavra sobre o assunto.

Alguns dizem que a União Política será o produto de uma situação de extrema necessidade, de um caos eminente que obrigaria os governos europeus a dar o salto para a união política por muito que isso lhes custasse. Será? Será que a cimeira do fim do mês se prepara para saltos que podem ser mortais, sem que os governos deem cavaco a ninguém, sem que se discutam as instituições democráticas em que a legitimidade de uma União teria de se fundar? Onde está o mandato do Governo português para se envolver nestas cavalarias?

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Aspirar bem

Para poderem inscrever os filhos junto de instituições de solidariedade social e terem acesso a preços ajustados aos seus rendimentos, os pais têm que fazer prova de alguns encargos, como aqueles que decorrem dos créditos para a compra de casa. O extracto mensal que o banco lhes envia é suficiente? Não. É preciso pedir um precioso papelinho, em tudo idêntico, mas sem o qual deixar as crianças ao cuidado daquelas entidades é uma decisão que corre o risco de ficar mais cara. Nos últimos dois anos, o preço pela emissão do inevitável documento subiu, em média, 66%. No BPI, confirmar a informação e imprimi-la custa a módica quantia de 52 euros. Provavelmente, é o próprio presidente do banco que executa a tarefa e, como se sabe, os banqueiros cobram bem. 

João Cândido Silva, São bancos mas parecem aspiradores.

É também por estas comissões sem fim que na economia política se fala de expropriação financeira das classes trabalhadoras, uma das dimensões da financeirização do capitalismo. Trata-se de uma expressão de assimetrias de poder mais vastas no cerne da relação de crédito, que permitem transferir o máximo de custos para o lado mais vulnerável e que são promovidas por uma regulação liberal de um Banco que não é de Portugal. Os editorialistas dos jornais económicos têm funcionado demasiadas vezes como ideólogos em segunda mão dum regime que resultou da privatização dos lucros e da liberalização financeira. Este editorial é uma excepção. Espero que se torne na regra.

Radiohead: Transmutation


A economia somos nós

«A economia é um produto das nossas escolhas, das nossas crenças, valores, representações e práticas diárias. No entanto, a economia é um produto que nenhuma das partes interessadas controla totalmente. É por isso que surgem boas surpresas, como a inovação tecnológica, mas também más, como a recalcitrante crise em que estamos imersos. Houve um tempo em que havia ambição, sonho e luta suficiente para superar contradições sistémicas. O capitalismo já teve muitas fases, e essas formas anteriores foram rejeitadas. Daí a rejeição do trabalho infantil, a emancipação feminina, a emergência dos direitos de bem-estar e o fim dos impérios coloniais. Sobre o sistema económico no qual ainda vivemos: é tempo de parar de lhe continuarmos a dar indefinidamente crédito. Basta de conformismo intelectual. É altura de reconhecer os verdadeiros problemas e conceber novas soluções estruturais. Se entretanto deixarmos de lhe chamar capitalismo, por tal deixar de fazer sentido, assim será. Não chega mudar, é preciso mudar para melhor. Economia é cultura e o actual modelo económico está bloqueado. (...) Daí que, talvez, a única forma de obter respostas seja a de devolver a economia a todos nós e começar por fazer perguntas.»

Do artigo de Gustavo Cardoso, João Caraça e Sandro Mendonça, no Público de hoje.

terça-feira, 5 de junho de 2012

Evitável


Apesar de reconhecer que a narrativa sobre a rigidez laboral portuguesa é uma fraude, Helena Garrido alinha com a ideia de que o desemprego em Portugal se deve fundamentalmente a uma reestruturação modernizadora da economia que estaria em curso e a deixar muita gente sem as qualificações adequadas pelo caminho. Uma hipótese “estrutural” na linha da ideologia da purga redentora que sempre alimentou a economia da depressão e o inadmissível relaxamento político, na melhor das hipóteses, face ao aumento do desemprego.

Quais os enclaves modernos e exportadores que estão a fazer mais do que recuperar, temporariamente, a capacidade produtiva instalada que ficou por utilizar durante o descalabro de 2009, investindo e contratando à altura de tal transformação? Quais as mudanças no perfil das exportações registadas nos últimos tempos? Nada nos é dito.

O desemprego é fundamentalmente o resultado da brutal quebra da procura interna, que a procura externa nunca compensa, mesmo se não tivesse já em desaceleração. Tudo isto é obra da recessão e de uma austeridade que faz com que os Estados sejam parte do problema, quando só eles podem ter os instrumentos para acabar com a depressão. A capacidade produtiva por utilizar aí está. Segue-se a sua destruição, num movimento que indica que o chamado longo prazo e o seu potencial não passam de um encadeamento de prazos curtos e dos seus efeitos.

De resto, a quebra do investimento nestes anos de austeridade será muito superior aos 20% de quebra no investimento registados nos anos de estagnação do euro, quando a procura interna crescia já a taxas anuais de 0,4%, entre 2002 e 2009, um verdadeiro regabofe. Lamento, mas não há modernização que se faça sem investimento público e privado. Também não há modernização com esta política deliberada de baixos salários e de apropriação privada de bens e serviços públicos que conferem demasiado poder. E, é claro, não há modernização na periferia neste colete-de-forças monetário e financeiro; apenas ruinas evitáveis.

Desigualdade instável

Argumento que é necessário levar a sério o conceito de uma economia europeia integrada, o que significa medir a desigualdade a nível europeu. Os países do norte tendem a ser muito igualitários, mas a diferença entre o norte e o sul na Europa é superior à diferença entre o norte e o sul nos EUA. Isso ilustra as dificuldades actuais da União Europeia. A UE não dispõe de mecanismos efectivos que permitam às regiões mais pobres pagar as suas dívidas às regiões mais ricas, ao contrário do que acontece nos EUA (…) Descobrimos sistematicamente que as regiões mais igualitárias na Europa têm menos desemprego do que as regiões desiguais. A desigualdade é uma medida da flexibilidade do mercado de trabalho. Mas não existe indicação de que ser mais desigual ou ter mais flexibilidade salarial atraia empregos para uma região.

James K. Galbraith sobre o seu último livro, que compila muita da sua investigação dos últimos anos sobre os impactos económicos perniciosos da desigualdade. Vítor Gaspar e os seus amigos em Bruxelas, Washington e Frankfurt tratam de garantir as condições estruturais para a instabilidade sem fim.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

As autoavaliações dos amigos de Gaspar

 
Troika considera que Portugal está a cumprir o programa de ajustamento. Trata-se, na realidade, de mais uma autoavaliação, já que este é o seu governo. Trata-se de uma autoavaliação que confirma uma das principais missões do programa: consolidar uma economia sem qualquer pressão salarial, uma economia de salários cada vez mais baixos, de empregos cada vez mais precários e de desemprego duradouramente elevado. Um milhão de desempregados e rondas sucessivas de eliminação de direitos laborais consolidarão uma estrutura que diz tudo sobre o euro e o lugar das periferias. O desemprego, que duplicou em resultado da crise e da austeridade, e que já antes tinha duplicado em resultado da estagnação, o preço absurdo a pagar pela adesão a uma moeda demasiado forte, vai chegar aos 16% muito em breve. Éramos menos “rígidos” quando tínhamos, no final da década de noventa, uma taxa de desemprego de 4%? Responder a esta pergunta pressupõe uma avaliação da economia portuguesa e não esta autoavaliação.

Entretanto, o Estado vai injectar cerca de 5 mil milhões de euros de capital no BCP e no BPI, os dois principais e periclitantes bancos ditos privados, mas esforça-se por não ter todo o poder accionista correspondente nas decisões tomadas por estes bancos. É para tentar evitar esse controlo estatal, a única forma de mudar a lógica dos bancos e de garantir financiamento direccionado, que foram mobilizados os “CoCos”, títulos de dívida que só eventualmente serão convertidos em acções, que os bancos preferem. É claro que o Ministério das Finanças diz, num atabalhoado comunicado, que os bancos vão ser muito responsáveis com este dinheiro e que vão assim poder “continuar a assegurar o financiamento das famílias e das empresas”. Continuar a assegurar, reparem, como têm feito nas condições conhecidas e com os resultados conhecidos. Neste domínio estamos perante outra autoavaliação: a da bancarrotocracia.

domingo, 3 de junho de 2012

No centro da economia política

No artigo “Uma mestra na periferia do capitalismo: a economia política de Maria da Conceição Tavares”, publicado na Revista de Economia Política, disponível neste sítio de revistas académicas brasileiras, Rogerio P. de Andrade e Renata Carvalho Silva resumem o premiado contributo para a Economia:

“É possível, portanto, identificar, na obra de Tavares, três planos de reflexão (de mútua influência): 1) a questão do (sub)desenvolvimento econômico periférico, em particular da economia brasileira; 2) o diálogo crítico com autores importantes da tradição da Economia Política, como Marx, Keynes e Kalecki; 3) a (des)ordem econômica mundial, em que procura lançar uma ‘visão geopolítica para entender melhor a formação dos centros hegemônicos’, tendo como foco da análise a dinâmica das finanças globalizadas. Nesta fase mais recente de sua trajetória intelectual, Tavares buscou fazer ‘uma releitura do desenvolvimento do sistema capitalista e de seus esquemas de dominação dando ênfase maior ao dinheiro internacional - e não ao progresso técnico - como expressão do nexo de dominação do capital financeiro sobre a periferia’, de forma a ‘reorganizar ao mesmo tempo o conceito de relação entre centro e periferia e o de capitalismo tardio, sem que a hierarquia geopolítica se sobreponha necessariamente à da geoeconomia’.” [referências omitidas]

Fosse Maria da Conceição Tavares uma economista ortodoxa e estou certo que já tinha tido cá o mesmo reconhecimento que teve no país de que se tornou cidadã; um país que tem a sorte de ter muitos economistas filiados numa tradição crítica útil para compreendermos os nossos presentes problemas de inserção dependente, num quadro em que todos os instrumentos de política económica nos estão vedados, o que tem servido os interesses daquelas fracções do capital que nunca poderão fazer parte de uma ampla aliança social para o desenvolvimento.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Uma crise sistémica

A palavra “austeridade” tem pelo menos dois sentidos no debate público sobre a crise que vivemos. O primeiro diz respeito ao conjunto das medidas de política orçamental que visam reduzir a despesa pública para alcançar as metas do défice impostas pela troika. O segundo, subjacente a uma retórica de compromisso, remete para a necessidade de uma gestão parcimoniosa dos recursos públicos, a eliminação de desperdícios na despesa e a extinção de serviços sem reconhecida utilidade social. A ambiguidade semântica da palavra “austeridade” pode ser conveniente para os que se preocupam com gerir a sua carteira de relações sociais, mas é certamente nociva para a clareza do debate político e a formação da opinião dos cidadãos.

Em campanha eleitoral, o PSD explorou habilmente o segundo sentido da palavra “austeridade”. Tratar-se-ia de eliminar as famosas gorduras do Estado, com destaque para institutos públicos e fundações. Ou seja, explorou a iliteracia económica da esmagadora maioria dos cidadãos para insinuar um sentido para a palavra “austeridade” que o senso comum só poderia subscrever. Os economistas daquele famoso gabinete de estudos do PSD bem sabiam que não se tratava apenas de boa administração pública. Estavam bem conscientes de que a rápida redução do défice público exigiria um corte nos salários, a combinar com um aumento de impostos e taxas de todos os tipos. Sabiam tudo isto, e queriam ir mais longe. A ambição do poder, galvanizada pela fé na doutrina neoliberal, fê-los montar a maior fraude política desde que Portugal recuperou a democracia. A sua austeridade era outra, a do desemprego dramático para fazer descer os salários em nome da competitividade, uma austeridade que não podia ser sujeita ao voto dos cidadãos. Se a desconfiança relativamente aos partidos do rotativismo no poder já era grande, só pode ter aumentado desde as últimas eleições, até porque a austeridade se revela inútil e os seus efeitos não atingem os ricos.

Bem sabemos que o obscuro negócio das parcerias público-privadas, a criminalidade financeira em alta escala com livre circulação pelo sistema bancário, ou a irresponsabilidade orçamental do governo da Madeira, onde também se localiza um paraíso fiscal, são apenas exemplos do estado de desgoverno em que o país vive há muito tempo. Porém, as reformas estruturais que deveriam pôr termo a esse estado de coisas não fazem parte da lista do Memorando nem dos programas do rotativismo centrista por duas razões bem evidentes: a liberdade dos movimentos de capitais especulativos e a suave regulação do negócio financeiro constituem um dos pilares da UEM; uma parte importante das elites político-partidárias, em Portugal e na UE, está vinculada ao mundo da finança por interesses e ideologia. Por isso percebe-se que os bancos europeus não tenham sido obrigados a reconhecer as perdas decorrentes do colapso financeiro de 2008 e, nas periferias da zona euro, os bancos tenham sido os intermediários do BCE no financiamento dos países onde a bolha do imobiliário rebentou e/ou o sector privado acumulou um défice externo sistemático. Os bancos puderam assim arrecadar ganhos preciosos que, em contrapartida, aumentaram muito a sua exposição a uma dívida pública impossível de cumprir.

Assim sendo, esta crise enlaça o centro credor e a periferia devedora; integra num mesmo processo bancos e estados; responsabiliza elites políticas nacionais e a tecnocracia pelo desastre neoliberal e pela degradação das democracias. Mais, se alguém pensa que esta crise deixará intacto o quadro político-partidário, em Portugal e noutros países da UE, de facto ainda não percebeu o que está em causa.

(O meu artigo de ontem no jornal i)

Parcerias


É cada vez mais claro que este governo é uma parceria entre dois tipos de ministros: o dos negócios mais ou menos sórdidos e o que oscila entre o branqueamento ideológico desses negócios e a condução de uma política económica recessiva e regressiva definida pelo centro europeu.

Vítor Gaspar foi ontem à Faculdade de Economia da Universidade do Porto e, com Belmiro de Azevedo na plateia, decidiu elogiar o espírito santo empresarial desta burguesia dos hipermercados e a qualidade do jogo do ocasional parceiro de squash. Um aparte simbólico e cheio de potencial metafórico, um vislumbre de toda uma sociologia das elites.

Entretanto, um dia depois da apresentação em Portugal de um livro sobre a Goldman Sachs, o ministro-sombra para todas as idas ao pote, essa parceira público-privada entre Passos Coelho, Alexandre Soares dos Santos e Leonor Beleza que dá pelo nome de António Borges, é entrevistado pelo Económico. A linha está há muito definida e trata-se de a repetir com a clareza política e a mediocridade intelectual que só a actual correlação de forças permite: “Diminuir salários não é uma política, é uma urgência”.

Marc Roche, o jornalista do Le Monde que escreveu o tal livro, deu ontem a seguinte informação: “O FMI disse-me que se livraram dele porque não estava à altura do trabalho e agora chego a Lisboa e descubro que está à frente do processo de privatização. Há perguntas que têm de ser feitas”. As perguntas são muitas e poderão desde já ser feitas, mas julgo que as respostas só poderão ser dadas quando o país se tiver libertado das estruturas monetárias e financeiras que conferem poder a esta gente. Aqui está uma política urgente...