quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Ainda pela Alemanha

Em nome da livre circulação de capital no espaço da União Europeia, o Tribunal Europeu de Justiça declarou ilegais os direitos de especiais dos 20% de acções da Volkswagen detidas pelo governo da Baixa-Saxónia. Esta decisão cria um precedente para as 141 empresas onde os estados europeus detêm direitos especiais. Graças à União Europeia, os Estados ficam sem um dos seus últimos instrumentos de política económica.

É já para a semana!


«Slow Hands», Interpol

O declínio do SPD (ou da social-democracia)

O SPD alemão foi o primeiro grande partido socialista da história do movimento operário. O seu rumo, as suas lutas internas e as suas cisões marcaram a história do movimento socialista ao longo do século XX. A sua influência dissipou-se, mas continua valer a pena acompanhar de perto o que se passa no maior partido socialista europeu. Durante os anos Schroder, o partido virou à direita e tentou aplicar a cartilha da liberalização do mercado de trabalho e redução dos benefícios sociais (bem simbolizada na famigerada Agenda 2010). Tais políticas contribuíram para um maior dinamismo do sector exportador da economia, mas a estagnação salarial, a alta percentagem de desemprego e a crescente polarização social travaram o consumo interno e, consequentemente, o crescimento económico.

Estas políticas regressivas não contaram com o apoio incondicional do partido. Pelo contrário, em 2005, o ex-ministro das finanças de Shroeder, Oscar Lafontaine, liderou uma cisão e criou o WASG, um partido que não esquecia o que é a social-democracia. Este partido veio a coligar-se com o PDS (Partido do Socialismo Democrático), herdeiro do partido comunista da RDA, com uma forte implantação na antiga Alemanha de Leste, que nos anos noventa atravessou uma profunda renovação ideológica. Esta junção de vontades foi muito bem sucedida. Graças à deriva liberal do SPD, a coligação obteve 9% dos votos, vindo, mais tarde, a resultar num novo partido, o Partido da Esquerda. Hoje, as sondagens tornam-no o terceiro partido alemão, à frente de liberais e verdes.

Isto tudo, para explicar a encruzilhada com que o SPD se depara. O partido continua no governo chefiado pelos conservadores de Angela Merkel, mas as sondagens dão-lhes 25% dos votos, um recorde negativo. Face a esta situação o Partido da Esquerda propôs uma coligação no governo no início do Verão, substituindo a actual SPD-CDU. A coligação foi rejeitada e o congresso do passado fim-de-semana deixou, grosso modo, tudo na mesma. Não basta um discurso "mais social e mais «próximo das classes assalariadas»", se a orientação no governo continua a mesma. Enfim, retrato de um partido agarrado ao poder, em crise, que recusa olhar para a esquerda.

Não é difícil imaginar um cenário futuro, parecido ao alemão, num certo país do canto sudoeste da Europa...

8 euros de salário mínimo (por hora). Garantido por lei.
Partido da Esquerda.

terça-feira, 30 de outubro de 2007

As maravilhas do capitalismo norte-americano

Entretanto, do outro lado do Atlântico multiplicam-se os sinais de crise. A Merrill Lynch anunciou um passivo de 8 mil milhões de dólares devido às aventuras especulativas do crédito imobiliário. O director prepara-se para ser despedido. Não sem antes levar para casa uma recompensa de 159 milhões de dólares. Quando mais de dois milhões de norte-americanos se preparam para perder as suas casas, é bom ver como o capitalismo norte-americano consegue repartir bem o fardo da crise.

As consequências do relaxamento

Peter Mendelson, um dos arquitectos do «novo trabalhismo» declarou um dia que «estava muito relaxado sobre o facto das pessoas [algumas pessoas] enriquecerem assustadoramente». O governo do PS parece partilhar esta atitude. A tradução deste «relaxamento» é o brutal aumento das desigualdades salariais - um gestor de topo britânico ganhava 64 vezes mais do que um empregado médio em 2000 e 104 vezes mais em 2007. Não admira por isso que 60% dos britânicos queira sensatamente impor limites a este escândalo e que mais de metade dos gestores de recursos humanos concordem com isso. Afinal de contas eles sabem do que falam. Está tudo neste artigo de Polly Toynbee, uma das melhores colunistas britânicas (e que faz jus ao nome uma vez que é neta de Arnold Toynbee). Como já afirmei (aqui e aqui) as desigualdades salariais excessivas não são só injustas, mas também geram ineficiência e desperdício de recursos. E uma perigosa concentração do poder político.

PS. Esta posta e a anterior são acompanhadas por imagens de «instalações» da autoria de Doris Salcedo

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

A crise bem explicada

«A crise actual dos mercados de crédito, embora relativa a "objectos" novos, revela mais uma vez os ingredientes quimicamente puros do desastre, dando a quem quiser aproveitar a oportunidade mais uma ocasião para meditar nos "benefícios" da liberalização dos mercados de capitais (...) Convém lembrar, mesmo assim, que desde que esta começou a fazer estragos dificilmente se passaram mais de três anos sem um acidente de vulto, quase todos destinados a entrar nos livros de história económica: 1987, memorável bancarrota dos mercados de acções; 1990, bancarrota das junk bonds (obrigações de alto risco) e crise das Savings and Loans (caixas económicas norte-americanas); 1994, bancarrota obrigacionista estadunidense; 1997, primeira parte da crise financeira internacional (Tailândia, Coreia, Hong Kong); 1998, segunda parte (Rússia, Brasil); 2001-2003, explosão da bolha Internet... E eis-nos em 2007».

E eis-nos perante o artigo mais acessível, explicativo e profundo sobre o mais recente desastre do neoliberalismo. Escrito por Fréderic Lordon, um excelente economista heterodoxo francês, é a prova de que a crise só pode ser adequadamente pensada fora da teoria económica dominante. Publicado em Setembro de 2007 no Le Monde Diplomatique e agora disponível no site da edição portuguesa. É que a crise veio mesmo para ficar.

domingo, 28 de outubro de 2007

Boa análise política para uma boa sociedade

«Num artigo recente (IPSR, n.º 27, 2006) demonstrei que, na Europa, a ancoragem social das orientações ideológicas dos eleitores radica não só nas suas pertenças de classe e nível de religiosidade, mas também nas suas atitudes face às organizações representativas das duas grandes clivagens que tradicionalmente têm estruturado a divisão esquerda-direita. Ou seja, os eleitores de esquerda têm atitudes bastante mais positivas face aos sindicatos; os de direita têm atitudes bastante mais positivas face à Igreja e às grandes empresas. E a história política ilustra claramente o relacionamento (relações orgânicas, alianças, etc.) dos partidos situados em cada um dos quadrantes ideológicos com as organizações referidas. Por isso, muitas pessoas, nomeadamente socialistas, se espantam com o clima anti-sindical que este Governo tem criado».

André Freire no Público (via boa sociedade). A retórica anti-sindical deste governo é um dos sinais mais claros da natureza da sua agenda política. Porque, como bem assinala Rui Namorado, «um governo de esquerda, que queira ser um factor de transformação social no sentido da justiça e da liberdade, não pode, sem prejuízo da sua eficácia política, dispensar um robusto apoio sindical, nem a capacidade de ter na rua a apoiá-lo uma grande parte do seu eleitorado e dos trabalhadores portugueses».

Boa teoria social para uma boa sociedade

«Recorde-se, de resto, que o êxito da versão dinamarquesa da flexigurança é o resultado de um longo processo histórico assente numa série de compromissos entre parceiros sociais, na evolução do Estado-Providência e num desenvolvimento gradual de políticas activas para o mercado de trabalho. Em suma, não é a flexigurança que gera por si só o desenvolvimento, mas é sim o desenvolvimento que pode - ou não - exigir maior flexibilidade ou maior segurança».

Agora que parece que o governo se prepara para dar mais poder aos patrões, desequilibrando ainda mais as relações laborais, vale a pena ler esta excelente reflexão de Elísio Estanque e de Hermes Augusto Costa. Num blogue justamente intitulado a boa sociedade. Só lamento que Elísio Estanque não escreva com mais regularidade. A blogosfera bem precisa de mais contributos da sociologia crítica.

A estranha generosidade da direita

Parece que a generalidade da nossa direita intransigente teve a oportunidade de ter acesso às maravilhas do ensino privado. Por isso, num acto de caridade cristã, quer estender a mão e dar a todos a oportunidade de serem educados nos colégios de elite da «opus». Como é que se faz isto? Simples. O Estado passa um cheque à família e esta entrega o cheque na escola. É ver os pobres (que horror!) a correr rumo aos colégios privados da capital com os seus cheques em punho. Isto é risível e revelador da mais absoluta falta de seriedade de alguns slogans da direita. Eles não fazem a mais pequena ideia de como é que estes delírios se instituem, não têm nenhuma evidência séria de que eles diminuam as desigualdades ou que melhorem a qualidade do ensino. Vejam este artigo da Economist (insuspeita porque favorável a tais delírios) onde se reconhece que a qualidade do ensino para todos depende de coisas bem mais simples.

Por isso tem toda a razão Francisco Louçã quando afirma que o que está em causa em toda esta discussão «é tentar obrigar os contribuintes a financiarem escolas privadas e, nomeadamente, torná-las indiferentes em relação à obrigação de serviço público que a escola pública representa». De resto os propósitos da direita intransigente são clarificados neste artigo de João Miranda: «Nenhum pai quer que o filho tenha colegas que perturbam o ambiente escolar. As escolas melhores são aquelas que seleccionam os seus alunos. As escolas da utopia não podem fazer essa selecção e serão sempre medíocres». Claro como a água. Só uma dúvida: o que acontece aos que «perturbam o ambiente escolar»? Imagino que anarco-capitalistas como João Miranda achem que esses não estão a fazer nada na escola e que «voluntariamente» devem mas é ir trabalhar. Cada um tem o seu lugar na divisão do trabalho. E os pobres já deviam saber isso.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Ainda há esquerda no PS?

Claro que sim. Conheço tantos militantes socialistas. A questão é saber se há esquerda organizada no PS. Com projectos alternativos ao neoliberalismo gradual socrático. E depois se ela é capaz de ter algum impacto num partido que parece cada vez mais reduzido a uma simples máquina eleitoral ou a uma claque do governo, sem qualquer outro papel ou função social. Sou céptico. É que não se vê nada. E isto reflecte-se no governo.

Reparem que quase nada é justificado com recurso a uma ideia, a um programa, a um projecto, a uma qualquer concepção do bem comum ou de justiça social que possa mobilizar politicamente quem quer que seja. É só constrangimentos, lá fora também se faz assim, é Bruxelas, o prestígio do país, a confiança dos agentes económicos ou a identificação selectiva, incoerente e enviesada de «privilegiados». Um deserto de ideias. E um partido sem ideias, uma vez sem poder, está fadado a um triste destino. Dir-me-iam que sempre foi assim. Talvez.

Mas com a direcção mais direitista de sempre acontece o inevitável: ali onde não há ideias de esquerda, um projecto social democrata articulado e contra-hegemónico, é o ar do tempo que se torna dominante. Assim, as desigualdades deixam de ser assunto, o desemprego passa a ser um problema de mercado e reduzir o peso do Estado e equilibrar as contas públicas são a única prioridade. É que as ideias são sempre inevitáveis e decisivas. Se não lhes abrimos a porta elas acabam por entrar pela janela. Neste campo a direita ideológica não precisa de se preocupar. O PS está quase capturado.

BCP ou o Citybank?


A resposta correcta, como o João aponta abaixo, é CGD. Mas, ainda assim, a nacionalidade do bancos comerciais pode ser importante na estabilidade do sistema financeiro nacional. Sede e sucursal são coisas diferentes.

O caso da crise argentina em 2001 é paradigmático. Grande parte da banca argentina foi privatizada durante os anos 90, tendo caído nas mãos dos grandes bancos mundiais (HSBC, Citybank). Em 2001, devido à turbulência financeira asiática, as restrições de liquidez dos mercados financeiros, associadas às desastrosas opções neoliberais dos anos noventa, tornaram a dívida interna das filiais argentinas insustentável. Perante este cenário, as sedes destes bancos, elas próprias com problemas de liquidez, não refinanciaram as suas sucursais argentinas. Preferiram perder na Argentina do que importar problemas para os seus centros financeiros mundiais. O resto da história é conhecido: fuga de capitais, congelamento dos depósitos, crescimento económico de -12% num ano.

Não gosto de fazer contrafactuais, mas não é muito difícil perceber que os bancos, sendo nacionais, não teriam arriscado tanto como arriscaram as filiais argentinas, muito pressionadas pelas suas sedes. No entanto, voltando ao início, só um sector bancário público robusto, com o interesse público como objectivo maior, pode servir de âncora às derivas especulativas do sector privado.

Ainda bem que temos a CGD

Acho que Jerónimo de Sousa tem toda a razão. A nacionalidade do capital não é sempre irrelevante. Agora também acho que a única garantia, em tempos de globalização, de que a propriedade de empresas estratégicas fica em mãos nacionais é o seu controlo público. No caso concreto da fusão acho que a coisa se pode resumir mesmo a «concentração do sector financeiro nas mãos de uns quantos, ainda por cima sem a garantia de que fique nas mãos do capital nacional». De qualquer forma a esquerda faz bem em afastar-se de algumas das formulações mais deterministas e equivocadas de Marx sobre a possibilidade de uma utópica economia mundial capitalista sem barreiras gerar qualquer processo de uniformização das condições de desenvolvimento ou de vida. Sempre achei que nestas questões a esquerda deve mesmo preferir List a Marx.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

A melhor intervenção que a Ministra da Educação fez até hoje...

... está aqui. Em princípio, não tenho nada contra as avaliações, nem tão-pouco contra a sua publicitação. Mas a avaliação do desempenho das escolas com base nos resultados dos exames é absurda - o desempenho nos exames depende de muito mais do que da qualidade do projecto educativo de cada escola e da capacidade de o pôr em prática (depende, nomeadamente, do contexto socioeconómico de cada escola, do capital social das famílias de cada aluno e dos recursos financeiros a que a escola tem acesso). Este tipo de avaliação é tudo menos inócuo - quem a promove sabe que, apesar das suas óbvias limitações, os resultados da avaliação são invariavelmente tomados como constituindo retratos fieis do que se passa nas escolas (para o que contribui uma comunicação social sempre ávida de notícias fáceis e com uma capacidade crítica limitada). Daí que seja fundamental que os responsáveis políticos (e não só) ponham em causa a credibilidade destes exercícios. Maria de Lurdes Rodrigues fê-lo - e está de parabéns. Agora só falta encontrar modo de inverter o desrespeito que mostrou pelos professores das escolas portuguesas, conseguindo com isso desbaratar o recurso mais importante de qualquer sistema de ensino - a motivação de quem nele trabalha.

Centrão

Há poucos minutos, no debate do orçamento, Patinha Antão, deputado do PSD, reconheceu que as orientações gerais deste orçamento são convergentes com as do PSD. No entanto, o voto contra estará assegurado. Há um simulacro de oposição a garantir em nome da reconquista do poder...

Há esquerda no PS?

A resposta é "Sim". E um bom exemplo é este blogue do economista e ex-deputado do Partido Socialista, Rui Namorado.

Destaco dois posts: esta análise da manifestação da CGTP da semana passada e do trágico divórcio entre o movimento sindical e o Partido Socialista; o destaque dado aqui a uma notícia que passou despercebida, a significativa demissão de António Casimiro Ferreira da comissão encarregue da revisão do Código de Trabalho. Afirma Casimiro Ferreira: «a revisão do Código do Trabalho, actualmente em curso, ameaça degradar ainda mais a posição dos trabalhadores face aos empregadores».

Mais de 200 anos depois, a OCDE lá percebeu

Numa publicação acabada de sair, a OCDE afirma que «as pessoas esquecem-se frequentemente de reconhecer o impacto crucial das normas e dos valores no funcionamento eficiente das instituições formais. Tais instituições informais - tradições, costumes e normas sociais - providenciam os fundamentos da ordem social e são por isso centrais para a compreensão das interacções humanas e para o desempenho das economias» (a tradução é minha).

Na verdade, onde se lê «as pessoas» deverá entender-se «os economistas da corrente dominante». São esses que insistem desde há décadas em explicar o desempenho económico dos países em termos de recursos produtivos e de incentivos, ignorando a diversidade e complexidade das estruturas sociais em cada contexto e o modo como estas moldam as interacções humanas.

A incapacidade de compreender (ou de aceitar) a importância das instituições, formais e informais, levou o FMI e o Banco Mundial (organizações onde reina a ortodoxia económica) a aplicar, de forma basicamente indiferenciada, programas de ajustamento económico a países com estruturas socio-económicas muito distintas, com os resultados desastrosos que se conhecem (ver, por exemplo, este magnífico livro, já aqui referido). Hoje é cada vez mais difícil ignorar este facto e daí esta 'descoberta' que a OCDE agora nos traz.

O que esta nova publicação faz não é mais do que reconhecer aquilo que parte da ciência económica vem dizendo desde há mais de 200 anos: o papel dos valores e das normas sociais na vida económica está presente no trabalho de Adam Smith e de Stuart Mill (ver este post), constituindo o aspecto fundamental da análise da chamada 'velha' economia institucionalista de Veblen e Commons. Mas na ciência económica contemporânea é assim: o que não se pode medir nem traduzir sob a forma de equações não tem direito de existência; só quando os erros são demasiados graves e óbvios se começa a olhar para as ideias de autores mortos e esquecidos, que outros, por teimosia, insistiram em manter vivas.

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Escola Pública

Parece que as escolas privadas ficaram outra vez nos primeiros lugares nos rankings dos exames nacionais. A direita intransigente, com a ligeireza que a caracteriza, diz que isto é a prova da superioridade do ensino privado. Mas qual é o espanto? Nos colégios privados o trabalho já vem feito de casa. Esse é aliás um dos grandes vícios de uma sociedade desigual: a trajectória dos indivíduos é em larga medida definida pelo sitio onde nascem. A direita quer apenas que isto continue assim.

A grande virtude do ensino público, por seu lado, é que ele não selecciona. O dinheiro dos papás não é para aqui chamado. Nem as suas arbitrárias preferências - religiosas, políticas ou outras. A escola pública não impõe barreiras de classe, de género ou de etnia à entrada. Só assim se podem formar cidadãos tolerantes que percebem que os valores do mérito e do trabalho só podem florescer quando as pessoas se respeitam por aquilo que são e não por aquilo que elas ou seus familiares têm. Por isso percebo bem que a direita tenha como objectivo central acabar com a escola pública para todos. No dia em que o conseguisse teria conquistado a vitória mais importante. É que numa sociedade capitalista a escola pública é um dos poucos espaços onde se podem criar laços que transcendem as barreiras que nos dividem. É sobretudo por isso que o Estado não deve nunca, repito nunca, financiar escolas privadas. Isso seria ajudar a construir, com o dinheiro de todos, essas barreiras.

Os intelectuais dos negócios

Um responsável político da direita holandesa vem a Portugal declarar que o «SNS já não tem grande futuro» e defender a privatização progressiva do sistema. Reconhece que «os serviços públicos fazem um trabalho razoável», mas que «não podem satisfazer todos os cidadãos». A alternativa é deixar «o mercado funcionar», ou seja, o Estado organiza a concorrência entre as seguradoras, garantido-lhes os lucros, e encarrega-se caritativamente dos pobres. Obviamente, segundo o Jornal de Negócios (sem link), é apenas um «especialista» a falar.

O critério é simples: é especialista quem é porta-voz das seguradoras, a grande força a puxar pelo modelo neoliberal. Assim se alimenta a propaganda que pretende substituir o princípio da provisão pública segundo as necessidades, porque somos todos cidadãos, pelo principio da provisão privada segundo a capacidade de cada um para pagar, porque alguns são mais cidadãos do que outros. No fundo, a privatização do SNS é apenas mais uma forma de impor «escolhas trágicas» evitáveis aos grupos sociais mais vulneráveis: «Um amputado que teve de escolher o dedo que poderia ver de volta olhando para o seu saldo bancário. Uma mulher que não foi aceite por uma seguradora por ser demasiado gorda. Um médico que assina de cruz todas as recusas e ganha um bónus por cada tostão que poupa à empresa». É este pesadelo que queremos?

terça-feira, 23 de outubro de 2007

O trabalho não é uma mercadoria

Nos bons velhos tempos do liberalismo (1906), quando só existiam «transacções voluntárias», porque já se sabe numa economia capitalista por definição nunca há relações de poder, podia ler-se um regulamento afixado numa fábrica da Renault que dizia o seguinte: «Os operários podem despedir-se avisando o encarregado com uma hora de antecedência. A Casa, por sua vez, pode despedir os operários sem indemnização, avisando-os o encarregado com uma hora de antecedência».

Retirado de um artigo de Rossana Rossanda, uma importante intelectual da melhor tradição da esquerda europeia (a italiana), sobre o alastramento da precariedade. Escrito poucos dias depois de um milhão de italianos ter desfilado pelas ruas de Roma contra a «ficção grosseira» que organiza o esfarelamento de todas as regras que bloqueiam o despotismo do «mercado de trabalho».

Sobre o significado desta importante manifestação na recomposição da esquerda italiana vale a pena ler esta análise de Miguel Portas.

Criticar os tempos que correm

Acho que foi Boaventura Sousa Santos que escreveu que uma das tarefas da teoria social crítica é defender a igualdade quando a desigualdade significa exploração e defender a desigualdade quando a igualdade significa opressão. A arte está em saber distinguir entre os dois casos. Sensibilidade e boa teoria social ajudam. Poucas pessoas o fazem tão bem em Portugal como Miguel Vale de Almeida. Agora em nova casa.

Vejam a sua última posta sobre o «debate» que tem entretido a nossa nostálgica direita pós-colonial: «Uma ciência sem auto-consciência não é ciência, é uma mecânica utilitarista. Uma ciência sem consciência social não é ciência, é uma monstruosidade positivista (e já vimos no que isso deu nos anos 30 e 40 europeus, ou será que não vimos?). Uma comunicação social que não pára um segundo, antes de escrever, para se perguntar o que, se algo, constitui a "essência" de "raça" ou de "pretos" ou de "brancos", o que constitui a ciência, ou quais os efeitos do que diz sobre a desigualdade já existente, não é comunicação social - é , na "melhor" das hipóteses, uma caixa de ressonância do senso comum ou, na pior, um instrumento de propaganda».

A Crise Financeira explicada


(enviado por Tiago Antão, infelizmente sem legendas)

Podemos não ser muito optimistas neste blogue. Mas o sentido de humor ainda não se foi...

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Optimismo?

A vida não está fácil e os tempos são mesmo sombrios para quem está na margem esquerda. Nestas alturas é grande a tentação para tentarmos descortinar algumas tendências positivas, por muito frágeis que sejam, mesmo quando no fundo sabemos que o quadro geral é mau.

A análise crítica do processo de integração europeia tem sido particularmente prejudicada por um infundado principio da esperança. E isto só é reforçado quando lemos, ouvimos ou falamos com intelectuais progressistas do outro lado do Atlântico. Aí a tendência para a idealização é ainda maior. São o espelho distorcido que alimenta a ideia de que os sacrifícios valem a pena em nome da construção de uma entidade política contra-hegemónica que no futuro irá estar em condições de aplicar as políticas que todos defendemos numa escala mais apropriada para os novos tempos.

Gostava de partilhar este optimismo. A sério. Mas não consigo. E depois de ler este excelente texto de James Galbraith, filho de J.K. Galbraith e um dos melhores economistas keynesianos norte-americanos menos ainda. Um desafio: em que medida é que o tratado cria condições para contrariar as tendências polarizadoras que Galbraith tão bem identifica?

Quando é que poderemos dizer nas urnas aquilo que queremos que seja a UE?

«Era insustentável manter uma União Europeia com instituições dos anos cinquenta, quando hoje, com vinte e sete membros, se tornava indispensável criar condições para que o interesse comum europeu e a vontade dos cidadãos pudessem ser garantidos». Este é o argumento fundamental apresentado por Guilherme d'Oliveira Martins (hoje no Público) para apresentar o novo Tratado da UE como uma vitória. É um avanço face a grande parte dos comentadores e jornalistas, para quem a grande vitória consiste em ter um tratado europeu com Lisboa no nome. E é mais honesto do que a falta de argumentação que caracteriza algumas intervenções (ver post anterior do João).

Mas a defesa que G.O.M. faz do Tratado de Lisboa é envergonhada e o autor não o esconde: «No futuro teremos de ser mais audaciosos quanto ao governo económico da União, quanto à coordenação de políticas económicas e sociais (de acordo com a actualíssima Estratégia de Lisboa) e quanto à cidadania europeia - para que fique claro que a legitimidade europeia é dupla, dos Estados e das pessoas». O que fica por dizer é que este Tratado torna praticamente inviável uma alteração no rumo que a UE vem tomando desde Maastricht. Os domínios em que as decisões são tomadas por maioria dos votos do Conselho (permitindo que as decisões sejam tomadas contra a vontade de alguns países) são aqueles que visam garantir o funcionamento de um mercado interno livre da interferência dos Estados, inviabilizando assim a adopção de políticas públicas de desenvolvimento ao nível nacional. Pelo contrário, mantém-se o princípio do consenso (que garante a possibilidade de qualquer Estado vetar uma decisão, mesmo que os restantes 26 estejam de acordo) em todos os domínios em que a UE poderia fazer a diferença enquanto projecto de desenvolvimento de natureza democrática e social - leis laborais, direitos sociais, harmonização dos níveis de imposto sobre os lucros. Qualquer avanço no sentido da democratização da UE - que hoje tem um Parlamento eleito que pouco pode propor ou decidir, uma comissão europeia não eleita que propõe o que quer, e um conselho de ministros que quase tudo decide à porta fechada, muitas vezes sem estar mandatado para tal - está também ele dependente de um acordo entre todos os 27 estados.

Ou seja, a UE está blindada numa trajectória neoliberal e com este Tratado são cada vez menos as possibilidades de poder ser algo diferente do que é - mesmo que essa fosse a vontade da generalidade dos europeus. Esta Europa de mercado e anti-democrática desencanta cada vez mais. E seria bom que nos fosse dada uma oportunidade para o afirmarmos nas urnas. Demasiado bom, ao que parece.

Mistificações grosseiras?

Vital Moreira acusa os críticos anti-neoliberais do «Tratado de Lisboa» de «mistificações grosseiras». A argumentação é surpreendentemente frágil.

Em primeiro lugar, é dito que não há aqui nada de novo e que no fundo se está a criticar o processo de integração europeia porque este é apenas a evolução (natural?) do Tratado de Roma e do Acto Único de 1987. Acho que é precisamente a partir do Acto Único que é justo criticar a deriva neoliberal da União. Vital Moreira subestima a ruptura que só se tem acentuado a partir daí. A instituição da liberdade de circulação de capitais e de mercadorias associada ao acto Único e o Tratado de Maastricht e seus refinamentos sucessivos, que preparam e lançaram o processo de integração monetária, trancaram a Europa numa trajectória que conduziu ao impasse socioeconómico e político actual. Enveredou-se irresponsavelmente por um caminho que culminou no pacto de estabilidade, no BCE independente, na estabilidade de preços como princípio único da política económica à escala da UE (e o objectivo do pleno-emprego e os instrumentos para o alcançar?). Depois avançou-se para um alargamento mal preparado que só acentuou o processo de concorrência fiscal e de polarização social e espacial e que tornou ainda mais evidente o desfasamento entre os passos dados e a fraqueza ou ausência dos instrumentos para uma nova política económica. Avançou-se, confiando que a moeda única e o mercado interno, como que por uma mão invisível, iriam criar a vontade política para outros voos. Esta utopia está a dar muito maus resultados. O Tratado mantém estes traços, ou seja, reforça a inscrição da ideologia neoliberal no processo de integração. Por isso é que Vital Moreira pode dizer que o Tratado modera «alguns traços mais liberais» e reforça «a dimensão social da União» sem avançar com mais argumentos de suporte. Sabem porquê? Porque se calhar não os tem.

domingo, 21 de outubro de 2007

O tratado que é toda uma agenda

Não percebo como é que à esquerda se pode saudar o acordo sobre o «Tratado de Lisboa» e ainda menos percebo como é que se pode defender que a sua ratificação prescinda de um referendo. A história já demonstrou que estes voluntarismos vanguardistas dão sempre maus resultados. Ainda se houvesse boas razões.

Infelizmente este excelente artigo de Pierre Khalfa mostra que este novo tratado mantém, no essencial, os arranjos em que tem assentado o desgraçado governo económico da Europa. Assim, «as razões de fundo para rejeitar o TCE permanecem para este tratado. Marcado de ponta a ponta pelo neoliberalismo, tanto nos princípios que promove como nas políticas que louva, este tratado situa-se no prolongamento dos de Maastricht e de Amesterdão. A União Europeia será um espaço privilegiado de promoção das políticas neoliberais». Princípio do mercado interno alargado a esferas crescentes da vida em sociedade, liberdade de circulação de capitais sem qualquer garantia de harmonização fiscal, estabilidade de preços elevada a princípio único da política económica a ser mantido por um dos bancos centrais mais anti-democráticos do mundo, reafirmação do moribundo e irracional pacto de estabilidade. E podíamos continuar. É verdade que existe a carta dos direitos fundamentais e que esta vai ser alardeada como uma grande conquista. Grande coisa. Um conjunto de declarações de intenção vagas e muito recuadas que não criam um «direito social europeu susceptível de reequilibrar o direito da concorrência, que continuará dominante à escala europeia».

Enfim, vai continuar tudo na mesma o que significa que o paradoxo europeu não vai cessar de se acentuar: uma União com condições para se dotar de instrumentos valiosos para regular a globalização neoliberal vai continuar a constituir-se, na realidade, como elemento da sua expansão.

Não podemos parar à porta da empresa

«Se os milhares de funcionários de um banco pedirem aumentos, dir-se-á que o banco perde competitividade. Se um cliente não pagar a prestação do empréstimo, o banco fica-lhe com a casa. Se o estado quiser aumentar os impostos sobre os lucros da banca, responde-se que os prejudicados serão os clientes com os gastos que o banco terá de ir buscar 'a algum lado'. Mas para aumentar executivos e perdoar dívidas a familiares ou sócios, as premissas são as opostas. Os lucros dão margem e ninguém sai prejudicado: nem os accionistas, nem os clientes do banco, nem os clientes de todos os bancos onde as comadres não se zangaram mas que passam a estar sob as suspeitas que no BCP se confirmaram. É magia. E por isso mesmo, não funciona».

Este artigo de Rui Tavares diz o essencial sobre o que está em causa no caso BCP. Vale mesmo a pena ler tudo. É bem verdade que uma das grandes fragilidades do neoliberalismo é parar à porta da empresa privada. Essa grande «caixa negra». Os neoliberais param precisamente onde começa uma parte importante da vida da maioria das pessoas. Uma parte que ainda por cima acaba por determinar aquilo que elas vão poder ser e fazer na restante. Eles têm as suas razões. É que os liberais (como John Stuart Mill) que se atreveram a entrar saíram de lá socialistas.

sábado, 20 de outubro de 2007

Dignidade e democracia


«Aos trabalhadores portugueses têm sido pedidos sacrifícios e mais sacrifícios com a promessa de crescimento económico e de desenvolvimento do país. Daí tem resultado perda de salários reais para grande parte dos portugueses, o acentuar de desigualdades, o aumento da pobreza, roturas de coesão social, territorial e na igualdade de oportunidades, o aumento do desemprego e das precariedades no trabalho (...) Comprova-se que o trabalho da Comissão visa abrir a porta a uma revisão ainda mais gravosa do Código do Trabalho (...) Trata-se do primeiro passo para a introdução em Portugal apenas da vertente flexibilidade (mais precariedade e menos direitos) que integra o conceito da flexigurança como já denunciaram alguns dos poucos membros da Comissão que são sérios especialistas do trabalho que, entretanto, se demitiram. Quanto à vertente do conceito segurança que se deve traduzir numa justa organização e retribuição do trabalho e na protecção do emprego, factores que constituem a base do Estado Social e da coesão das sociedades europeias mais desenvolvidas, o que temos assistido é a cortes sucessivos que reduzem os direitos e a protecção dos trabalhadores, nomeadamente na segurança social, na saúde, no ensino e na qualificação, no acesso à justiça».

Excertos do importante discurso de Manuel Carvalho da Silva perante mais de duzentas mil pessoas. Há um país que não se resigna a este lenta e deliberada corrosão do laço social. Como sempre é dele, da sua força, das suas boas razões e do seu crescimento, que depende o essencial.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Deprimente


Alguém é capaz de me explicar o que leva uma figura da estatura de Mikhaïl Sergueïevitch Gorbatchev a aceitar ser a cara de uma campanha publicitária a malas de luxo. Parece que agora a história também se pode comercializar. Como farsa.

The National - Apartment story



Novo vídeo para o grupo do momento. Curiosamente, a narrativa reflecte bem a minha relação pessoal com os The National.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

O sucesso do socialismo

No princípio da década de noventa Vincent Navarro, especialista em questões de saúde pública, publicou um estudo na Science & Society (uma excelente revista académica marxista) sobre o sucesso do socialismo. Acho que foi o primeiro trabalho académico em língua inglesa que eu li.

Estranho estudo dirão alguns. Ainda mais estranho porque escrito numa época em que tantos, confundido uma sucessão de derrotas políticas com a derrota das ideias, abandonavam qualquer esperança de substituir ou mesmo de reformar o sistema capitalista. Em que é que se baseava Navarro para tirar tão herética conclusão? Numa análise pormenorizada da evolução dos indicadores de saúde ao longo do século XX. Qual a conclusão a que chegou? As experiências socialistas, na sua imensa variedade (da social democracia escandinava, ao governo comunista de Kerala, passando por Cuba ou pela China maoista) tinham conseguido resultados comparativamente impressionantes na melhoria dos indicadores de saúde das populações (Amartya Sen já tinha chegado à mesma conclusão numa análise comparativa mais restrita da China e da Índia).

Nem tudo estava perdido. E havendo muito que repensar depois dos fracassos do «socialismo real», havia também que manter um núcleo fundamental de convicções programáticas. Entre elas estava a ideia de que a socialização da provisão dos cuidados de saúde é uma das grandes heranças socialistas a manter e a acarinhar. Contra todos os ventos e marés.

Os custos da utopia neoliberal

Dezoito mil norte-americanos morrem anualmente simplesmente porque não têm seguro de saúde. Dezenas de milhões estão excluídos do acesso a cuidados regulares. Os indicadores globais de saúde pública estão ao nível de muitos países em vias de desenvolvimento. Nas comunidades mais pobres estes indicadores são muitas vezes inferiores aos dos países do terceiro mundo. É o país que mais gasta em saúde (em percentagem do PIB). É dos países onde é maior a fatia dos recursos que é gasta a suportar os pesados custos administrativos de gerir um sistema privado burocrático, complexo, caótico e conflictual. É a demonstração de que a fé ilimitada no mercado só gera sofrimento evitável, desigualdades e desperdício de recursos.

Este artigo do The Guardian mostra como o «novo trabalhismo» britânico foi capturado pela ideia perniciosa de que o sistema de saúde precisa de gestão privada e de mecanismos mercantis (vejam os trabalhos críticos de Allyson Pollock que desmonta esta ideia feita). E como acontece sempre que nos afastamos do sistema de provisão pública, os custos de transacção não cessam de aumentar. Isto diz-nos respeito porque o neoliberalismo gradual do governo é totalmente importado das terras de sua majestade. Na saúde diria que se aplica a tese de Mises, mas ao contrário: cada passo que nos afasta de um sistema socialista de saúde afasta-nos de uma gestão racional dos recursos que devem estar disponíveis para todos. Mais uma vez: não há combate mais importante do que impedir que mais passos destes sejam dados. E desejavelmente revertê-los.

Muitos mil!

Há quase dez anos participei na manifestação organizada pela CGTP, aquando da cimeira de Lisboa do consulado guterrista. Na altura, os 30 mil manifestantes foram entendidos como prova de força do movimento sindical em Portugal.

Segundo o site do Expresso, cerca de 200 mil pessoas manifestaram-se hoje no Parque das Nações «em protesto contra a política económica e social em Portugal e em defesa de uma Europa com direitos sociais e emprego». É notável como os trabalhadores portugueses conseguiram aproveitar esta oportunidade para uma das suas maiores (a maior dos últimos vinte anos?) mobilizações de sempre. Mostra que perceberam as implicações do actual rumo do processo de integração europeia.

Por outro lado, o Partido Socialista não pode continuar a afirmar que se trata só de mais uma mobilização dos partidos à sua esquerda. Como afirmava Jerónimo de Sousa há dias: «Era bom que assim fosse...». Seis anos de estagnação económica, taxas recorde de desemprego e uma desigualdade gritante explicam como, provavelmente, estiveram nesta manifestação muitos dos que elegeram Sócrates.

PS- Entretanto em França, a greve dos trabalhadores dos transportes, em luta contra a reforma dos seus regimes de segurança social, foi um sucesso total. Em Paris, só a linha 14 do metro funcionou normalmente...curiosamente, a única totalmente automática. Nem o anúncio do divórcio presidencial pode esconder o que parece ser um novo «Inverno do descontentamento», à imagem de 1994.

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Sabemos o que é preciso fazer

O Público de hoje tem um conjunto notável de artigos sobre a pobreza. O tom dominante, baseado num estudo sobre as entradas e saídas da pobreza, mostra a direcção certa, bem sublinhada por Bruto da Costa: é preciso dar o peixe, a cana e ensinar a pescar. Quer isto dizer que o rendimento mínimo garantido, combinado com programas de emprego social, é parte de uma estratégia que pode tirar muitos da pobreza. Uma política económica orientada para o pleno-emprego também ajudaria. É só isso: confiar nas pessoas, dar-lhes recursos e oportunidade para que elas possam desenvolver as suas capacidades.

O que é trágico é que nós sabemos o que é preciso fazer, temos recursos e, no entanto, persistimos em não atacar o problema com a intensidade que ele merece. Estamos ainda reféns da ideia desumana, expressa a certa altura pela jornalista do Público, de que os pobres exibem uma propensão para «se colocarem à sombra da bananeira». Nada é mais errado.

As boas questões são sempre de economia moral

«Por que motivo num mundo em que o sistema jurídico (assim como qualquer sistema de monitorização) é inevitavelmente imperfeito os seres humanos não se agridem sempre que têm oportunidade para o fazer impunemente? Por que motivo contribuem para esforços colectivos quando podem limitar-se a parecer fazê-lo? Por que motivo estão dispostos a punir infractores mesmo à custa de perdas pessoais? Por que entram em transacções com contratos incompletamente especificados e insuficientemente garantidos? Por que se envolvem na resolução de problemas comunitários? Como seria uma sociedade em que as teorias de decisão neoclássicas [baseadas no egoísmo racional] se tornassem verdadeiras?» (José Castro Caldas).

Acho que estas questões são cruciais. Foram levantadas por um dos poucos economistas em Portugal a recuperar e actualizar o muito que os clássicos da economia (Smith e Mill, por exemplo) nos podem ensinar sobre os sentimentos morais que são necessários para podermos viver juntos numa sociedade decente.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

O patrão não falha e tem sempre razão

As autoridades de regulação e de supervisão decidiram sair da sua habitual complacência neoliberal e investigar as suspeitas de nepotismo no Banco Comercial Português. Fazem bem. Não só porque há suspeitas de violação da lei, mas também porque o BCP tem um peso enorme no sistema financeiro português. E isto faz com que decisões imorais e irresponsáveis dos seus dirigentes tenham repercussões que obviamente transcendem as fronteiras do banco.

De qualquer forma toda esta agitação parece perturbar muito os nossos liberais que agora, mais uma vez, deixam a sua capacidade de avaliação à porta das grandes empresas. Por opção ideológica e talvez, no caso do BCP, também por interesse. Afinal de contas é bom não esquecer que o BCP é desde há muito um dos principais patrocinadores das suas medíocres cruzadas ideológicas. A Nova Cidadania, a Atlântico ou o mestrado de Sir Carlos Espada são alguns dos projectos da direita intransigente que o BCP lá vai acarinhando. E já se sabe: os liberais dizem que confiam no teste do «mercado», mas pelo sim pelo não sabem que o melhor é mesmo ter assegurada uma boa rede social de suporte para os seus projectos (lição que também parece não ter escapado ao filho de Jardim Gonçalves). Só isto pode explicar este zelo.

A crise é real

A pouco notada, mas pronunciada, desaceleração do crescimento da produtividade nos EUA é o tema deste excelente artigo de John Scmitt e Dean Baker, dois economistas de um importante centro de investigação económica progressista. Precariedade, desigualdades gigantescas, estagnação salarial e endividamento maciço das classes trabalhadoras, uma balança corrente monstruosamente deficitária e agora uma performance económica medíocre. Todos os aduladores do modelo norte-americano de capitalismo devem prestar atenção ao que aí se passa.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

As grandes instituições não se vendem


O Instituto Superior Técnico recusou, e muito bem, ser transformado numa instituição de direito privado. A excelência académica não tem preço e não depende de engenharias mercantis. O IST pode assim continuar a ser o que sempre foi. Mariano Gago deve tomar nota disto.

Má sorte e má vida?

«No respeitante à visão dos Europeus relativamente às causas e razões da pobreza, na generalidade, a injustiça na sociedade é vista como a causa mais frequente da pobreza (37%), logo seguida da preguiça e da falta de vontade (20%) e da má sorte (19%). Em Portugal 52% dos respondentes consideram que as causas da pobreza são pessoais (23% derivado à má sorte e 29% derivado à preguiça) e 40% consideram que são sociais (33% derivado à injustiça e 7% ao progresso)».

Dados de uma sondagem deprimente que consta de uma boa sistematização sobre a pobreza em Portugal. Dados que mostram como é urgente tornar minoritárias as múltiplas expressões das ideologias do individualismo possessivo, responsáveis pelo domínio de uma visão errónea, fatalista e moralmente repugnante da pobreza. Como sempre, as prioridades das políticas públicas são antes de mais o resultado dos valores que são dominantes e que enquadram a acção política organizada.

Em Portugal, a pobreza tende a ser invisível e a ser demasiado naturalizada por «explicações» que têm por único propósito culpar as vítimas. E, só para piorar as coisas, um sistema socioeconómico crescentemente injusto tende a alimentar, num ciclo vicioso, visões cada vez mais distorcidas do mundo e da vida.

A economia como engenharia social fictícia

A atribuição do prémio «em memória de Alfred Nobel» da economia a Leonid Hurwicz, Eric S. Maskin e Roger B. Myerson é tão surpreendente quanto desapontadora. Discordo por isso de Helena Garrido e por estranho que possa parecer concordo com a análise de Peter Boettke. Para quem entende a economia como uma ciência histórica e social que trata da acção humana enquadrada por instituições mutáveis, na linha destes dois economistas, estes exercícios formais são de pouco interesse. Além disso, não me parece correcto dizer que o seu trabalho tem sido «muito útil para as operações de leilões - de emissão de dívidas ou nas privatizações - assim como no sector segurador». Esta é uma história que muitos economistas contam para se convencerem da utilidade dos seus exercícios. Mas a pesquisa histórica sobre o seu real papel no desenho de mecanismos de mercado mostra que tal reivindicação é de muito reduzida validade.

PS- Os liberais intransigentes não andam em grande forma teórica. Acho que já não é a primeira vez que vejo supostos herdeiros de Hayek confundirem a sua tese sobre a natureza dispersa e fragmentada do conhecimento com o paradigma, perigosamente intervencionista, da informação assimétrica em economia.

3%



domingo, 14 de outubro de 2007

A neoliberalização gradual da saúde

A eficácia da estratégia reformista parece atestada pela história. Por isso, alguns dos que se reclamam como herdeiros dessa tradição prosseguem-na. Só que, desgraçadamente, agora os fins são outros. Isto é muito bem ilustrado num excelente artigo de Cipriano Justo, médico e renovador comunista, que saiu hoje no Público. A aposta consiste na criação de «um sistema de saúde a duas velocidades: o SNS a desacelerar e o sector privado hospitalar em franco crescimento. Financeiramente, esta desigualdade é dada pelo crescimentos de 20 por cento na despesa do SNS nos últimos cinco anos e pelo aumento de 42 por cento na despesa com cuidados no sector privado, no mesmo período. Significando que muita produção deixou de ser realizada no sector público para ser adquirida ao sector privado com o dinheiro do orçamento do SNS».

Dar músculo ao sector privado e assim consolidar o «mercado» da saúde eis a aposta de Correia de Campos. Impedir que esta estratégia seja bem sucedida eis uma aposta para todos os que acham que a saúde não pode ser um negócio.

É o desemprego...

Helena Garrido diz, e bem, que «o Governo devia estar seriamente preocupado com o desemprego». Devia, mas não está. Se há coisa que as prioridades da política económica deste governo já revelaram é que o desemprego é um problema para o mercado resolver. No longo prazo. Entretanto, o importante, como consta do relatório do OE2008, é construir «mercados flexíveis» e reduzir o défice.

Nesta área crucial, o governo está refém das baboseiras neoliberais repisadas por macroeconomistas de direita para quem a Dinamarca parece ser agora o modelo de referência. Pena é que a Dinamarca contrarie tudo o que andaram durante tanto a dizer sobre o papel dos sindicatos, dos subsídios, do peso do Estado, da fiscalidade progressiva ou da concertação social. A realidade é de facto muito pouco importante quando se vive refugiado nos idealismos do equilíbrio geral.

sábado, 13 de outubro de 2007

A utilidade do SEE

Para além das justificações convencionais para a existência de um Sector Empresarial do Estado (SEE) robusto (que giram em torno da existência de falhas de mercado evitáveis), muito bem documentadas neste magnífico estudo das Nações Unidas, elenco mais quatro boas razões geralmente pouco mencionadas:

1. A dimensão expressiva, ou seja, o SEE envia um sinal disciplinador inequívoco às classes possidentes, o que muito contribui para reduzir o seu poder político e assim equilibrar a correlações das diversas forças sociais em presença;

2. O SEE indica que a nacionalização, no quadro definido pela lei, é uma opção credível sempre que a utilização da propriedade privada (cujos contornos são sempre politicamente definidos) não esteja de acordo com o interesse público democrático;

3. O SEE alarga e desobstrui os canais que permitem que os poderes públicos pesem na definição da trajectória de sectores considerados fundamentais, sendo um útil complemento da regulação (como se pode ver na banca portuguesa);

4. O SEE é a mais sólida garantia de que certos sectores ficam em mãos nacionais, o que tem óbvias vantagens quando se trata, por exemplo, de decidir a localização de investimentos cruciais. E podemos continuar...

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

A propriedade conta

«Teixeira dos Santos: Portugal só terá folga quando atingir défice de 0,4 por cento do PIB». Isto foi ontem. «Foi aprovado ontem o diploma que permite avançar com a privatização da EDP e temos em vista a TAP, a Galp e estamos a equacionar a REN». Isto foi hoje. No Público.

Como sempre a obsessão com um instrumento de política económica a conduzir a um irresponsável desmantelamento do sector empresarial do Estado (SEE). De qualquer forma, as privatizações são há algum tempo a segunda pele do «socialismo moderno» que aderiu à ideia ingénua de que a propriedade pública já não é um instrumento essencial para a defesa do bem comum em sectores económicos cruciais. E já agora para assegurar a concretização do saudável princípio constitucional da «subordinação do poder económico ao poder político democrático».

Polly Jean Harvey - Silence



PJ Harvey martela o piano, mas o resultado é um magnífico novo álbum (White Chalk). Melancólico q.b.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Meios e fins

Portugal atingiu o grande desiderato nacional de um défice orçamental inferior a 3%. Sócrates dá os parabéns aos portugueses (a que portugueses?) e os intelectuais orgânicos do socratismo exultam. O desígnio é fácil de vender. Faz-se o demagógico paralelismo com a economia familiar, já que ninguém considera desejável gastar mais do que se tem. Por isso, quanto menor for o défice, melhor para o país.

Mas também não é difícil perceber que, num contexto de fraco crescimento económico, conduzir uma política orçamental virada para a redução do défice só contribui para a deterioração da nossa economia. Os cortes no investimento público e a estagnação salarial não são compensados por uma hipotética confiança nas contas públicas que Sócrates pateticamente anuncia como o grande catalizador do nosso crescimento económico. Os socialistas submetidos às forças cegas do mercado. Mais uma vez. Os fins - combate ao desemprego e promoção da igualdade - ficam para a próxima.

Até na pátria do liberalismo há imposto sucessório

«Um pacote social-democrata apropriado teria implicado que os trabalhistas enfrentassem os conservadores na questão do imposto sucessório e usassem o dinheiro poupado para reduzir a pobreza infantil».

Larry Elliot, editor de economia do The Guardian numa excelente análise da proposta para o próximo orçamento britânico. Em Portugal, será mais fácil ouvir um liberal intransigente reconhecer que a busca de lucros não é necessariamente coincidente com qualquer noção de bem comum do que ouvir um editor de economia a analisar um orçamento pelo prisma da redistribuição, do combate à pobreza ou às desigualdades, ou seja, pelo prisma da criação de condições de vida decentes para todos. Mas afinal de contas Lerry Elliot é um editor genuinamente social-democrata crítico do modelo económico neoliberal do «novo trabalhismo» (vejam o seu último livro). E está na boa tradição britânica que, desde John Stuart Mill (prometo arranjar citações do meu liberal de eleição), sabe que não há imposto mais justo e necessário do que o imposto sucessório. Um imposto que atinja os estratos privilegiados e que bloqueie parcialmente um dos canais para a transmissão intergeracional das desigualdades. Transmissão que torna a igualdade de oportunidades e o valor do mérito numa quimera.

Apesar do seu alcance ter sido reduzido por Brown, numa demonstração adicional da extensão da incorporação pelos trabalhistas da agenda conservadora, o imposto mantém-se. Em Portugal, a sociedade mais desigual da Europa, ele foi abolido quase sem discussão pelo último governo da direita partidária. Fica o desafio para os socialistas, aparentemente resignados a assistir ao aumento das desigualdades e a julgar o sucesso da sua política económica pela evolução de um instrumento (o défice): tenham a coragem de desenhar um novo imposto sucessório.

Banco do Sul

A liberalização dos mercados financeiros das últimas décadas foi vendida aos países em desenvolvimento como a solução para a captação de poupança e investimento externo. Entretanto, a consequente instabilidade financeira custou caro a muitos destes países, com as crises financeiras a multiplicarem-se por todo o globo (Tailândia, Coreia, Argentina, Turquia, entre outros).

Como precaução, estes países passaram a acumular gigantescas somas de reservas cambiais estrangeiras de forma a fazer face a potenciais períodos de instabilidade. Assim, os mercados financeiros ficam mais tranquilos. Como indica o gráfico abaixo, estas reservas são, em termos relativos, três a quatro vezes maiores do que as detidas por países desenvolvidos. Um escândalo que, segundo alguns cálculos, custa quase 1% do crescimento anual do PIB destes países.

Felizmente, parece existir uma outra face para a mesma moeda. Usando estas vastas reservas, a Venezuela e Argentina avançaram com a ideia da criação de um «Banco do Sul» que substituísse as instituições de Washington (FMI e Banco Mundial) no apoio ao desenvolvimento. Hoje, a ideia de Chávez contou com o importante apoio de Joseph Stiglitz, Nobel de Economia e ex-economista chefe do Banco Mundial. Considera Stiglitz que «uma das vantagens de haver um Banco do Sul é que ele deverá reflectir as perspectivas dos que são do Sul».


Independência, já!

Sempre que se aproxima a discussão do orçamento de Estado, lá aparece a figura do costume, com a insinuações do costume sobre a iminente independência da Madeira. Que ele diz que não quer. Que é o governo da República que está a pedi-las. Uma cena que raia o absurdo, mas que quase sempre rende mais uns trocos para ajudar o PSD Madeira a manter o seu sistema de poder na ilha. Dêem-lhe a independência. Pode ser que se cale.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Quebrar o consenso

«Ao criar a moeda única e instituições deficientes para a gerir e ao impedir políticas orçamentais activas, a integração tornou, desde Maastricht, as economias muito mais vulneráveis perante a globalização, como é visível hoje em Portugal. Não tenho qualquer dúvida em afirmar que devido à moeda única Portugal está hoje mais desprotegido em relação à globalização do que grande parte das economias do mundo, mesmo de países de dimensão e nível de desenvolvimento inferior».

Vale mesmo a pena ler o artigo de João Ferreira do Amaral no Jornal de Negócios. Quebrar o consenso é custoso. Mas quando alguém o faz desta forma, directa e sem contemplações, as coisas tornam-se de repente claras. É que a estagnação dura há demasiado tempo. O tempo de uma moeda única sem governo económico.

Dois economistas que mereciam o Nobel

Esta coisa do Prémio Nobel da economia é complicada. Em primeiro lugar, trata-se de um «falso» Nobel. Alfred Nobel não considerava a economia uma ciência digna desse nome e na realidade o prémio é atribuído pelo Banco Central da Suécia («em memória de Alfred Nobel»). Em segundo lugar, o prémio tem um enviesamento teórico e ideológico claro que reflecte bem a natureza da instituição que o atribui e da disciplina premiada. De qualquer forma, o prémio tem peso político. É mesmo difícil ignorá-lo.

Na próxima segunda feira é anunciado o deste ano. Parece que se fazem apostas. Bom pelo menos isto oferece um pretexto para se falar de economistas e oferecer razões para a atribuição do prémio. Numa atitude ecuménica, e retomando o espírito de 74 (quando Gunnar Myrdal e Fredrick Hayek foram premiados, sem dúvida a melhor colheita), aqui fica a minha sugestão: Albert Hirschman e Israel Kirzner. O primeiro pelos seus contributos para a economia do desenvolvimento, para a história das ideias económicas e políticas e para a quebra das barreiras disciplinares (os seus contributos para a economia como ciência política e moral são notáveis). O segundo (no extremo oposto do espectro político) por ter, na tradição austríaca de Mises e de Hayek, feito tudo para mostrar as implicações teóricas de se falar seriamente de empreendedorismo, de conhecimento e de processos de descoberta no mercado e por ter procurado fundamentos éticos para a sua versão extrema de capitalismo.

Duas contribuições robustas e muito interessantes. Duas contribuições ignoradas. Como não? Se as tradições austríaca e institucionalista ou marxista não constam dos programas da esmagadora maioria dos departamentos de economia. De facto, os economistas tendem a ser pouco liberais no campo das suas ideias.

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Por favor, digam-me que isto não é verdade!

«Maria de Belém Roseira, presidente da Comissão Parlamentar de Saúde e simultaneamente avençada do BES Saúde».

É que se isto for verdade, então é caso para dizer que a degradação ética no PS e os laços umbilicais com os grande grupos económicos favorecidos pelas suas escolhas políticas são já muito mais fortes do que eu suspeitava.

A crise da socialdemocracia

Vital Moreira constata que no Canhoto já não se escreve há mais de dois meses. É pena. Será que se trata de mais um sintoma do triste apagamento de qualquer traço de debate e de combatividade ideológica na área da esquerda socialista agora mais empenhada nas múltiplas tarefas de gestão dos planos inclinados da actual política pública? Temo que sim.

Prisões Privadas Perigos Públicos

Uma das mais funestas ideias do «novo trabalhismo» britânico é a da extensão da lógica da «gestão empresarial» privada à generalidade dos serviços públicos e mesmo a áreas relacionadas com o aparelho repressivo do Estado. De hospitais a cadeias vale tudo: da concessão, à parceria até à privatização. Os privados rejubilam com lucros assegurados, mas os resultados são quase sempre uma decepção. Agora é uma cadeia gerida por privados (!) que parece que vai ter de ser alvo de uma intervenção de gestores públicos (por enquanto recusada, segundo notícia do The Guardian). Multiplicação de incidentes, «esquemas de incentivos subvertidos pelos prisioneiros» [sic], prisioneiros com acesso mais fácil a drogas e telemóveis (talvez no futuro estes e outros artigos se possam comprar abertamente, afinal de contas a cadeia é agora um negócio). Enfim, um desastre previsível.

Também em Portugal, o governo vai avançar alegre e irresponsavelmente para o alargamento deste tipo de esquemas a novas áreas. No futuro quando tudo isto tiver que ser revertido vamos pagar bem caro estas formas irresponsáveis de engenharia social liberal que apenas subvertem a lógica de serviço público que deveria enquadrar os equipamentos e instituições que asseguram a vida em comum.

O homo economicus é um macaco?

O «jogo do ultimato» é um exemplo clássico da economia experimental. Um primeiro jogador fica com a responsabilidade de propor a partição a fazer de um determinado montante. Se o segundo jogador recusar a oferta, ambos ficarão sem nada.

Segundo o modelo teórico do Homo economicus (racional, maximizador e egoísta), apanágio dos modelos da economia ortodoxa, o segundo indivíduo aceitará sempre qualquer oferta maior que zero. Pouco é melhor do que nada. Os resultados variam consoante o contexto social e cultural - ver este livro sobre um estudo em quinze diferentes sociedades. No entanto, contrariamente ao «esperado» pela teoria económica, os indivíduos recusam ofertas menores do que 20%, e quem faz a repartição oferece normalmente valores iguais ou próximos da metade. Ou seja, os indivíduos no seu comportamento não seguem somente o seu interesse próprio. As considerações morais - de justiça, neste caso - pesam nas decisões dos agentes económicos e devem, por isso, ser integradas no estudo do seu comportamento.

No entanto, quando pensava que o Homo economicus não passava de uma abstracção sem sentido, fiquei a saber que este estranho homem existe realmente. Acontece que não é bem um homem, mas sim um hominídeo. Um artigo da The Economist sobre o comportamento dos chimpanzés, tendo como pano de fundo a discussão em torno do «jogo do ultimato», explica que estes primatas, ao contrário dos humanos, têm um comportamento puramente egoísta quando confrontados com uma versão adaptada do jogo.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Realismo

«Na opinião dos liberais não carecemos de mais políticas nem tão-pouco de mais regulação; carecemos, sim, de mais concorrência no mercado e de menos protecção às empresas - sejam bancos ou outro tipo de instituições - quando estas se encontram em dificuldades financeiras. As pressões da concorrência farão mais pela transparência no mercado do que as políticas e as normas reguladoras. A resposta liberal cai, aliás, por terra no momento em que multidões sitiam bancos para levantar o seu dinheiro, levando os políticos a chamar a si as ferramentas políticas e reguladoras. Eis o mundo real - por muito imperfeito que seja».

Raymond Plant no Diário Económico. São as pressões da concorrência que geram as corridas aos bancos. E, paradoxalmente, talvez sejam os resultados desastrosos das pressões da concorrência no sector financeiro que podem começar a fazer cair por terra a ideia, proveniente de um dos ramos da grande árvore liberal, de que as autoridades de regulação e supervisão devem ser «independentes», ou seja, devem ser protegidas do escrutínio democrático das suas orientações e cumplicidades.

domingo, 7 de outubro de 2007

Leituras de Economia Moral

A economia moral, desenvolvida neste excelente texto de Andrew Sayer, assenta na ideia de que as normas e os sentimentos morais dos indivíduos influenciam necessariamente as dinâmicas do sistema económico, qualquer que ele seja, e que este por sua vez tem também impacto na forma como essas normas e sentimentos evoluem. Parece razoável. Já Adam Smith, bem interpretado por Sayer, pensava o mesmo. Pena que haja muita gente, à esquerda e à direita, incapaz de reconhecer isto. A ideia de que a economia assenta numa qualquer mecânica que nos transcende é mesmo difícil de erradicar.

Com amigos destes a integração europeia nem precisa de inimigos

O Pedro Sales diz o essencial sobre o esforço em curso para impedir o escrutínio democrático do novo tratado europeu. Tratado que, apesar de alguns retoques de pormenor, mantém a arquitectura do governo económico europeu que tem trancado a Europa numa perniciosa trajectória neoliberal. Tem por isso razão o historiador Perry Anderson quando argumenta que o arranjo não democrático em que a UE tem assentado, e vai continuar a assentar, realiza o sonho de Hayek: um grande mercado supervisionado por um poder político que os cidadão não controlam. O que me espanta é que haja gente à esquerda que não percebe para onde estes utópicos vanguardismos liberais nos podem levar.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Diplô de Outubro


A edição portuguesa do Le Monde Diplomatique de Outubro já está nas bancas. Destaque particular para o artigo do economista Liêm Hoang-Ngoc. Embora trate da realidade francesa, a discussão no nosso país sobre que tipo de impostos queremos e para que fins é urgente. Um debate ausente desde a última reforma fiscal do governo Guterres.

Contágio

«O pior já passou», afirmou o Papa dos mercados financeiros, Alan Greenspan, em Lisboa. O pior até pode ter já passado no que aos mercados financeiros diz respeito, mas as consequências para a economia «real» só agora começam. Segundo o Financial Times, a concessão de crédito às famílias e empresas europeias abrandou nos últimos três meses.

É esta realidade que justifica a decisão do BCE de deixar as taxas de juro inalteradas. Mas tal atitude parece curta dadas as circunstâncias. Não é só a taxa de inflação esperada que é menor - a obsessão do BCE. Dadas as notícias, uma quebra no crescimento económico europeu é cada vez mais certa. Mas, para o BCE, esse não é um problema da sua responsabilidade.

Radiohead e o Wall Street Journal

Via Zero de Conduta, fiquei a conhecer a mais recente iniciativa do grupo de música britânico Radiohead (o nome é surgiu através de uma música dos Talkings Heads). A ideia é simples, o grupo disponibilizará o seu mais recente trabalho para download a partir do dia 10 e os fãs pagam o que acharem justo. Eu já fiz a minha pré-compra.

Os Radiohead vêem assim apontar o caminho futuro da produção e distribuição musical. A criação será crescentemente autónoma face aos ditames dos quatro grandes oligopólios multinacionais - a EMI, SONY, Universal e Warner controlam quase três quartos do mercado mundial.

A iniciativa está a ser um sucesso, com os fãs a pagarem uma média de 10 dólares por download . Contudo, via Michael Perelman, cheguei a um artigo do Wall Street Journal (não disponível online). Os cães de guarda da indústria musical atacam o grupo por estes conseguirem ganhar mais dinheiro desta forma do que através das vias tradicionais. Ridículo, se não fosse sintoma da longa batalha que, artistas, consumidores e indústria, travarão nos próximos tempos.

Fica abaixo, o que já é um clássico de meados dos anos noventa:



quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Vertigens liberais (II)

«O liberalismo não tem obrigações morais». Talvez o que se queira aqui dizer é que o capitalismo liberal supostamente obedece a lógicas que nenhum sistema moral consegue escrutinar e controlar. Esta separação entre o campo da moral e o da economia é insustentável. Sabendo que qualquer sistema económico depende, para o seu bom funcionamento, de ingredientes morais, do respeito por normas sociais e compromissos fortes, então talvez certos apologistas do capitalismo tenham um problema entre as mãos.

Já Schumpeter tinha alertado para a possibilidade do capitalismo desabrido poder minar as fundações ético-políticas que asseguram a sua legitimidade e viabilidade. Um sistema que é descrito, pelos seus apologistas, como estando apto a prescindir de todas as obrigações que nos definem como humanos é simplesmente imoral.

Como podemos viver juntos assim? Talvez não possamos. E é também por isto que todas as utopias da mecânica fria do mercado sem fim são sempre insustentáveis.

Vertigens liberais (I)

Recupero um artigo de opinião sobre as forças motoras do capitalismo da autoria de Pedro Santos Guerreiro do Jornal de Negócios. É interessante porque reflecte a ideologia - entre o mais grosseiro determinismo económico herdeiro do marxismo de cordel (sem a revolução) e a mais desabrida apologia do capitalismo sem trela com leves reminiscências de Schumpeter (sem a subtileza) - que parece vigorar no jornalismo de negócios anglo-saxónico. A retórica pretende ser fria e realista.

Decreta-se a inevitabilidade de uma suposta dinâmica concorrencial associada a uma «velocidade empresarial vertiginosa que deixa um lastro de cacos humanos atrás» e que finta os sindicatos aparentemente condenados à irrelevância. Decreta-se a inevitabilidade da intensificação da exploração com os ganhos de produtividade a serem apropriados crescentemente pelos proprietários. Enfim, apresenta-se o capitalismo como uma «locomotiva imparável» sem condutor e sem outro destino que não seja a acumulação incessante de capital como um fim em si mesmo. E depois concluí-se: «Isto faz sentido? Faz. É justo? Não».

Faz sentido à luz de que valores? Promove-se um crescimento económico sustentado e socialmente equilibrado? Não. Os aumentos de produtividade são pelo menos maiores do que em fases mais igualitárias do capitalismo? Não. O pleno emprego é assegurado? Não. O sistema é mais estável? Veja-se a recente crise e o cortejo das que a precederam. Que sentido é que isto faz então? E sobretudo para quem?

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Leitura obrigatória

Perry Anderson, historiador, é certamente um dos maiores intelectuais vivos. O seu percurso e produção intelectuais são notáveis. Fundador da New Left Review, Perry Anderson escreveu sobre os mais diversos temas, desde a transição da Antiguidade ao Feudalismo (Passagens da Antiguidade ao Feudalismo) à história do pensamento marxista no século XX (Considerações sobre o Marxismo Ocidental). Ultimamente, o seu trabalho oscila entre a história intelectual de grandes pensadores do século XX - ver este livro, onde os grandes ideólogos da ultra-direita (Hayek, Oakeshot, etc) são escrutinados - e a reflexão política geograficamente localizada - boas análises de países tão diversos como a França ou Taiwan na London Review of Books. Para o conhecer melhor, vejam esta bela entrevista.

O seu último (longo) trabalho, publicado na LBR, é uma reflexão original, culta e lúcida sobre a União Europeia. Opondo-se à visão idealista da integração europeia, onde esta é parece ser sinónimo de qualidade de vida, sustentabilidade e direitos humanos, Perry Anderson é implacável na sua avaliação política.

Os três grandes marcos das últimas décadas (reunificação alemã, união monetária e expansão ao leste europeu) são desmontados e entendidos ou como falhanços, ou como futuros bloqueios à integração e democratização políticas. Em seguida, o autor analisa o quadro institucional europeu para explicar como as democracias europeias ficaram politicamente esvaziadas com a transferência dos seus instrumentos de política económica para o Banco Central Europeu ou para a tecnocracia de Bruxelas. A Comissão Europeia é mesmo comparada ao ideal, defendido por Hayek, de uma estrutura constitucional supra-nacional tão distante dos cidadãos que impeça a efectiva soberania destes. Finalmente, Anderson defende, eloquentemente, como a U.E. está longe de conseguir uma política externa independente dos E.U.A., seja no Iraque ou no conflito israelo-árabe.

Um texto obrigatório, que merece ser amplamente discutido, da esquerda à direita.