sexta-feira, 30 de junho de 2023

Uma economia política deprimente

Diogo Martins já abordou aqui a falta de pluralismo no debate económico em Portugal. Continuando o exemplo, no twitter, Luís Aguiar-Conraria também vem afirmar que qualquer questionamento sobre a Política Monetária do BCE é disparate para consumo interno, a propósito, claro, das declarações de António Costa.


Felizmente, para consumo externo ainda se pode encontrar qualquer coisa, de pessoas que não aceitam que tenhamos encontrado o fim da história no que diz respeito às nossas opções de política económica.

Adam Tooze, no Financial Times clama por uma discussão democrática em torno da política de objetivo de inflação quando vemos a continuação de uma política monetária altamente contracionista, quando já existem pedidos para medidas de austeridade orçamental também contracionistas, tudo sacrificando emprego, vidas dignas e a própria democracia na cruz dos 2%. 

O que pede Adam Tooze é um debate democrático sobre que escolhas queremos enquanto sociedade:

Estas são escolhas sérias. Mas se a democracia liberal tem algum significado, deve envolver um debate público fundamentado. E isso significa não fechar a porta à discussão invocando os papões dos anos 70 e exigindo que os bancos centrais façam o que for preciso. Isso não é um debate democrático. É a velha lógica neoliberal do "não há alternativa". Essa lógica legou-nos a reação truculenta do populismo. 

Para isso, é preciso começar a chamar os bois pelos nomes. O desemprego e a crise não são efeitos colaterais, mas sim os instrumentos através dos quais os aumentos da taxa de juro atuam para baixar a inflação, nos modelos seguidos pela Economia convencional. É aquilo a que já chamei uma política económica consciente baseada em economia política deprimente.

Um outro artigo, na Forbes, por Erik Sherman, explica bem a (falta de) lógica, neste caso aplicada à Fed: Jerome Powell afirma que a estabilidade dos preços é a responsabilidade da Fed porque sem ela "a economia não funciona para ninguém". Mas depois elenca o crescimento do emprego como um problema, e a descida do crescimento dos salários e das ofertas de emprego como "boas notícias". Portanto: 

Por um lado, a Reserva Federal precisa de controlar os preços, o que significa inflação, para um mercado de trabalho forte e sustentado. E, no entanto, um mercado de trabalho forte e sustentado é, supostamente, uma das principais causas da inflação.

A própria natureza da União Económica e Monetária deixa o desemprego e os salários como únicas variáveis de ajustamento macroeconómico, o que mostra a natureza de classe de todo o projeto, como afirma João Rodrigues aqui, mesmo quando o próprio BCE já reconhece que o mecanismo de transmissão da inflação se encontra nos lucros e não nos salários. 

Com isto em conta, podemos começar a discutir o que realmente importa: salários, emprego, vida digna, não são variáveis de ajustamento, mas devem ser os verdadeiros focos de uma política económica que se quer democrática.

Mas uma coisa LA-C tem razão. António Costa diz o que diz apenas para consumo interno. Porque ser consequente, nesta matéria, levava-o para terrenos complicados aonde já vimos que nem ele, nem este Governo, nem o PS alguma vez aceitam mover-se. Seriam os terrenos onde Varoufakis se moveu, como bem lembra João Rodrigues. Tudo a prova de uma política que é, ela própria, também deprimente.

 

Imagine

Imagine, por absurdo, que Christine Lagarde se dispunha a vir à Assembleia da República ouvir as críticas de quase todos os grupos parlamentares, umas infinitamente mais coerentes, justas e assertivas do que outras, claro, como sugere Carmo Afonso. E depois? Depois, nada. No fundo, a exigência de democratização do império liberal monetário é uma contradição nos termos. Varoufakis, por exemplo, aprendeu esta lição de economia política histórica à sua custa.

Como é que se diz «o problema não é a falta de casas» em inglês?


«Como bem sublinha Ann Pettifor, não é hoje possível compreender a atual crise de habitação nos termos da "sabedoria convencional". Isto é, a partir da ideia de que a questão se resume a um simples desencontro entre a oferta e a procura, bastando que a alegada falta de casas seja suprida através do aumento da construção. Tese que, como assinala a economista britânica, "todos" – governos, privados e terceiro setor – "compraram" de forma acrítica.
É preciso não ignorar, de facto, que desde a crise financeira de 2007/08, o imobiliário se converteu num domínio muito atrativo para vultuosos investimentos financeiros especulativos – o tal "muro de dinheiro" de que fala Pettifor – que passaram a funcionar a uma escala cada vez mais internacional. Ou seja, numa mudança que torna obsoletos os quadros de análise que assumem a oferta e a procura de habitação à escala das fronteiras nacionais (e, portanto, delimitadas) e circunscritas à lógica da função residencial dos imóveis (que exclui, portanto, o seu "uso" enquanto ativo financeiro).
»

O resto da crónica pode ser lido no Setenta e Quatro.

Será que são os alemães que andam a viver acima das possibilidades?

Em junho, a taxa de inflação em Espanha abrandou acentuadamente para 1,9%, o que está abaixo do objetivo do BCE. A introdução de um limite máximo para o preço do gás na produção de energia, os limites aos aumentos das rendas, a tributação dos lucros excepcionais, etc., fizeram, desde o início, a diferença, afirma, e bem, Philipp Heimberger.


Com os preços em trajectórias tão distintas em Espanha e Alemanha, nenhuma política económica pode ser a política adequada para ambos os países em simultâneo. 

Confirma-se pela enésima vez que a zona euro não é uma área monetária funcional, mas um arranjo distópico que colocou países com estruturas produtivas fundamentalmente distintas a competir diretamente, sem mecanismos de compensação e reciclagem dos inevitáveis excedentes e correspondentes défices, países esses amarrados a limites de défice orçamental e endividamento público sem qualquer racionalidade económica e social (muito pelo contrário). 

E, como se este panelão com tendência permanente para a fervura não fosse suficiente, a tampa é mantida em posição por uma instituição com poderes historicamente sem paralelo, inclusivamente o poder de decidir contra a vontade de parlamentos nacionais eleitos. Enfim, o que há muito se sabe e alguns insistem em empurrar para debaixo do tapete. 

Regressando à questão central deste texto, a divergência de preços em duas economias centrais na zona euro, a palavra a Vicente Ferreira: “Isto coloca um problema adicional à narrativa do BCE: se o problema da inflação está na procura, que tem de ser restringida por via da política monetária, será que são os alemães que andam a viver acima das possibilidades?”

Enviesamento do debate português sobre inflação: um singelo exemplo


Por vezes, tenho dificuldade em explicar o quão enviesado no sentido conservador é o debate português sobre a inflação comparado com o quadro internacional, mesmo este sendo pouco plural.

Mas aqui fica um exemplo claro.

Luís Aguiar Conraria (economista que os incautos tomam como sendo de centro-esquerda) defendeu, no Negócios da Semana (aqui), que seria uma medida irresponsável o BCE rever a sua meta de inflação em sentido ascendente, já que poria em causa a sua credibilidade e poderia agravar a inflação. O BCE deve, pois, continuar a subir os juros, não interessa a que custo. Sem surpresa, num painel de convidados que contava com António Nogueira Leite e João Confraria (apesar de tudo, o mais polido e equilibrado na sua forma de debater), não houve ninguém que fizesse oposição a esta posição. Para o telespetador, fica a mensagem implícita de que se trata de um consenso dentro da profissão. É o que os especialistas” pensam sobre o assunto. 

No entanto, em sentido bem inverso, Olivier Blanchard, ex-economista chefe do FMI, e insuspeito esquerdista, publicou em Novembro passado um artigo no Financial Times (aqui), onde sugeria ser virtuoso que os bancos centrais decidissem rever a sua meta de inflação para 3%, evitando custos económicos e sociais desnecessários no controlo da inflação.

Isto não significa que eu concorde com a posição de Blanchard no que respeita às origens e soluções para lidar com a inflação.Mas este é um exemplo do quão encostado à direita e refém de um falso consenso técnico está hoje, como há dez anos, o debate económico português.

quinta-feira, 29 de junho de 2023

Das dificuldades de Lagarde com salários e produtividade

E se a coisa se complica e a discricionariedade plena não é suficiente? 


Nesse caso, pode sempre ser à Lagardere, que na semi-colónia a malta aguenta. 


Ai aguenta, aguenta! Ou não, não aguenta

O nevoeiro dissipou-se em Sintra


“Emprego prepara-se para sofrer os danos colaterais da luta contra a inflação”: este título do Público pode induzir em erro. De facto, aumentar o desemprego para disciplinar quem trabalha é o objetivo do BCE, que revela a sua natureza de classe de sempre, como fica claro no seu fórum em Sintra. 

Desculpem a crueza, mas as coisas são como são feitas. E o euro foi feito para isto, da proibição do financiamento directo dos Estados pelo Banco Central à grosseria ineficiente e injusta de tentar estabilizar preços através da recessão.

Apesar dos seus estudos, que indicam a responsabilidade dos lucros na alimentação do processo inflacionário, o BCE está sempre preocupado com a possibilidade de os trabalhadores conseguirem manter o peso dos seus rendimentos no rendimento nacional. Tal exige um crescimento dos salários reais alinhado com o crescimento da produtividade, o que não tem de todo acontecido.

A “independência” do Banco Central é a independência em relação aos interesses da maioria e a dependência em relação aos interesses de uma minoria endinheirada.

O nevoeiro dissipou-se em Sintra.

quarta-feira, 28 de junho de 2023

Não Doeu (Susana Travassos)


Para lá das iniciativas liberais na habitação


Em Portugal, um terço dos inquilinos gasta mais de 40% do rendimento com a casa Portugal está entre os países europeus onde os inquilinos têm de fazer maior esforço para pagar despesas com habitação. Por outro lado, só cerca de 1% dos proprietários estão em sobrecarga financeira. 

Destaque para a oportuna notícia do Público de ontem, no fundo revelando os custos sociais do desvelo das políticas públicas para com os proprietários. 

Outros destaques seriam possíveis: Portugal está entre os países europeus com menor percentagem de habitação social na habitação total, com menos regulação favorável aos inquilinos ou com menos investimento público. 

Portugal é dos países mais causticados por iniciativas e fraudes liberais na habitação, como a hipótese de que há poucas casas. 

terça-feira, 27 de junho de 2023

TAP: Privatizar contra todas as evidências


O debate sobre a gestão da TAP tem gerado perplexidades várias. A primeira decorre de se falar apenas dos problemas e erros da gestão pública e nunca do que se passou na gestão privada e sobretudo no processo de privatização, absolutamente ilegítimo do ponto de vista democrático e danoso do ponto de vista do interesse público.

A segunda, a mais importante, é a de saber qual será o futuro da TAP. Desse ponto de vista, não deixa de ser muito curiosa a discrição do governo sobre os resultados apresentados pela TAP em 2022 (66 milhões de lucro e 288 milhões de resultado operacional), pela classificação atribuída pela Airline Ratings ou pelos dados relativos às chegadas a Portugal, em que Portugal recuperou e ultrapassou os números pré-pandemia antes de todos os outros países do sul da Europa.

Quando o ex-ministro Pedro Nuno Santos referiu alguns destes factos na Comissão de Economia, um deputado da Iniciativa Liberal considerou curioso que um socialista invocasse os lucros para defender a gestão de uma empresa pública. Mais curioso ainda é ouvir um liberal insinuar que o lucro não é o mais importante, até porque já várias vezes argumentaram o contrário. Incoerência? Não. A posição dos liberais é simples e coerente: privatizar tudo.

Infelizmente, essa é também a posição do governo. A obsessão com a privatização contra todas as evidências é uma escolha política de fundo. O PS tem um currículo de privatizações tão ou mais recheado que o do PSD. Décadas de destruição do setor empresarial do Estado e da capacidade de conduzir políticas estratégicas nos mais variados setores e promover centros da tal inovação e qualificação de que António Costa está sempre a falar.

E as evidências são bem mais e mais importantes do que os resultados líquidos da TAP. Nisso, o deputado da Iniciativa Liberal teve razão sem querer. Bem mais importante e significativo do que um lucro (ou prejuízo) de 66 milhões é o papel que a TAP tem na economia portuguesa. Um único indicador chega para mostrar porque é assim.

Em 2022, A TAP faturou cerca, de 3,48 mil milhões. Se a percentagem de faturação a não-residentes se tiver mantido próxima dos 80%, quase 3 mil milhões serão exportações. Mas independentemente desta distribuição, se a empresa for absorvida por uma empresa estrangeira, tal decisão provocará uma degradação automática das Balança Corrente desta magnitude. As exportações deixarão de o ser e as compras domésticas passarão a ser importações.

Ora, estamos a falar de um impacto mais de 50 vezes superior aos lucros da TAP. Uma parte substancial desse impacto, se não todo, irá necessariamente refletir-se nas contas públicas. Claro que a empresa pode manter-se e não ser absorvida mas, depois de uma privatização, não há como o garantir a prazo.

Além disso, o impacto da TAP na economia portuguesa é simplesmente colossal. Antes da pandemia, em 2019, a TAP tinha compras a fornecedores nacionais da ordem dos 1300 milhões e estimava-se que seria responsável por cerca de 150 mil empregos, entre diretos e indiretos. Só a receita fiscal da atividade da TAP e das atividades indiretas é muito mais significativa do que o seu lucro.

Há ainda que considerar o impacto que teria o desaparecimento de uma companhia nacional de aviação no papel de Portugal nas rotas internacionais. Não está apenas em causa uma concepção ultraliberal sobre o papel dos Estado na economia. Está também em causa um projeto de desenvolvimento para a nossa economia atávico e miserabilista. Um projeto consistente com uma elite económica e política medíocre que acha que, não apenas o Estado, mas todo o país são incapazes de ter capacidade industrial própria e que o melhor mesmo é ser tudo comprado por quem saiba. E uma elite intelectual que passa a vida a falar da aposta nos bens e serviços transacionáveis, a não ser quando é para tomar as decisões que contam.

Finalmente, há ainda a considerar a questão do serviço público da TAP. A TAP tem a responsabilidade de assegurar uma cobertura nacional, o que pode implicar a manutenção de voos e rotas deficitárias. Ter uma empresa pública pode permitir o financiamento do serviço público através das rotas mais rentáveis da companhia ou (melhor e mais transparente) contratualizar esse serviço entre Estado e a empresa. Sem empresa pública, o Estado terá de o contratualizar com a compradora da TAP, em posição de total dependência. É como gostam os nossos liberais, Governo pelos vistos incluído. Ou então acaba-se com o serviço público por completo.

Claro que se a TAP for privatizada, há-de haver um qualquer acordo parassocial. Há sempre um acordo parassocial, não é? O Governo vai assegurar que os empregos, os impostos, as exportações, as compras, o hub, etc., tudo isso vai ser integralmente garantido. A função de tal acordo será essencialmente a de adiar as consequências deste disparate monumental, de forma a que caiam em cima de outro governo qualquer.

Até lá, não há inevitabilidades. Foi recentemente publicada uma carta aberta de oposição à venda da empresa. Não está em causa que a TAP estabeleça parcerias com outras empresas. Vender a TAP não é fazer parceria nenhuma. É abdicar de um recurso estratégico para o país. Mais um.

Publicado no Setenta e Quatro.

Duas notas sobre um excedente

Primeira nota. As finanças públicas não estão sujeitas aos mesmos constrangimentos que impendem sobre as finanças privadas. Também não devem estar subordinadas à mesma lógica. Numa economia monetária de produção, no capitalismo, as receitas de uns são as despesas dos outros. Se o Estado tem mais receitas que despesas, o resto da economia (nós) terá, obrigatoriamente, mais despesas que receitas. 

Numa situação como a que vivemos, num contexto de taxas de juro, injustificadamente, a subir, é um erro clamoroso impor défices a um setor privado cujo endividamento é tão significativo que se notabiliza à escala mundial. 


Segunda nota. Se estivesse na posição de Medina, se acreditasse que o país não é autonomamente viável e se estivesse indisponível para confrontar o paradigma ordoliberal que reina na UE, estaria a fazer o mesmo que ele. Ou seja, estaria a evitar um segundo golpe do BCE e a evitar também enfiar-me no beco sem saída em que se colocou Varoufakis; estaria, por isso, tal como está a fazer Medina, a acomodar o mais diligentemente possível a plena discricionariedade de Frankfurt que sustenta a exigência de Bruxelas de um rápido ajustamento deflacionário.   


As ruínas do fim da história


As ruínas eleitorais gregas, tal como as romanas, contêm lições para os que querem reerguer uma civilização social-democrata em terras monetariamente bárbaras, assim as queiram aprender. Depois da tragédia do syriza, em 2015, os povos parecem não querer farsas ilusórias, até para não terem mais desilusões inglórias. E daí os resultados de Tsipras e de Varoufakis em 2023. 

Sim, o fim da história é uma profecia que tem bases monetárias nesta zona neoliberal. Fukuyama é mesmo para ser levado muito a sério, também na economia política, ou não tivesse apontado o mercado único (a decisiva moeda única veio a seguir) como paradigma das relações internacionais pós-históricas. Não se pode mesmo ignorar, portanto, o chamado efeito Bruxelas-Frankfurt, até porque é cada vez mais constrangedor.

Os comuns são uma festa

 

segunda-feira, 26 de junho de 2023

Os investimentos que o governo não fez

Na última década o investimento público em percentagem do PIB em Portugal foi sempre inferior ao da média da UE (2,1% contra 3,1%, no conjunto do período). Fazendo as contas, se o rácio tivesse sido idêntico à média europeia, o Estado português teria investido mais 16,7 mil milhões de euros do que de facto aconteceu (um valor equivalente a toda a dotação inicial do PRR). 

Segundo a OCDE, num relatório recente sobre a economia portuguesa, o investimento público que ficou por realizar em Portugal na última década teria contribuído para um crescimento económico mais forte. Maiores investimentos em linhas de metropolitano, na rede ferroviária, na renovação das frotas de autocarros públicos e na eficiência energética dos edifícios teriam reduzido as emissões de CO2, bem como o peso da energia nos custos suportados pelo Estado, pelas empresas e pelas famílias. Maiores investimentos nos serviços públicos de emprego e em programas de requalificação de activos teriam melhorado o ajustamento entre a procura e a oferta de qualificações, com impactos positivos na produtividade. 

Na área da saúde, não faltam à OCDE exemplos de investimentos que poderiam contribuir para reduzir custos, para além de melhorarem o acesso da população aos cuidados médicos: o investimento em cuidados primários e em médicos de família teria permitido atenuar o recurso excessivo às urgências hospitalares (que têm custos médios muito mais elevados); o investimento em prevenção da doença, que apresenta em Portugal um dos valores mais baixos entre os países da OCDE, poderia evitar custos futuros com o sistema de saúde; e o investimento na digitalização dos registos médicos e na articulação da rede de cuidados traria ganhos de eficiência ao sistema. 

Estes exemplos estão longe de esgotar a lista de investimentos que poderiam aumentar a produtividade em Portugal de forma duradoura, mas que ficaram por realizar nos últimos anos para que o governo pudesse mostrar serviço na frente orçamental.

O resto do meu texto pode ser lido no site do Público

Forum do BCE em Sintra: não são bem-vindos a Portugal


Lagarde confirma o seu viés a favor do capital. Ao contrário do que sugere a sua formulação, o preço da energia e os lucros estão a gerar a inflação. Não os salários. 

Levantar poeira e impedir salários de acompanhar a inflação e a produtividade: eis a agenda dita ‘independente’ do BCE.

Não são bem-vindos a Portugal.

Liberalismo e fascismo na grande transformação


Se tivesse de escolher um livro apenas, não hesitaria – A Grande Transformação, publicado em 1944, da autoria de Karl Polanyi. A tardia tradução portuguesa (2012), de Miguel Serras Pereira, é notável. 

No penúltimo capítulo, intitulado “governo popular e economia de mercado”, Polanyi explora a responsabilidade do liberalismo económico na ascensão do fascismo.

Em primeiro lugar, denuncia a hierarquia de prioridades liberal: “Dentro e fora de Inglaterra, de Macaulay a Mises, de Spencer a Sunner, não havia um militante liberal que não manifestasse a convicção de que a democracia popular era um perigo para o capitalismo” (p. 429).

Em segundo lugar, assinala as origens monetárias da impotência de parte do movimento operário e socialista nos anos 1920 e 1930: “Um partido dos trabalhadores estava no governo, mas na condição de não se colocar qualquer embargo às exportações de ouro. O New Deal francês não tinha qualquer probabilidade de ser bem-sucedido, uma vez que o governo se via de mãos atadas sobre a questão decisiva da moeda. O exemplo é concludente, uma vez que em França e na Inglaterra, depois de se impor a inocuidade aos partidos dos trabalhadores, os partidos burgueses acabariam por abandonar sem dificuldades de maior o padrão-ouro” (p. 433).


Em terceiro lugar, identifica os efeitos políticos do liberalismo: “A obstinação com que os partidários da economia liberal durante uma década de crise, apoiaram, ao serviço de políticas deflacionistas, o intervencionismo autoritário teve por único efeito um enfraquecimento decisivo das forças democráticas, que, de outro modo, talvez pudessem ter evitado a catástrofe fascista” (p. 440).

Agora, experimentemos substituir ouro por euro e pode ser que tenhamos pistas para uma história do passado recente, do presente e, quem sabe, do futuro desta zona. A história é certamente feita de novidade, mas também tem momentos de repetição.

domingo, 25 de junho de 2023

O que vale é que o verão ainda pode ser azul


A vida está ideologicamente difícil


Sei que a vida está ideologicamente difícil quando leio o plural majestático em textos de intelectuais públicos de esquerda. Assim se referem a um número variado de fenómenos, na realidade induzidos pela lógica neoliberal, por exemplo, na comunicação social.

O último caso foi o da brutal discrepância de classe entre a cobertura mediática da última tragédia de centenas de refugiados e da tragédia de cinco pessoas. Lá veio o “somos todos” não sei bem o quê, mas sempre qualquer coisa de imoral.

Quem assim procede está a gerar um “nocebo”, ou seja, a convencer quem o lê de que não há esperança, porque somos todos maus e nada confiáveis, não havendo assim lugar para a responsabilização de quem efetivamente tem o poder, ou seja, de quem controla os meios de produção, neste caso de produção do consenso ideológico. 

Não sei se é confortável proceder de tal modo, mas sei que é completamente contraproducente do ponto de vista ético-político.

sábado, 24 de junho de 2023

Para acabar com a pobreza energética todo o ano


Com a aceleração das alterações climáticas, confirma-se que a pobreza energética não se reduz ao frio do inverno, mas também se manifesta no calor do verão.

E não se trata tanto de responsabilizar as pessoas pela proteção individual em relação ao calor, como se diz no Público, mas sobretudo de reconhecer que o investimento público em reabilitação e renovação energética dos edifícios é cada vez mais necessário para enfrentar as situações de vulnerabilidade.

De facto, não se trata tanto de “narrativas”, mas sobretudo de enfrentar a emergência climática objetiva, assegurando uma transição justa, nomeadamente através da socialização do investimento.

Economia da atenção

(irmaolucia redux, «state of the art: a economia da atenção»)

sexta-feira, 23 de junho de 2023

Querido Diário - Depois não digam que não foram avisados...

Público, 22/6/2013

Há dez anos, o poderoso analista Luís Afonso mostrava o que os portugueses sentiam: que tinham já sofrido um rombo nos seus rendimentos. Mas poderia ter sido hoje, não é?

Recorde-se que a política então seguida (pelo Governo Passos/Portas) visou cortar nos rendimentos salariais e pensões como forma de ajustar aquilo que consideravam ser a fonte dos nossos males: o desequilíbrio das contas externas e da competitividade nacional. A culpa era dos "custos" salariais que nos estavam a fazer "viver acima das nossas possibilidades" (uma expressão muito FMI). 

Ninguém avisou os portugueses de que a política ia ser essa. Mas bastava ouvir Passos Coelho, Paulo Portas ou Vítor Gaspar para a perceber. E se não a anteciparam, acabaram por senti-la. Cortou-se nos rendimentos, o que levou a uma contracção no consumo privado, a qual se repercutiu no corte de rendimento das empresas, as quais cortaram no investimento e no emprego. E entrou-se numa espiral recessiva que só foi invertida quando se atenuou e inverteu esta política neoliberal. 

Os novos neoliberais (da extrema-direita da IL e do Chega, e do PSD) agora defendem - não o corte de rendimentos nominais, como defenderam há dez anos - mas o corte na tributação, colocando o Estado a subsidiar indirectamente as empresas. Assim, numa conjuntura inflacionista, o Estado ajuda as empresas a não terem de subir tanto os salários, ao mesmo tempo que forçam a redução da despesa pública, abrindo "mercado" ao sector privado…   

Os efeitos dessa política - de décadas perdidas! - é sintetizada neste gráfico: 

Fonte: INE, Contas Nacionais, dados em volume


Qual é a política actual?

Tal John, tal James


Em momentos de perturbação e de disrupção, o aumento das margens protege contra a incerteza nos custos, gerando-se um contexto em que as empresas procuram obter o que conseguem, enquanto conseguem. Daí resulta uma dinâmica de aumentos de preços e custos, e de novo aumento de preços, ficando os salários sempre para trás. 

James Kenneth Galbraith sobre inflação e controlos de preços. 

James Kenneth Galbraith é filho de John Kenneth Galbraith (1908-2006) e continua na grande tradição institucionalista-keynesiana do pai, com enfoque na análise das desigualdades e, mais recentemente, na teoria monetária moderna. Foi, com Stephanie Kelton, o primeiro a defender as propostas de controlo de preços, feitas por Isabella Weber, contra os ataques ignorantes e preconceituosos de que foi alvo. 

Em 2008, publicou o livro The Predator State sobre a economia política e a política económica norte-americanas. É, na minha opinião, o seu melhor trabalho. Aí argumenta que o projeto republicano desde Reagan sempre passou pelo uso do Estado para favorecer uma redistribuição de recursos de baixo para cima, usando essa “instituição vaporosa” chamada mercado, ditos livre, como alibi. É assim que se faz no neoliberalismo realmente existente.

Desta forma, e só para dar um exemplo, os significativos cortes nas taxas de imposto dos mais ricos, realizados por Reagan, combinados com aumentos brutais da despesa pública a favor do capitalismo de guerra e securitário, geraram défices orçamentais recorde nos EUA. Estes, por sua vez, geraram um estímulo, que contribuiu decisivamente para a expansão económica. A crise do início dos anos oitenta, de resto causada pelas subidas das taxas de juro decididas por Volcker (nomeado por Carter), foi assim superada – “foi uma forma de keynesianismo conservador, que dissolveu o obstáculo histórico ao keynesianismo: a oposição truculenta dos mais ricos”. 

Não há melhor do que isto na economia política e na política económica, sabiamente combinadas.

quinta-feira, 22 de junho de 2023

Ranking de escolas: os contextos contam


Foram há dias divulgados, uma vez mais, os rankings de escolas. Sem surpresa, as parangonas repetiram-se pela enésima vez: «38 colégios privados no topo da tabela antes da 1.ª escola pública», diz a CNN; «Só cinco escolas públicas entre primeiros 50 lugares do ranking de escolas», assinala a RTP; «No top 50, há três escolas públicas», sentencia o Observador, entre outras. E, também pela enésima vez, constata-se que a imprensa continua a aceitar publicar as classificações dos privados sem que estes partilhem qualquer informação de contexto, nomeadamente sobre o perfil socioeconómico dos seus alunos, indispensável para interpretar de forma séria os resultados.

Ou seja, continuamos a dispor apenas desta informação essencial para o universo das escolas públicas, a qual permite ultrapassar, neste universo, a seriação cega das escolas que resulta exclusivamente da ordenação das classificações, como se todos os alunos tivessem as mesmas condições de partida, em termos de enquadramento familiar e estatuto socioeconómico (ou como se essas condições pudessem ser olimpicamente ignoradas na avaliação dos resultados e do desempenho dos alunos e das próprias escolas).

O «ranking de superação», trabalhado pelo Público, constitui uma das formas de integrar os perfis dos alunos na calibração dos resultados, reordenando as escolas «das que mais se superam para as que mais ficam aquém do valor que seria esperado tendo em conta o seu contexto socioeconómico». Isto é, considerando o peso relativo dos alunos com «apoio no âmbito da Acção Social Escolar (ASE)», a «habilitação média dos pais» e a «idade média dos alunos» face ao ano que frequentam, como sendo «as variáveis que mais “explicam” as médias dos exames».

Assim, quando se ordenam as escolas públicas a partir da ponderação que resulta do reconhecimento dos contextos («ranking de superação»), a desarrumação da seriação ditada pela mera consideração das classificações dos exames («ranking dos exames»), é, digamos, brutal. De facto, como mostra o gráfico lá em cima, apenas 1% das escolas (5 em 455) mantém o seu número de ordem (situando-se em 7% as escolas que mantém a sua posição e sobem ou descem o seu número de ordem até 3 posições). Já as escolas que alteram a sua posição no ranking de exames em mais de 25 lugares (descendo ou subindo) representam cerca de 60% do total.

Quem acha que os contextos são irrelevantes para calibrar as médias dos exames - e interpretar adequadamente os pobres rankings a que temos acesso (onde um exercício como o do Público não é sequer possível para o universo das escolas privadas), talvez devesse prestar alguma atenção a estes dados.

quarta-feira, 21 de junho de 2023

Da riqueza dos povos


Quem não puder participar presencialmente na conferência de René Ramírez Gallegos, economista político e antigo Ministro de Rafael Correa (esta quinta-feira, às 15h, na FEUC), poderá assistir remotamente por zoom.

terça-feira, 20 de junho de 2023

Plena discricionariedade ou do simulacro de democracia em que vivemos

Com respaldo e de acordo com o estatuído no n.º 3 do artigo 284.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, que cria a obrigação legal de o Banco Central Europeu (BCE) prestar contas ao Parlamento Europeu, Christine Lagarde veio há poucos dias anunciar que aquelas duas instituições estão a formalizar um “arranjo”.

O chamado Tratado de Maastricht entrou em vigor em 1992. Mais de 30 anos decorreram entre a decisão de criação da moeda única e esta formalização de um “arranjo” para a prestação de contas do banco central da zona euro. 

Uma circunstância que, por si só, me parece dispensar comentários.

Mas permito-me, contudo, dos tantos que me ocorrem, fazer um único, com um par de nuances, acerca do que se me afigura como fundamental: só uma instituição com plena discricionariedade estatutária se poderia dar ao luxo de tamanha e tão continuada informalidade.

O viés monetarista e neoliberal inscrito no mandato do BCE, deliberadamente omisso no que à obrigação de uma política monetária que assegure o máximo de emprego diz respeito (e que se restringe exclusivamente à obrigação de procurar estabilidade nos preços), não é a única, nem sequer a mais importante, das características que tornam esta instituição singular no tempo e no espaço.


É aquela ‘plena discricionariedade’, de que goza o BCE, que confere um carácter único a esta instituição. 

Na prática, nenhum outro banco central no mundo se encontra hierarquicamente acima do Estado do qual a sua legitimidade e poder decorrem. Não o Japão. Nos Estados Unidos da América, para outro exemplo, a Reserva Federal é estatutariamente independente, mas responde, sem qualquer margem de dúvida, ao poder político eleito. 

Recorde-se aliás, a este propósito, a muito ilustrativa afirmação do seu anterior governador, Ben Bernanke: “é claro que faremos tudo o que o Congresso nos diga para fazer”.
  
   

Em termos lógicos – termos a que não escapa a ação política –, julgo que pode dizer-se que, se numa constelação de instituições, uma delas goza de plena discricionariedade, no limite, em caso de descordo, todas as outras podem ser remetidas a um estatuto de nenhuma discricionariedade.

Na zona Euro estamos nisto. Os eleitores podem escolher quem quiserem, com o programa que for, para governar o seu Estado. Mas, no fim, quem prevalece é o BCE. E desobedecer-lhe, ou a intenção mais ou menos convicta e anunciada de o fazer, significa – como significou na Grécia de 2015 – ficar sem prestamista de primeiro recurso. 

Ou seja, significa perder o acesso às reservas que são criadas a partir do nada pelo BCE em regime de monopólio delegado pelos Estados membros da zona euro e sem as quais o sistema financeiro, pura e simplesmente, não funciona. 

Na minha perspectiva, é isto, sobretudo, primeiramente, que está a degradar de forma acelerada as democracias europeias. Os governos são eleitos para governar, mas só o podem fazer nos limites impostos pela necessidade de não contrariar a política dos tecnocratas não eleitos, e pretensamente independentes e neutrais, que dirigem o BCE. 

Um BCE que reconhece que foram os lucros – e não a remuneração do trabalho – que sustentaram a subida dos preços (mas que, ainda assim, combate ativamente uma subida de salários que acompanhe a inflação e a produtividade) é a primeira explicação para a maior descida do peso dos salários no PIB de todo o século. Não tanto, por isso, a má vontade, ou falta de ousadia, de um governo que até poderia beneficiar eleitoralmente se tivesse promovido uma redistribuição de rendimento de orientação contrária. 

Portanto, a meu ver, se, neste capítulo, o governo deve ser acusado de alguma coisa, essa coisa é, primeiramente, obediência.

E o mesmo, ou semelhante, se pode dizer para a impossibilidade, de facto, de decidir por uma TAP pública ou por um SNS, de facto, universal.

Trata-se de um quadro quase colonial. Graças às nossas elites, o Estado português deixou de merecer a designação de Estado porque, acima de si, está uma instituição que, em última análise, decide sobre a alocação de recursos no nosso país, independentemente da vontade dos eleitores portugueses

Com sede em Frankfurt, o que temos, pois, especialmente na periferia da zona euro, é um distópico arranjo político-institucional em que os governos são directa e indirectamente constrangidos e tutelados, cumprindo, se necessário for, programas contrários aos que foram sufragados em eleições, num elaborado e autêntico simulacro de democracia.

Até quando?

Nexos liberais


Hoje ficámos a saber, através do Jornal de Notícias, que “Tribunal anula demissão de funcionária que comeu croissant” e que “Hipermercado também despediu mulher por receber selos de cliente”.

No entanto, como assinalou Vítor S., “os jornais sempre tão despachados a dar nomes a tudo, não sabem qual é o supermercado que dá selos e despede pessoas porque comem um croissant fora do prazo?”. 

No fundo, o que rende é herdar o continente e certa comunicação social tem muito respeitinho pelos pequenos grandes ditadores desta forma por escrutinar. É uma questão de publicidade e uma questão ideológica também. 

Afinal de contas, sabemos, desde pelo menos John Stuart Mill, que os liberais correm um grande risco: sempre que se atrevem a passar para lá da porta onde diz “proibida a entrada a pessoas estranhas ao serviço” e a olhar para o que lá se passa, tornam-se socialistas com elevada probabilidade. 

E daí o investimento ideológico ofuscador de tantos liberais até dizer chega para reduzir a empresa capitalista a um nexo horizontal de contratos voluntários.

Aprender sempre

René Ramírez Gallegos é Economista, Doutor em “Sociologia: Relações de Trabalho, Desigualdades Sociais e Sindicalismo” pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Centro de Estudos Sociais. É igualmente Mestre em “Desenvolvimento Económico” pelo Institute of Social Studies, Eramus University of Rotterdam, e Mestre em “Governo e Políticas Públicas” pela FLACSO-México. Foi Ministro de Planeamento e Desenvolvimento (2008-2011) e Ministro do Ensino Superior, Ciência, Tecnologia e Inovação (2011-2017) do Governo do Equador. Atualmente, é Investigador do “Programa Universitario de Estudios sobre Democracia, Justicia y Sociedad” (PUEDJS) da Universidade Nacional Autónoma do México (UNAM) e Docente da Universidade de Buenos Aires (UBA). 

Uma conferência a não perder. A entrada é livre.


segunda-feira, 19 de junho de 2023

Cruzeiros tóxicos


No Público pode ler-se: “Portugal voltou a ser o sexto país europeu com níveis mais elevados de óxidos de enxofre emitidos por navios de cruzeiro.”

Sabemos há muito que os mais ricos poluem muito mais do que os mais pobres. Também sabemos que o modelo de turismo como monocultura de exportação tem custos sociais elevados, que vão para lá dos baixos salários, da baixa produtividade e da precariedade laboral, como se pode ver pelo recente estudo da Zero.

E, sim, “ambientalismo sem luta de classes é jardinagem”.

Querido diário - Efeitos sem causa aparente? 1

Público, 19/6/2013

Há dez anos, o governo de direita PSD/CDS dava sinais de agitar-se. 

O programa de austeridade, defendido então como programa político da coligação, tinha produzido os efeitos esperados, embora não anunciados à população, antes ou depois das eleições legislativas de 2011. 

A preocupação de levar a cabo uma desvalorização salarial - tida como única forma de aumentar a competitividade externa do país no contexto da moeda única - orientou a política económica para uma contenção da procura interna (consumo e investimento). Esse objectivo foi ainda acentuada pela austeridade orçamental, asfixiando a despesa e o investimento público a níveis então nunca vistos. Esta política gerou uma explosão do desemprego e, consequentemente, uma explosão de pobres e de emigrantes, muitos deles qualificados. Já os ricos - como explicava o Bartoon - pouco sentiram a “crise”. 

A degradação da situação social do país abalou os parceiros da coligação e levou o então presidente da República Cavaco Silva a pronunciar-se: "Não podemos resignar-nos", disse quase apelando à rebelião. Miguel Poiares Maduro, recém entrado no XIX governo, saiu a terreiro para negar qualquer desunião na coligação:

Público, 19/6/2013

Acrescente-se que, como ficou provado por estudos posteriores, este empobrecimento salarial enquistou-se na nossa economia. Porquê? Porque o programa de desvalorização acentuou a deriva na actividade produtiva - que já se vinha verificando desde o início do século XXI, coincidindo com a criação do euro - para sectores de baixa produtividade, necessariamente de baixos salários. E isso explica a persistência dos baixos salários, tido presentemente - mesma pela direita, pasme-se! - como uma praga a debelar.

Curiosamente, quase dez anos depois, o mesmo Miguel Poiares Maduro - que, como se viu, integrou o XIX Governo cujo programa económico provocou essa desvalorização - surge muito preocupado com esta "nova" realidade. O Fórum Futuro da Fundação Calouste Gulbenkian, a cuja Comissão Científica Poiares Maduro pertence, convidou em 2021 alguns centros de investigação para a produção de estudos sobre o que se estava a verificar com o salário médio em Portugal. 

Por estranho que possa parecer, apenas o Centro de Estudos Sociais (CES) - com o seu trabalho Especialização produtiva e salários: propostas para qualificar Portugal - identificou como a mais funda causa o afunilamento da especialização produtiva, fruto das políticas de austeridade seguidas e patrocinadas pelo hegemónico neoliberalismo europeu. Causa essa, aliás, que ainda produz efeitos para a desvalorização salarial, mas cujos efeitos a direita (e até a direita do PS) evita debater ou pôr em causa. E percebe-se porquê: até o Bartoon sabe identificar que os mais ricos lucram com a desigualdade na distribuição de rendimento. 

Pode haver efeitos sem causa? Se não, qual é então, para a direita, o mistério” dos baixos salários em Portugal? A direita nunca o diz...

domingo, 18 de junho de 2023

Travar, superar

Onde estão hoje os liberais que, tal como Keynes ou Beveridge, do final dos anos 1920 aos anos 1940, e perante o fascismo, compreenderam que as liberdades públicas só se salvam e aprofundam se se abandonar o liberalismo económico em todas as escalas, promovendo o pleno emprego, a provisão pública de bens e serviços fundamentais e a redução substancial da desigualdade e da insegurança sociais? Em Portugal, tais liberais não existem. Só temos mesmo direito a liberais até dizer chega. Face às iniciativas liberais de tantos partidos, é necessário organizar a mais ampla frente, tão antifascista quanto antiliberal. Em 1943, um notável economista político polaco chamado Michal Kalecki, cruzando Marx e Keynes, concluía de forma luminosa num tempo sombrio: «a luta das forças progressistas pelo emprego é, ao mesmo tempo, um meio de impedir o retorno do fascismo». Há coisas que não mudam. 

Assim termina o artigo – Liberais até dizer chega – no Le monde diplomatique – edição portuguesa. Não exploro as razões para este padrão de intensificação das pressões ideológicas para a liberalização económica, tema para próximo artigo, possivelmente. 

Estou convencido que a perda de instrumentos de política económica na escala onde está a democracia, a nacional, determinada pelos termos da integração europeia aceites por elites compradoras, explica uma parte muito importante da permanente viragem para a direita. Daí que a recuperação da soberania, de margem de manobra nacional, seja a ideia mais radical de que dispomos, no campo da política económica, para travar a marcha do comboio rumo ao abismo, para superar uma forma de economia política neoliberal já com mais de três décadas.

sábado, 17 de junho de 2023

Iniciativas liberais: uma história de violência social


Fiquei a saber que os republicanos norte-americanos declararam ser sua prioridade, para 2024, banir as refeições escolares gratuitas universais, perante o aumento do número de estados que as asseguram. Lembrei-me que Margaret Thatcher, quando teve responsabilidades na pasta da educação, em 1971, decidiu banir o leite escolar gratuito nas escolas britânicas. Estávamos no início das iniciativas liberais até dizer chega, num momento de bifurcação. O aumento da pobreza infantil viria nos terríveis anos 1980 do Thatcherismo. É preciso travar os seus discípulos, é sempre preciso travar a violência social do fundamentalismo de mercado.    
  

sexta-feira, 16 de junho de 2023

quinta-feira, 15 de junho de 2023

Berlusconomia: porque é que a direita não quer falar de Itália?

 

Desde o falecimento de Silvio Berlusconi, ex-primeiro-ministro de Itália, o legado da sua governação tem sido alvo de debate. Além das ligações ao crime organizado, do registo misógino e racista e da normalização da extrema-direita, sobre os quais o Daniel Oliveira já escreveu aqui, vale a pena olhar para as suas reformas económicas. No programa Tudo é Economia, da RTP 3, Ricardo Arroja desvalorizou a experiência italiana, dizendo que “não vejo que possa ser feito de Itália um caso de estudo e muito menos que se possam retirar ilações da política que foi seguida”. Mas a verdade é que a economia italiana é um excelente caso de estudo para discussões sobre política económica.

Berlusconi concorreu pela primeira vez às eleições em 1993, num período especialmente conturbado da vida política italiana. Nos seus discursos, prometia colocar Itália a crescer e o programa era o que hoje conhecemos bem: reduzir o peso do Estado, privatizar a maioria das empresas públicas, liberalizar o mercado de trabalho e, claro, baixar os impostos a toda a gente. É certo que esteve pouco tempo no primeiro governo, mas a política italiana não seria a mesma depois disso. Voltou a ser primeiro-ministro mais duas vezes – entre 2001 e 2006 e entre 2008 e 2011 – e o sucesso eleitoral fez com que o essencial do programa liberalizador da direita fosse assimilado também pelo centro-esquerda.

Entre 1994 e 2011, a Itália levou a cabo um dos maiores programas de privatizações de toda a OCDE, vendendo participações públicas em mais de 75 grandes empresas, desde as telecomunicações às autoestradas e ao setor dos transportes, passando pelo sistema bancário, onde a participação do Estado passou de 70% para apenas 10%. A taxa de imposto sobre as empresas foi sucessivamente reduzida desde esse período, sendo hoje cerca de metade da que era aplicada nos anos 90, e o governo de Berlusconi aprovou generosos perdões fiscais para as grandes empresas. As “reformas estruturais” também se estenderam ao mercado de trabalho, que foi alvo de várias vagas de liberalização para reduzir a proteção laboral e facilitar a contratação temporária (o peso do emprego temporário duplicou entre 1990 e 2019 e, entre os jovens dos 15 aos 29 anos, atinge quase os 50%).

Além disso, o país levou a cabo um enorme esforço de consolidação orçamental e restrição da despesa do Estado. Ao contrário dos estereótipos sobre o país “despesista” e “indisciplinado”, a verdade é que a Itália foi a campeã das contas certas no processo de integração europeia: foi o único país da UE que registou sucessivos excedentes orçamentais primários, tanto antes da crise financeira (saldos de 3%, em média, entre 1995 e 2008) como até à pandemia (em média, 1,3% entre 2009 e 2019).

Apesar de seguir as recomendações das principais instituições internacionais, os resultados foram desastrosos: a Itália foi dos países europeus que menos cresceram desde a adesão ao Euro, os salários reais estagnaram e a dívida pública continua a ser uma das mais elevadas da Europa. Pelo meio, a Itália foi um dos países europeus que mais perdeu produção industrial. Décadas de austeridade sufocaram o consumo interno e o investimento, restringiram o desenvolvimento da estrutura produtiva do país e não geraram o crescimento prometido.

Seria tentador culpar inteiramente os governos italianos pela estagnação crónica do país. Mas a verdade é que, como notou o economista Servaas Storm, a Itália viveu um período de convergência com países como a França ou a Alemanha entre a década de 1960 e a introdução do Tratado de Maastricht, em 1992. As causas da estagnação após esse período são mais complexas: incluem o processo de adesão ao Euro, a perda de instrumentos de política monetária, a liberalização dos fluxos de capitais e a integração no mercado único sem uma estrutura produtiva suficientemente robusta, o que deixou o país exposto a choques como a entrada da China na OMC ou dos países de Leste na União Europeia, que competiam com as suas exportações e praticavam preços muito mais baixos.

Tudo isto é muito semelhante ao que se passou em Portugal. E é por isso que vale a pena aprender com a experiência italiana: a estratégia liberal de privatizações, desregulação laboral e redução de impostos falhou redondamente e não promoveu o crescimento nem a prosperidade para a maioria das pessoas no país, precisamente porque não atua sobre nenhum dos problemas estruturais que a economia italiana (e as restantes do Sul da Europa) enfrentam. A única coisa que oferece é uma corrida para o fundo – nos impostos, no financiamento dos serviços públicos e nos “custos do trabalho” – que, em vez de trazer prosperidade, agrava as desigualdades. A experiência italiana é útil para avaliar um outro caso de estudo: o dos que hoje, em Itália, Portugal e não só, apresentam como soluções novas as medidas que foram sistematicamente implementadas – e que falharam – nos últimos trinta anos.

Duas contradições de uma sintonia


A audição de Hugo Mendes na comissão parlamentar de inquérito à gestão da TAP parece revelar duas contradições.

A primeira, a de uma equipa política socialista que, mesmo não defendendo um ideário neoliberal (contra a intervenção do Estado e mesmo contra a existência de empresas públicas), acaba por ter práticas governamentais correspondentes a um enquadramento europeu, erguido para desarticular o controlo público e que, esse sim, é marcadamente neoliberal.

Isso ficou patente nas palavras de Hugo Mendes ao justificar a ausência de intervenção da tutela da TAP no caso tratado na CPI: 1) ao não contrariar a vontade da CEO da TAP de afastar a sua vogal (por se considerar que "um líder de equipa" tem o direito de escolher a "sua equipa" e por recear que, mais tarde, os maus resultados da TAP pudessem ser apontados à intervenção do Governo); 2) ao não interferir na negociação da indemnização entre a vogal e a companhia e a CEO (porque se tratava de um assunto da companhia e não do accionista); 3) ao não estranhar e não aferir da razoabilidade política do montante da indemnização porque a TAP é uma empresa a operar num dos sectores mais exigentes e mais bem remunerados (e como tal a indemnização também o seria); 4) ao não aferir da razoabilidade legal de uma indemnização (porque tudo ficara entregue a escritórios de advogados que deveriam ter respeitado o seu estatuto de advogados); 5) ao não aferir a compatibilidade legal entre a situação existente e o comunicado divulgado à CMVM (porque se tratava da responsabilidade da companhia e dos seus gestores); 6) ao não aferir da legalidade da indemnização à luz do estatuto do gestor público (porque essa tarefa deveria ter sido analisada e acautelada pelos tais escritórios de advogados). 

Mas por outro lado, a extrema-direita, a direita - e os seus comentadores televisivos - resvalam para o inverso desta contradição: 1) condenam a situação criada, mas não questionam o direito de a CEO poder afastar a sua vogal (no fundo, concordando com a justificação de Hugo Mendes); 2) condenam a ausência de intervenção pública nesta situação, mas condenam em geral qualquer "ingerência política" do Governo na companhia; 3) condenam a negociação liberalizada entre membros da administração (sem o accionista), mas não condenam a intervenção dos escritórios de advogados em regime de outsourcing nos assuntos do Estado e do sector público; 4) criticam os pareceres jurídicos desses escritórios de advogados, mas sempre normalizaram o esvaziamento das estruturas públicas nomeadamente dos seus serviços  jurídicos; 5) contestam o escandaloso valor da indemnização, mas apenas contestam a sua existência pelo facto de a vogal, após a sua saída da TAP, ter ocupado o lugar de gestor público ou secretária de Estado: nada disseram sobre a revelação de Hugo Mendes de que, de 2019 a 2023 - mesmo depois do caso Alexandra Reis - terem saído da TAP mais 13 pessoas que levaram 8 milhões de euros de indemnização (mais de 600 mil por cabeça), casos reveladores das práticas de elevada desigualdade salarial, "própria" deste tipo de empresas e sectores. 

Seguindo a mesma bitola, os comentadores relevam as mesmas contradições: "Há uma contradição quando se diz 'quem manda somos nós' e depois há esta desresponsabilização" (Pedro Santos Guerreiro, CNN). O ex-secretário de Estado revelou "a sua inutilidade", "era um homem que não servia para nada; a sua actuação foi de laisser-faire, laissz passer" (Sebastião Bugalho na CNN). Essa "inutilidade" teria ficado patente na ilegalidade na comunicação à CMVM que o Governo deixou passar sem intervenção, tornando-se cúmplice da mentira junto do regulador do mercado (Rui Alves Veloso, RTP). "Os advogados fazem o que os clientes querem" (Miguel Pinheiro, Observador na CNN, insinuando que a culpa foi da TAP e do Governo). "Este secretário de Estado entendeu que 500 mil euros não era muito dinheiro" (Pedro Santos Guerreiro na CNN). "Se há uma tutela partilhada, não pode haver um pagamento de meio milhão e a tutela financeira [Ministério das Finanças] não saber" (Rui Alves Veloso RTP).

Mas no final, a contradição maior é outra: apesar das aparentes diferenças, o partido que apoia o Governo e os partidos de direita e extrema-direita - e os comentadores televisivos - não querem (ou não podem querer) que o Estado tenha um verdadeiro papel político na gestão da TAP. 

   

quarta-feira, 14 de junho de 2023

Não se pode deixar

Deputado Paulo Moniz na CPI

Há uma certa espécie de tom McCartista na forma como a direita e a extrema-direita interrogam na comissão parlamentar de inquérito (CPI) à gestão da TAP.

Por duas vezes, o presidente da CPI, o ex-secretário de Estado da Saúde do Governo PS António Sales, chamou hoje a atenção do ex-secretário de Estado do Governo PS Hugo Mendes para que mantivesse a "urbanidade" nas referências à CPI. Na sua intervenção inicial, Hugo Mendes criticou a forma como - na sua opinião - deputados da CPI tinham manipulado, truncado, adulterado a informação, para insinuar o que não se passara na realidade. Mas o mesmo presidente da CPI nada fez quando o deputado Paulo Moniz do PSD - parecendo querer ultrapassar a extrema-direita - se lembrou de fazer perguntas que cairiam bem em qualquer sessão da comissão de investigação de actividades anti-americanas, do Senado dos Estados Unidos, nos anos 50.

"Quando foi a última vez que falou com o dr. Pedro Nuno Santos e se porventura foi ontem?", foi a primeira pergunta de Paulo Moniz, colocando a voz em ar de farsa policial requentada (aconselha-se o visionamento da sessão, 3h56m). "Falou hoje com Pedro Nuno Santos?". Ou ainda com maior desplante: "Essa mensagem que recebeu agora no telemóvel era do dr. Pedro Nuno Santos?". E, claro está, achou ainda por bem imitar o chefe da extrema-direita nas sessões com Frederico Pinheiro e João Galamba, ao requerer que a CPI fosse buscar o telemóvel (partido) que Hugo Mendes disse já ter entregue a quem de direito.

Chegou a um ponto - sem que o presidente da CPI se revelasse - que Hugo Mendes, depois de responder a diversas perguntas do mesmo género, se virou para aquele deputado e perguntou-lhe algo como:

- Mas eu estou proibido de falar com o dr. Pedro Nuno Santos?

- Está - pareceu ouvir-se ao deputado (não foi nítido).

- Estou? - retorquiu Hugo Mendes visivelmente zangado - Em que texto legal é que isso vem?

Aí o presidente interveio, para salvar a sessão que ameaçava descarrilar. Mas Hugo Mendes tem razão: a CPI não é um tribunal inquisitorial, ainda que a direita e a extrema-direita queiram, de facto, aproveitá-la para queimar umas bruxas na praça pública. Nota-se um à-vontade, uma perda de vergonha, uma certa arrogância despudorada que raia à intimidação. E que tanto mais cresce quanto menos se lhe faça frente. E não se pode deixar.

Pijamas


O Estado foi responsável por algumas das maiores inovações tecnológicas portuguesas. O longo processo de privatizações interrompeu um ciclo de modernização promissor.
 

Assim começa mais uma pertinente análise da República dos Pijamas: as iniciativas liberais bloqueiam o desenvolvimento. O título é inspirado, creio, num aparte de José da Silva Lopes, contado pelo menos por Paul Krugman – “Portugal não é uma república das bananas, é uma república dos pijamas”, aludindo ao peso do têxtil nas nossas exportações nos anos 1970. Não deixem de subscrever no substack.