"Em horas de grande esperança e perplexidade, quando se pensava estar próxima a revolução libertadora e triunfante, era frequente falar-se da constituição de um gabinete-sombra. O Artur Santos Silva [resistente antifascista, membro da Acção Socialista e depois um dos fundadores do PPD], cuspinhando tudo e todos, vociferando perante a indecisão ou timidez de alguns: ‘Pois eu não tenho medo de ser ministro do Comércio, da Saúde, dos Cultos, da Marinha, das Pescas, dos Transportes, da Aviação, seja do que for. Eu, o que tenho de saber é ser político, discernir, fixar linhas de rumo, escolher prioridades. Os técnicos, esses, alugo-os ou compro-os. Não faltam por esse mundo fora técnicos dos melhores, que se vendem ou alugam por empreitada ou à tarefa... A dificuldade está na escolha de entre os que respondem ao anúncio...!’ ” (António Macedo, Na outra margem de Abril – Pequenas histórias de grandes homens, Editorial O Jornal, Dezembro 1988, pag.57)
Esta dicotomia entre a política e a técnica tem longas histórias.
Mário Soares tinha uma expressão algo como isto: “Os técnicos são precisos para justificar a decisão política”. Acho que era “a minha decisão política”, mas isso é outro assunto. Noutra altura mais recuada no tempo, disse: "A verdade é que os políticos não podem deixar de ser profissionais, se o
são a sério. Os amadores custam, demasiado caro aos povos que os
sofrem" (Entrevista ao Diário de Notícias, 24/4/1984). Ou ainda mais recuada no tempo: "Para nós, o essencial é que o poder económico esteja submetido ao poder político e não o contrário" (Entrevista ao Portugal Hoje, 3/7/1980).
Claro que nem Mário Soares, com o seu panache, conseguiu manter esta garra. Para quem escrevera, em 1975, "não queremos que o socialismo seja uma utopia para os nossos netos: queremos melhorar aqui e agora a vida das classes trabalhadoras" (República, 15/2/1975), Soares acabou, poucos anos depois, a justificar “técnicamente” a sua decisão de virar a agulha ao rumo político, ao aceitar a agenda política do “técnico” FMI, mesmo que alegasse que isso não representava meter o socialismo na gaveta. Mas fazia-o, mesmo assim, com a ideia política de depositar Portugal à guarda dos políticos dos grandes países europeus, guardados militarmente pela NATO norte-americana - e sabe-se que a guerra é a política por outra forma ("técnica") - para evitar que o poder (político) caísse na rua.
Depois disso, tivemos o primado da “técnica” sobre o poder político. Uma geração de políticos que se diziam ser apenas “técnicos” (governos Cavaco Silva) realizaram, na realidade, uma revolução política de gabinete ao guinar o país para a via neoliberal de transferência do poder político de intervenção do Estado para a esfera política dos poucos que dominam os mercados, supostamente regulados por entidades “técnicas”, “independentes”, embora dirigidas por quadros “técnicos” politicamente alinhados à direita.
Agora, temos uma versão light deste poder político descentralizado em que os membros do Governo aceitam como seus os contributos “técnicos” das corporações. As confederações patronais campeiam na legislação laboral, apenas beliscados em alguns pormenores “técnicos”. O sector imobiliário-financeiro vive momentos “técnicos” de ouro, ao ter lhe sido entregue a definição da política de Habitação nacional. O sector financeiro vive da “técnica” de roubar os depósitos dos seus clientes (através das comissões e o diferencial das taxas de juros cobradas nos empréstimos e pagas nos depósitos). Quando o Estado põe em causa “tecnicamente” esta situação (aumentando a taxa de remuneração dos títulos de dívida pública), o sector financeiro reage e o Estado muda a sua política, agachando-se (e à sua taxa de juro) e deixando-se penetrar pelo poderoso poder “técnico” da Associação Portuguesa de Bancos. Os responsáveis do banco privado CTT - banco que tem o monopólio (sic!) da subscrição dos títulos de dívida pública (nem a própria CGD pública o pode fazer...) - tiveram a distinta lata de, através do seu “técnico” chaiman (que veio da "melhor" banca internacional, como Lehmon Brothers e Goldman Sachs, e que passou pelo organismo gestor da Dívida Pública no Governo Passos Coelho/Paulo Portas) de vir para a praça pública protestar contra esse desaforo político (ver aqui e aqui).
A propósito deste combate que hoje parece desigual entre a “técnica” política das corporações e a política "técnica" do Governo, veremos o que vai acontecer à chamada “comissão para a sustentabilidade da Segurança Social", na qual o sector financeiro deposita enormes expectativas para deitar mão a parte das contribuições para a Segurança Social.
Para já, o sinal é mau: o Governo “político” delegou numa comissão “técnica” para que esta lhe diga o que pode - e deve - fazer. Resta saber que agenda política defende cada um dos seus membros “técnicos”. Mas isso não se sabe bem.
Os trabalhos da comissão decorrem à porta fechada. Não há representantes dos trabalhadores, que são na verdade para quem a Segurança Social existe. É como se dissessem: “Esses não são bons técnicos: são políticos”.... Um relatório intercalar já foi entregue em Março passado, mas não é público. E é suposto a comissão entregar o trabalho final neste mês de Junho, sem que nada transpire para onde se inclina a dita comissão "técnica".
Mas fica aquela ansiedade: se o Governo “político” cedeu nos Certificados do Tesouro tão facilmente à reivindicação “técnica” da banca, o que não fará uma comissão “técnica” e um ministério sem qualquer pensamento “político” ou “técnico”, face às pressões - mais pesadas já que são tão antigas (ver caderno nº17) - sobre a partilha “técnica” das contribuições sociais para a Segurança Social?
1 comentário:
Com todo o meu respeito, sou grata pela lucidez. Bem haja!
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