quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Invenções

Li há pouco, estupefacto, a seguinte passagem do documento de estratégia orçamental 2011-2015: “A opção por proteger alguns sectores da entrada de novos operadores e de condicionar a aquisição e o controlo de empresas por capital estrangeiro traduziu-se na falta de concorrência e em baixos níveis de investimento e de inovação. Em termos de afetação de recursos, esta abordagem favoreceu a acumulação de capital no sector dos bens e serviços não transacionáveis (como a construção e o comércio a retalho).” O Ministério das Finanças quer oficializar uma visão da história económica compatível com os preconceitos ideológicos de quem por lá anda a aproveitar a crise para aplicar a doutrina do choque, o capitalismo de pilhagem com escala internacional. Nessa visão da história, a dinâmica económica não foi afectada pela política de convergência nominal da década de noventa, rumo ao euro, e pela correspondente apreciação cambial, que se perpetuou com o euro forte; não houve uma inserção internacional apressada e mal conduzida, com o aumento das pressões concorrenciais externas (especialmente na sequência da adesão da China à OMC e do alargamento da UE a Leste); as privatizações maciças e míopes não reconstituíram grupos económicos rentistas, um capitalismo de auto-estrada, de finança e de outros sectores com inevitável poder de mercado; não se criou uma economia do imobiliário muito bem oleada financeiramente, ou seja, a liberalização financeira não aprofundou todos os desequilíbrios; o Estado não perdeu quase todos os instrumentos relevantes de política. Não, a expansão de actividades produtoras privadas de bens ditos não-transaccionáveis, em detrimento de actividades, sobretudo industriais, potencialmente voltadas para os mercados externos, foi causada pelas “golden shares”...

Os impostos dos ricos

Os ricos são tão poucos que faze-los pagar imposto não dá nada, não é? Ora experimentem lá regressar à ideia original do IRS e englobar todos os rendimentos, acabando com as taxas liberatórias e as taxas especiais, como sugere o fiscalista António Carlos Santos no Público de hoje, e vejam lá se não dá nada? Já agora façam qualquer coisa para acabar com a pouca vergonha dos paraísos fiscais.

E sobretudo não venham agora com a ameaça de fuga de capitais que os tempos começam a não estar de feição para esse tipo de incivilidade.

Também quero saber


Recebi no e-mail uma cópia de um requerimento do deputado João Semedo do Bloco de Esquerda, que penso ser verdadeira, referente a factos que gostaria muito de saber se são ou não verdadeiros. Transcrevo:

“O Bloco de Esquerda tomou conhecimento, através da comunicação social, da possível existência de um crédito concedido pelo BPN à Amorim Energia para a compra de uma participação na Galp.

Segundo a notícia, o crédito, da ordem dos 1600 milhões de euros, teria sido concedido pelo BPN à Amorim Energia em 2006, antes do processo de nacionalização. A mesma fonte avança que o empréstimo não chegou a ser pago pela holding ao BPN, mantendo-se assim a divida de 1600 milhões de euros durante todo o período em que o Banco esteve na posse do Estado.

Acresce a esta informação o facto de a Amorim Energia ser uma holding detida, não apenas por Américo Amorim, mas que tem como accionistas a Santoro Holding Financial, de Isabel dos Santos, e a Sonagol. Como é conhecido, a Santoro Holding Financial, para além de accionista da Amorim Energia, é também accionista maioritária do Banco Internacional de Crédito, a quem o Estado irá vender o BPN. Desta forma, a venda do BPN, com os seus créditos, ao BIC, poderá implicar que o crédito de 1600 milhões de euros seja pago pela Amorim Energia a um banco que tem como principal accionista a própria devedora.”

Pergunta o deputado João Semedo:

“1. Confirma o Governo a existência de um crédito, por liquidar, da Amorim Energia ao BPN? Em caso afirmativo, qual o seu valor?
2. Caso exista, como explica o Governo a não execução do referido crédito para fazer face aos prejuízos associados ao BPN, durante os anos em que o banco esteve na posse do Estado?
3. Confirma o Governo que o referido activo se encontra num dos três veículos constituídos pela Caixa e transferidos para o Tesouro?
4. Perante o cenário de venda do BPN ao BIC, qual a situação do referido activo? Ficará em posse do Estado ou será incluído no pacote a privatizar?
5. Pode o Governo divulgar a lista de todos os créditos, incluídos nos veículos transferidos para o Tesouro, acima dos 250 milhões de euros?”

1600 milhões de euros? Isso é duas vezes o nosso corte do subsídio de natal e mais de metade do buraco anunciado do BPN. Eu também quero saber.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Os passes da austeridade

A transformação do passe social numa frágil política de transportes para pobres, na linha do que o jornalista económico Manuel Esteves indica, ilustra toda a lógica da política pública de austeridade em curso. Esta consiste em quebrar o princípio da universalidade, o único que protege o Estado social e pode assegurar serviços públicos redistributivos. O governo pretende garantir que o velho truque da economia política neoliberal se aplica: as políticas para pobres são pobres políticas e criam a boa dinâmica destrutiva já descrita pelo Nuno Serra.

Neste contexto, recupero outro post de Manuel Esteves no Massa Monetária: “É uma ilusão pensar que, neste contexto, é possível fazer um ajustamento orçamental desta dimensão de forma equitativa”. Eu diria que é impossível fazer um ajustamento orçamental desta dimensão. A recessão que assim se está a gerar faz com que a insistência no estilo de programa da troika, e nas revisões que aí virão, só aprofunde um círculo vicioso de desemprego, insolvência, destruição dos serviços públicos e tudo o mais que se segue. Finanças públicas sãs? Olhem para a Grécia, mesmo tendo em conta as diferenças de capacidade estatal.

A esquerda deve rejeitar sempre a austeridade, evitar a conversa demagógica e ideologicamente enviesada sobre as gorduras do Estado e pugnar por alternativas reais, sabendo que a opção de política que está a ser seguida nunca pode ser igualitária. O governo, quanto muito, estará apostado em tentar legitimá-la com mexidas cosméticas no sistema fiscal que até os ricos politicamente mais inteligentes aceitam e que não revertem, longe disso, o esforço estrutural que foi durante demasiado tempo feito para os beneficiar. Não há justiça social sem conflito político aberto com quem beneficiou da economia política neoliberal.

Nós temos vindo a alertar, desde o ano passado, para as consequências político-ideológicas da crença na possibilidade da austeridade simétrica. Isto não significa, pelo contrário, que se abandone o combate, que é de sempre, pela justiça fiscal a sério, especialmente quando se acumulou um património significativo de proposta nesta área. Significa, isso sim, que se deve colocar sempre o problema da austeridade na escala europeia que o origina, sem deixar de indicar as armas, financeiras e diplomáticas, que Portugal tem à sua disposição e de defender abertamente o seu uso, da reestruturação da dívida à possibilidade de organizar a saída do euro, quer como ameaça credível, quer como alternativa se se concluir que tudo está mesmo bloqueado em termos de reforma democrática na arquitectura do governo económico europeu.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Ler com muita atenção porque o debate é inadiável

Nenhum dos dois partidos centrais do sistema, quase sempre de acordo na política europeia, antecipou os perigos da integração e da participação no euro para uma economia periférica e uma sociedade civil fraca como a nossa. Viveu-se durante anos apenas no presente e do presente. Mas agora tornou-se mesmo necessário fazer um diagnóstico cortante: o grande desígnio nacional de desenvolvimento pela europeização falhou com estrondo em 2011. Pode até dizer-se que foi bom enquanto durou. Mas agora acabou (…) Necessitamos de preparar a eventual saída do euro, numa Europa que parece apostada em criar uma espécie de euro 2, limitado às economias mais fortes e complementares. Mas este Governo não o admitirá nunca. No entanto, o lançamento de um debate nacional sério sobre o tema não prejudicaria o nosso debilitado poder negocial, antes pelo contrário (…) O importante é pensar que existe uma saída para a nossa crise e que ela passa por um novo desígnio nacional que assuma o refluxo da europeização - não necessariamente o fim da UE - e se centre na nossa própria dimensão colectiva. Esse novo desígnio não encontrou ainda os seus intérpretes políticos. Eles não estão certamente no actual Governo e também não se vislumbram ainda na oposição. Mas acabarão por surgir.

João Cardoso Rosas

Sugestões e apelos populares

Embora Cavaco Silva ainda seja contra modificações na tributação do património que incidam sobre as grandes concentrações de riqueza, folgo em ver que no fim-de-semana deu o segundo contributo positivo para o debate público, sugerindo a reintrodução de um imposto sobre sucessões e doações, tal como a esquerda que não desiste há muito propõe. Um imposto que torne a sociedade menos dependente de lotarias familiares. Folgo também em ver que o PS decidiu rever a sua posição sobre este assunto. É que o PS tinha aprovado a abolição do imposto, por iniciativa da direita, no tempo do cherne.

Também no fim-de-semana, o PR, em plenas festas de Campo Maior, apelou à unidade do povo, que é sempre quem mais ordena em última instância, defendeu. A unidade popular é, aliás, a principal variável na evolução da economia política. Basta conhecer os bons exemplos por esse mundo fora de unidade popular em defesa da possibilidade dos bens comuns, contra os privilégios privados que sabotam as capacidades colectivas e destroem o laço social. Este vídeo do final de uma recente manifestação popular num Chile mobilizado pela igualdade que constrói comunidade através, por exemplo, da provisão pública universal de alguns bens essenciais, é um reconfortante exemplo do optimismo da vontade que terá de emergir no nosso país contra a austeridade: o povo unido jamais será vencido.

domingo, 28 de agosto de 2011

Razões para futuras nacionalizações

A indignidade das privatizações de sectores estratégicos não começou agora, embora vá entrar numa fase particularmente sórdida que mais não seja porque o contraste com a socialização de prejuízos do sector financeiro só vai escapar aos desatentos, aos que insistem em usar palas ideológicas neoliberais. Não é o caso de Manuel Pinho no Expresso de ontem:

“É uma indignidade Portugal vender a pataco as empresas do sector energético e parte do sector das águas. A venda ao desbarato da ADP, Galp, REN e EDP não vai criar mais concorrência, nem resolver qualquer problema financeiro. Trata-se de uma decisão errada por razões de fundo e conjunturais. Por razões de fundo, porque no mundo inteiro 95% dos recursos hídricos mundiais não são geridos por privados e não há país em que o Estado ou interesses nacionais não tenham grande influência no sector da energia. Não é preciso muita imaginação para ver os cenários dantescos que a médio prazo podem resultar por o Estado sair de sectores que têm uma importância estratégica. Por razões conjunturais, porque não passa pela cabeça de ninguém vender as jóias da coroa quando os mercados estão pelas ruas da amargura. Ninguém acreditaria se lhe dissessem que Berlusconi ia vender ao desbarato a Eni, Sarkozy a EDF ou Dilma Rousseff a Petrobras, pois não? Ao contrário do que alguns pensam, Portugal não está a fazer figura de bom aluno, está a fazer a figura do aluno que aceita que lhe coloquem orelhas de burro e, ainda por cima, parece gostar de se exibir com elas em público.”

sábado, 27 de agosto de 2011

A frase bem torneada não chega

A frase bem torneada compensa o mais odioso preconceito de classe, a flagrante falta de rigor histórico ou o extremismo ideológico neoconservador mais empedernido? Faço esta pergunta a propósito das crónicas de Pulido Valente no Público. A resposta é negativa, claro. Hoje, Valente presenteia-nos com uma crónica sobre o fim da “sociedade social-democrata”, afirmando, entre outras coisas, que a actual dívida pública dos EUA e do Reino Unido é maior, “muito maior”, do que no fim II Guerra Mundial. Se Valente está a falar em valores absolutos, tal afirmação é trivialmente verdadeira. Se está a falar em termos da riqueza gerada, em percentagem do PIB, o que conta, tal afirmação é falsa. Olhem para o gráfico. É preciso não esquecer que os EUA e o Reino Unido têm soberania monetária, ao contrário dos países da disfuncional zona euro, o que torna o recente aumento da dívida pública, resultado das crises e das correspondentes transferências de dívida privada para o sector público, facilmente “gerível”. Reparem como se regista uma queda quase a seguir à II Guerra Mundial, no auge do consenso keynesiano feito de controlo de capitais, compressão das desigualdades e, claro, muito crescimento com uma pitada de sal de inflação, a melhor receita para fazer cair o peso da dívida no PIB. Com o regresso das utopias liberais, feitas de liberalização financeira sem fim e de uma política económica pensada para reconstruir os rendimentos e a riqueza dos que estão lá muito em cima, recomeçam os problemas para a maioria. É o tempo da hegemonia intelectual dos Pulidos Valentes desta vida. Até quando é que isto vai durar?

Ouvido no café

«Nós fomos os primeiros sem-abrigo deste bairro... Só íamos a casa para comer e dormir» (risos).
Ao ouvir isto lembrei-me subitamente, vá-se lá saber por quê, do «trabalhador» Américo Amorim.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Para combater o Estado fiscal de classe

Portugal destaca-se por ter uma estrutura fiscal em que os impostos regressivos, como o IVA, têm um peso acima da média europeia no total dos impostos arrecadados, enquanto os impostos tendencialmente progressivos, como o IRS, têm um peso abaixo da média. Isto para já não falar dos impostos sobre o património, cujo peso é metade do registado no restante mundo desenvolvido. Que tal criar um imposto único sobre todo o património, mobiliário e imobiliário, com taxas progressivas, claro, e que onerasse especialmente as grandes concentrações de riqueza? Que tal reintroduzir um imposto sobre as heranças bem desenhado para dar alguma substância ao discurso sobre o mérito? Que tal incluir todos os rendimentos, do trabalho e do capital, em pé de igualdade para efeitos de IRS? Que tal continuar a desbastar os iníquos benefícios e deduções fiscais? Não seria melhor do que andarmos a brincar à cosmética fiscal para parecer que os mais ricos também estão no mesmo barco? Já ouço fiscalistas com demasiada consciência de classe: ai que eles fogem, os capitais. Esta imoral economia da chantagem, geralmente nunca formulada na primeira pessoa do singular porque até a arrogância da fortuna é temperada por alguma consciência das normas formais de uma sociedade civilizada, ou seja, por um pouco de vergonha na cara, é sempre menos poderosa do que se julga e, de qualquer forma, deve poder ser contrariada pela reintrodução de algum tipo de controlo sobre os capitais, quer sob a forma de taxas, quer sob a forma de registos mais rigorosos sobre quem detém o quê e onde.

Da liberdade de escolha

Os impactos da austeridade já se fazem sentir no sistema educativo, com uma procura acrescida de escolas públicas por parte de alunos que frequentavam, até aqui, colégios privados. Como assinala a jornalista Andrea Cunha Freitas, em artigo do Público, «os encarregados de educação procuraram sobretudo as escolas públicas em lugares cimeiros do ranking publicado todos os anos pelo Ministério da Educação».

As dificuldades das escolas (particularmente das «melhores escolas» de cidades como Lisboa, Porto e Coimbra) em acolher o aumento anómalo do número de pedidos de matrícula - encaminhando muitos deles para as «segundas escolhas» - é reveladora de alguns aspectos que vale a pena assinalar.

Por um lado, a negligência persistente do Ministério da Educação para com o cumprimento efectivo da letra da lei, isto é, do despacho que determina os critérios de matrícula segundo a área de influência de cada escola, permitindo que os pais accionem expedientes diversos para a contornar. O «esquema» mais frequente é a designação, como encarregado de educação, de um residente na área do estabelecimneto de ensino pretendido (tendo sido já registadas situações em que a mesma pessoa era encarregada de educação de cinco alunos da mesma escola, sem qualquer relação de parentesco entre eles).

Por outro, esta situação vem mostrar como são irrealistas as teorias tendentes à implementação do princípio da liberdade de escolha do estabelecimento de ensino pelos alunos e suas famílias, ao confrontar o idealismo dessas propostas com a capacidade naturalmente limitada das escolas para acolher todos os que as pretendem frequentar. Com a agravante (essa sim, bem realista), de os pais com maior capacidade de influência ou de mobilização de «recursos relacionais» conseguirem vencer a competição pela disputa das vagas existentes nas escolas mais procuradas.

Por último, esta tendência de abandono do ensino privado, em resultado da degradação da situação financeira das famílias, carece ainda de confirmação estatística. Contudo, a verificar-se (como tudo indica), suscitará muito provavelmente o recrudescer da pressão parasitária das escolas privadas junto do governo, tendo em vista a implementação do famigerado «cheque-ensino».

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Motivos para descrer


Em meados de Agosto, Helena Garrido do Negócios criticava a ortodoxia europeia em matéria de finanças públicas ou de inflação de forma certeira: “O combate sem tréguas à inflação e ao défice público deixa de ser racional e transforma-se em preconceito e incompetência. E é uma sentença para o declínio”. No entanto, ontem elogia Zapatero por este estar aparentemente disposto a aceitar a inscrição constitucional do declínio patrocinada pela direita franco-alemã, criticando a ausência de uma posição portuguesa convergente nesta matéria. Esta última posição de Garrido é incompreensível. A vida económica vai mostrando que a sabedoria económica convencional, apresentada como inevitável, é mesmo incompetente.

Se há país que ilustra na perfeição a natureza cíclica da posição das finanças públicas numa economia capitalista é a Espanha. Os excedentes orçamentais e a dívida pública baixa, que chegou a uns 30% do PIB, foram a tradução da economia do tijolo alimentada pelo endividamento privado e pelos fluxos de capitais europeus. Os défices, a partir de 2008, e a duplicação da dívida pública, foram a inevitável tradução do rebentamento da bolha imobiliária, da fragilidade financeira e do esforço dos privados para reequilibrarem os seus balanços, gerando quebras das receitas fiscais. Uma crise que foi responsável por um desemprego que mais do que duplicou, ultrapassando os 20%. Uma crise que, estruturalmente, revela bem os resultados da financeirização das economias.

Assistimos à passagem da dívida privada para a dívida pública e à confirmação da sua imbricação mesmo num país que perdeu a sua soberania monetária e cujos dirigentes teriam, também por isso, de desafiar o arranjo europeu, em vez de se limitarem a obedecer e a encenar um patético “não somos Portugal”. A Espanha e a Itália juntas ultrapassam a Alemanha em termos económicos. Os PIIGS unidos poderiam forçar uma solução para crise com escala europeia. Mas não se passa nada.

O PSOE confirma assim que não é socialista e operário e que, por isso, não está disposto a defender os interesses da maioria dos cidadãos espanhóis. Fica o P a ilustrar a crise de uma social-democracia vítima de uma (des)integração europeia pensada para a destruir como força de reforma. A tragédia repete-se.

A injustiça da austeridade

Thomas Piketty, um dos economistas mais destacados no estudo do crescimento das desigualdades e nas propostas para o contrariar, sendo co-autor do que é provavelmente o artigo académico mais citado sobre a concentração dos rendimentos no topo nos EUA, denuncia, em entrevista ao Le Monde, as manipulações do governo francês, apostado em embrulhar uma austeridade intrinsecamente iníqua num manto de justiça social. Tem então a palavra Piketty: “Tudo isto me parece absurdo. Alguns meses depois de ter perdido 2 mil milhões de euros de dinheiro público em benefício dos contribuintes que pagavam o imposto sobre as fortunas, porquê inventar uma contribuição de 3% para recuperar 200 milhões, ou seja, dez vezes menos do que o dinheiro delapidado [numa austeridade que planeia cortar, se os cidadãos deixarem, 11 mil milhões de euros...]?”

À espera que os mercados decidam

Importa recordar que o Tratado de Maastricht consagrava um limite para a dívida pública de 60% do produto interno. Paul De Grauwe, à semelhança de muitos outros especialistas, considera que a "numerologia de Maastricht" é arbitrária, embora saliente que este valor corresponde ao quociente entre um défice público de 3% e uma taxa de crescimento nominal do produto de 5% (valor típico no início dos anos 90). O que muita gente não percebeu é que, com o Pacto de Estabilidade e Crescimento, a exigência relativa à dívida pública aumentou de forma absurda. Ao impor a meta do equilíbrio orçamental (saldo nulo a médio prazo), implicitamente o PEC consagrou como nível desejável da dívida pública 0% do produto. Com um numerador tendencialmente nulo, o quociente acima referido é também nulo, qualquer que seja a taxa de crescimento do produto. Ou seja, nos termos do PEC, os investimentos públicos têm de ser pagos num horizonte temporal estreito. O horizonte temporal dos beneficiários do investimento público é muitíssimo maior que o dos cidadãos que têm de suportar o correspondente encargo fiscal. Lembrando Romano Prodi, o PEC é estúpido!

Entretanto, todos sabemos que o PEC tem sido generalizadamente violado. Tal incumprimento não se deve, no essencial, a um laxismo dos governos. A razão é outra: a dinâmica da economia é incompatível com o cumprimento do PEC. Uma economia capitalista é intrinsecamente cíclica e, sobretudo após a livre circulação dos capitais especulativos, está mais sujeita a períodos de euforia que terminam em crises. Em tempos de recessão, a economia gera défices: as receitas fiscais descem e as despesas sociais no apoio aos desempregados e aos mais pobres aumentam. Contudo, num contexto de recessão, o PEC exige aos governos que cortem na despesa pública e/ou aumentem os impostos para que o défice se situe algo abaixo dos 3% (no mínimo). Não é preciso ser economista para perceber que estas medidas, em vez de reduzirem o défice, aprofundam a recessão e o desemprego. Quando o país não está em condições de contrabalançar esse efeito através das exportações, o défice acaba por não baixar significativamente. O PEC é mesmo estúpido!

Sob pressão da Comissão e do Conselho, desde a criação do euro que os governos têm vindo a cortar na despesa pública para tentar cumprir o PEC. Na prática acabam por cortar sobretudo no investimento e preservar a despesa pública corrente, aquela que beneficia no imediato os eleitores. Sabendo-se que as infra-estruturas em educação, investigação, saúde e cultura, e a correspondente despesa de funcionamento, são essenciais para o crescimento económico, então percebe-se que as pressões para o cumprimento do PEC, a par da política monetária restritiva do BCE, são responsáveis pelo baixo crescimento da zona euro desde a sua criação.

Por conseguinte, criar um travão constitucional à dívida pública significa consagrar ao mais alto nível jurídico uma regra absurda. Aliás, a proposta não terá sucesso e até será esse o resultado com que os líderes da Europa rica contam. Entretanto, sabendo que a maioria dos seus eleitores não quer ouvir falar de coesão e solidariedade, preferem adiar decisões cruciais até que os especuladores provoquem o desenlace que não têm coragem de assumir. Por mim, está mais que na altura de pensarmos no nosso futuro pós-euro.

(Da minha coluna no jornal i)

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Falsa consciência


Bom trabalho do Negócios. Procuram saber se o interesse próprio esclarecido de alguns milionários franceses ou norte-americanos, que se vão apercebendo do horror económico que resultou das sucessivas vitórias políticas da sua classe nas últimas décadas, pode ter alguma tradução fiscal em Portugal, indo assim um pouco para lá da austeridade assimétrica. Tem a palavra Américo Amorim, do alto dos seus vários mil milhões de euros: “Não me considero rico. Sou um trabalhador”. Quantos processos prescritos, quantas privatizações ruinosas, quanta complacência do nosso Estado fiscal de classe ou quantos pobres são precisos para fazer um rico em Portugal?

De resto, leia-se o editorial algo incomodado e confuso do Negócios. Para lá da habitual e imoral economia da chantagem – “eles vão-se embora” – avança-se com um argumento de antologia para tentar aumentar os riscos da justiça fiscal: “apanhar receitas adicionais fáceis de obter [afinal, os ricos sempre ficam…] é um desincentivo ao combate à fraude e evasão num país em que a economia paralela anda no intervalo entre um quarto e um quinto do produto interno bruto.” Como se a economia da fraude e da evasão não tivesse precisamente nos mais ricos um dos seus principais pilares...

A austeridade gera confiança

Lembram-se? As políticas de austeridade eram justificadas com base na confiança que gerariam nos mercados, nos agentes económicos, impressionados por um Estado que passaria a comportar-se bem, credível, diziam eles. Aí está o resultado do pensamento económico mágico dominante: "confiança dos consumidores e empresários europeus caiu de forma acentuada durante o último mês, agravando os riscos de um abrandamento da economia na parte final deste ano." Diz que é a procura...

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Um grande economista

José Reis enviou-nos o seguinte texto:

Um grande economista, um excelente homem: António Barros de Castro

António Barros de Castro, um grande economista brasileiro e um excelente homem, morreu no domingo no Rio. A imprensa e a comunidade académica brasileiras exprimem uma forte comoção e são justas com ele.

António era o que todos os economistas devem ser, um economista do desenvolvimento. Fez parte dos que mais influenciaram o pensamento económico brasileiro a seguir a Celso Furtado, entre eles Maria da Conceição Tavares, a portuguesa que há muitas décadas se tornou figura destacada na vida do Brasil. A sua vida e a sua obra são marcos importantes na formação e difusão do pensamento estruturalista, na tradição cepaliana. Foi presidente do banco nacional de desenvolvimento, o BNDES. A sua boa influência exerceu-se também noutras funções importantes. Era doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e foi professor do Instituto de Economia da UFRJ.

Na sua produção científica destacam-se obras como Introdução à Economia: Uma abordagem estruturalista, Sete Ensaios sobre a Economia Brasileira e A Economia Brasileira em Marcha Forçada. Obras daquelas que têm de ser estudas quando se pensam as políticas públicas, as estratégias nacionais e regionais, o desenvolvimento, isto é, os temas a que a economia tem de regressar para ser fonte de conhecimento.

Morreu vítima de um desabamento, a estudar no escritório da sua casa, numa rua íngreme com calçada portuguesa da zona de Humaitá, no Rio. Uma casa onde se oferece à sobremesa as cores, os cheiros e os sabores de uma paleta imensa de frutas tropicais, cada uma explicada pelo seu nome. E se oferece igualmente um imenso calor humano, juntamente com uma inteligência cativante. António Castro sabia, como poucos, explicar e discutir a economia, isto é, as interdependências que formam os sistemas económicos, as razões que os tornam dinâmicos, os factos que os alteram.

Encantava-se com Lisboa e interessou-se pelo estudo da economia portuguesa do Estado Novo. Tinha-se tornado um estudioso da China, motivado pela sua inquietação constante e desafiado pelo que muda e transforma.

Por razões muito pessoais sinto uma imensa mágoa pelo se falecimento trágico. Mas, como economista, sinto-me feliz por saber que, entre os economistas, há homens cultos, cativantes, sabedores e fulgurantes, como António Castro.

José Reis

Combate de blogs


No passado Sábado à noite, o ladrão de bicicletas Nuno Teles esteve no Combate de Blogs da TVI 24 a debater com André Abrantes Amaral, do Insurgente, e Nuno Ramos de Almeida, do 5 dias, acerca das propostas avançadas por Merkel e Sarkozy na semana passada.

Uma troca de ideias cortês e inteligente, independentemente das diferenças de posição, acessível aqui.

A luta contra a austeridade não pode alimentar ilusões

Portugal, embora num estado menos desesperado, também terá de se render à dupla reestruturação-desvalorização e, para tal, sair da zona euro. O plano de austeridade que está em execução vai de facto provocar uma recessão, estimada de forma optimista em -2% do PIB e, com mais realismo, em -4%/-5%. Isto vai gerar uma contracção das receitas fiscais que reproduzirá o défice orçamental. Na realidade, é o que acontece em todas as tentativas brutais de regressar ao equilíbrio das contas públicas através de uma austeridade maciça. Lembremo-nos do caso da Rússia de 1993 a 1998 em que uma austeridade draconiana imposta pelo governo e o FMI mergulhou o país numa espiral de depressão e défice. Para que esta trajectória se invertesse foi preciso regressar ao crescimento, o que aconteceu após o incumprimento da dívida e uma desvalorização de cerca de 50%.

(A totalidade do artigo aqui)

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Ultrapassar os mercados...

A lata não tem fim: Angela Merkel disse que “os políticos não podem seguir os mercados”. Desde há mais de um ano que os políticos conservadores-liberais não têm feito outra coisa que não seja andar atrás dos mercados, seguindo e aprofundando as suas tendências auto-destrutivas, desenhando políticas de austeridade pensadas para satisfazer os seus interesses mais predadores nas periferias, concebendo dispositivos, como o fundo de estabilização, que são autênticas bombas relógio prontas a destruir o euro, sem se avançar com instrumentos de política capazes de enquadrar, disciplinar e estabilizar os mercados. A recusa obstinada em admitir a necessidade de euro-obrigações é um exemplo deste último ponto, que também custará muito caro à Alemanha, ameaçada pela recessão e pela continuada fragilidade financeira dos seus bancos.

As euro-obrigações, como aqui temos defendido, são uma condição necessária, mas não suficiente, para salvar o euro. Permitiriam resolver parte do problema do financiamento dos Estados, mas não substituem a necessidade de reestruturar uma parte da dívida, de adoptar uma política de estímulo económico com escala europeia, de mudar as regras que enquadram a acção e as prioridades do BCE ou de trabalhar no sentido da harmonização fiscal e da criação de taxas com escala europeia para financiar um orçamento europeu reforçado.

A emissão de euro-obrigações é uma proposta antiga, tributária de um diagnóstico amadurecido sobre as falhas institucionais europeias. É defendida há cerca de duas décadas pelo economista keynesiano Stuart Holland, antigo conselheiro de Delors, que integra hoje a Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e que é co-autor de uma proposta recente para começar a salvar um euro construído com base nas teorias neoliberais mais retintas.

Nesta linha, vale a pena ler o artigo que o economista Pedro Leão do ISEG, co-autor de uma útil análise sobre os desatinos da economia portuguesa no euro, escreveu no Le Monde diplomatique – edição portuguesa deste mês – “Euro-obrigações: ganhos para Portugal…e para a Alemanha”. A emissão de euro-obrigações, até 60% do PIB de cada um dos Estados, permitiria baixar o custo de financiamento, alinhando-o pelos padrões que vigoram nos EUA ou no Japão. Estaríamos perante títulos com o mais reduzido risco, transaccionados num mercado de grandes dimensões, menos propenso a lógicas especulativas desestabilizadoras, veículo seguro para as poupanças que circulam por aí, garantidos por um bloco próspero, o que geraria padrões semelhantes aos EUA de hoje: quando as coisas apertam é para estes títulos da dívida pública que os especuladores, receosos face a um futuro incerto, se voltam, fazendo descer os juros, sem que a opinião de uma agência de notação tenha aí grande peso. Acima dos 60% do PIB, cada um dos Estados europeus estaria por sua conta na emissão de dívida e seria sobre esta parte que recairiam as reestruturações necessárias nas periferias. Para quem gosta de “incentivos” disciplinadores, não me parece que se possa inventar muito melhor do que esta segmentação...

domingo, 21 de agosto de 2011

Controlar e harmonizar


Os grandes grupos económicos privados são actores políticos decisivos e muito pouco escrutinados. Saúde-se, por isso, o trabalho do Público de hoje sobre os esforços fiscais dos grandes grupos económicos nacionais para fugir às suas responsabilidades – do uso de paraísos fiscais, ou seja, dos infernos ético-políticos, à criação de sociedades em países europeus com um sistema fiscal mais vantajoso para o capital. Ficámos a saber que os vinte maiores grupos nacionais, na boa lógica da responsabilidade social da empresa de que fazem gala, têm 74 sociedades com sedes no estrangeiro, fundamentalmente para efeitos fiscais. Esta economia imoral, ainda mais gritante porque muitos dos responsáveis político-empresariais, como Ricardo Salgado do BES, fazem constantes apelos “patrióticos” ao sacrifício, tem de ser colocado no seu devido contexto estrutural. É o que faz o jornalista João Ramos de Almeida:

“A ‘deslocalização fiscal’ acontece porque não existe uma harmonização fiscal na União Europeia. Aproveitando-se das diferentes legislações nacionais, os grupos económicos conseguem reduzir custos de actividade e, consequentemente, obter lucros maiores. Mas sobretudo pagam menos impostos do que pagariam em território nacional, embora isso lapide receitas fiscais nacionais e aumente a desigualdade na tributação dos diferentes tipos de rendimento.”

Olhem com atenção para o gráfico que encabeça este post e que regista a corrida para o fundo em matéria de taxação das empresas à escala internacional. Ir ao fundo deste problema é também lembrar a liberalização sem freios da circulação de capitais, que foi a grande vitória neoliberal com impactos estruturais nos anos oitenta e noventa e que não provocou apenas maior instabilidade instabilidade financeira e ineficiência, mas também criou as condições para uma maior pressão política a favor da redução da taxação sobre as empresas, uma verdadeira economia imoral da chantagem permanente associada à ideia da “concorrência fiscal”.

A UE foi parte desse processo, com a construção política de um mercado interno sem harmonização fiscal: por exemplo, o comissário europeu para a fiscalidade afirmava há uns anos atrás, numa esclarecedora entrevista, que, num contexto de livre circulação de capitais, “harmonizar as taxas de IRC é acabar com a concorrência fiscal” à escala da União Europeia (UE), responsável, na sua opinião, pela criação de “um melhor ambiente para os negócios”. Para negócios cada vez mais sórdidos, claro.

Reverter esse processo à escala europeia exige um impossível acordo entre os 27 ou então iniciativas soberanas unilaterais, desafiadoras dos tratados existentes, por parte de Estados, ou de grupos de Estados, com coragem política para superar este inferno europeu. No nosso país existem pelo menos nove milhões de razões por dia para reintroduzirmos controlos de capitais, tal como existiam até ao início da década de noventa.

sábado, 20 de agosto de 2011

Economia política comparada 2.0

Primeira avaliação da proposta da direita franco-alemã: "são bem-vindas as propostas de tornar mais eficaz a disciplina orçamental a nível nacional." Foi a pensar neste tipo de propostas que uma das referências da economia política internacional, Stephen Gill, cunhou a expressão "neoliberalismo disciplinar", aplicando-a à configuração prevalecente e falhada da UEM, que agora se pretende aprofundar. Segunda avaliação, que vai ao cerne da questão com realismo: "constitucionalizar uma variável endógena como o défice orçamental – isto é, uma variável não directamente controlada pelas autoridades – é teoricamente muito estranho." A primeira avaliação é de Vital Moreira no seu blogue e a segunda, já se sabe, é de Cavaco Silva no facebook. Primeira conclusão: Cavaco parece estar à esquerda do eurodeputado do PS numa matéria crucial para a orientação das políticas públicas. Explicação possível: o primeiro, como muitos intelectuais orgânicos que contribuíram para o esvaziamento da social-democracia, é influenciado por uma versão do neoliberalismo, particularmente moralista na questão das finanças públicas, que moldou a construção europeia em que estamos trancados, enquanto que o segundo ainda parece conservar, de outros tempos de política orçamental de manual e não só, um certo bom senso keynesiano, embora só o tenha revelado agora, quando a direita está no poder, o que ilustra o oportunismo político que sempre acompanha a falta de memória. Segunda conclusão: as ideias contam e os interesses também.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

St. Vincent "Actor Out of Work"

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades


"Constitucionalizar uma variável endógena como o défice orçamental – isto é, uma variável não directamente controlada pelas autoridades – é teoricamente muito estranho. Reflecte uma enorme desconfiança dos decisores políticos em relação à sua própria capacidade de conduzir políticas orçamentais correctas."

Escreveu este certeiro parágrafo o ex-primeiro-ministro que assinou o tratado de Maastrich em 1992. O tratado que estabelecia a arbitrária regra do défice orçamental de 3% do PIB. É sempre bom ver os responsáveis políticos portugueses a reconhecer os erros do passado.

Ainda acerca dos motins no Reino Unido


Ainda em relação aos motins no Reino Unido - e na sequência das patéticas tentativas de argumentar que o que se passou não teve causas estruturais -, o The Guardian tem vindo a publicar e analisar os dados de mais de mil processos, já julgados em tribunal, de indivíduos acusados por roubo e conduta desordeira neste contexto. Conclusão: jovens, na sua vasta maioria do sexo masculino, desempregados e residentes em bairros pobres.

É, aliás, muito revelador que o texto para que remete a postagem minimalista no Insurgente argumente que os motins não podem ter sido causados pela pobreza uma vez que, em termos absolutos, os apoios sociais e a situação dos mais pobres em Inglaterra podem ser considerados relativamente favoráveis face a muitos outros contextos. Como refere alguém nos comentários, “se assim fosse, o Bangladesh e o Lesoto teriam motins dia sim, dia não”. Acontece que a realidade é mais complicada do que estas análises estreitas conseguem conceber: o nexo condições estruturais - reacções violentas não funciona através do desencadear destas últimas quando se ultrapassa, no sentido descendente, um qualquer limiar arbitrário de rendimento, mas sim através das condições de socialização, da desigualdade, da alienação e da destruição do sentido de que ‘estamos todos no mesmo barco’. Mas claro que isso é impossível de perceber para quem está formatado numa ideologia que, entre outras coisas, produziu uma teoria económica em que a ‘utilidade’ individual é independente da distribuição e da posição relativa nessa distribuição.

Os motins no Reino Unido mais não foram do que o reflexo no espelho de uma sociedade em que os banqueiros socializam centenas de milhares de milhões de libras em perdas para depois continuarem a actuar como dantes e em que a máquina de produção ideológica às ordens do ignóbil Murdoch comete crimes e os principais responsáveis escapam impunes. Quando a lógica estrutural da sociedade consiste em passar por cima de tudo e todos, como podemos surpreender-nos com estes resultados?

Seguro social-democrata?

Descobri, o que me animou, que a aberrante proposta franco-alemã de constitucionalizar limites arbitrários para as finanças públicas nacionais, que só iria ampliar as crises, terá obrigatoriamente de ser referendada na Irlanda, aliás um exemplo já aqui invocado para assinalar a inanidade de tais moralismos. De facto, a incensada e muito liberal Irlanda tinha uma dívida pública de 25% do PIB, em 2007, e viu-a mais do que triplicar nos últimos anos, enquanto que na Espanha, pouco mais do que 30%, mais do que duplicou. São os ciclos do capitalismo. Por muito que tentem que o moralismo das finanças públicas faça parte do senso comum, é bem possível que os efeitos políticos da austeridade imposta pelos credores europeus o superem e que o povo irlandês dê mais uma lição de democracia.

Entretanto, espero que o secretário-geral do PS, bem aconselhado, por exemplo, pelos economistas social-democratas do seu partido, rejeite participar em qualquer mudança constitucional deste teor no nosso país, mudança destinada a eternizar a lógica da troika com que toda a esquerda, e alguma direita, terá de romper mais cedo do que tarde. Que Luís Amado tenha aderido aos dogmas ordoliberais alemães não me surpreende porque se trata precisamente do tipo de dirigente dirigido que levou a social-democracia à crise em que está hoje, à sua colonização pela direita, tudo em nome de um projecto europeu minado pela hegemonia de tais ideias. Agora querem inscrever estas ideias na nossa ordem constitucional, como se tal inscrição não fosse uma rematada distopia.

A rejeição da constitucionalização das ideias da direita franco-alemã e, por exemplo, a recusa de uma regressiva desvalorização fiscal serão então dois bons indicadores, digamos, da capacidade de evolução do PS, da sua capacidade para superar a hegemonia liberal e recuperar um perfil social-democrata. Pena que a indicação dada no orçamento rectificativo não tenha sido a melhor.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Et tu, Christine?

Christine Lagarde foi, enquanto Ministra das Finanças francesa, uma das inspiradoras da austeridade europeia generalizada, mas com muito especial incidência na periferia. Era a famosa ficção da consolidação orçamental expansionista para aplacar mercados e entreter elites pacóvias e subalternas.

Agora que as consequências da austeridade estão a chegar ao centro, e segura no FMI, Lagarde faz o pino, certamente ajudada pelas experiências na selecção francesa de natação sincronizada e na advocacia de grandes negócios globais, defendendo, em artigo no Financial Times de terça-feira, que “os mercados gostam pouco de dívida elevada, mas gostam ainda menos de falta de crescimento”. Sempre a pensar nos mercados. Preocupada com as suas propriedades auto-destrutivas? Seja como for, é preciso, diz Lagarde, que alguns Estados implementem de novo políticas de estímulo económico no “curto prazo”, o que conta, já que austeridade parece ser, olha a surpresa, perigosamente recessiva.

A lição realista de economia política internacional que Lagarde nos dá é a mesma de sempre: o impulso keynesiano, mesmo que abastardado pela ausência de controlos sobre o capital financeiro ou de preocupações com os efeitos nocivos da desigualdade excessiva, é bom, mas só para quem tem poder. E quem tem poder é quem tem soberania, onde se inclui o controlo sobre a moeda em que o Estado se endivida. E na Zona Euro como vai ser?

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

O desgoverno económico europeu

A economia de austeridade com escala europeia garante estagnação e recessão generalizadas, como os dados de ontem indicam. Confiemos que as exportações para Marte superem a falácia da composição na Zona Euro – todas as economias contraem os mercados internos na esperança de sair da crise pelas exportações?

Nem de propósito, o eixo franco-alemão, que tem impulsionado a economia de austeridade e o útil desemprego de massas que lhe está inevitavelmente associado, com a aquiescência dos governos periféricos resignados ou entusiásticos, reuniu para mostrar quem manda. Parece que usaram a expressão “governo económico europeu”, o que deixou uns poucos crentes esperançados, mas a esperança não sobrevive à reacção de “mercados” politicamente desancorados que guia as suas posições. Não se avançou com uma só “proposta” capaz de reforçar ou de criar instrumentos de política económica à altura das circunstâncias, tirando uma referência vaga à taxação das transacções financeiras.

Mais concreta foi a ideia, que subjaz ao desgoverno económico europeu, de dar dignidade constitucional às taras orçamentais da economia de austeridade. Ignora-se assim ostensivamente o que importa: tirando o Estado fiscal de classe e a maior ou menor captura do Estado por grupos económicos oriundos do sector financeiro, a posição das finanças públicas no capitalismo desenvolvido só depende do andamento da economia. Todas as regras neste campo terão de ser sempre furadas em épocas de crise, sob pena de entrarmos numa depressão como nos anos trinta.

O moralismo das finanças públicas, ainda hegemónico também graças à forma como o euro foi construído e que considera que o aumento do peso da dívida pública no PIB em 30% nos países desenvolvidos foi o resultado de um súbito surto despesista, continua a impedir a adequada compreensão da situação: os cortes no sector público tornam a economia cada vez mais imoral, atingindo famílias que não podem ser reduzidas a uma má metáfora. Entretanto, este euro continua a ser parte do problema.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Quem trava a corrida para o abismo?



Da minha crónica no i da semana passada:

Desde que as ideias neoliberais passaram a comandar a política económica, nos anos 80 do século passado, os governos de todas as cores políticas abandonaram o objectivo do pleno emprego e abraçaram o credo da "globalização feliz". Através da acção do FMI, do Banco Mundial, da OCDE e da União Europeia, o modelo do crescimento económico baseado nas exportações transformou-se na receita universal para os males de qualquer economia, ao mesmo tempo que a competitividade foi promovida a objectivo central da política económica.

A abertura às importações de países asiáticos, onde as condições salariais, sociais, ambientais e institucionais permitem preços imbatíveis, reduziu substancialmente a indústria europeia e expulsou definitivamente do mercado de trabalho largos milhares de cidadãos. A agenda de Lisboa, centrada no conceito de "economia do conhecimento" e na promoção da competitividade pela inovação, constituiu um manto ideológico que foi usado para ocultar uma dura realidade. A de que só algumas economias, muito poucas, estão em condições (têm instituições, competências, recursos) de escapar à concorrência pelo preço num mercado globalizado. Em boa parte da Europa, o crescimento do emprego precário em serviços de baixa produtividade foi o reverso da desindustrialização. Liderada pela finança, e comandada pelo imperativo do lucro de curto prazo, a globalização encaminhou os excedentes das economias vencedoras da globalização para as deficitárias onde o crescimento foi sustentado a crédito. A grande recessão que começou nos EUA em 2007 e se estendeu à Europa em 2008 é pois o triunfo da globalização, um processo em que comércio e finança são interdependentes.

Sem vontade política para continuar a garantir empréstimos, a parte da Europa que até agora beneficiou da globalização impõe agora à Espanha e à Itália a receita da austeridade e da baixa generalizada dos salários na ilusória expectativa de que a especulação contra o euro terminará. Em nome da competitividade no mercado global, agravam-se as políticas recessivas e reduz-se o Estado-providência a um Estado-assistência. Em sintonia com o neoliberalismo norte-americano, a Europa dá o seu melhor para que a grande recessão regresse e, desta vez, se transforme mesmo numa depressão.

Mas a história é um processo aberto. Marcada pelo desemprego e pela frustração dos seus projectos de vida, a juventude europeia tem dado sinais de que não se conforma com o programa de regressão social em curso. Talvez ainda seja possível congregar forças sociais e políticas que travem esta corrida para o abismo. Quem sabe?

Ricos cada vez mais super


O conhecido filantrocapitalista Warren Buffett afirmou há já algum tempo, com realismo, que a luta de classes existia e que a sua classe a tinha ganho: num contexto de estagnação dos rendimentos das classes trabalhadoras, a percentagem de rendimentos captada pelos 1% mais ricos passou, nos EUA, de 8,95% do total, em 1978, para 20,95%, em 2008 (semelhante a 1929). A taxa de IRS que incidia sobre o ultimo escalão de rendimento passou de mais de 70%, nos anos sessenta, para 35%, na actualidade e na melhor das hipóteses. Os resultados são os que se conhecem.

A vitória foi tal que Buffett vem agora pedir aos dirigentes políticos, em artigo no New York Times, que "parem de acarinhar os super-ricos": "Enquanto as classes baixas e médias lutam por nós no Afeganistão e enquanto a maior parte dos americanos luta para fazer face às despesas, nós os mega-ricos continuamos a ter isenções fiscais extraordinárias". Este apelo é de difícil concretização sistémica, uma vez que a concentração de dinheiro, perante a fraqueza dos contrapoderes relevantes, como os sindicatos, gera sempre concentração de poder e a correspondente adulação.

Em Portugal, os nossos ricos cada vez mais super, como Alexandre Soares dos Santos, queixam-se de que não são suficientemente acarinhados pelo poder político e pela sociedade, coitados. Talvez por causa dessa estranha avaliação tenham decidido investir na luta das ideias, na luta pela adulação. Imaginem então o que diriam e o que fariam se não fossem tão acarinhados. Imaginem se as suas imorais práticas fiscais ou salariais tivessem de ser consistentes com os seus discursos sobre ética social.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Governação económica europeia, sem democracia, não obrigado

Suponho que em círculos influentes com epicentro na Alemanha as ‘coisas’ estejam a evoluir na direcção do “eurobonds talvez se existir ‘governação económica europeia’”. Faz sentido. Dívida (parcialmente) partilhada, política orçamental igualmente partilhada. Mas… a questão não termina aí.

O que é fundamental é saber quem governa? Sábios ‘independentes’, na realidade dependentes de quem tem mais poder, como os governadores do BCE? Ou pessoas eleitas e amovíveis, responsabilizáveis perante todos os eleitores europeus?

O que temos pela frente não é pois uma bifurcação do tipo “governação económica europeia ou então colapso da Zona Euro” mas antes “governação democrática da Europa ou então colapso da União Europeia”.

Temos companhia entre Marx e Keynes…

Assistimos a uma redistribuição maciça do trabalho para o capital, dos salários para os lucros, a desigualdade de rendimentos e de riqueza aumentou. Esta redistribuição faz com que o excesso de capacidade e a falta de procura agregada sejam ainda piores. Karl Marx acertou: a certa altura, o capitalismo pode autodestruir-se porque não se pode continuar a transferir rendimento do trabalho para o capital sem que se gere excesso de capacidade e défice de procura agregada. E é isso que se está a passar. Pensámos que os mercados funcionavam, mas não é isso que está a acontecer. O que é racional do ponto de vista individual – cada empresa, para sobreviver e prosperar, corta os custos laborais cada vez mais –, ignora que os meus custos laborais são os rendimentos e o consumo de alguém. É por isso que este processo é autodestrutivo. Não se pode resolver o problema com liquidez. Quando existe demasiada dívida ou se supera a situação através do crescimento ou da poupança. Mas se toda a gente gasta menos e poupa mais nos sectores público e privado, então estamos perante o paradoxo keynesiano da poupança e podemos ter uma depressão.

Nouriel Roubini (via João Galamba)

Saídas


Soros, um apoiante das euro-obrigações, defendeu ontem uma saída ordeira do Euro por parte de países como a Grécia e Portugal. Aposta de especulador, em contexto de incerteza irredutível, face a um futuro moldado pelas nossas crenças, ou não fosse Soros um téorico-prático da ideia da reflexividade aplicada ao funcionamento dos mercados financeiros, um opositor denodado da ficção, que insiste na sua eficiência, assente na lógica do 'valor fundamental' revelado? Enfim, à medida que o tempo for passando nesta economia de austeridade, a atractividade de uma saída de um euro por reformar, irremediavelmente associado ao desastroso processo de regressão em curso, aumentará. Isto é quase certo. No entanto, acho que a aposta política ainda deve ser feita numa saída por cima, pela integração, mas sem deixar de falar com realismo nas alternativas disponíveis, incluindo as saídas por baixo, claro.

domingo, 14 de agosto de 2011

Organizar a desglobalização


Defender a “desglobalização”, na linha do último livro de Jacques Sapir e de outros bons economistas ditos neo-proteccionistas, como Frédéric Lordon, não é defender a autarcia, mas sim uma renegociação do grau de abertura da economia por forma a que esta volte a ser pilotada pelo poder político democrático, mantenha relações sustentáveis com o resto do mundo, reduzindo, na medida do possível, o poder da economia da chantagem, da opacidade, da desigualdade e da crise permanente.

Chantagem. A liberdade de circulação de capitais, reconquistada a partir dos anos oitenta, facilita as deslocalizações, a ameaça permanente que impende sobre os Estados e as classes trabalhadoras, o que favoreceu, por exemplo, a redução da taxação sobre o capital e dificulta a organização de uma corrida para cima em termos de standards ambientais ou sociais. Opacidade. As estruturas da finança liberal, de que os paraísos fiscais são um dos elementos centrais, facilitam todas as ilegalidades e todas reciclagens. Desigualdade. A abertura irrestrita às forças do mercado global é uma dos mais importantes factores na base da quebra de rendimentos do trabalho e do aumento de todas desigualdades económicas, comprimindo a procura salarial e substituindo-a por insustentáveis ciclos de crédito. Crise permamente. A intensificação da instabilidade financeira traduzida na multiplicação de crises financeiras, ou seja, de crises bancárias e/ou cambiais, é um dos principais padrões gerados pela globalização.

Este medíocre statu quo que hoje temos é então indissociável dos processos de liberalização comercial e financeira que marcaram a economia política das últimas três décadas. São estes processos que temos de reverter organizadamente, refragmentando a economia global e assim aprofundando algumas tendências, mais ou menos espontâneas, em curso, até porque, caso contrário, a necessária política económica de combate à crise, de criação de emprego, fica totalmente dependente de um grau de coordenação entre Estados/regiões demasiado exigente e de muito difícil concretização, sendo mais facilmente bloqueada.

Alternativas existem: do controlo de capitais, que muitos países estão a redescobrir, à necessidade de incentivar a emergência de modelos de desenvolvimento nacionais e regionais muito mais focados na procura interna, passando pela política industrial selectiva, o que exige, no caso de Portugal, desafiar nacionalmente as regras do mercado interno europeu, porque sem base industrial não há economia que nos valha, ou pela necessidade de mecanismos de protecção comercial bloqueadores da erosão dos standards ambientais e laborais.

Trata-se de gerar uma maior margem de manobra política face às forças de um mercado global incontrolável e gerador de desequilíbrios sistemáticos. Alternativas que podem evitar que a utopia liberal em que demasiados países embarcaram acabe, uma vez mais, muito mal. É impressão minha ou muita esquerda tem andado, nos últimos tempos, demasiado silenciosa, sido demasiado complacente, nestas áreas?

Em polémica com uma esquerda social-democrata rendida e com uma esquerda à esquerda enredada num globalismo sem tradução política e institucional que se veja, o economista Frédéric Lordon defende, no Le Monde diplomatique deste mês, a desglobalização como projecto inter-nacional. Termino com ele:

“Se fosse avaliada pelas nossas normas (...), a configuração fordista do capitalismo do pós-guerra teria tudo de desglobalização e procuraríamos aí em vão os arames farpados e as torres de vigia, as economias hermeticamente fechadas e os projectos de auto-suficiência (...) Só quando os trabalhadores nacionais são subtraídos às relações antagónicas às quais os vota o comércio livre desigual é que podem desenvolver-se solidariedades transversais (...), fazendo prevalecer a gramática classista sobre a gramática nacionalista – em suma, respeitar o ‘facto nacional’ poderá ser a melhor forma de dar hipóteses de êxito (internacional) ao ‘facto de classe’ salarial.”

sábado, 13 de agosto de 2011

Transporte para lá da austeridade

Neste comboio, a próxima paragem tem sempre o mesmo nome: austeridade. Nem todos viajam nele, como se sabe pelas informações que dão conta da boa saúde das indústrias do luxo, do aumento de 17,8% da fortuna dos mais ricos em 2011, em relação ao ano anterior, ou da opção do governo de não aplicar aos lucros e dividendos a sobretaxa que vai cortar metade do subsídio de Natal das famílias, mesmo quando esta abrange até rendimentos provenientes de prestações sociais. Decididamente, não vamos todos no mesmo comboio (…) É caso para perguntar há quanto tempo é que o projecto neoliberal não inventa nada de novo… E quanto tempo mais vai ser capaz de transportar os povos nesta viagem suicidária rumo a um futuro que nos atira para formas de vida anteriores ao Estado social. Os transportes públicos, pela forma regular como são utilizados e pela identidade inter-geracional, inter-classista e inter-profissional dos seus utentes, pode ser um laboratório muito interessante de experiências de apropriação do espaço público onde se cruzem formas de contestação social que abranjam todo o tipo de movimentos sociais. Algures entre o tempo da espera pelo que está a chegar e o tempo da viagem para um destino desejado pode estar a construção comum de outra próxima paragem que não seja a da austeridade. É que o tempo da austeridade é, mais propriamente, o da paragem próxima.

O resto do artigo da Sandra Monteiro pode ser lido aqui e o Sumário do número de Agosto aqui.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Redistribuição...

Pedro Lains, um economista liberal que vale a pena ler e ouvir, parece por vezes acreditar que os mercados não pressupõem maciças doses de intervenção política na sua criação, estabilização ou legitimação. O liberalismo é sempre um activismo político, por vezes mascarado por uma retórica naturalista de “deixar que as coisas sigam o seu curso”, que é apenas a expressão de uma preferência pelo statu quo, depois de alcançadas as vitórias políticas e as transformações institucionais desejadas.

Mas vamos aos mais relevantes pontos convergentes na questão da chamada desvalorização fiscal. Lains concorda que está em curso uma maciça redistribuição do rendimento, regressiva, claro, “que é aquilo com que este governo parece querer ficar na história”. Lains sublinha três pontos importantes adicionais: a mexida na TSU e no IVA não tem impactos estruturais relevantes, tem efeitos recessivos no “curto prazo”, ou seja, tem impactos recessivos ponto, e intervém em contribuições sociais que estão abaixo da média da área euro.

Além disso, sublinho eu uma vez mais, o peso do regressivo IVA na estrutura dos impostos já está acima da média, exprimindo um Estado que sobrecarrega mais os que são mais pobres, os que não podem deixar de consumir todo o seu rendimento. É o tal Estado fiscal de classe, o que beneficia as fracções do capital mais poderosas, como os bancos, uma realidade socioeconómica que o governo de Gaspar recusa ver, mas que as suas políticas se encarregam de tornar cada vez mais visível. Só espero que ninguém à esquerda tenha a ousadia de aceitar esta opção e, já agora, que alguma direita a rejeite também...

Da interpretação de acontecimentos históricos - II


(continuação)

3) a tendência para a monocausalidade: todos os acontecimentos fora da pipeta do laboratório têm uma multiplicidade de causas (materiais, formais, eficientes ou finais). Porém, seja por incapacidade de pensar o mundo em termos complexos ou por deliberada intenção de manipulação política, existe uma tendência generalizada para a redução dessas causas a uma só (ou a um número muito pequeno). Isso é compreensível, pois além das diversas causas ‘reais’ não estarem ao mesmo nível no que se refere ao seu carácter necessário e/ou suficiente (logo, à sua importância causal), esta é a única forma de conseguirmos ‘dar ordem à confusão do mundo’. Porém, não há dúvida que a maior parte das pessoas e comentadores leva esta tendência longe demais, exercendo com isso grande violência sobre a realidade.

4) a falta de acordo acerca dos determinantes últimos da acção humana: em termos gerais e simplistas, o que aqui está em causa é o desacordo radical, possivelmente insuperável e que remonta à antiguidade clássica, entre idealismo e materialismo. É a consciência humana que determina em última instância as circunstâncias materiais ou são as circunstâncias materiais que determinam em última instância a consciência humana? Descendo ao concreto, ninguém põe em causa que os participantes nos motins fizeram o que fizeram porque quiseram. Porém, porque é que quiseram? Por um acto radicalmente autónomo da sua consciência ou por um acto de consciência suficiente ou necessariamente atribuível às circunstâncias em que foram socializados e pelas quais se encontram rodeados? E não será diferente debater esta questão quando falamos de actos individuais versus fenómenos de massas, nos quais a autonomia individual parece estar, no mínimo, diluída? Não está em causa a (des)responsabilização, que aliás é uma discussão distinta: está em causa a compreensão do real para melhor agir sobre ele.

Não pretendo com tudo isto fazer uma rejeição ‘pós-moderna’ de todas as interpretações históricas como meras narrativas de valor idêntico. É evidente que não o são: tanto é assim que já aqui expus a minha própria ‘narrativa’ causal, em que procurei identificar quais são, para mim, os factores que melhor explicam o que se passou. Também não esqueço que as análises têm consequências performativas, pelo que não devem ser julgadas unicamente em termos da sua capacidade de explicar o real, mas também das consequências políticas que produzem. E, obviamente, também não pretendo, longe de mim, impedir a Helena Matos de continuar a utilizar argumentos débeis para fins propagandísticos. Mas se contribuir para elevar um pouco o nível do debate e a consciência crítica dos participantes e espectadores, dar-me-ei por satisfeito.

(Adenda: na sequência deste post justo e bem-humorado do Tiago Mota Saraiva e de modo a não criticar colectivamente os autores dos vários blogues, os nomes dos blogues incluídos originalmente no primeiro destes dois posts foram trocados por "aqui"...)

Da interpretação de acontecimentos históricos - I


Os debates em público e privado acerca dos acontecimentos no Reino Unido têm sido muito interessantes. Todos estão, julgo eu, genuinamente interessados em entender e interpretar as causas do que se passa (ou passou) - seja para melhor reprimir, para apoiar (na convicção, ingénua a muitos níveis, de que estamos ou estávamos perante a semente de uma primavera árabe em versão europeia) ou para aduzir como prova no contexto de debates políticos mais amplos (neoliberalismo, multiculturalismo, consumismo, racismo institucionalizado e outros, conforme as inclinações). Nestes termos tão gerais, penso que será pacífico dizer que isto se aplica tanto às interpretações extraordinariamente simplistas (e, vão-me desculpar, de conteúdo analítico nulo ou quase) que temos visto, por exemplo, aqui, aqui e aqui, como também às leituras de conteúdo analítico mais elaborado (concordando-se ou não) que têm sido publicadas, mais uma vez por exemplo, aqui, aqui ou, gostaria eu de pensar, aqui.

Neste post, estou sobretudo interessado, não em lançar mais pistas para a discussão acerca das causas dos motins, mas em lançar algumas para uma meta-discussão acerca da interpretação de acontecimentos históricos. A que se deve o facto de, como diz um artigo do The Guardian, cada um “ver aquilo que quer ver” nos motins? Porque não é possível qualquer tipo de acordo em relação à interpretação dos acontecimentos e porque é que as discussões têm sido tão acesas? Na minha opinião, isso deve-se a quatro características principais da interpretação de acontecimentos históricos:

1) a tendência para o maniqueísmo e para a polarização a contrario: existe uma tendência, quase diria ‘natural’, para nos sentirmos desconfortáveis enquanto não definimos a nossa adesão ou rejeição em relação a um determinado acontecimento ou posição (mesmo quando, como veremos a seguir, esses acontecimentos são contraditórios e essas posições são diversas internamente). E essa definição tem normalmente lugar de uma forma maniqueísta e polarizada: sentimo-nos obrigados a decidir quem são para nós os bons e os maus – seja em Londres, na Líbia ou no Afeganistão –, sendo que os bons, à falta de melhor, são o inimigo do inimigo, ou os menos maus. Porém, o mundo fora dos filmes de acção e da banda desenhada não está dividido em bons e maus, mas em indivíduos e grupos com motivações e objectivos diversos e justificações mais ou menos éticas para as suas acções. Podemos concordar mais ou menos com essas causas e essas justificações, mas esquecemo-nos muitas vezes que é possível serem todos 'bons', serem todos 'maus' ou, mais habitualmente, serem todos 'cinzentos' e não sermos obrigados a rejeitar ou aderir incondicionalmente a nenhuma das partes em contenda.

2) o carácter intrinsecamente hipotético das proposições causais e a ausência de contrafactual: a qualquer acontecimento podem ser atribuídas causas (próximas ou últimas), ou seja, factores anteriores julgados suficientes e/ou necessários para provocar os acontecimentos em questão. O problema é que, não sendo possível recorrer ao contrafactual, o estabelecimento desses factores é intrinseca e insuperavelmente hipotético, sejam essas hipóteses convincentes ou risíveis. No caso dos motins, estamos a falar do que motivou cada um dos participantes a protestar, pilhar e/ou destruir – motivações que, a título individual, são obviamente diversas, por mais que possam gravitar em torno de vários eixos comuns. É por isso possível encontrar declarações de participantes nos motins e observadores próximos que os atribuem tanto a motivações rasteiras como a nobres motivações políticas. Quão convincente é o recurso a declarações isoladas para o estabelecimento de relações causais? Na minha opinião, muito pouco, precisamente porque sabemos que as motivações são diversas. Para além disso, qualquer tentativa de análise que procure ser minimamente sofisticada deve procurar ir além da análise textual das declarações individuais e procurar explicar o que está na origem das motivações para a acção, tendo aliás em conta que entre as causas mais profundas e as declarações de cada actor existem dois filtros: o da consciencialização do próprio actor e o da sua disponibilidade para a transmitir de forma fidedigna aos interlocutores (ambos os quais implicam distorção). (continua aqui)

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Os custos devastadores da recusa de mudar de rumo

Se a erupção desta semana é uma expressão de criminalidade pura e não tem nada a ver com o assédio policial ou o desemprego dos jovens ou a desigualdade desenfreada ou aprofundamento da crise económica, por que razão isto está a acontecer agora e não há uma década?

(…) Os distúrbios surgiram no que é hoje, de acordo com alguns indicadores, a cidade mais desigual do mundo desenvolvido, onde a riqueza dos 10% mais ricos é 273 vezes maior do que dos 10% mais pobres, atraindo jovens que viram as suas bolsas de estudo talhadas, ao mesmo tempo que o desemprego dos jovens atingiu um nível recorde e as vagas universitárias estão a ser cerceadas sob o peso de uma triplicação das propinas.

Os políticos e os media dizem que nada disso tem a ver com os adolescentes sociopatas que partem vitrinas de lojas para roubar plasmas e ténis. Mas onde exactamente é que os manifestantes foram buscar a ideia de que não há valor maior do que adquirir riqueza individual, ou que produtos de marca são o caminho para a identidade e o auto-respeito?

(…) Já se tornou claro que a Grã-Bretanha não está em condições de absorver a austeridade que está a ser imposta, depois de três décadas de capitalismo neoliberal que quebrou tantos laços sociais do trabalho e da comunidade.

(…) O que estamos a assistir agora em várias cidades da Inglaterra é o reflexo de uma sociedade assente na ganância - e a derrota da política e da solidariedade social. (…) Estamos a começar a ver os custos devastadores da recusa de mudar de rumo.

Seumas Milne, The Guardian

US?


Por que é que quando as famigeradas agências de notação baixam o rating de países como Portugal e a Grécia, as taxas de juro da dívida pública sobem nos mercados e quando baixam o dos EUA as taxas de juro baixam, como está a acontecer esta semana, revelando que os títulos do tesouro norte-americano continuam a ser um refúgio no meio da turbulência, a espinha dorsal dos mercados financeiros internacionais? Não será tanto porque a decisão da S&P se baseou num erro aritmético crasso, que obrigou a mudar a justificação dada, já que isto está em linha com as sórdidas práticas de agências por “desmantelar”. Na realidade, os especuladores sabem, e sabem que todos sabem e que todos sabem que eles sabem e assim sucessivamente, que os EUA se financiam numa moeda que controlam e que o serviço da dívida, dadas as garantidas baixas taxas de juro, representa 1,4% do PIB anualmente, enquanto para Portugal ou para a Grécia, duas regiões que se financiam numa moeda que não controlam, Estados sem soberania, é mais do triplo, sendo que a dívida dos EUA, em percentagem do PIB, está próxima da portuguesa, também graças à crise e ao Estado fiscal de classe.

Seja como for, dado o poder dos EUA na economia política internacional e as garantias da Reserva Federal, os seus activos continuarão a ser usados para a poupança privada que anda por aí à procura de veículos mais ou menos seguros que a transportem para um futuro por desbravar. Obama tem razão: os EUA não são a Grécia, nem Portugal, como também já defendi. Pena é que estejam a embarcar numa austeridade que até Nouriel Roubini, sempre lesto a recomendá-la para os periféricos de um euro disfuncional e peça central da crise, acha totalmente contraproducente. Hoje já somos de novo mais os que sabemos que a Europa e os EUA têm de rejeitar a economia de austeridade e que o problema é primeiramente político nos EUA e político-institucional na UE. De facto, o problema principal deste lado é que o euro não tem um verdadeiro banco central, que esteja autorizado a financiar directamente os Estados quando a situação dos mercados o exige e que tenha vontade de o fazer, associado, claro, a um “Tesouro” europeu que possa estimular as “regiões” que partilham a mesma moeda.

Enfim, se esta economia de austeridade não for rejeitada, o avião desacelera e cai, não havendo cintos que nos valham. Agora parece ser a vez da França. Mas a França também não é Portugal. A França financia-se numa moeda que não controla, é certo, mas se tiver grandes dificuldades passará a querer controlar essa moeda. Até porque o governo francês sabe que muitos cidadãos franceses, perante a austeridade, podem querer estar à altura das melhores tradições políticas deste país: 1789, 1848, 1871, 1936, 1968, 1995, 2005. Já só espero que ainda saibamos todos conjugar a primeira pessoa do plural, a que pode mudar a economia política na rua e para lá dela: nós.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Voando sobre um ninho de cucos


Ler o relatório sobre a descida da TSU e o aumento do IVA é toda uma experiência que varia entre a pior teoria económica neoclássica, o enviesamento ideológico e um optimismo infundado. E, ainda assim, só um governo cego insistiria na descida da TSU depois de ler as conclusões do estudo.

Vamos por partes. O relatório procede a um conjunto de simulações macroeconómicas em torno da descida da TSU e correspondente aumento da taxa de IVA, por forma a torná-la orçamentalmente neutra. Para isso utilizam um modelo de equilíbrio geral que, basicamente, ignora todo o contexto económico real: não há austeridade orçamental interna, não há volatilidade nos mercados financeiros, não há riscos de recessão mundial. Enfim, os modelos desautorizados pelo anterior governador do Banco de Portugal, como o João abaixo assinala. Mais, um dos pressupostos do modelo é o da optimização intertemporal dos consumidores que, de forma simples e simplista, implica que os portugueses tomam as suas decisões de consumo com vistas indefinidamente largas no tempo e tendo perfeito acesso ao crédito (uma hipótese completamente desacreditada pela própria economia neoclássica com os contributos da economia comportamental). Todavia, o mais fantástico é a própria confissão dos autores de que o modelo procede a hipóteses demasiado simplificadoras e que há constrangimentos, como o racionamento do crédito externo, impeditivas de qualquer veracidade dos seus pressupostos. Resumindo, o meu modelo não vale um chavelho, mas uso-o na mesma.

Por outro lado, os autores assumem a sua fé inquestionável nos mercados concorrenciais eficientes: a falta de competitividade da economia portuguesa está toda na regulação do mercado de trabalho, na regulação no mercado de produto e na política industrial que promove alguns sectores. Esqueçam toda a produção intelectual e académica sobre integração europeia, união monetária, liberalização do comércio mundial, captura do Estado por determinados grupos. Isso só complica o receituário de sempre. E já me esquecia: para os autores basta estar num sector exposto à concorrência internacional, de bens transaccionáveis, para a redução da TSU se reflectir imediatamente nos preços dos produtos. O idealizado mercado impedirá que os patrões se sirvam da medida para aumentarem as suas margens.

Concluindo, os autores usam modelos em que nem eles próprios acreditam, estão completamente cegos pelo seu fundamentalismo de mercado e, surpresa, surpresa, nem assim se mostram muito convencidos com a eficácia da medida, dados os seus efeitos recessivos de curto prazo e as distorções que podem introduzir entre os diferentes sectores da economia. Importa ainda notar que o estudo não diz nada sobre quanto é que nosso défice externo seria reduzido. Avançar com esta medida coloca em causa qualquer lógica.