sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Europa e soberania

"[a última vez que Portugal teve estratégia foi] Quando entrou na Europa. Foi uma estratégia, a muitos títulos, errada, viemos a perceber mais tarde. Mas havia um pensamento claro de afirmar Portugal como um país europeu. Hoje, a nossa estratégia tem que ser rever essa posição."

"Temos andado muitas décadas afastados de uma vocação, de um lugar. O nosso pensamento estratégico pode ser esse. E, para afirmar esse pensamento estratégico, temos que reforçar uma componente da nossa soberania."

"Não podemos estar submetidos a lógicas em que não temos a capacidade de decidir sobre as nossas vidas. A soberania e o bem comum são elementos centrais para uma estratégia para Portugal."

António  Sampaio da Nóvoa, em entrevista ao Jornal de Negócios

Empobrecimento competitivo: a escravatura é o limite


«Na Cidade do México, o ministro da Economia apareceu ensoberbecido por o ranking do Doing Business 2015 colocar Portugal em 25.º lugar. A subida no ranking deve-se a dois factores: por um lado, à redução do IRC, o imposto sobre os lucros das empresas (p. 56); por outro lado, à flexibilização do mercado de trabalho, tendo sido levadas em conta as medidas que cortam as indemnizações por despedimento e o aumento da duração máxima dos contratos a termo (p. 57). Em todos os outros itens considerados (desde a simplificação de procedimentos à protecção dos investidores minoritários), o país não revelou melhorias - ou até piorou. Neste contexto, o júbilo de Pires de Lima fica a dever-se exclusivamente à perda dos direitos laborais e à transferência de rendimentos do trabalho para o capital.
Quando o ministro da Economia aparece tão excitado com o ranking - em que Portugal, repita-se, apenas subiu naqueles dois factores -, o que ele está a transmitir é o lema da sua governação: a escravatura é o limite. Assim sendo, não será um motivo de regozijo Portugal aparecer à frente de países como a Holanda, a França, a Espanha, a Itália ou o Japão. É tão-só querer competir no mercado global através de salários baixos.»

Miguel Abrantes, Um ministro excitado com o modelo de salários baixos

«O que significa hoje a palavra competitividade e o que nos querem inculcar quando falam dela? No ranking internacional de competitividade do Fórum Económico Mundial (o fórum de Davos), Portugal subiu 15 lugares. Logo apareceram governantes e alguns comentadores a valorizar o feito, mas para a generalidade das pessoas o paradoxo, por certo, não passou despercebido: como é possível o país ter melhorado as suas condições de competitividade (...) se a economia está em estado comatoso, a dívida vai crescendo, falta emprego, a juventude e os trabalhadores qualificados emigram, os mais velhos são tratados como fardo e os seus saberes desperdiçados, é desvalorizada a investigação e a ciência, tudo é privatizado em saldo, a natalidade continua a cair, os direitos no trabalho e a contratação coletiva vão sendo aniquilados, as prestações sociais, as reformas e os salários são cada vez piores? As roças de café de São Tomé e Príncipe já foram muito "competitivas". O capitalismo nasceu e caminhou, muito tempo, em contextos em que o trabalho escravo ou quase era fator de competitividade.»

Manuel Carvalho da Silva, O empobrecimento competitivo

Adenda: Contrariamente ao noticiado, e que motivou o júbilo do ministro da Economia, parece que afinal Portugal perdeu duas posições no Doing Business 2015, o referido ranking do Banco Mundial. Agradece-se pois a quem possa dar conhecimento deste facto a António Pires de Lima, aproveitando para lhe assinalar que o país obteve um resultado muito positivo (10º lugar) no indicador relativo às facilidades na criação de empresas, que se deve em grande parte ao serviço «Empresa na Hora», uma das heranças nefastas dos anteriores governos socialistas, os tais da famosa «década perdida».

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

À esquerda, tempo de rever a estratégia


As recentes declarações de António Costa (AC) sobre a dívida pública são um verdadeiro programa de governo: "Não nos distraiamos daquilo que é essencial e que está ao alcance da nossa mão, que é reforçar o investimento através dos recursos que estão disponíveis. É necessário naturalmente fazer o outro debate [sobre reestruturação da dívida] e é necessário que os consensos técnicos alargados se vão estabelecendo ao nível europeu, porque só uma solução ao nível europeu seria possível e admissível." ("Económico"/Lusa, 24 Outubro).

Imagino a decepção dos sectores da esquerda que fixaram como objectivo estratégico para o combate político a reestruturação da dívida, de certo contando com o apoio de AC. O que este lhes disse é claro: não contem com o PS para um braço de ferro com a UE. No PS já se faz contas a uma maioria absoluta, meta que tentará alcançar apresentando uma candidatura inclusiva, aberta a personalidades de diversos quadrantes políticos. AC traçou uma linha vermelha: "Só uma solução ao nível europeu seria possível e admissível." Portanto, a saída da crise em que estamos mergulhados não depende de nós e terá de ser encontrada no plano da UE, num processo negocial algo parecido com o das recentes negociações de Hollande e Renzi que conduziram ao reforço da austeridade nos respectivos orçamentos para 2015.

AC admitiu também que se chegará a um compromisso com a UE que, mesmo sem tocar na dívida, nos permitirá receber os recursos financeiros correspondentes a uma hipotética reestruturação. Tendo presente a agressividade do debate sobre os acertos de contas no orçamento da UE, é preciso ter muita fé para acreditar que os países do centro estão dispostos a contribuir com transferências para a periferia da zona euro, em montantes que dispensem a reestruturação das suas dívidas. Convém não esquecer que o tratamento dado a Portugal seria reivindicado pelos outros países devedores, e que tal acordo generoso teria de ser aprovado pelos parlamentos alemão, austríaco, finlandês e holandês. Não sei de onde veio esta ideia, mas uma coisa é certa: não passa de um sonho.

Aliás, a insistência de AC no potencial de crescimento associado aos fundos comunitários, os do QCA já negociado, é também reveladora de grande optimismo. De facto, a execução do QCA depende da candidatura de projectos de iniciativa privada ou pública. Ora o actual clima de depressão, em Portugal e na zona euro, criou problemas de liquidez que tolhem os promotores privados e geram expectativas pessimistas quanto ao futuro, a curto e a médio prazo. Daí um inevitável arranque lento na componente privada do QCA. Por outro lado, a necessidade de conter o défice dentro dos limites impostos pela CE conduz o investimento público a um nível insuficiente para, mesmo com elevada comparticipação comunitária, produzir efeitos significativos no crescimento económico. Ao contrário do que AC sugere, não há boa administração do QCA que substitua uma política orçamental keynesiana e uma política industrial, ambas proibidas na UE.

Este é o impasse em que nos encontramos: à espera de um milagre orçamental europeu, por bondade da Europa rica; à espera que o BCE salve o euro, imitando a Reserva Federal americana.

Pelo menos os economistas sabem, ou têm obrigação de saber, que mesmo uma política monetária agressiva como a que os EUA têm praticado já não chega para salvar a zona euro da deflação. Vem tarde e terá uma escala limitada porque não pode correr o risco de um veto do Tribunal Constitucional alemão. Por isso, a zona euro está condenada a passar por sucessivos colapsos-relâmpago nos mercados financeiros, como o da semana passada, até que chegue o colapso final. AC e seus assessores têm dado sinais de que não percebem isto e, portanto, acabarão por ir a reboque dos acontecimentos. Quanto às esquerdas, chegou o tempo da reformulação estratégica: a dívida não pode ser um refúgio para evitar reconhecer que o euro já não funciona e acabará um dia destes.

(O meu artigo no jornal i)

A mão com dois pesos da política fiscal


Vale a pena ler esta notícia a propósito dos caminhos que segue a nossa administração fiscal e as múltiplas consequências que decorrem das escolhas políticas do Governo a este nível. Ao longo do mandato deste governo, a transferência de rendimentos do trabalho para o capital não podia ter sido mais descarada. E talvez a sua faceta mais transparente tenha sido a política fiscal. Reduções do IRC, dos benefícios e deduções fiscais para empresas e rendimentos mais elevados, ao mesmo tempo que o "enorme aumento de impostos" foi sendo aplicado à esmagadora maioria (não a todos).

Mas há uma outra faceta desta crescente desigualdade, que é o novo entendimento do que significa combater a fraude e a evasão fiscal. O Governo fez suas estas prioridades, dando-lhes uma inclinação muito particular. Ao mesmo tempo que os detentores de rendimentos de capital beneficiam da habitual bonomia e compreensão (ou da legalização da evasão - ver aqui), os restantes contribuintes sofrem crescentemente os efeitos de uma autêntica delinquência administrativa, em que os meios e as medidas mais desproporcionais são mobilizados, sem qualquer consideração pela gravidade das infrações ou pela disponibilidade dos contribuintes para as corrigir.

Ambos os lados desta desigualdade tem duas consequências. Em primeiro lugar, vão acabando com o pouco que resta da dimensão redistributiva do sistema fiscal de uma das economias mais desiguais da União Europeia. Em segundo lugar, a impunidade e a vista grossa do Governo em relação aos ricos, em contraste com a violência da perseguição e da arbitrariedade fiscal sobre a esmagadora maioria da população degrada a imagem da administração fiscal e cria uma cultura "anti-impostos", perfeita para quem ao mesmo tempo se ocupa de destruir aquilo para que os impostos são indispensáveis: serviços públicos universais.

Nina Simone: Love Me Or Leave Me



quarta-feira, 29 de outubro de 2014

A arte de manipular números

Quando o Governo entregou a proposta de OE 2015, Paulo Portas apareceu, sorridente, a frisar que uma das suas vantagens era ter aumentado o mínimo de existência de 8100 euros para 8500 euros. Ou seja, mais contribuintes pobres iriam ficar isentos de IRS.

Olhando de repente, parecia uma salto considerável. Mas olhando com mais atenção, repara-se que, afinal, o Governo apenas tinha aumentado esse limiar de existência entre 6 a 18 euros anuais.

A fatia de leão era devida, sim, ao aumento do salário mínimo nacional (SMN) que o Governo tanto se mostrou relutante em aumentar.

Explique-se:
O mínimo de existência vem consagrado no Código do IRS, artigo 70º. Nele, estipula-se - ainda está em vigor - que esse mínimo é igual ao SMN mais 20%. Mas essa percentagem sobe para 60% quando haja 3 ou 4 dependentes no agregado familiar e 120% quando haja 4 ou mais dependentes.

 Contas para 2015 sem aumento de SMN:
1) 485 euros x 1,2 x 14 meses = 8.148 euros
2) 485 euros x 1,6 x 14 meses = 10.864 euros
3) 485 euros x 2,2 x 14 meses = 14.938 euros

Contas para 2015 com aumento do SMN:
1) 505 euros x 1,2 x 14 meses = 8.484 euros
2) 505 euros x 1,6 x 14 meses = 11.312 euros
3) 505 euros x 2,2 x 14 meses = 15.554 euros

Ora, o que fez a proposta de OE 2015?
1) acabou com a relação entre o mínimo de existência e o SMN;
2) fixou o mínimo de existência, respectivamente, em 8.500, 11.320 e 15.560 euros.

Ou seja, para 2015 os acréscimos serão de:
1) 8.500 - 8.484 = 16 euros --> 1,14 euros mensais
2) 11.320 - 11.312 = 8 euros --> 0,57 euros mensais
3) 15.560 - 15.554 = 6 euros --> 0,43 euros mensais

Por que se deixam os membros do Governos cair na tentação de aproveitar todas as pequenas mentiras? Será que esperam nunca ser penalizados em tempo útil?

Vozes da austeridade (II)

«Quando não há comida, os meus pais fazem isto: deixam de comer para nos dar à gente»
Fernando, 14 anos (família numerosa, pai desempregado, minoria étnica, deficiência)

«A minha mãe trabalha na [nome da empresa] e depois também vai a um restaurante ajudar uma amiga, assim vai ganhando mais dinheiro (…). Depois, da parte da tarde volta para a [nome da empresa] e à noite vai para a universidade. (...) Ela também comprava daqueles suminhos pequeninos para levar para meio da manhã. Agora tenho levado umas sandes para meio da manhã sem nada para beber»
Leonor, 15 anos (família monoparental)

«A electricidade é assim, às vezes pagam os meus avós e o outro mês pagamos nós»
Daniel, 10 anos (pais desempregados)

«Ela [a mãe] tem as tensões muito elevadas, dá-lhe tonturas e anda sempre a queixar-se que não pode comprar os medicamentos»
Alexandre, 16 anos (família monoparental, mãe desempregada)

«Tenho medo de ficar pobre. Os meus pais ficaram os dois sem emprego e depois… e depois não terem dinheiro para pagar as coisas»
Carolina, 11 anos (família nuclear)

Um excelente trabalho jornalístico no Público de ontem, da autoria de Natália Faria, dá conta de dois estudos sobre os impactos da austeridade. Um, relativo ao aumento da pobreza infantil (UNICEF) e o outro sobre a devastação causada por cortes indiscriminados em diferentes prestações sociais, com significado particularmente grave no caso do Rendimento Social de Inserção (da OCDE, que sugere que a «poupança» resultante da fixação de um tecto nas prestações sociais deveria reverter para o reforço orçamental do RSI, tendo em vista reduzir a pobreza e não o défice). Tudo isto num país em que o fosso das desigualdades se acentua, o número de milionários aumenta cada ano de «ajustamento» que passa e onde uma maioria de direita prometeu, com irrevogável hipocrisia, «ética social na austeridade», assegurando que Portugal não era nem seria a Grécia.

A interpelação de testemunhos como os destas crianças, que se juntam a outros testemunhos, é demasiado profunda para que possa ser ignorada. Interroga-nos sobre o tipo de sociedade em que queremos viver. E obriga-nos a pensar e a decidir se aceitamos que a selvajaria se instale em definitivo e cave o abismo ou se exigimos patamares minimamente dignos, justos e decentes de vida colectiva.

terça-feira, 28 de outubro de 2014

A gaffe de António Costa não é tecnicamente colossal, politicamente...

António Costa meteu-se numa alhada. Referindo os dados apresentados no Relatório do Orçamento de Estado para 2015 (quadro III.3.1, na página 104), acusou o governo de estar a desperdiçar os fundos comunitários, já que as transferências da UE vão diminuir em quase 1,5 mil M€ em 2014 e outros tantos em 2015.

Acontece que as transferências da UE registadas no Orçamento têm pouco a ver com a execução efectiva dos fundos estruturais em Portugal. Por um lado, porque parte dos fundos é transferida logo à partida, antes ainda de haver investimentos no terreno. Por outro lado, porque os pagamentos a quem tem apoios do QREN são feitos antes de se pedir o reembolso respectivo a Bruxelas.

Serão poucos os leitores que resistiram a ler este texto até aqui. É normal: o assunto é técnico e desinteressante. Apenas os entendidos - e são poucos - percebem estas minudências. Mesmo entre estes, a maioria valoriza pouco esta questão.

Ou seja, do ponto de vista técnico, o erro de António Costa não é uma 'gaffe monumental' - como lhe chamou Castro Almeida, actual Secretário de Estado do Desenvolvimento Regional. Bem-humorado, o ex-dinaussauro autárquico, que anda há muitos anos a virar frangos (como hoje se diz), acrescentou que António Costa estava a confundir 'quilos com metros' e que 'não basta andar com dossiers debaixo do braço, é preciso lê-los'.

Se do ponto de vista técnico a questão é menor, do ponto de vista político a gaffe não é de somenos, por dois motivos.

Primeiro, António Costa passou uma imagem de impreparação, algo que não lhe deveria assentar e que os seus conselheiros poderiam ter evitado. (Poiares Maduro não deixou escapar o deslize, acusando Costa de "incompetência ou má-fé"Costa tentou responder, mas não convenceu.)

Em segundo lugar, o futuro líder do PS revelou-se inclinado para marcar pontos na agenda política de forma superficial. É que, erro técnico à parte, a discussão sobre os fundos europeus não deveria centrar-se nos níveis de execução, mas antes na sua qualidade (gastar é fácil, díficil é fazê-lo bem).

Esta gaffe de António Costa é um alerta. É-o para aqueles que parecem já dominados pela complacência, perante a perspectiva de umas eleições ganhas à partida. Mas também para aqueles que, de tanto quererem ter esperança, se esquecem que é preciso muito mais do que um bom líder para fazer um bom governo.

Sinais de retoma

Contrastando com os mais recentes indicadores de conjuntura das economias portuguesa e europeia, o número de visitas do Ladrões de Bicicletas tem vindo a apresentar sinais evidentes de retoma.

Depois de vários meses de queda - que os especialistas atribuem ao peso crescente das redes sociais e a um desencanto generalizado na sociedade portuguesa quanto a eventuais mudanças substantivas no rumo da governação - o número de visitas a este conhecido blog de refilões registou em Outubro, pelo segundo mês consecutivo, um crescimento em cadeia (em termos homólogos, os indicadores registam uma variação negativa, ainda que menos acentuada do que nos meses anteriores).

Mais de sete anos após a sua fundação, o Ladrões de Bicicletas parece ter vindo para ficar. Com muita economia, muita política, muita política económica, ainda mais economia política.



Encobrimento, preguiça e ingratidão


Numa passagem particularmente inflamada do seu discurso, no encerramento das Jornadas Parlamentares do PSD/PP, Passos Coelho acusou jornalistas e comentadores de serem «preguiçosos», «orgulhosos» e «patéticos». Defendendo que nunca houve um governo nem um orçamento com tanta «transparência», o primeiro-ministro afirmou que «todos os comentadores e jornalistas [podiam] olhar para os números e saber o que eles dizem», para considerar, logo a seguir, que «chega a ser patético verificar a dificuldade de gente que se diz independente tem de assumir que errou, que foi preguiçosa, que não leu, que não estudou, não comparou, que não se interessou, a não ser em causar uma boa impressão de dizer "Maria vai com as outras", o que toda gente diz porque fica bem». E sublinhou ainda, pela enésima vez, que o Governo conseguira recuperar a «credibilidade do país» e a «confiança dos agentes económicos».

1. Em matéria de clareza, talvez fosse bom que o governo tivesse, por exemplo, a fineza de divulgar a lista dos contribuintes que recebem benefícios fiscais em sede de IRC. Legalmente, o executivo está obrigado a fazê-lo até ao dia 30 de Setembro de cada ano, mas a publicação dos dados relativos a 2013 (sublinhe-se, 2013) ainda não aconteceu. Na passada quinta-feira, aliás, o Observatório de Economia e Gestão de Fraude (OBEGEF) assinalou publicamente esse facto, alertando para a «falta de transparência» que constitui a ocultação da dita lista.(*) O mais provável será, contudo, que prevaleça uma vez mais o modelo de accountability da Tecnoforma adoptado pelo primeiro-ministro e que foi curiosamente replicado pelo Ministério do Emprego e pelo Instituto Camões em relação ao CPPC, a famosa «ONG» de Passos Coelho (sem que o «desaparecimento» de papéis pareça ter suscitado, até ao momento, qualquer processo de inquérito ou averiguações).

2. Quanto à «preguiça» de jornalistas e comentadores, o primeiro ministro tem razão: basta pensar na importância que muitos deles tiveram (por não lerem, por não estudarem, por não compararem, por não se interessarem, por não interpelarem), para que um punhado de ideias falsas do senso comum, tão frágeis quanto convincentes, fossem amplificadas na comunicação social, ajudando a tecer as malhas da narrativa trágica que sustentou o mantra da austeridade e dos sacrifícios e que alçou a dupla Coelho e Portas ao poder. Do «viver acima das possibilidades» às «gorduras e ineficiências do Estado», passando pela conversa abjecta sobre os «malandros do RSI», os «direitos adquiridos», a «magia do empreendedorismo», o «desemprego como oportunidade» ou a «supressão de feriados como força motriz da competitividade». Historietas rasca e romances fraudulentos que muitos comentadores e jornalistas difundiram aos quatro ventos, sobretudo nas televisões, e a quem Passos Coelho deveria estar eternamente grato. E isto para já não falar dos serviçais sem escrúpulos, que povoaram em uníssono (e ainda povoam) os principais espaços televisivos de debate político-económico.

(*) Desta lista fazem parte, como recorda o OBEGEF, «as empresas com benefícios contratuais ao investimento, as empresas instaladas na Zona Franca da Madeira, as empresas com benefícios à criação de emprego, as empresas com taxas reduzidas de IRC para a interioridade, as empresas com incentivos à investigação e desenvolvimento, as cooperativas com taxa reduzida de IRC, as instituições de ensino particular com taxa reduzida de IRC e as empresas com benefícios de ISV».

África, financiadora do planeta

Apesar da pobreza, apesar dos fluxos de ajuda internacional e apesar das previsões da teoria económica, o continente africano é, em termos líquidos, financiador e credor do resto do mundo.

À luz do que sabemos sobre a incidência global da pobreza monetária, dificilmente esperaríamos que África estivesse há décadas a financiar o resto do mundo. Em 1990, quase 57% da população da África Subsariana auferia um rendimento (em paridade de poder de compra) inferior a 1,25 dólares por dia. Em 2011, apesar do forte crescimento económico entretanto registado, a incidência da pobreza monetária medida segundo esta linha de referência era ainda de 46,8%. Cerca de 400 milhões de pobres: um terço do total mundial . 
À luz do que sabemos sobre a ajuda internacional, também dificilmente esperaríamos que fosse esse o caso. Afinal de contas, a Ajuda Pública ao Desenvolvimento total (bilateral e multilateral) com destino ao continente africano ronda os 55 mil milhões de dólares anuais. E a este montante acrescem as remessas dos emigrantes africanos no exterior, que nos últimos anos ultrapassaram em montante a própria ajuda internacional e ascendem actualmente a cerca de 67 mil milhões de dólares . 
À luz do tema frequentemente glosado do perdão da dívida dos países africanos, e das iniciativas que têm sido lançadas nesse sentido geralmente acompanhadas por condicionalidades políticas e económicas de diversos tipos (como por exemplo a iniciativa HIPC, que abrange principalmente países africanos), esperaríamos com certeza que o continente africano fosse um devedor líquido do resto do mundo, não um credor.
E à luz da teoria económica ortodoxa mais simples, que postula que a produtividade marginal dos factores de produção é proporcional à sua escassez, pelo que a rendibilidade do capital deverá ser mais elevada onde este for mais escasso, esperaríamos assistir a fluxos de capital predominantemente em direcção aos países menos desenvolvidos, em busca dessa elevada rendibilidade - e não o contrário.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

...e aprender com a amiga


Foi uma merecida vitória de Dilma, apesar de tudo, ou seja, apesar da corrupção, da força dos interesses do agro-negócio, do extrativismo e do capital financeiro, da copa e de outros desperdícios. Qualquer apoiante crítico não pode esquecer alguns princípios fixos progressistas que transformaram o Brasil para melhor: da política externa autónoma às conquistas naquelas três áreas onde se decide parte decisiva das capacidades individuais e colectivas, das liberdades efectivas, ou seja, no emprego, na provisão social e na redução da pobreza e das desigualdades. Basta pensar, seguindo os dados sistematizados por Weisbrot, que o poder de compra do salário mínimo cresceu 84% nestes doze anos de hegemonia do Partido dos Trabalhadores, que a taxa de desemprego caiu para valor mais baixo da história (de mais de 12% para menos de 5%), ao mesmo tempo que o sector formal da economia se expandia consideravelmente; basta pensar na expansão das despesas sociais, de tal forma intensa que a fronteira entre assistência e direito universal se esbateu de certa forma, contribuindo para que a pobreza tenha recuado 55% e fazendo com que os mais pobres tenham ganho peso na agora um pouco menos desequilibrada estrutura de rendimentos. Basta ainda pensar, entre outras, na espectacular expansão da oferta educativa, por exemplo no ensino superior, ou na visão estratégica subjacente a um certo controlo nacional dos recursos petrolíferos, em contraste com o afã privatizador de Fernando Henrique Cardoso, o das maiores privatizações de sempre da história do capitalismo, o da crise e da estagnação, ao contrário do mito alimentado por certa imprensa nacional. Em tempos de recuo neste lado, as classes populares avançaram do outro. A insatisfação fundada e o protesto mais presente do outro lado também estão imbricados com a progressão das expectativas ocorrida. E um governo desenvolvimentista precisa mesmo de um movimento popular que lhe pise os calos. Precisa daquilo que Lula definiu um dia como a mão visível do povo, essa sim muito mais eficaz do que a mais afamada mão invisível.

Aprender com o inimigo...


Qualquer política pragmática – na realidade, especialmente uma política pragmática – tem de basear-se em qualquer princípio fixo a fim de impedir que as habilidades tácticas se dissipem numa ordem aleatória. 

Henry Kissinger, Diplomacia, 1996, p. 83

Os testes de stress

Apesar do percalço BCP, que não tem grande importância, os outros dois bancos portugueses incluídos nos testes de stresse do Banco Central Europeu - Caixa Geral de Depósitos e BPI - passaram com distinção. Quererá isto dizer que o sector financeiro português está sólido?

Em primeiro lugar, é preciso lembrar que nem todos os bancos portugueses foram incluídos neste exercício. Se a exclusão de bancos como o Banif ou o Montepio já é questionável, a não inclusão do Novo Banco limita fortemente a relevância dos resultados ontem divulgados. Não só não conhecemos a real situação do terceiro maior banco português, como, em virtude da medida de resolução adoptada, desconhecemos o valor da responsabilidade contingente que impende sobre todo o sistema financeiro português: num cenário (bastante provável) da venda do Novo Banco implicar um prejuízo, o custo é suportado pelos restantes bancos do sistema. A incerteza em torno do valor da venda do Novo Banco não é um risco para a banca portuguesa menor do que o de uma recessão económica ou do que de um aumento do desemprego. Mas é um risco que não foi tido em conta nestes testes de stresse.

Independentemente da qualidade dos balanços dos bancos portugueses, há outro problema que não é tratado nestes testes de stresse e que tem a ver com a própria concepção de solidez utilizada. Um dos pressupostos deste exercício do BCE (bem como de toda a actividade actual de supervisão financeira) é que o sistema é tanto mais sólido quanto mais as instituições que o compõem estiverem capitalizadas. Isto só é verdade se recorrermos a um outro pressuposto, o de que a actividade dos bancos é sustentável e compatível com a sua solvabilidade de longo prazo.

Não se trata de olhar para rácios e verificar se resistem a choques adversos, mas sim perceber se, num contexto de elevado endividamento dos agentes económicos e de inexistência de procura, instituições que têm como principal actividade criar dívida podem ser solventes em termos dinâmicos. Sabemos como os bancos têm sobrevivido nos últimos tempos: dependem do carry trade proporcionado pelo BCE e têm inflacionado o preço dos activos financeiros, sem qualquer correspondência com a economia real. Este tipo de actividades podem ser úteis para os bancos no curto prazo, mas são totalmente irrelevantes para o resto da economia e, no longo prazo, revelam-se insustentáveis para os próprios bancos.

Uma crise não é uma mera perturbação temporária num sistema essencialmente estável. Uma crise existe quando o sistema entra em convulsão e se torna vítima das suas próprias contradições. É o caso do actual sistema financeiro. O problema actual não pode ser resolvido robustecendo as componentes do actual sistema. Se a dinâmica for insustentável, não há rácios de capital que nos salvem. Nesse caso, toda a solidez é aparente e, como dizia o outro, rapidamente se dissolve(rá) no ar.

(artigo publicado na edição online do Expresso)

Testes de stress - II

Embora seja muito claro o chumbo do BCP no teste do BCE, a manipulação mediática tem sido muito eficaz a esconder o falhanço do banco. Hoje, vemos notícias sobre: como o banco consegue captar depósitos (falência do BES?); como já se tinha recapitalizado este ano (para devolver o empréstimo ao Estado, sendo portanto o efeito no capital nulo, como aliás o BCE mostra no seu relatório); como vendeu a "sua exposição ao défice tarifário da EDP" (algo de que ninguém ouviu falar antes); ou, finalmente, como o cenário adverso do teste de stress tem uma probabilidade muito baixa de acontecer (dar probabilidades a acontecimentos financeiros é actividade que não tem sido muito bem sucedida...).
Vale tudo, portanto, entre desvalorizar, confundir e olhar para o lado. O curioso desta situação é não existir, aparentemente, nenhum jornal que se lembre do triste papel a que se prestou a imprensa, aqui há uns meses, aquando da iminente falência do BES.

Testes de Stress - I

Segundo o BCE, o BCP sobreavaliou os seus activos em 1161 milhões de euros (896 milhões líquidos de vantagens fiscais). Isto nada tem que ver com os testes de "stress" em que se fazem previsões sobre o impacto de diferentes cenários negativos no balanço de um banco. Esta extraordinária diferença diz respeito à avaliação dos activos "realmente existentes" do banco. Em suma, o BCP andou a "maquilhar" as contas. Uma coisa que só tinha acontecido no BPN, no BPP e no BES. Todos casos isolados.

A verdadeira reforma do IRS


“Se a reforma não é estrutural, então o que é que é uma reforma estrutural?” Foi assim que Paulo Portas, em directo nas televisões no sábado passado, das jornadas parlamentares da Maioria, puxou dos galões por uma reforma feita à sua imagem.

O secretário de Estado Paulo Núncio é militante do CDS, conselheiro de Paulo Portas e formatou as comissões de reforma do IRC e IRS para não ter surpresas. Colocou como presidente da comissão do IRC António Lobo Xavier, um militante e ex-deputado do CDS, administrador do BPI, do grupo Sonae e da principal construtora nacional (Mota-Engil). E para a comissão do IRS vetou nomes que poderiam pôr em causa as suas ideias, como Manuel Faustino, ex-responsável na administração pelos Impostos sobre o Rendimento, tido como o “pai” do IRS.

Não se tratou de uma reforma estrutural. Estrutural foi a criação do IRS em 1988, que visou tributar da mesma forma os tipos de rendimento. Mas, apesar da intenção, essa reforma não agregou todos os rendimentos e – por pressão do Governo Cavaco Silva – manteve a tributação do capital à parte, com a das mais-valias mobiliárias quase isentas. E pior: determinou que se fizesse fé das declarações dos contribuintes, retirando poderes ao Fisco para as questionar.

Nessa altura, os salários e pensões representavam cerca de 60% do rendimento, próximo dos dados do INE. Passados 25 anos de remendos e entorses, vaidades comezinhas e corrupções, permitiu-se uma considerável evasão. Veja-se os números trabalhados a partir dos valores oficiais da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).


Em 2012, salários e pensões representavam 90% do rendimento declarado e pagavam 80% do IRS liquidado. Os rendimentos de capital eram 9,2% do rendimento declarado e pagavam 17,3% da receita do IRS. É de acreditar?

Nesse ano, os assalariados e pensionistas tiveram um rendimento médio por agregado de 13 mil euros anuais e os detentores de capital e mais-valias de 31 mil euros anuais... Os rendimentos dos empresários são de 6 mil euros anuais. Tal como os detentores de rendimentos prediais. As próprias estatísticas da AT passaram a designar as categorias de rendimentos do capital e mais-valias como “outros” rendimentos.

Estrutural seria, sim, ajustar as declarações à realidade. Mas esta “reforma” riscou o uso pela AT de indicadores médios de actividade que poderiam ser usados para questionar os contribuintes. Esses métodos ficaram na Lei Geral Tributária desde 1998, mas nenhum Governo os pôs de pé. E claro, este também não. “O natural de um governo de centro-direita é gastar menos e tributar menos”, disse Portas no sábado.

Esta foi uma “reforma” feita à pressa, em ano de eleições, para salvar a cara do CDS com uma “moderação fiscal”, porque foi Portas quem deu também a cara – sem protestos audíveis - pelo “enorme aumento de impostos” de 2013 que, aliás, ainda se manterá em 2015. Na altura, essa medida foi desenhada para mudar o motor da economia: cortar num consumo “acima das nossas possibilidades” - mas cuja subida agora se aplaude – e fazer subir as exportações, que afinal estarão em recuo. Portas defende agora um IRS “amigo das famílias” e do “crescimento da demografia”. Mas foi, sim, a alteração da legislação laboral defendida pelo CDS desde 2003 uma das maiores condicionantes da demografia, ao levar à redução salarial e à redução dos tempos de lazer.

A “reforma” do IRS foi feita em cima do joelho e sem estudos de impacto. De tal forma que obrigou à “balbúrdia” da cláusula de salvaguarda.

E quais serão os seus efeitos?
  1. Tributar menos as famílias numerosas, embora aquém do cortado no abono de família. Depois, desde o início do século XXI, entre 2001 e 2011, que as famílias numerosas em expansão são as de empresários (de 1,1 para 3% das famílias), as de quadros profissionais e técnicos (de 9 para 14,6%) e profissionais administrativos e de serviços (de 12,7 para 16,9%). As dos operários, ainda maioritárias, estão em recuo (de 25 para 21%). Para mais detalhes, ver aqui (quadro 9.8, pag 221). E uma coisa é certa: as famílias mais pobres (2,1 milhões de assalariados e pensionistas e 268 mil de assalariados com outros rendimentos) não beneficiarão desta medida - nem da nova dedução com despesas de educação (nova versão "cheque-ensino" do CDS) - porque já não pagam IRS, de tão pobres que são, mesmo sendo assalariados. E esses poderão ser ainda penalizados por outra medida: 
  2. Criar-se-á um tecto aos apoios sociais, como forma de castigar os preguiçosos – pobres - que vivem à custa do Estado, dando lastro à mais velha a bafienta filosofia de que os pobres têm é de ser postos no lugar, para não se embebedarem.
Eis mais uma “reforma estrutural”.

domingo, 26 de outubro de 2014

Prá Frente Portugal

“Em 1974, 1976, 1980, era proibido a qualquer pessoa que não fosse desse setor dizer que eles [PCP e BE] tinham razão. Eu acho que eles têm razão”, disse Freitas do Amaral esta semana, defendendo a nacionalização de 1/3 da PT para assegurar o controlo público de uma empresa considerada vital para o desenvolvimento tecnológico do país.

O espírito dos aludidos anos de bifurcação era bem mais favorável, a correlação de forças era outra, e as proibições a que Freitas alude eram paradoxalmente sinal disso mesmo, até porque estava muito mais generalizada a ideia do controlo público de sectores estratégicos como esteio do Estado democrático. As nacionalizações eram conquistas irreversíveis, segundo a Constituição. Nada é irreversível, claro.

Hoje, os termos do debate estão tão saturados de hipóteses neoliberais, são tão dominados por uma certa direita, em especial no campo da economia política e da política económica, que quem ficou mais ou menos no mesmo sítio, alguém que já se declarou influenciado, entre outras, pela tradição gaulista, tem de alinhar nestas áreas com as esquerdas realmente existentes.

Aproveito para fazer uma pergunta: dadas as convergências constantes no campo das propostas de política pública entre estas esquerdas, não é cada vez mais claro que está na hora de voltar a dar uma expressão político-eleitoral mais robusta ao ideal do povo unido?

Lou Reed: Dirty Boulevard


sábado, 25 de outubro de 2014

O que está primeiro, Direitos Humanos ou dívida?

Quantas vezes nos é dito que a dívida tem de ser paga até ao último cêntimo, custe o que custar, porque as obrigações internacionais contraídas pelo Estado português têm de ser respeitadas?

E se as obrigações contraídas pelo Estado junto dos seus credores financeiros colidirem com outras obrigações contraídas pelo mesmo Estado em convénios internacionais, como os respeitantes aos Direitos Humanos? O que deve prevalecer? Dívida ou Direitos Humanos? (ver entrevista a Catarina Albuquerque - Relatora da ONU para o Direito à Água Potável).

Que existe conflito entre austeridade e serviço da dívida e Direitos Humanos, em particular os que decorrem do Pacto Internacional do Direitos Económicos e Sociais, parece claro. Alguns exemplos:

1) Direito ao trabalho: aumento desmesurado do desemprego (nomeadamente de longa duração), desproteção do trabalho (bloqueamento da contratação coletiva, degradação do salario mínimo, insegurança no trabalho, liberalização dos despedimentos);

2) Direito a um nível de vida adequado: redução dos salários, dos apoios sociais e aumento da pobreza, reformas fiscais regressivas;

3) Direito à segurança social e protecção social: degradação dos sistemas de pensões e da proteção face ao desemprego;

4) Direito à habitação: despejos, aumento do número de pessoas sem abrigo;

5) Direito à alimentação: limitações de acesso a subsídios, aumentos do IVA;

6) Direito à água: privatização, aumentos das tarifas, degradação de infraestruturas, cortes de abastecimento por não pagamento;

7) Direito à Educação: cortes nos subsídios e bolsas, degradação profissional dos professores, redução da cobertura territorial, dimensão das turmas, degradação do apoio a grupos particulares;

8) Acesso à saúde: taxas moderadoras transformadas em copagamento, degradação das condições de acesso e qualidade dos cuidados

O que deve prevalecer, serviço da dívida ou direitos humanos?

A jurisprudência internacional é clara a este respeito. O “não há dinheiro” dos poderosos e dos economistas do costume, não é em nenhum caso uma razão que justifique a violação ou o retrocesso no domínio dos direitos humanos.

A lei internacional, decorrente dos tratados, determina nomeadamente que os direitos cívicos, políticos, económicos, sociais e culturais não são descartáveis em tempos de crise, que são imperativos legais e objectivos políticos de ordem superior, isto é, que os governos têm a obrigação de assegurar o primado dos direitos humanos. Na prática, isto significa que os governos estão obrigados a mobilizar o máximo possível dos recursos para garantir o núcleo essencial de direitos em todas as circunstâncias. Estão obrigados a explorar todas as alternativas para o garantir: realocando recursos, gerando recursos pela política fiscal, monetária, de regulação, recorrendo se necessário ao financiamento deficitário, reestruturando a dívida, recorrendo à assistência internacional a que todos estão obrigados.

Isto não são princípios abstratos. À luz dos direitos humanos não é admissível, por exemplo, existir uma situação, seja ela qual for, em que uma parte da população fica privada de acesso a água potável por falta de rendimento para a pagar, ao mesmo tempo que uma outra parte se refresca na piscina. Da mesma forma, não é admissível que alguns sejam privados de cuidados básicos de saúde, ao mesmo tempo outros pagam operações de estética. Muito menos admissível é que alguns sejam remunerados por investimentos financeiros em dívida pública ao mesmo tempo que entram colapso infraestruturas públicas, é restringido o acesso à justiça, à saúde e à educação, se torna esparsa a cobertura territorial por serviços públicos, apoios sociais são transformados em sopa dos pobres.

O “não há dinheiro”, sobretudo num tempo em que o dinheiro brota abundantemente do BCE e dos Orçamentos de Estado para resgatar bancos e comprar o lixo financeiro lá acumulado, não convence, não é uma justificação para o sacrifício do núcleo fundamental dos direitos humanos.

De acordo com a jurisprudência internacional o "não há dinheiro" também não é justificação para o retrocesso na garantia dos direitos. A regressão carece de uma justificação melhor. De acordo com a jurisprudência, só pode ocorrer depois de cuidadosa consideração de todas as alternativas. Uma medida regressiva para ser considerada justificada, deve ser temporária, necessária e proporcional (deve ser demonstrado que qualquer outra política, ou omissão, seria ainda mais prejudicial em termos de direitos), não discriminatória (deve ter em consideração alternativas fiscais que operem transferências que assegurem que indivíduos e grupos marginalizados não são afectados de forma desproporcionada), deve preservar o núcleo mínimo de direitos e de protecção social.

Os Direitos Humanos são palavras escritas numa folha de papel? Não é tanto assim. A experiência portuguesa mostra que os tribunais, enquanto funcionarem com independência, podem evitar muito sofrimento desnecessário. Em geral, o Tribunal Constitucional português, tem cumprido esse papel. Mais força ganharão os Direitos Humanos contra o poder do “não há dinheiro” se as pessoas souberem que os governos estão obrigados a garanti-los, se necessário à custa das obrigações que assumiram perante os seus credores.

Capitalismo

O canal francês "Arte" encomendou um documentário sobre o capitalismo que procura juntar o capitalismo "realmente existente" e as grandes perspectivas teóricas, de Adam Smith a Polanyi, passando por Marx. Nele se encontram testemunhos de muitos economistas e historiadores abundantemente referidos neste blogue. Tempo bem despendido.

Deixo aqui os quatro primeiros episódios. Ficam a faltar dois.








sexta-feira, 24 de outubro de 2014

«Lugar aos novos»... mas quais novos?


A Assembleia da República debateu, na passada quarta-feira, a petição promovida pelo Manifesto dos 74, «Preparar a reestruturação da dívida para crescer sustentadamente», tendo sido igualmente debatidos os Projectos de Resolução apresentados pelo PCP, BE e PS.

O Manifesto que daria origem à petição, promovido por personalidades dos mais distintos quadrantes políticos e sociais e oriundas de diferentes universos da nossa vida colectiva, constituiu um sobressalto cívico da maior relevância, denunciando já na altura aquilo que hoje se sabe de uma forma ainda mais cristalina: a austeridade e o empobrecimento não pagam a dívida e a sua reestruturação torna-se, a cada dia que passa, cada vez mais incontornável.

As reacções ao surgimento desta iniciativa, por parte do governo, presidência e de outros situacionistas, não se fizeram esperar. E pautaram-se em regra, com diferentes matizes, pela exasperação e fúria, próprias de quem é apanhado sem chão, em plena dissimulação da realidade. Entre essas reacções, recordo-me particularmente da de José Gomes Ferreira, que decidiu então escrever a sua famosa «Carta a uma Geração errada».

Nessa carta, Gomes Ferreira propunha o seguinte aos subscritores do Manifesto: «Que tal deixarem para a geração seguinte a tarefa de resolver os problemas gravíssimos que vocês lhes deixaram? É que as vossas propostas já não resolvem, só agravam os problemas. Que tal darem lugar aos mais novos?» Perante esta menção à «geração seguinte» e aos «mais novos», ficou sempre uma dúvida: de quem estaria a falar José Gomes Ferreira? De Cavaco Silva, Eduardo Catroga, Braga de Macedo, Ângelo Correia e Paulo Portas, entre outros... Ou de jovens, com ideias velhas e ultrapassadas, como Carlos Moedas, Álvaro Santos Pereira, Bruno Maçães, Vítor Gaspar e o próprio Passos Coelho?

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Sinais, prenúncios, espíritos, expectativas e nada

Querem saber o que é o neoliberalismo em acção, ideias que se transformam em políticas públicas? Leiam a última análise da Comissão Europeia sobre a engenharia regressiva que impôs à economia política portuguesa. Está lá tudo: austeridade e privatizações sem fim, mais, sempre mais, reformas regulatórias para expandir o poder dos patrões, os rendimentos do capital, face aos trabalhadores, prescrição de regulação conforme à uma idealizada concorrência mercantil para um número crescente de áreas da vida económica e social, pressões sobre o que resta da interpretação constitucional que assume que isto ainda é um Estado soberano e democrático.

Este tipo de análise e as suas imposições de política traduzem fielmente o espírito das regras do jogo europeu. Também por isso creio já ser contraproducente presumir que a Comissão Europeia e o BCE, com quem estas coisas são sempre cozinhadas, podem ser diferentes, que a sua natureza está a mudar, que nos vão dar grande margem ou, pior ainda, que estes arranjos alguma vez vão permitir um governo com políticas populares, capazes de reverter a actual engenharia regressiva.

No quadro destes arranjos, a reestruturação da dívida, por exemplo, será como até aqui, ou seja, nos tempos, termos e interesses dos credores e com contrapartidas pesadas em termos de esvaziamento da soberania, ou seja, da democracia e do Estado social a esta associado. O tratamento da dívida alemã nos anos cinquenta, repescado por bem-intencionadas propostas europeístas de reestruturação que circulam por aí, esbarra num detalhe que eu resumiria na seguinte pergunta: qual é o equivalente actual dos soviéticos em Berlim e do espectro real do comunismo? A verdade é que, sem alternativas radicais no horizonte, essa analogia nunca funcionará. Não é aliás por acaso que há entre os europeístas uma inflação de espectros. O problema é que as elites dominantes os veem como pouco ameaçadores: aguenta, ai aguenta, aguenta, parece-lhes mais realista e ainda não se enganaram.

Entretanto, é penoso ver Francisco Assis, só para dar um exemplo, identificar, na sua coluna do Público da passada semana, o mesmo desde há vários anos a esta parte: “pequenos sinais prenunciadores de uma alteração de ambiente” na Europa. Esta semana volta ao mesmo, agora a propósito do antigo governante de um paraíso fiscal, pilar da austeridade, que é Presidente da Comissão: “Mais do que o discurso em si mesmo, o mais marcante foi aquilo que poderíamos designar como o ‘espírito do discurso’ (…) Não sabemos se Juncker vai ou não estar à altura das expectativas que criou, mas o simples facto de as ter originado constitui já um progresso de inegável importância.” Na realidade, isto é tudo o que a sabedoria convencional, europeísta e progressista, tem para nos oferecer: sinais, prenúncios, espíritos, expectativas e nada. O ambiente é cada vez mais irrespirável, mas o PS prefere adiar, indiciando uma estratégia nas suas consequências muito semelhante à do governo: é preciso continuar a debater essa coisa, cujo nome até evitamos pronunciar, esperando não se sabe o quê dos credores. Os novos cães de guarda gostam do PS assim.

Voltando a Assis, que, honra lhe seja feita, não pretende enganar ninguém, dado o seu perfil ideológico: a estratégia é mesmo ir diminuindo as expectativas, aceitando, na prática, e em muita da teoria, os termos fixados pela hegemonia neoliberal segura em Bruxelas e em Frankfurt. O europeísmo tem sido a via para a destruição da social-democracia, temo-lo dito há muito e quanto mais sabemos sobre o eurocepticismo da social-democracia mais consequente nos seus tempos áureos mais confirmamos esta ideia.

Agora, em troca de uma eventual tolerância em relação aos prazos das metas orçamentais, em larga media inevitável porque se trata de uma variável endógena, aceita-se a continuação e aprofundamento do que Assis apoda de “reformas difíceis” (eufemismo que é toda uma política antipopular), ou seja, o programa passado, presente e futuro da Comissão. De Renzi a Valls, passando por Draghi é este o consenso. É para isto mesmo, para renovar o consenso neoliberal, adaptando-o às circunstâncias, que servem, entre outras, as regras orçamentais: são parte de uma mais vasta arquitectura disciplinar, que inclui o poder monetário pós-democrático de um BCE disposto a algumas acomodações para manter a coisa intacta.

Perante esta força externa, que desequilibra em definitivo as relações de força internas, que desloca o debate para um campo cada vez mais saturado de hipóteses neoliberais, só a desobediência aberta, nacional e popular, é razoável e potencialmente mobilizadora, usando a reestruturação da dívida como uma das armas dos subalternos em relações internacionais, na linha do que propõe a autoria cidadã. Isto inclui naturalmente a preparação da saída do euro, como parte de um processo mais vasto e que, a fazer fé no eurobarómetro, já goza no nosso país de um apoio popular bem maior do que as duas representações parlamentares que lhe deram na semana passada tradução política. Não tomar posição sobre isto, fingir que o tema não existe, é uma demissão incompreensível no presente contexto.

A diferença que faz Juncker

Ontem ficámos a saber que o novo presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, defende a flexibilização das regras orçamentais da UE, bem como o lançamento de um vasto programa de investimentos para relançar o crescimento à escala continental. Esta notícia trouxe alento a quem acredita na possibilidade de uma saída para actual crise portuguesa (e de outras economias da periferia da zona euro) que não passe por soluções traumáticas – sejam elas no sentido de uma reestruturação (potencialmente conflituosa) da dívida pública, ou no sentido de um acentuar da estratégia de austeridade (o que passaria por acelerar o desmantelamento do Estado Social).

Quem tem presente a tese do “triângulo das impossibilidades da política orçamental” que aqui defendi, intui com facilidade o sentido da diferença que as propostas de Junker podem fazer. Por um lado, um dos vértices do triângulo – as exigências do Tratado Orçamental – deixaria de constituir uma restrição tão severa. Por outro lado, a redução da austeridade e o programa de investimentos tornariam mais credíveis as previsões de rápido crescimento económico. Logo, seria mais fácil reduzir a dívida sem necessidade de reestruturação e sem desmantelar o Estado Social.

Importa notar, no entanto, que Juncker não defende o fim da ‘consolidação orçamental', apenas a sua flexibilização. Se formos optimistas, podemos esperar que tal signifique que, durante alguns anos, ‘apenas’ será exigido aos Estados que mantenham défices orçamentais abaixo dos 3% do PIB (em vez de reduzir o défice estrutural para 0,5% do PIB e de reduzir a dívida pública excessiva em 1/20 por ano). Dado que Portugal paga cerca de 4,5% do PIB em juros todos os anos, isto implicaria manter saldos orçamentais primários (i.e. após pagamento de juros) positivos superiores a 1%, durante mais de uma década (assumindo que a benesse de Juncker estaria em vigor até lá).

Em segundo lugar, Juncker ainda não explicou de onde virão os fundos para o seu programa de investimentos, sendo certo que a participação dos Estados estará limitada pelo objectivo de “consolidação orçamental”. Se formos muito optimistas (i.e., se ignorarmos os elevados níveis de endividamento privado em Portugal e a fragilidade do padrão de especialização da nossa economia), podemos assumir que o 'Plano Juncker' conduziria a um saudável crescimento real do PIB na ordem dos 1,8% ao ano, a partir de 2016 (o valor referência utilizado pelas instituições internacionais para o crescimento de longo prazo em Portugal).

Se continuarmos nesta linha de optimismo, podemos assumir que a deflação será eficazmente combatida a breve trecho e Portugal poderá regressar aos 1,8% de inflação anual, habitualmente apresentados como valor “normal” de longo prazo.

A pergunta seguinte é: com estas perspectivas optimistas, em que medida se altera a severidade das escolhas que aqui foram discutidas? A resposta é, muito pouco.

A probabilidade de se verificarem as condições atrás referidas passa de cerca de 6% (30 casos em 504 observações), nas anteriores estimativas, para 7,5% (38 casos). Se considerarmos as previsões do DEO para o crescimento do consumo privado, passamos de uma probabilidade de 2% (10 casos) para 2,7% (14 casos).

Note-se ainda que, tal como anteriormente, aqueles valores correspondem à probabilidade de se verificarem as condições previstas num único ano. No entanto, tais condições teriam de ocorrer não apenas num ano, mas todos os anos ao longo de pelo menos uma década.

E, tal como nos meus cálculos anteriores, em nenhum dos casos identificados o país em causa apresentava uma dívida externa líquida superior a 100% do PIB – como é o caso actual da economia portuguesa.

Que diferença fazem, então, as propostas de Juncker? Em suma, muito pouca. Consiga ou não Juncker convencer os governos europeus (em particular o alemão) da bondade das suas propostas, ainda estaremos perante a necessidade de fazer escolhas traumáticas.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Fizeram uma escolha


Nos debates sobre dívida pública, o governo português apresenta-se como querendo honrar os compromissos do Estado e pagar tudo o que deve. Tem moral quando o faz? - Não, não tem. Na realidade, o governo português decidiu "não pagar" parte dos salários dos funcionários públicos e parte das pensões de muitos pensionistas, em vez de tentar negociar a flexibilização das metas orçamentais ou uma nova estrutura para a nossa dívida pública. Negociar não significa conseguir o resultado pretendido, mas nem sequer tentar significa fazer uma escolha à partida - para honrar os compromissos internacionais, o governo escolheu não honrar os compromissos com uma parte significativa dos cidadãos portugueses. É uma opção política legítima, não podem é apresentar-se como os que honram todos os compromissos e contratos assumidos pelo Estado português. O haircut unilateral imposto sobre salários e pensões são uma violação dos contratos assumidos entre o Estado e os seus trabalhadores e pensionistas - podem alegar que se tivessem escolhido outra opção teria sido pior, não podem é dizer que "pagam" tudo.

Também relativamente aos credores, o governo tem dois discursos diferentes, consoante sejam externos ou nacionais. Se por um lado não prevêem nenhuma negociação com os credores internacionais, já relativamente aos credores das câmaras municipais o governo entende que qualquer programa de resgate, no âmbito do Fundo Apoio Municipal, deve implicar uma negociação prévia, que pode implicar (i) alongamento dos prazos de pagamento, (ii) perdão de juros de mora, (iii) redução das taxas de juro ou (iv) perdão de capital em dívida. É o próprio secretário de Estado, António Leitão Amaro, que diz que "se os contribuintes fazem um esforço, é natural que os credores também o façam e, se calhar, é melhor receber 70% agora do que 100% daqui a três anos". E tem toda a razão. O governo não pode é acusar os outros de "não quererem pagar" quando é isso que faz com funcionários públicos, pensionistas e credores de autarquias. Fizeram uma escolha, têm de viver com ela.

(crónica publicada à quarta-feira no jornal i)

Cortar para lá do osso, preservando as gorduras


A proposta de Orçamento de Estado aplicou, ao ensino básico e secundário, a maior fatia do corte de despesa pública assumida pelo governo para 2015. São cerca de 704 milhões de euros a menos, o que traduz uma redução de 11,3% em relação à estimativa de execução prevista para 2014. Trata-se, portanto, do maior golpe alguma vez desferido na Educação e que ocorre, como bem lembrava o Pedro Sales, em ano de alargamento da escolaridade obrigatória. Já não se trata de cortar no músculo, agora é mesmo entrar pelo osso adentro.

Bem pode o ministro Nuno Crato defender que a «dimensão real» dos cortes no sector será de «apenas» 200 milhões de euros, apresentando o restante valor (cerca de 500 milhões) enquanto despesa de 2014 «que não transita para 2015», como se essa despesa que se extingue correspondesse a gastos supérfluos. Não, não são. São cortes que resultam, entre outros, da redução de pessoal docente, do aumento do número de alunos por turma e do encerramento selvático de escolas, a que o ministro chama, insidiosamente, «ganhos de eficiência». Isto é, são o resultado líquido da política de terra queimada em que Crato mergulhou a Escola Pública. Mesmo com um nível de execução orçamental idêntico ao que se prevê para 2014, os cortes no ensino básico e secundário estabelecidos para 2015 fazem com que, desde 2011, o sector tenha sofrido uma contracção acumulada na ordem dos 1,7 mil milhões de euros (ou seja, menos 26% face ao valor do orçamento, nesse ano).

Não se pense contudo que a devastação é para todos. Quando se avalia o peso das transferências para o ensino privado e cooperativo, face ao orçamento para o ensino básico e secundário, lá se vai o rigor e a boa gestão dos recursos. De facto, se até 2013 a diminuição destas transferências era externamente imposta pelo Memorando inicial assinado com a troika (visando sobretudo a redução de encargos com Contratos de Associação), a partir de então o ensino privado e cooperativo começou - apesar dos cortes de pura cosmética - a recuperar território orçamental: o peso das transferências para o sector, que havia baixado para 4,0% em 2013, volta a atingir, em 2015, um peso relativo de 4,3%. Ou seja, a constante redução de verbas para a Escola Pública traduz-se, para os privados, numa reconquista do bolo orçamental, assim se salvaguardando as verdadeiras gorduras da Educação. As gorduras que todos pagam, para prejuízo de muitos e beneficio alarve de alguns, os escolhidos a dedo por colégios e escolas privadas.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

O que nos espera no futuro próximo

A economia europeia está a caminho da terceira queda desde 2008. A tensão entre a Alemanha (presa à lógica da austeridade por motivos políticos, ideológicos e constitucionais) e o eixo Franco-Italiano (onde não se pretendem prosseguir políticas expansionistas, apenas ter mais folga para aplicar a contenção orçamental) sugere que não são de esperar grandes mudanças na estratégia europeia de lidar com a crise. Os ‘testes de stress’ do BCE ameaçam expor a fragilidade do sector bancário europeu. O crescente voluntarismo do BCE nos mercados de dívida pública está a acentuar as resistências na Alemanha e a pôr em causa a própria legalidade da intervenção protagonizada por Draghi. Face a tudo isto, os investidores internacionais voltaram a ficar nervosos e as taxas de juro ameaçam voltar a subir – apesar de uma política monetária voluntarista sem precedentes na zona euro e dos riscos de deflação (que levam habitualmente os investidores financeiros a aceitar taxas de juro mais reduzidas).

Os mais optimistas – que, geralmente, fazem tanta falta quanto os cépticos – vêm sinais de esperança nalgumas paragens. Na intenção declarada por Juncker de pôr em marcha um grande plano de investimentos de nível europeu. Na tendência para a desvalorização do euro face ao dólar (que poderia dinamizar as exportações europeias e contrariar a tendência de deflação). Na disponibilidade do Fed para adiar o aumento das taxas de juro nos EUA (o que ajudaria a manter os juros baixos também na zona euro). Ou, ainda, nas pressões que crescentemente são feitas sobre o governo alemão para que estimule o consumo e o investimento doméstico.

E, no entanto, o governo alemão mostra-se disposto a levar ao limite a sua intransigência quanto a aumentos de despesa pública, no que está limitado pela própria constituição e pela desaceleração da actividade económica. Os projectos de Juncker continuam à espera de uma fonte de financiamento. A desvalorização do euro tem poucos impactos no conjunto da economia europeia (que é relativamente fechada ao exterior), para além de acentuar as tensões internacionais relacionadas com os excedentes comerciais que a UE já hoje apresenta. O impacto de uma desvalorização do euro poderia ser maior em pequenas economias abertas, não fora o facto de estarem afundadas em dívida privada e pública (o que condiciona o investimento). E as baixas taxas de juro, bem como a liquidez quase ilimitada, que o BCE assegura aos bancos europeus há quase três anos, mostra-se cada vez menos eficaz no relançamento da economia.

Quem ainda acreditava que a partir daqui as coisas só poderiam melhorar vai ter de rever a sua posição. E nós todos teremos de nos preparar para escolhas difíceis.

O mau exemplo

A Alemanha tem sido frequentemente apresentada como exemplo a seguir. Mas não só a sua saúde económica é bem menor do que se pensa, como as políticas que tem seguido são uma causa fundamental dos problemas económicos da Europa.


A economia alemã é frequentemente apresentada como um exemplo de dinamismo e robustez económicos, assentes no conservadorismo fiscal-orçamental e numa moderação salarial que remonta às reformas introduzidas por Gerhard Schroeder no final da década de 1990. Trata-se de um exemplo, defendem os responsáveis politicos alemães mas também numerosos políticos e analistas conservadores pela Europa fora, que deveria ser seguido em primeiro lugar pelas irresponsáveis economias da periferia europeia, mas também, por exemplo, pela economia francesa, cuja estagnação económica é apresentada como resultado de excessiva rigidez nos mercados de trabalho e de produto. Todos fossem como a Alemanha, alega-se, e a saúde económica da Europa seria bem melhor.
Pois bem, trata-se de mais uma falácia do discurso conservador e austeritário. Ou antes, trata-se de duas falácias.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Marx chamava-lhe um "figo"




Passou mais ou menos desapercebida a auditoria Tribunal de Contas (TC) à quantificação dos benefícios fiscais. É que foi divulgada no dia seguinte ao OE de 2015.

Nela, o TC reafirma tudo o que se escrevera, em finais de 2013, no parecer à Conta Geral de Estado de 2012, quanto aos benefícios fiscais em IRC, nomeadamente a novidade explosiva que encavacou Passos Coelho, Maria Luís Albuquerque e Paulo Núncio a ponto de, sem convicção, a negarem no Parlamento.  

Ou seja, o Governo omitiu a concessão de 1,045 mil milhões de euros em benefícios fiscais às SGPS, sociedades de topo dos grupos económicos. Esse escamoteamento de informação – afirma o TC – fez-se ao arrepio da Constituição e da Lei de Enquadramento Orçamental e permitiu afirmar que tinha havido, sim, uma descida dos benefícios. Algo que surge na sequência do que o secretário de Estado Paulo Núncio despachou sobre dupla tributação em IRC, em finais de 2011: um grupo económico que tivesse pago nem que fosse euro a montante isentava milhões de euros em dividendos. 

A questão é importante. 
Primeiro, pela natureza da política económica seguida, tida como inelutável. Esses mil milhões de euros foram dados no mesmo ano em que, entre outras medidas:

1) foi lançado um vasto e pesado pacote de austeridade

2) reviu-se o Código do Trabalho e os trabalhadores perderam anualmente para as empresas cerca de 3 mil milhões de euros – com o fim de 4 feriados e de 3 dias de férias, cortes para metade na retribuição ao trabalho extraordinário e fim do descanso compensatório por esse trabalho extraordinário;

3) Foi aprovada 3º versão do perdão fiscal a 3,4 mil milhões de euros saídos fraudulentamente do país. Uma amnistia de que beneficiou Ricargo Salgado; 

4) modificou-se o regime de Residentes Não Habituais que concede por dez anos desde uma taxa fixa de 20% de IRS até mesmo a isenção total para profissionais que mudem a residência fiscal para Portugal. Inclui artistas, professores, médicos, mas também consultores fiscais, investidores, administradores;

5) manteve-se em 2012 um pagamento às parcerias público-privadas de 1067 milhões de euros quando, possivelmente, sairia mais barato, a longo prazo, nacionalizar as empresas beneficiárias dessas parcerias e indemnizar pela apropriação pública.

Mas o relatório revela ainda a elevada concentração dos benefícios: mais de metade de 69% dos benefícios fiscais quantificados foram dados aos dez maiores beneficiários. Algo que o TC aconselha a que seja revisto. A última reavaliação foi em 2005.

E em terceiro lugar, o relatório é a prova da opacidade das contas públicas. Além daqueles, benefícios fiscais ficaram por quantificar. Foi o caso do regime especial dos grupos de sociedades (em 2011 foram 583 milhões de euros) Entre 1997 e 2011, o valor da matéria colectável em IRC subiu 10 mil milhões de euros, mas o valor do IRC liquidado manteve-se sensivelmente. Por isso, o TC recomenda desde 2010 a revisão dos benefícios fiscais por dedução à matéria colectável. Até hoje... 

Karl Marx não tinha computador nem facebook, mas chamaria um “figo” às contas públicas nacionais pela sua evidente natureza de classe. No fundo, trata-se só de apropriação de rendimento.