quinta-feira, 16 de outubro de 2014

No limiar da deflação

Após as suas "reformas estruturais", a economia alemã vem acumulando excedentes comerciais à custa dos salários que, em termos reais, desceram para o nível do final dos anos 90. Por outro lado, segundo a OCDE, a produtividade terá descido 0,3% ao ano entre 2007 e 2012. O economista Marcel Fratzscher, director do DIW, afirma no livro "Die Deutschland Illusion" que o legado das reformas Hartz IV é um lumpenproletariado de 7,4 milhões de pessoas em empregos a tempo parcial e uma sociedade fracturada por uma enorme desigualdade, em que um quinto das crianças crescem na pobreza. Como ficou à vista após a crise de 2008-9, o modelo exportador alemão é precário. Para o preservar, a Alemanha exigiu o resgate dos seus bancos através da troika e o aprofundamento da germanização da UE.

Com receio de mais uma recessão, seguida de um mergulho na espiral deflacionista - a inflação na zona euro estará em 0,1%, descontando aumentos de impostos -, o FMI sugeriu à Alemanha, diplomaticamente, que invista em infra-estruturas para dinamizar a procura interna. Definitivamente, o modelo do crescimento pelas exportações, sustentado pelo crédito que os bancos alemães concederam à periferia, já não pode funcionar. Com a França em recessão, além da acelerada desindustrialização, e com o rigor orçamental a empurrar também a Itália para o mesmo caminho, a economia alemã ressente-se. O seu objectivo é conquistar um lugar ao sol na globalização, mantendo-se na zona euro para evitar a valorização excessiva de uma moeda própria. Porém, as vantagens começam a ser equilibradas pelas desvantagens: cabe à Alemanha pagar uma enorme factura para evitar a desagregação da zona euro. E agora?

Os euro-ingénuos que apelam ao consumo e ao investimento público na Alemanha, a ver se chega alguma coisa às periferias, esquecem dois detalhes cruciais: para as classes que têm maior propensão a consumir, é mais conveniente comprar o que vem da Ásia; quanto ao investimento público, a margem de manobra é estreita porque a Constituição impõe o equilíbrio do orçamento a partir de 2016. Se os economistas alemães, em esmagadora maioria, entendem que a economia nacional funciona como uma economia doméstica, evidentemente não vão aconselhar a violação da Constituição para permitir uma política orçamental expansionista. Pôr o Estado e as famílias a gastar mais para resolver a crise do euro é um absurdo para a sociedade alemã. O fulgurante crescimento do partido ultraconservador Alternativa para a Alemanha (AfD) é um sinal evidente de que esta política não será adoptada. O mais que podemos esperar é alguma tolerância para o não cumprimento das metas do défice, muito longe portanto do que seria necessário para relançar a economia europeia e impedir a deflação.

Cientes de que pela política orçamental não iremos a lado nenhum, os euro-ingénuos pedem ao BCE que pelo menos imite a Reserva Federal dos EUA com uma política monetária "não convencional" de compra de títulos de dívida em grande escala. Pondo de lado as diferenças entre os dois sistemas financeiros, que suscitam dúvidas sobre a eficácia destas políticas na Europa, há uma realidade institucional que tem sido esquecida: ou o BCE se comporta segundo a interpretação que o Bundesbank faz dos tratados, ou o Tribunal Constitucional alemão obrigará o seu governo a desautorizar as intervenções excepcionais que Draghi tem anunciado, retirando-lhes assim toda a eficácia (ver: Germany's Eurosceptic AfD spells end to Europe's false calm, warns S&P; "The Telegraph", 23 de Setembro).

Com os preços a descer, o fardo da dívida de famílias e empresas aumenta, tornando mais frágil o sistema bancário europeu. Quanto à dívida pública, o seu peso subirá rapidamente, quer pelo "efeito denominador" (PIB real e nível de preços baixam), quer pelo "efeito numerador" (défices orçamentais aumentam com a recessão). Em poucos anos, as dívidas das maiores economias europeias entrarão numa espiral, para não falar na dívida das periferias "resgatadas". Como já não é viável recomeçar os resgates, o estado de negação da UE parece ter os dias contados. Em Portugal, com a vitória de Costa, nem por isso.

(O meu artigo no jornal i)

1 comentário:

Aleixo disse...

O problema da “ coisa…”

está no facto de não haver lugares cativos… ao sol!

Além da perda de Soberania económica/política,

que os lambe-botas caseiros ganharam,

com as “privatizações e submissões” ao desbarato, dos centros de decisão,

os lambe-botas lá de fora,

também não resistem a lamber...

o capital !