Há muitas pessoas que pensam de forma diferente da minha, por vezes de modo diametralmente oposto, mas por quem não só tenho o maior respeito intelectual como gosto até bastante de debater com elas: do meu ponto de vista, elevam o nível do debate político e, por isso mesmo, qualificam-no.
Infelizmente, não é o caso do RPP: não só por causa do seu estilo deselegante e desagradável, mas também porque, muitas vezes, não argumenta (provavelmente porque não tem verdadeiros argumentos) e tenta apenas desqualificar a pessoa com quem debate (por exemplo, tentando colar rótulos ou fazendo acusações completamente infundadas), RPP não contribui para elevar o nível do debate político.
1. Sobre o facto de a transformação das universidades públicas em “Fundações Públicas de Direito Privado” poderem representar uma “porta aberta à privatização do ensino superior e à sua completa mercantilização” reitero o que disse e acrescento:
a) Em Portugal, se há subsector da administração pública que funciona muito melhor do que o sector privado é precisamente o das universidades públicas, em particular, e do ensino superior público, em geral. É, por isso, espantoso, que, nestas condições, a jóia da coroa da reforma do ensino superior seja a transformação das universidades públicas em “Fundações Públicas de Direito Privado”. Ou seja, a grande reforma diz-nos que devemos emular o sector privado… porque só assim conseguiremos melhorar a sua performance… No mínimo, isto é paradoxal e surpreendente, a não ser que haja alguma agenda escondida que desconhecemos…
b) Sabendo-se muito bem do papel das instituições internacionais (Banco Mundial, FMI, OCDE, etc.) na promoção da globalização neoliberal, de nada serve, muito pelo contrário, alegar que a reforma foi proposta pela OCDE (sobre este ponto, ver o meu texto “A narrativa neoliberal sobre a globalização” e “Opções técnicas e opções políticas no ensino superior”, Crónicas Políticas Heterodoxas, Lisboa, Sextante, 2007, pp. 35-39 e 163-165.
c) Num artigo sobre este tema, “Que universidade queremos?”, publicado no Le Monde Diplomatique, II Série, Número 18, reportando-se nomeadamente às experiências internacionais com o regime fundacional aplicado às universidades públicas, Maria Eduarda Gonçalves referiu vários problemas, designadamente: declínio da componente de investigação face à componente ensino no trabalho destas universidades, como meio de obter mais financiamento; deterioração do ratio do número médio de alunos por professor, isto é, crescente deterioração da qualidade do ensino; crescente dependência do financiamento privado, isto é, do mercado, para financiar quer o ensino, quer a investigação nestas instituições.
2. Além disso, RPP faz as seguintes acusações: “Convinha ainda evitar as insinuações malévolas, facilmente desmentidas pelos factos. Segundo o André, e a propósito de uma referência a declarações de António Nóvoa proferidas num cenário digno da mais caricatural representação da velha universidade, “para 2009 o governo vai dar, apesar de tudo, mais dinheiro a algumas universidades: as que aceitaram transformar-se em ‘Fundações Públicas de Direito Privado’, como pretendia a tutela”. As instituições universitárias que poderão, a curto prazo, passar ao regime fundacional, por terem para isso aberto negociações com o Governo, são o ISCTE, a Universidade de Aveiro e a Universidade do Porto. No OE de 2009, as transferências por aluno para as universidades portuguesas serão, em média, de 4.274 euros. Para o ISCTE, o valor definido é de 2.937 euros, o mais baixo de todos; para Aveiro, é de 3.833, bem abaixo também da média. Apenas a transferência para a Universidade do Porto, a mais eclética do país, é claramente acima da média: 4.684 euros. O desprezo pelos factos no calor da controvérsia tem limites, (…).”
Quanto ao desprezo pelos factos, refira-se o seguinte:
a) Na minha posta, que RPP comentou, cito dois artigos meus onde há abundantes dados estatísticos comparativos (da OCDE) evidenciando a asfixia financeira a que este governo tem submetido as universidades: ver aqui e aqui. São, por isso, totalmente infundadas as acusações de “desprezo pelos factos”.
b) Além disso, pode ainda citar-se a entrevista (a Paulo Peixoto e Nuno David) de Seabra Santos, Presidente do CRUP (Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas), em 2008, sobre o tema: “As universidades compreendem muito bem as restrições que estão associadas ao exercício de elaboração de um Orçamento de Estado em situação de reconhecidas dificuldades financeiras e mostraram já, no passado recente, ser solidárias com o esforço nacional de reequilíbrio das contas públicas. O que as universidades não podem compreender, porque nada o justifica, é a dimensão da componente desse esforço que lhes está a ser exigida já que, entre 2005 e 2008, viram as suas dotações para funcionamento diminuir, em percentagem do PIB, cerca de 16%. Este valor é quatro vezes superior ao esforço nacional concertado para redução do défice público no mesmo período que, como é sabido, foi de cerca de 4%.
c) Finalmente, para contestar a minha afirmação de que
“para 2009 o governo vai dar, apesar de tudo, mais dinheiro a algumas universidades: as que aceitaram transformar-se em ‘Fundações Públicas de Direito Privado’, como pretendia a tutela”, RPP recorre aos custos médios por aluno para dizer que isto não é verdade porque as transferências médias por aluno nas três universidades que estão em vias de passar a Fundações são muito menores do que a média das transferências para as várias universidades públicas (excepto no caso da Universidade do Porto). Bom, em primeiro lugar, é preciso dizer com muita clareza que os custos médios por aluno (logo, as transferências) não são totalmente comparáveis porque os diversos cursos têm diferentes custos e algumas universidades poderão ter, pelo menos em termos de peso relativo no conjunto dos cursos de cada instituição, muitos mais cursos mais baratos do que outras (por exemplo, porque não têm medicina, têm poucas engenharias, etc.). Em segundo lugar, quando queremos saber como evolui o financiamento de uma determinada instituição, sector, etc., de um ano para o outro, não usamos como indicador os custos médios per capita mas sim a variação percentual (e absoluta) no total de financiamento de um ano para o outro. Portanto, o mínimo que se pode dizer do indicador referido por RPP é que ele é totalmente inadequado para se avaliar a questão que eu levantei. São, por isso e mais uma vez, totalmente infundadas as acusações de “desprezo pelos factos”. Aliás, no quadro abaixo (cuja fonte é o documento discutido na comissão parlamentar de educação e ciência, na reunião que teve com o Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, em 10 de Setembro 2008). podemos constatar a justeza e ancoragem empírica do que eu afirmei.
d) A finalizar refiram-se, ainda, duas notas fundamentais para que não restem quaisquer dúvidas a este respeito. Primeiro, penso que, por causa dos eventuais custos envolvidos, é razoável o governo prever um financiamento suplementar das universidades públicas que pretendiam passar a “Fundações Públicas de Direito Privado”, o que isso não deveria era implicar uma penalização praticamente generalizada das outras (como se verifica). Segundo, para pelo menos uma parte do bolo do financiamento público das universidades públicas, defendo um sistema competitivo, transparente e estável no tempo (para as instituições saberem com o que contam de uns anos para os outros). Num regime como este, não tenho quaisquer dúvidas de que o ISCTE, bem como as universidades de Aveiro e do Porto (embora esta não esteja a ser beneficiada para 2009), estariam entre as melhores do país e, por isso, entre as mais beneficiadas. Porém, tal não deveria significar uma asfixia generalizada das outras instituições e, além disso, se fosse um sistema competitivo, transparente e estável no tempo não suscitaria a ninguém dúvidas quanto à justeza de alguns levarem uma fatia do bolo maior do que os outros (em termos relativos). Não foi isto que se passou, muito pelo contrário, e, por isso, já vi alguns responsáveis das outras universidades (mais penalizadas) levantarem este tipo de dúvidas. Nem o ISCTE, nem Aveiro mereciam isto, obviamente.
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