Em reacção ao meu último artigo no Jornal de Negócios, onde uso o dossiê que a The Economist organizou sobre os fracassos da finança de mercado, um leitor atento deixou a seguinte citação retirada do mesmo dossiê: «Lembrem-se da notável prosperidade dos últimos 25 anos. A finança merece algum crédito por isso». Crédito por isso? Na linha de muitos estudos empíricos, a própria The Economist reconhece, finalmente, um padrão que terá de ter implicações radicais na futura mudança institucional das economias: o número de crises financeiras mais do que triplicou desde 1973, quando comparado com o período dos «trinta gloriosos anos» do pós-guerra, frequentemente apelidados de anos de «repressão financeira» pela teoria económica convencional.
Talvez a The Economist esteja a pensar nos EUA onde as aventuras da finança foram mais longe? Este expressivo gráfico compara o crescimento cumulativo, para diferentes segmentos de rendimentos (dos mais pobres aos mais ricos), em dois períodos cruciais da história do pós-guerra nos EUA. Notável prosperidade…
Talvez a The Economist esteja a pensar no crescimento fulgurante da Índia ou da China? Maus exemplos. Estes países mantiveram um sistema financeiro «reprimido», ou seja, controlos de capitais e uma forte presença pública no sector bancário.
sexta-feira, 30 de janeiro de 2009
quinta-feira, 29 de janeiro de 2009
Um milhão nas ruas de França
A jornada de protesto convocada pelos oitos principais sindicatos franceses está a ser um sucesso. Segundo o líder da moderada CFDT, estas são as maiores manifestacões de trabalhadores dos últimos vinte anos.
Imagens da manifestação em Orleães:
Imagens da manifestação em Orleães:
Paradoxos da Grande Recessão em curso!
Segundo o Jornal de Negócios,
"George Soros advoga que o plano da Administração Obama de comprar activos tóxicos da banca norte-americana não será suficiente para que as instituições financeiras comecem de novo a flexibilizar a concessão de crédito. Não será essa medida que vai inverter a situação e permitir que os bancos comecem de novo a emprestar dinheiro”, comentou Soros em Davos, numa entrevista à Bloomberg TV. “Isso será nacionalizar a dívida e manter os lucros nas mãos privadas”.
Só falta dizer que é preciso ... nacionalizar os bancos.
Tendo em conta que o multimilionário Soros conhece como poucos o negócio financeiro e tem 'preocupações sociais' que parecem genuínas, é provável que um dia destes, lá mais para o Verão, acabe por propor o impensável sobre o sistema financeiro dos EUA.
Paradoxos da Grande Recessão em curso!
"George Soros advoga que o plano da Administração Obama de comprar activos tóxicos da banca norte-americana não será suficiente para que as instituições financeiras comecem de novo a flexibilizar a concessão de crédito. Não será essa medida que vai inverter a situação e permitir que os bancos comecem de novo a emprestar dinheiro”, comentou Soros em Davos, numa entrevista à Bloomberg TV. “Isso será nacionalizar a dívida e manter os lucros nas mãos privadas”.
Só falta dizer que é preciso ... nacionalizar os bancos.
Tendo em conta que o multimilionário Soros conhece como poucos o negócio financeiro e tem 'preocupações sociais' que parecem genuínas, é provável que um dia destes, lá mais para o Verão, acabe por propor o impensável sobre o sistema financeiro dos EUA.
Paradoxos da Grande Recessão em curso!
quarta-feira, 28 de janeiro de 2009
A responsabilidade das crenças económicas
É uma das ironias da história económica que a acção de muitos economistas académicos convencionais tenha sido parcialmente responsável pelo retorno dos padrões de instabilidade que tornaram cada vez mais pertinente a teoria económica crítica, que sobreviveu nas margens da disciplina. É por isso preciso trazê-la para o centro do ensino e do debate sobre as reformas económicas. Quem tem medo do pluralismo? O resto do meu artigo no Jornal de Negócios pode ser lido aqui.
No artigo menciono o dossiê da The Economist sobre o futuro da finança de mercado. É mais um indicador de que toda a opinião, mesmo a mais intransigentemente neoliberal, é composta de mudança. De resto, o debate sobre a responsabilidade dos economistas e sobre o estado do ensino da disciplina não pode parar.
No artigo menciono o dossiê da The Economist sobre o futuro da finança de mercado. É mais um indicador de que toda a opinião, mesmo a mais intransigentemente neoliberal, é composta de mudança. De resto, o debate sobre a responsabilidade dos economistas e sobre o estado do ensino da disciplina não pode parar.
terça-feira, 27 de janeiro de 2009
O esquerdismo na Europa após a guerra fria (III)
Finalizo a reprodução da minha coluna do Público, 19/1/2009, intitulada “O esquerdismo na Europa após a guerra fria”, onde, baseado em Luke March, abordei o perfil das várias correntes “esquerdistas” e as razões do seu sucesso (ou insucesso) relativos.
Cada grupo de partidos (isto é, os “partidos da esquerda radical” e os “partidos da extrema-esquerda”) é depois subdividido em várias famílias, mais precisamente cinco, embora alguma delas pertençam apenas a um dos dois grandes grupos. Nomeadamente, os “renovadores comunistas” (Partido Comunista da Boémia e Morávia, Refundação Comunista/Itália, PCE, AKEL/Chipre e PCF) estão todos no campo da “esquerda radical”; os “comunistas conservadores” (KKE/Grécia, Partido Comunista da Eslováquia, PCP e Partido Comunista da Letónia) estão todos na “extrema-esquerda”. Assim também, os “socialistas democráticos” (Aliança de Esquerda/Finlândia, o Partido de Esquerda/Suécia, o Partido Socialista Popular/Dinamarca, os Socialistas de Esquerda/Noruega, o Movimento da Esquerda Verde/Islândia, o BE/Portugal e a Coligação “Synaspismos”/Grécia) estão concentrados na “esquerda radical” (só a Aliança Vermelho-Verde/Dinamarca está na “extrema-esquerda”). Juntando o Die Linke/Alemanha e o Partido Socialista Holandês/SP, incluídos na família dos “socialistas populistas”/“esquerda radical”, temos os quatro subgrupos que abarcam o maior (22) e mais relevante leque de partidos.
Vejamos o que os diferencia. Os “comunistas conservadores” caracterizam-se por se autodefinirem como marxistas-leninistas, por apresentarem uma visão pouco crítica da herança soviética, por se organizarem na linha leninista do “centralismo democrático” e por verem o mundo pelo prisma do conceito de “imperialismo” (dos tempos da guerra fria) – apesar de inflexões nacionalistas e populistas. Os “renovadores comunistas” descartaram grande parte do modelo soviético, nomeadamente o “centralismo democrático”, e têm adoptado grande parte da herança da nova esquerda após 1968 (feminismo, ambientalismo, democracia participativa, estilos de vida alternativos, etc.).
Os “socialistas democráticos” definem-se a si próprios como simultaneamente críticos do “totalitarismo comunista” e da “social-democracia de pendor neoliberal”, abraçando plenamente não só as causas da nova esquerda mas também uma abordagem “não dogmática” e, em muitos casos, “não marxista” do socialismo, abraçando ainda as causas da nova esquerda após 1968. A corrente dos “socialistas populistas” segue idêntica linha mas junta-lhe abordagens anti-elite e anti-establishment.
Apesar da sua subrepresentação no leste, a maioria dos países têm partidos esquerdistas cuja performance têm estabilizado ou crescido desde os anos 1980. Os mais bem sucedidos são os que conheceram uma significativa evolução ideológica e estratégica: superaram o dogmatismo e têm quadros carismáticos e pragmáticos que se centram em tópicos de campanha específicos e conjugam a sua acção institucional com a luta extraparlamentar. Os mais bem sucedidos, nomeadamente os “socialistas democráticos”, promovem uma agenda “eco-socialista” e tentam influenciar os social-democratas pela esquerda, nomeadamente participando em (ou apoiando) governos. E se é verdade que há alguma erosão resultante dessa participação, ela não é na maioria dos casos significativa e, sobretudo, “tais perdas não são piores do que aquelas que ocorrem quando estão na oposição”. Mas a relação dos esquerdistas com os socialistas, e vice-versa, fica para um próximo artigo.
Cada grupo de partidos (isto é, os “partidos da esquerda radical” e os “partidos da extrema-esquerda”) é depois subdividido em várias famílias, mais precisamente cinco, embora alguma delas pertençam apenas a um dos dois grandes grupos. Nomeadamente, os “renovadores comunistas” (Partido Comunista da Boémia e Morávia, Refundação Comunista/Itália, PCE, AKEL/Chipre e PCF) estão todos no campo da “esquerda radical”; os “comunistas conservadores” (KKE/Grécia, Partido Comunista da Eslováquia, PCP e Partido Comunista da Letónia) estão todos na “extrema-esquerda”. Assim também, os “socialistas democráticos” (Aliança de Esquerda/Finlândia, o Partido de Esquerda/Suécia, o Partido Socialista Popular/Dinamarca, os Socialistas de Esquerda/Noruega, o Movimento da Esquerda Verde/Islândia, o BE/Portugal e a Coligação “Synaspismos”/Grécia) estão concentrados na “esquerda radical” (só a Aliança Vermelho-Verde/Dinamarca está na “extrema-esquerda”). Juntando o Die Linke/Alemanha e o Partido Socialista Holandês/SP, incluídos na família dos “socialistas populistas”/“esquerda radical”, temos os quatro subgrupos que abarcam o maior (22) e mais relevante leque de partidos.
Vejamos o que os diferencia. Os “comunistas conservadores” caracterizam-se por se autodefinirem como marxistas-leninistas, por apresentarem uma visão pouco crítica da herança soviética, por se organizarem na linha leninista do “centralismo democrático” e por verem o mundo pelo prisma do conceito de “imperialismo” (dos tempos da guerra fria) – apesar de inflexões nacionalistas e populistas. Os “renovadores comunistas” descartaram grande parte do modelo soviético, nomeadamente o “centralismo democrático”, e têm adoptado grande parte da herança da nova esquerda após 1968 (feminismo, ambientalismo, democracia participativa, estilos de vida alternativos, etc.).
Os “socialistas democráticos” definem-se a si próprios como simultaneamente críticos do “totalitarismo comunista” e da “social-democracia de pendor neoliberal”, abraçando plenamente não só as causas da nova esquerda mas também uma abordagem “não dogmática” e, em muitos casos, “não marxista” do socialismo, abraçando ainda as causas da nova esquerda após 1968. A corrente dos “socialistas populistas” segue idêntica linha mas junta-lhe abordagens anti-elite e anti-establishment.
Apesar da sua subrepresentação no leste, a maioria dos países têm partidos esquerdistas cuja performance têm estabilizado ou crescido desde os anos 1980. Os mais bem sucedidos são os que conheceram uma significativa evolução ideológica e estratégica: superaram o dogmatismo e têm quadros carismáticos e pragmáticos que se centram em tópicos de campanha específicos e conjugam a sua acção institucional com a luta extraparlamentar. Os mais bem sucedidos, nomeadamente os “socialistas democráticos”, promovem uma agenda “eco-socialista” e tentam influenciar os social-democratas pela esquerda, nomeadamente participando em (ou apoiando) governos. E se é verdade que há alguma erosão resultante dessa participação, ela não é na maioria dos casos significativa e, sobretudo, “tais perdas não são piores do que aquelas que ocorrem quando estão na oposição”. Mas a relação dos esquerdistas com os socialistas, e vice-versa, fica para um próximo artigo.
O esquerdismo na Europa após a guerra fria (II)
Continuo a reproduzir a minha coluna do Público, 19/1/2009, intitulada “O esquerdismo na Europa após a guerra fria”, onde, baseado em Luke March, abordei o perfil das várias correntes “esquerdistas” e as razões do seu sucesso (ou insucesso) relativos.
Com a queda do muro de Berlim e o colapso do socialismo soviético, as correntes esquerdistas europeias têm mudado bastante. Continuam bastante diversas, mas algumas renovaram-se bastante e, no conjunto, apresentam graus de sucesso diferenciados. O estudo aborda vários tópicos que não posso cobrir aqui. Abordarei hoje o perfil das várias correntes e as razões do seu sucesso relativo.
Luke March define os partidos esquerdistas (“far left”) como aqueles que se definem a si mesmos como estando “para a esquerda”, e não apenas “à esquerda”, dos social-democratas, os quais consideram não serem suficientemente de esquerda ou serem sequer de esquerda.
E separa-os em duas grandes categorias. Primeiro, os “partidos da esquerda radical”: defendem mudanças radicais no sistema capitalista. Embora muitas vezes designados por “extremistas” pelos seus opositores, aceitam a democracia, embora combinem tal aceitação com aspirações “muitas vezes vagas” no sentido da democracia participativa. O seu “anti-capitalismo” envolve fundamentalmente uma oposição à globalização neoliberal associada ao “consenso de Washington” (liberalização do comércio, mercadorização da sociedade, privatizações, etc.), mas já não defendem uma economia planificada, antes uma economia mista. A esmagadora maioria inclui-se neste grupo: 18 em 24 partidos da UE, Islândia e Noruega.
Segundo, os “partidos da extrema-esquerda” (6 em 24) são aqueles que têm maior hostilidade à democracia liberal, renunciam usualmente a qualquer compromisso com os “partidos burgueses”, incluindo os social-democratas, enfatizam as lutas extra-parlamentares e o seu “anti-capitalismo” é bastante mais profundo do que o do grupo anterior (as lógicas de mercado são um anátema).
Com a queda do muro de Berlim e o colapso do socialismo soviético, as correntes esquerdistas europeias têm mudado bastante. Continuam bastante diversas, mas algumas renovaram-se bastante e, no conjunto, apresentam graus de sucesso diferenciados. O estudo aborda vários tópicos que não posso cobrir aqui. Abordarei hoje o perfil das várias correntes e as razões do seu sucesso relativo.
Luke March define os partidos esquerdistas (“far left”) como aqueles que se definem a si mesmos como estando “para a esquerda”, e não apenas “à esquerda”, dos social-democratas, os quais consideram não serem suficientemente de esquerda ou serem sequer de esquerda.
E separa-os em duas grandes categorias. Primeiro, os “partidos da esquerda radical”: defendem mudanças radicais no sistema capitalista. Embora muitas vezes designados por “extremistas” pelos seus opositores, aceitam a democracia, embora combinem tal aceitação com aspirações “muitas vezes vagas” no sentido da democracia participativa. O seu “anti-capitalismo” envolve fundamentalmente uma oposição à globalização neoliberal associada ao “consenso de Washington” (liberalização do comércio, mercadorização da sociedade, privatizações, etc.), mas já não defendem uma economia planificada, antes uma economia mista. A esmagadora maioria inclui-se neste grupo: 18 em 24 partidos da UE, Islândia e Noruega.
Segundo, os “partidos da extrema-esquerda” (6 em 24) são aqueles que têm maior hostilidade à democracia liberal, renunciam usualmente a qualquer compromisso com os “partidos burgueses”, incluindo os social-democratas, enfatizam as lutas extra-parlamentares e o seu “anti-capitalismo” é bastante mais profundo do que o do grupo anterior (as lógicas de mercado são um anátema).
A nacionalização como excepção? (III) Por um sistema de crédito socializado.
Os argumentos para a nacionalização actual do sector bancário são normalmente temperados pela condição de uma futura reprivatização depois de ultrapassada a crise. Este poderia ser mesmo um bom negócio para o Estado, tal como aconteceu na Suécia. No entanto, existem bons argumentos para uma nacionalização, ou melhor, socialização permanente da banca.
Como nota Frédric Lordon, neste magnífico texto, se admitirmos a segurança dos depósitos e as possibilidades de crédito como um bem público vital para o bom funcionamento dos mercados, estes devem estarintegrados num sistema - à margem dos interesses privados de detentores de acções cujo único objectivo é a rentabilidade - que possa resistir a momentos excepcionais como o que estamos a viver.
A nacionalização total do sistema de crédito levanta, contudo, alguns problemas. O actual sistema de criação monetária é simultaneamente fragmentado (através dos múltiplos bancos privados comerciais) e centralizado (dada a existência de bancos centrais públicos). Existe, pois, uma divisão de poderes onde nenhum agente detém o exclusivo poder de emissão monetária. Um monopólio público estaria sob o teórico controlo democrático, mas o abuso de um bem tão "explosivo" como a moeda seria um enorme risco a correr. A refragmentação do sistema de crédito poderia tomar a forma de bancos a retalho, com objectivos não lucrativos ou com lucros limitados, controlados pelas partes que "procuram" crédito: empresas, trabalhadores associações, colectividades locais, representantes locais do Estado, etc.
Para uma análise detalhada vale mesmo a pena ler o artigo de Lordon.
A nacionalização como excepção? (II) A nacionalização dos prejuízos.
Uma das condições para a saída da actual crise financeira é o rápido diagnóstico da dimensão das perdas do sector bancário. Foi, assim, na Suécia onde uma reacção rápida do Estado controlando o sector permitiu uma crise forte, mas breve. O contrário aconteceu no Japão onde os bancos demoraramanos a assumir as suas perdas reais, condenando o país a uma longa recessão.Nos EUA, as notícias de risco iminente de duas dos seus maiores bancos, o Citigroup e o Bank of America, colocam a nacionalização de parte do sector bancário na ordem do dia. Contudo, a questão tem sido colocada através dacriação de um banco público, o Aggregator, que assumisse os todos os maus empréstimos da banca comercial com a contrapartida de participações no capital dos bancos privados. Nacionalizam-se os prejuízos e deixa-se aos privados a parte lucrativa remanescente. Porque não inverter a presente lógica perversa dos mercados financeiros e proceder-se à nacionalização de todo o sector, transformando os bancos em entidades de serviço público?
A nacionalização como excepção? (I) Do BPN ao sistema bancário.
Tem sido comum assistir no nosso país a análises que vincam a excepcionalidade da nacionalização do BPN. A sua relação com a crise seriaquase acidental. Esta somente teria tornado saliente um mero caso de polícia, a ser tratado pela justiça. No entanto, assistimos, um pouco por todo o mundo, à multiplicação destes "casos de polícia", sendo o mais recente o caso "Maddoff". Mesmo em Portugal, são vários os indícios de esquemas fraudulentos no nosso sistema bancário. Veja-se o caso da compra de acções próprias através de paraísos fiscais e empresas fictícias do BCP durante uma recente recapitalização do banco, os indícios de branqueamento de capitais no BCP, Finibanco e BES que a, ainda inacabada, Operação Furacão trouxe a lume ou as recentes irregularidades contabilísticas identificadas no BPP. A permanência da crise trará, provavelmente, mais casos e, com eles, a necessidade de futuras nacionalizações parciais ou totais de bancos nacionais.
O que estes episódios mostram não é tanto que os banqueiros sejam um bando de vigaristas, mas sim os problemas sistémicos de um sector que funciona na quase total opacidade, onde os instrumentos disponíveis para a fraude, como os paraísos fiscais, são a norma e onde os produtos etransacções financeiras são de tal forma complexos que se tornam incompreensíveis para quem não lida com eles diariamente.
segunda-feira, 26 de janeiro de 2009
Notas sobre pressões e espaço público
Vale a pena relembrar a entrevista de João Cravinho ao Público: «a grande corrupção considera-se impune e age em conformidade e atinge áreas de funcionamento do Estado, que afectam a ética pública».
Vale a pena ler com toda a atenção esta posta de Henrique Pereira dos Santos no ambio, um blogue sobre ambiente e sociedade: «Pressões é uma expressão equívoca mas sim há pressões com frequência em processos decisórios da administração pública. E pressões vindas de muitos lados».
A ética pública, a ética do serviço público, só pode florescer se tivermos profissionais autónomos face «às pressões vindas de muitos lados». É por estas e por outras que a política de modificação dos vínculos contratuais na administração pública, num contexto de hegemonia de um discurso político que subestima e despreza a ética do serviço público e os profissionais e as práticas que a podem sustentar, só irá acentuar a fraqueza e a falta de autonomia do Estado face às pressões do poder do dinheiro. Podemos estar a facilitar a sua entrada ainda mais fulgurante em esferas que deveriam funcionar com base noutros critérios.
Sobre as reformas que «trituram» funcionários veja-se este artigo de Eugénio Rosa: «o que se pretende introduzir na Administração Pública é a desigualdade, a precariedade, a psicologia do medo e o poder absoluto e arbitrário das chefias, e acabar, objectivamente, com uma Administração Pública independente, que sirva, em igualdade, todos os cidadãos, passando a servir melhor alguns, aqueles que sejam do agrado das chefias e do poder politico».
Bloquear a arrogância do dinheiro requer profissionais autónomos e qualificados, mas também cidadãos activos e empenhados na protecção do espaço público. Como ainda hoje se viu, os movimentos associativos, ao denunciarem práticas menos claras, protegem as regras sem as quais não há bem comum que resista. No entanto, as gritantes desigualdades socioeconómicas dificultam a participação cidadã, corroem a legitimidade das regras, enfraquecem a democracia e acentuam a corrupção.
Precisamos de cidadãos, de profissionais e de esferas da vida social regidas por valores que não têm preço e que o recusam. São a base da dignidade e da ameaçada integridade institucional. É também isto que a consolidação do Estado predador, facilitada por algumas escolhas políticas da «esquerda mínima», está a pôr em causa.
Vale a pena ler com toda a atenção esta posta de Henrique Pereira dos Santos no ambio, um blogue sobre ambiente e sociedade: «Pressões é uma expressão equívoca mas sim há pressões com frequência em processos decisórios da administração pública. E pressões vindas de muitos lados».
A ética pública, a ética do serviço público, só pode florescer se tivermos profissionais autónomos face «às pressões vindas de muitos lados». É por estas e por outras que a política de modificação dos vínculos contratuais na administração pública, num contexto de hegemonia de um discurso político que subestima e despreza a ética do serviço público e os profissionais e as práticas que a podem sustentar, só irá acentuar a fraqueza e a falta de autonomia do Estado face às pressões do poder do dinheiro. Podemos estar a facilitar a sua entrada ainda mais fulgurante em esferas que deveriam funcionar com base noutros critérios.
Sobre as reformas que «trituram» funcionários veja-se este artigo de Eugénio Rosa: «o que se pretende introduzir na Administração Pública é a desigualdade, a precariedade, a psicologia do medo e o poder absoluto e arbitrário das chefias, e acabar, objectivamente, com uma Administração Pública independente, que sirva, em igualdade, todos os cidadãos, passando a servir melhor alguns, aqueles que sejam do agrado das chefias e do poder politico».
Bloquear a arrogância do dinheiro requer profissionais autónomos e qualificados, mas também cidadãos activos e empenhados na protecção do espaço público. Como ainda hoje se viu, os movimentos associativos, ao denunciarem práticas menos claras, protegem as regras sem as quais não há bem comum que resista. No entanto, as gritantes desigualdades socioeconómicas dificultam a participação cidadã, corroem a legitimidade das regras, enfraquecem a democracia e acentuam a corrupção.
Precisamos de cidadãos, de profissionais e de esferas da vida social regidas por valores que não têm preço e que o recusam. São a base da dignidade e da ameaçada integridade institucional. É também isto que a consolidação do Estado predador, facilitada por algumas escolhas políticas da «esquerda mínima», está a pôr em causa.
domingo, 25 de janeiro de 2009
O mistério da transubstanciação
Vivemos actualmente num mundo de negócios globalizados, disseminando-se como a peste numa rede universal de transacções instantâneas representadas por números cambiando constantemente nas pilhas de monitores e consolas de controle das bolsas, firmas de corretagem, da banca, das empresas e agências do sector… O conhecimento transforma-se em mercadoria debaixo dos nossos olhos, tal como anunciou Lyotard em 1986. Cria-se-lhe um valor (é o mistério da transubstanciação) e este adquire uma expressão quantitativa, podendo o processo da sua produção ser orçamentado, avaliado, certificado e, assim, posicionar-se no mercado. Imaginemos a rentabilização da produção destas novas mercadorias da “sociedade do conhecimento” agora que sabemos, por exemplo, que o valor mercantil da língua portuguesa corresponde a 17% do PIB.
Trata-se, pois, de equacionar a mensurabilidade da mátria: quantificamos o valor da língua, a expressão primordial da nossa existência humana, incluindo as palavras dos poetas e dos escritores que a cantaram e celebraram, o trabalho, o suor e as lágrimas de todos os que a falaram nas quatro partidas do mundo… e admitimos que isto será decisivo para os desafios do futuro, pela competitividade potencial de que os falantes da língua poderão usufruir para obtenção de ganhos para si e para as suas empresas – com a marca “Portugal”, claro! É preciso “criar riqueza”, dizem… Tudo em conformidade com o zeitgeist cor-de-rosa de um governo optimista e de um primeiro-ministro empreendedor. Mas em plena crise, anunciando-se o frenesim da inovação e a compulsão dos negócios, é bom lembrar que se queremos ser indivíduos autónomos – cidadãos livres, não poderemos nunca excluir do nosso horizonte de valores a ideia de Kant que o Jorge Bateira tão certeiramente aqui evocou ontem. Para isso deveria servir a educação.
Numa rede, tudo tende a ser distribuído, a circular (ainda que os constrangimentos da arquitectura das redes condicionem a priori o exercício do livre-arbítrio) entre os vários nós e cruzamentos (outros serão excluídos) – e, claro, a ser representado em grafos, medido em fluxos, expresso em quantidades e mercadorizado até que outros produtos inovadores e mais baratos se imponham e se lhes substituam. Até ao esgotamento e a novos patamares de crise. Esquecem-se amiúde os promotores da teologia do mercado, porém, que a vida humana e as suas instituições, em todo o arco da sua diversidade, revela anseios muito mais dignos e profundos do que aqueles que lhe reservam a obsessão da mensurabilidade e a histérica mentalidade mercantil em que estamos atolados. Como dizia o filho de um bom amigo meu, “o mais importante da vida é podermos desfrutar do incalculável”; ou, então, como Kant: “todas as coisas têm um preço, ou uma dignidade”. Como chuva e frio dentro das escolas. Ou dezenas de milhares de novos desempregados. Ou a tragédia da pobreza que alastra nas novas fronteiras da crise…
Trata-se, pois, de equacionar a mensurabilidade da mátria: quantificamos o valor da língua, a expressão primordial da nossa existência humana, incluindo as palavras dos poetas e dos escritores que a cantaram e celebraram, o trabalho, o suor e as lágrimas de todos os que a falaram nas quatro partidas do mundo… e admitimos que isto será decisivo para os desafios do futuro, pela competitividade potencial de que os falantes da língua poderão usufruir para obtenção de ganhos para si e para as suas empresas – com a marca “Portugal”, claro! É preciso “criar riqueza”, dizem… Tudo em conformidade com o zeitgeist cor-de-rosa de um governo optimista e de um primeiro-ministro empreendedor. Mas em plena crise, anunciando-se o frenesim da inovação e a compulsão dos negócios, é bom lembrar que se queremos ser indivíduos autónomos – cidadãos livres, não poderemos nunca excluir do nosso horizonte de valores a ideia de Kant que o Jorge Bateira tão certeiramente aqui evocou ontem. Para isso deveria servir a educação.
Numa rede, tudo tende a ser distribuído, a circular (ainda que os constrangimentos da arquitectura das redes condicionem a priori o exercício do livre-arbítrio) entre os vários nós e cruzamentos (outros serão excluídos) – e, claro, a ser representado em grafos, medido em fluxos, expresso em quantidades e mercadorizado até que outros produtos inovadores e mais baratos se imponham e se lhes substituam. Até ao esgotamento e a novos patamares de crise. Esquecem-se amiúde os promotores da teologia do mercado, porém, que a vida humana e as suas instituições, em todo o arco da sua diversidade, revela anseios muito mais dignos e profundos do que aqueles que lhe reservam a obsessão da mensurabilidade e a histérica mentalidade mercantil em que estamos atolados. Como dizia o filho de um bom amigo meu, “o mais importante da vida é podermos desfrutar do incalculável”; ou, então, como Kant: “todas as coisas têm um preço, ou uma dignidade”. Como chuva e frio dentro das escolas. Ou dezenas de milhares de novos desempregados. Ou a tragédia da pobreza que alastra nas novas fronteiras da crise…
sábado, 24 de janeiro de 2009
Toda a opinião é composta de mudança
A opinião conta muito na condução dos assuntos humanos. Aliás, acho que muitas vezes devemos agir como se a opinião fosse a única coisa que contasse. A opinião está a mudar a um ritmo muito acelerado. No Financial Times, Martin Wolf argumenta que a «gestão privada dos riscos socializados é perigosa». Defende por isso a nacionalização temporária do sistema bancário britânico. Esta linha está a ganhar cada vez mais adeptos. Martin Lipton, economista da Universidade de Sussex, reagindo à proposta da nacionalização integral de dois dos maiores bancos britânicos, faz uma pergunta muito pertinente, à luz do que se sabe sobre o comportamento dos agentes financeiros: por que é que a nacionalização há-de ser apenas temporária? Nem mais. Temos de regressar, um pouco por todo o lado, a uma maior presença pública no sistema financeiro. Desta forma, torna-se muito mais fácil regular o sistema financeiro e pô-lo ao serviço das necessidades da actividade económica real.
Entretanto, em editorial, defende-se que a União Europeia deve tomar a dianteira na construção de um sistema mais robusto de regulação do sistema financeiro. Só assim se poderá travar a «corrida para o fundo» («race to the bottom») nesta área, num quadro em que existe liberdade de circulação de capitais: «Se um país aperta as suas regulações, os investidores podem simplesmente mudar para uma jurisdição menos vigiada (…) se os Estados não chegam a acordo num conjunto de standards mínimos, os mercados internacionais levam a uma corrida para o fundo». Este foi um dos grandes erros da social-democracia nos anos oitenta e noventa. Desmantelaram-se os controlos nacionais de capitais sem se ter previamente criado um quadro de regulação e controlo supranacional digno desse nome.
A isto há que juntar todos os efeitos perversos da actuação das agências de rating. Isto já aqui foi denunciado por Nuno Teles e por Jorge Bateira. Paul De Grauwe, conselheiro económico do cherne e uma das figuras mais destacadas das chamadas finanças comportamentais (análise das dinâmicas dos mercados financeiros reconhecendo que estes são povoados por seres humanos), escreveu um artigo, publicado ontem no FT, onde faz uma crítica devastadora à incompetência e irresponsabilidade destas empresas privadas. Contribuíram decisivamente para a actual crise e dificultam hoje a acção pública que é necessária para poder sair dela. Têm de ser encerradas.
Entretanto, em editorial, defende-se que a União Europeia deve tomar a dianteira na construção de um sistema mais robusto de regulação do sistema financeiro. Só assim se poderá travar a «corrida para o fundo» («race to the bottom») nesta área, num quadro em que existe liberdade de circulação de capitais: «Se um país aperta as suas regulações, os investidores podem simplesmente mudar para uma jurisdição menos vigiada (…) se os Estados não chegam a acordo num conjunto de standards mínimos, os mercados internacionais levam a uma corrida para o fundo». Este foi um dos grandes erros da social-democracia nos anos oitenta e noventa. Desmantelaram-se os controlos nacionais de capitais sem se ter previamente criado um quadro de regulação e controlo supranacional digno desse nome.
A isto há que juntar todos os efeitos perversos da actuação das agências de rating. Isto já aqui foi denunciado por Nuno Teles e por Jorge Bateira. Paul De Grauwe, conselheiro económico do cherne e uma das figuras mais destacadas das chamadas finanças comportamentais (análise das dinâmicas dos mercados financeiros reconhecendo que estes são povoados por seres humanos), escreveu um artigo, publicado ontem no FT, onde faz uma crítica devastadora à incompetência e irresponsabilidade destas empresas privadas. Contribuíram decisivamente para a actual crise e dificultam hoje a acção pública que é necessária para poder sair dela. Têm de ser encerradas.
Sinais dos tempos no actual PS
No Público de hoje:
“Antes da votação, o ministro dos Assuntos Parlamentares fez ainda uma antevisão da "derrota" do CDS e a "vitória da agenda reformista do Governo". "Será a vitória dos deputados livres que não se deixaram chantagear nem intimidar, daqueles que não estão na câmara corporativa a defender interesses profissionais, mas a defender os interesses do povo português", afirmou, merecendo um forte aplauso da bancada socialista.”
Deputados livres? Ninguém é absolutamente livre.
Desde que viemos ao mundo, todos nos integramos em redes de relações e sistemas sociais que organizam a natureza, afectos, interesses e poderes, de que vitalmente dependemos e nos constituem como pessoas.
Todos nos vinculamos a ideias, valores, princípios que orientam as escolhas que fazemos, também os hábitos que adquirimos, e permitem interpretar os nossos interesses a cada momento. É tudo isto, e não é pouco, que nos devia afastar de uma concepção de liberdade como “livre arbítrio” e preferir uma outra, inspirada em Kant: “liberdade é fazer o bem, a mim próprio, aos que me estão próximos, e à minha comunidade”.
Os deputados que ontem votaram ‘contra’ são tão livres como os que votaram ‘a favor’. A diferença (relativamente aos que votaram a favor) é que os que votaram contra têm um entendimento do que é ser deputado, e interesses a defender, que são diferentes. Por exemplo: muitos entenderão que um deputado responde antes de mais perante o seu partido, e não perante os cidadãos que o elegeram; muitos entenderão que é do seu interesse manter aberta a possibilidade de um lugar de deputado na legislatura seguinte, e não que é do interesse do país repensar todo o sistema de avaliação proposto.
Confesso que me deixa surpreendido e triste que o Augusto Santos Silva, Professor Catedrático de Sociologia da Universidade do Porto, exerça desta forma o cargo político de Ministro dos Assuntos Parlamentares.
Sinais dos tempos no actual PS.
“Antes da votação, o ministro dos Assuntos Parlamentares fez ainda uma antevisão da "derrota" do CDS e a "vitória da agenda reformista do Governo". "Será a vitória dos deputados livres que não se deixaram chantagear nem intimidar, daqueles que não estão na câmara corporativa a defender interesses profissionais, mas a defender os interesses do povo português", afirmou, merecendo um forte aplauso da bancada socialista.”
Deputados livres? Ninguém é absolutamente livre.
Desde que viemos ao mundo, todos nos integramos em redes de relações e sistemas sociais que organizam a natureza, afectos, interesses e poderes, de que vitalmente dependemos e nos constituem como pessoas.
Todos nos vinculamos a ideias, valores, princípios que orientam as escolhas que fazemos, também os hábitos que adquirimos, e permitem interpretar os nossos interesses a cada momento. É tudo isto, e não é pouco, que nos devia afastar de uma concepção de liberdade como “livre arbítrio” e preferir uma outra, inspirada em Kant: “liberdade é fazer o bem, a mim próprio, aos que me estão próximos, e à minha comunidade”.
Os deputados que ontem votaram ‘contra’ são tão livres como os que votaram ‘a favor’. A diferença (relativamente aos que votaram a favor) é que os que votaram contra têm um entendimento do que é ser deputado, e interesses a defender, que são diferentes. Por exemplo: muitos entenderão que um deputado responde antes de mais perante o seu partido, e não perante os cidadãos que o elegeram; muitos entenderão que é do seu interesse manter aberta a possibilidade de um lugar de deputado na legislatura seguinte, e não que é do interesse do país repensar todo o sistema de avaliação proposto.
Confesso que me deixa surpreendido e triste que o Augusto Santos Silva, Professor Catedrático de Sociologia da Universidade do Porto, exerça desta forma o cargo político de Ministro dos Assuntos Parlamentares.
Sinais dos tempos no actual PS.
quinta-feira, 22 de janeiro de 2009
Proposta de emenda à moção de Socrates
"Esta crise não pode ser resolvida recorrendo aos princípios, às práticas [,] às políticas e [aos políticos] que a provocaram. Nada deve ficar como dantes."
Voltar outra vez
"Esta crise não pode ser resolvida recorrendo aos princípios, às práticas e às
políticas que a provocaram. Nada deve ficar como dantes."
in PS: A força da Mudança
Moção ao XVI Congresso do PS
Moção ao XVI Congresso do PS
Já se sabia que esta crise foi ouro sobre azul para o Governo:
1. Permite misturar a crise de emprego e crescimento que já vinha de trás com a crise financeira, permitindo chutar as responsabilidade para outros cantos da Europa e do Mundo.
2. Permite justificar medidas populares (e o seu carácter temporário?) em ano de eleições, protegendo o Governo das acusações de eleitoralismo.
3. Permite atirar as responsabilidades da política económica nacional e internacional para a direita, como se o PS tivesse andado a remar contra a maré.
A moção não engana. O Congresso do PS será um remake de um filme antigo: a reconciliação com a base do Partido, a vitória da "ala esquerda", a "renovação da esperança", etc. A mensagem para os eleitores é clara: Em 2009, voltem a acreditar!
Mesmo assim, não se pense que a moção assume a mais pequena dimensão auto-crítica em relação a quatro anos de deriva ideológica. Nem mesmo um bocadinho pequenino. São 25 páginas de propaganda e contentamento...
Com efeito, o mais extraordinário nesta moção é o desplante com que o Primeiro-Ministro de Portugal, que governou com maioria absoluta durante quase quatro anos e alinhou com tudo o que foi política económica europeia, volta fresquinho como uma alface e fala como se tivesse andado (como andaram muitos) a bradar no deserto. "Nada será como dantes."
Faz lembrar o famoso mural pintado durante a invasão de Praga: "Ivan, quantas vezes nos vais libertar?"
quarta-feira, 21 de janeiro de 2009
A crise faz milagres no jornalismo de negócios!
Estou perplexo!
Os 'analistas' da televisão dão sinais de que a crise é mesmo muito grave. Vejamos.
Anteontem à noite, um deles na RTP N (A cor do dinheiro) assumia que só a nacionalização dos bancos permitiria restabelecer a normalidade do fluxo de crédito às empresas e famílias.
Há minutos, no telejornal da noite da SIC, o jornalista José Gomes Ferreira desfez a reputação da Standard & Poor's, a agência de notação que colocou a economia portuguesa sob vigilância e ameaça de descida da notação que atribui à nossa dívida pública. E chamou a atenção para o facto de essas mesmas empresas não terem alertado para a gestação da crise do crédito à habitação e, digo eu agora, não terem posto a economia dos EUA sob a mesma vigilância por falta de "reformas estruturais". Remata o pivot do telejornal: "não tem credibilidade ... mas é o que temos!"
Será que os jornalistas de negócios também seguem a análise dos Ladrões? Esta posta já falava disso ... há quase três meses.
Agora só falta darem mais um passo: dizerem que essa avaliação de risco é um 'bem público' da comunidade internacional e, por isso, deve ser exercida por uma agência tutelada pelas Nações Unidas.
Os 'analistas' da televisão dão sinais de que a crise é mesmo muito grave. Vejamos.
Anteontem à noite, um deles na RTP N (A cor do dinheiro) assumia que só a nacionalização dos bancos permitiria restabelecer a normalidade do fluxo de crédito às empresas e famílias.
Há minutos, no telejornal da noite da SIC, o jornalista José Gomes Ferreira desfez a reputação da Standard & Poor's, a agência de notação que colocou a economia portuguesa sob vigilância e ameaça de descida da notação que atribui à nossa dívida pública. E chamou a atenção para o facto de essas mesmas empresas não terem alertado para a gestação da crise do crédito à habitação e, digo eu agora, não terem posto a economia dos EUA sob a mesma vigilância por falta de "reformas estruturais". Remata o pivot do telejornal: "não tem credibilidade ... mas é o que temos!"
Será que os jornalistas de negócios também seguem a análise dos Ladrões? Esta posta já falava disso ... há quase três meses.
Agora só falta darem mais um passo: dizerem que essa avaliação de risco é um 'bem público' da comunidade internacional e, por isso, deve ser exercida por uma agência tutelada pelas Nações Unidas.
O opaco preço da liberalização financeira
Mesmo depois de uma humilhante visita de Teixeira dos Santos à sede da agência de notação Standard and Poors em Londres - onde foi dar explicações sobre as nossas finanças públicas - esta empresa cortou a avaliação (rating) do crédito do Estado português. Como estas agências são entendidas como a melhor fonte de informação sobre a capacidade de estados e empresas em pagarem as suas dívidas, esta redução traduzir-se-á num aumento do custo (taxa de juro) da dívida pública nacional. Vai ser mais caro ao Estado português endividar-se nos mercados internacionais.
É, no entanto, incrível que estas agências continuem a ser tomados como credíveis, detendo assim um tal poder sobre os Estados. Como denuncia este artigo do economista político Gerald Epstein, agências como a Standard and Poors foram directamente responsáveis pela actual crise financeira. Ao atribuírem avaliações muito positivas ao títulos baseados em hipotecas, hoje considerados “lixo tóxico”, permitiram que os bancos disseminassem tais produtos por todo o mundo. Os títulos eram comprados por serem aparentemente seguros graças ao rating. Por outro lado, vale a pena lembrar também que os seus lucros serão tão maiores como a quantidade de produtos e títulos a avaliar (por pior que seja a informação disponível). Existe aqui um claro problema de incentivos.
No momento em que os Estados se endividam na tentativa de resolver os problemas criados, em parte, por estas agências, estas cortam, ou ameaçam cortar, a sua notação, dificultando a resposta à crise. Ora, como Epstein defende tal corte não é lógico. Se é certo que o crescente endividamento poderia fazer recear uma menor capacidade de pagamento, só através dos actuais planos maciços de investimento público podem os Estados garantir a prosperidade futura necessária ao pagamento futuro da dívida. É preciso, pois, desacreditar estas empresas e substitui-las por agências públicas internacionais, sem fins lucrativos, cujos modelos de avaliação sejam transparentes.
Que fazer com esta crise?
Um economista neoliberal, o intelectual orgânico da banca e a directora do Le Monde Diplomatique – edição portuguesa e uma das mais recentes co-autoras deste blogue. Jaime Antunes, João Salgueiro e Sandra Monteiro debatem hoje no clube de imprensa: Que fazer com esta crise? Maria Elisa modera. Passa na RTP2 às 23h30m. O debate parece-vos desequilibrado? As aparências podem enganar. Não percam.
Entretanto, aproveito para recomendar uma vez mais este artigo: «Hoje, talvez de um modo socialmente mais generalizado do que em períodos recentes, existe algo a que poderá chamar-se uma real e genuína disponibilidade para a dúvida. Para suspender respostas automáticas, porque se sente necessidade de voltar a reflectir. Para auxiliar essa reflexão tem que se procurar mais informação, ouvir o que outros têm para dizer, colocar questões, fazer propostas. Justamente porque a 'ordem natural do mundo', a que expulsa como 'anacrónicas', 'idealistas' ou 'irrealistas' tudo o que não é o pensamento único, é ela própria uma construção».
A fotografia é de Renato Roque.
Entretanto, aproveito para recomendar uma vez mais este artigo: «Hoje, talvez de um modo socialmente mais generalizado do que em períodos recentes, existe algo a que poderá chamar-se uma real e genuína disponibilidade para a dúvida. Para suspender respostas automáticas, porque se sente necessidade de voltar a reflectir. Para auxiliar essa reflexão tem que se procurar mais informação, ouvir o que outros têm para dizer, colocar questões, fazer propostas. Justamente porque a 'ordem natural do mundo', a que expulsa como 'anacrónicas', 'idealistas' ou 'irrealistas' tudo o que não é o pensamento único, é ela própria uma construção».
A fotografia é de Renato Roque.
terça-feira, 20 de janeiro de 2009
Revisão em baixa
Roubei ao Porfírio Silva este naco da moção de Socrates ao Congresso do PS:
«O mundo acaba de assistir à clamorosa derrota do pensamento político neoliberal. A ideologia do mercado entregue a si próprio, sem Estado nem regulação capaz, e a especulação desenfreada nos mercados financeiros são os responsáveis principais pela profunda crise que se abateu sobre toda a economia mundial».
Parece uma revisão em baixa das expectativas do «socialismo moderno» no capitalismo real. Que linguagem radical! Gostaria tanto de acreditar que daí irá sair alguma coisa diferente na governação.
«O mundo acaba de assistir à clamorosa derrota do pensamento político neoliberal. A ideologia do mercado entregue a si próprio, sem Estado nem regulação capaz, e a especulação desenfreada nos mercados financeiros são os responsáveis principais pela profunda crise que se abateu sobre toda a economia mundial».
Parece uma revisão em baixa das expectativas do «socialismo moderno» no capitalismo real. Que linguagem radical! Gostaria tanto de acreditar que daí irá sair alguma coisa diferente na governação.
Algumas políticas para um Estado estratega
No último artigo defendi que algumas das escolhas políticas do actual governo estão a contribuir para a consolidação no nosso país do que o economista norte-americano James Galbraith designou, noutro contexto, por "Estado predador", ou seja, para a consolidação de uma "coligação de interesses económicos reaccionários" que prosperam através de políticas públicas neoliberais de esvaziamento da provisão pública. As consequências desastrosas deste processo, com reflexos na inserção cada vez mais dependente da economia portuguesa, tornam ainda mais urgente a construção do que Manuel Alegre designou por "Estado estratega". Este tipo de configuração envolve uma acção pública determinada numa multiplicidade de áreas, dos serviços públicos ao combate às desigualdades. Neste breve texto discuto apenas algumas políticas que podem ajudar a reverter o carácter rentista do capitalismo português. O resto do artigo pode ser lido no Esquerda.
Estes dois artigos sintetizam uma intervenção realizada no painel de economia do encontro "Democracia e Serviços Públicos" que teve lugar no passado dia 15 de Dezembro. Esta iniciativa, que juntou todas as esquerdas socialistas que não se conformam com a austeridade assimétrica permanente, contribuiu para reforçar um processo de encontro e de descoberta das melhores soluções para alterar o rumo das políticas públicas no nosso país. Este processo não pode parar. Este processo não vai parar.
A fotografia é de Pedro Guimarães.
O século XXI começa hoje
Um artigo que li há tempos recordava que o tempo cronológico é diferente do tempo vivido pelas pessoas e pelas sociedades. Hoje, 20 de Janeiro de 2009, com a tomada de posse de Barack Obama como Presidente dos EUA, começa verdadeiramente o século XXI se nos colocarmos num tempo-‘kairos’.
Não se trata de adoptar uma atitude messiânica relativamente ao novo presidente. Trata-se apenas de reconhecer que este é um momento simbolicamente importante, não apenas pelo que significa para os afro-americanos, mas também porque vai figurar na História como um marco no processo de declínio da mundivisão neoliberal que há demasiado tempo domina o mundo sob a liderança dos EUA e nos levou ao desastre que hoje vivemos.
Repito, o século XXI começa hoje.
Não se trata de adoptar uma atitude messiânica relativamente ao novo presidente. Trata-se apenas de reconhecer que este é um momento simbolicamente importante, não apenas pelo que significa para os afro-americanos, mas também porque vai figurar na História como um marco no processo de declínio da mundivisão neoliberal que há demasiado tempo domina o mundo sob a liderança dos EUA e nos levou ao desastre que hoje vivemos.
Repito, o século XXI começa hoje.
A Economia no seu Labirinto
A imagem do labirinto, pela complexidade inerente, os caminhos cruzados, a procura e a construção de sentidos, oferece potencialidades para pensar a economia. Mas não uma certa economia. Com efeito, na vertente dita dominante desta área do saber, a imagem será mais linear, a de uma corrente, a principal corrente ou mainstream. Esse domínio tem-se traduzido na ausência de pluralismo, na pretensão de universalidade das teorias e soluções propostas e no esquecimento da história – a da própria disciplina e a dos homens.
Não é estranho, nem inédito, que as crises económicas, como a actual, conduzam a crises das explicações do mundo. O que será estranho é a preponderância de uma visão do mundo no contexto disciplinar da economia. Só a arrogância e a pretensão da opinião correcta (ortodoxia) não admite o erro ou as dificuldades encontradas na formulação de uma explicação clara dos fenómenos sociais a partir de um determinado esquema analítico. A vulnerabilidade da ortodoxia, que se confunde com a própria disciplina, radica nos mesmos factores da sua ‘força’, ou seja, na purificação teórica e na homogeneização dos curricula dos cursos de economia.
Não é a defesa de uma certa visão das coisas que é questionável. O que é questionável é apresentar apenas essa visão, o monopólio explicativo, práticas contrárias à natureza do trabalho científico e do ensino. Para além da exclusividade, a própria ideia da existência de um ‘paradigma dominante’ também não permite inverter a situação. Pelo contrário, a apresentação de uma disciplina como sendo dominada por uma certa visão e a apresentação desse facto de forma acrítica concorre para reproduzir esse domínio. A postura segundo a qual um economista, se o quer ser, deve saber sobretudo, ou exclusivamente, a perspectiva neoclássica encontra a sua fundamentação em argumentos de autoridade (ou de ignorância autoritária) e não de cientificidade. É legítimo ter a mesma exigência para outras perspectivas da disciplina. Por que é que um economista, se o quer ser, tem de saber, sobretudo ou exclusivamente, o paradigma neoclássico? Porque é o paradigma dominante. E por que é que é o paradigma dominante? Porque é o que ensina. E porquê? A resposta a estas perguntas passa por perceber que as razões desse ‘domínio’ estão nas pessoas e nas instituições onde se ensina Economia e não na disciplina. É a política da economia.
Não há a perspectiva, há perspectivas, há teorias económicas. A separação entre o mainstream e as outras correntes (tidas como ‘alternativas’ e, em certos contextos institucionais, esotéricas) não ajuda a definir uma forma de introdução ao património da disciplina que transmita a ideia de multiplicidade teórica e de construção de caminhos diversos que às vezes se cruzam. É a assunção da diversidade, e da complexidade, que permitirá colocar a economia no seu labirinto, humanizando-a.
Não é estranho, nem inédito, que as crises económicas, como a actual, conduzam a crises das explicações do mundo. O que será estranho é a preponderância de uma visão do mundo no contexto disciplinar da economia. Só a arrogância e a pretensão da opinião correcta (ortodoxia) não admite o erro ou as dificuldades encontradas na formulação de uma explicação clara dos fenómenos sociais a partir de um determinado esquema analítico. A vulnerabilidade da ortodoxia, que se confunde com a própria disciplina, radica nos mesmos factores da sua ‘força’, ou seja, na purificação teórica e na homogeneização dos curricula dos cursos de economia.
Não é a defesa de uma certa visão das coisas que é questionável. O que é questionável é apresentar apenas essa visão, o monopólio explicativo, práticas contrárias à natureza do trabalho científico e do ensino. Para além da exclusividade, a própria ideia da existência de um ‘paradigma dominante’ também não permite inverter a situação. Pelo contrário, a apresentação de uma disciplina como sendo dominada por uma certa visão e a apresentação desse facto de forma acrítica concorre para reproduzir esse domínio. A postura segundo a qual um economista, se o quer ser, deve saber sobretudo, ou exclusivamente, a perspectiva neoclássica encontra a sua fundamentação em argumentos de autoridade (ou de ignorância autoritária) e não de cientificidade. É legítimo ter a mesma exigência para outras perspectivas da disciplina. Por que é que um economista, se o quer ser, tem de saber, sobretudo ou exclusivamente, o paradigma neoclássico? Porque é o paradigma dominante. E por que é que é o paradigma dominante? Porque é o que ensina. E porquê? A resposta a estas perguntas passa por perceber que as razões desse ‘domínio’ estão nas pessoas e nas instituições onde se ensina Economia e não na disciplina. É a política da economia.
Não há a perspectiva, há perspectivas, há teorias económicas. A separação entre o mainstream e as outras correntes (tidas como ‘alternativas’ e, em certos contextos institucionais, esotéricas) não ajuda a definir uma forma de introdução ao património da disciplina que transmita a ideia de multiplicidade teórica e de construção de caminhos diversos que às vezes se cruzam. É a assunção da diversidade, e da complexidade, que permitirá colocar a economia no seu labirinto, humanizando-a.
Nacionalizar, dizem
No Reino Unido, já se podem ler apelos à nacionalização da banca no "Pravda" dos mercados financeiros, o Financial Times.
A ignorância em todo o seu esplendor - II
De facto, esta 'crise' não é igual às outras e vai fazer muitos professores universitários deste país dar cambalhotas intelectuais para explicar como duas grandes heresias, segundo os cânones da "Ciência Económica", afinal passaram a ser instrumentos de política económica adequados e indispensáveis:
1) A nacionalização do sistema financeiro, ainda que temporária, a que vamos assistir em alguns países;
2) A monetarização da dívida pública (para os leigos: criação de moeda pelo banco central para comprar os títulos da dívida que os governos precisam de emitir para financiar as suas intervenções na economia), algo que o BCE está proibido de fazer ... (até quando?) porque provocaria hiperinflação.
Ao contrário do que Luís Aguiar-Conraria imagina, em 2009 não haverá razões para celebrar a "mão invisível" de Adam Smith, muito menos associando-a ao Darwinismo. Em vez de celebrações, tudo se conjuga para um cenário de grande sofrimento pessoal e social.
Os profesores de economia, que não pairam acima da sociedade, irão ter de abrir-se ao ensino de outras correntes da economia, mais tarde ou mais cedo, com mais ou menos convicção. Sim, "ressuscitando teorias caducas e mais do que refutadas". É a vida ... os paradigmas não são sistemas culturais estáticos (T. Kuhn); evoluem, confrontam-se com outros, cedem a hegemonia que tinham a outros que, entretanto, também foram evoluindo, num processo sem fim.
Por isso, o conhecimento científico (também é cultura, é bom lembrar!) não é um processo linear e cumulativo, pelo que é errado usar-se a expressão "avanços da Teoria Económica". É uma pena ver que pessoas inteligentes como Luís Aguiar-Conraria se deixem cegar pela ortodoxia. A confissão de Alan Greenspan no Senado dos EUA é um exemplo que deveria encorajá-lo. Um homem idoso, no fim de uma carreira que parecia ter sido de grande sucesso, reconhece sem reservas que afinal estava errado. Uma atitude corajosa e digna que devia ser ponderada pelos jovens-turcos que abundam na nossa pobre academia.
NB: Acabo de ouvir no programa A cor do dinheiro (RTP-N) um 'analista' entrevistado por Camilo Lourenço assumir abertamente a necessidade de uma intervenção radical do Estado no sistema financeiro. Sim, é de nacionalizações que falava. Em Portugal, no jornalismo dos negócios, o 'mainstream' começa a abrir brechas!
1) A nacionalização do sistema financeiro, ainda que temporária, a que vamos assistir em alguns países;
2) A monetarização da dívida pública (para os leigos: criação de moeda pelo banco central para comprar os títulos da dívida que os governos precisam de emitir para financiar as suas intervenções na economia), algo que o BCE está proibido de fazer ... (até quando?) porque provocaria hiperinflação.
Ao contrário do que Luís Aguiar-Conraria imagina, em 2009 não haverá razões para celebrar a "mão invisível" de Adam Smith, muito menos associando-a ao Darwinismo. Em vez de celebrações, tudo se conjuga para um cenário de grande sofrimento pessoal e social.
Os profesores de economia, que não pairam acima da sociedade, irão ter de abrir-se ao ensino de outras correntes da economia, mais tarde ou mais cedo, com mais ou menos convicção. Sim, "ressuscitando teorias caducas e mais do que refutadas". É a vida ... os paradigmas não são sistemas culturais estáticos (T. Kuhn); evoluem, confrontam-se com outros, cedem a hegemonia que tinham a outros que, entretanto, também foram evoluindo, num processo sem fim.
Por isso, o conhecimento científico (também é cultura, é bom lembrar!) não é um processo linear e cumulativo, pelo que é errado usar-se a expressão "avanços da Teoria Económica". É uma pena ver que pessoas inteligentes como Luís Aguiar-Conraria se deixem cegar pela ortodoxia. A confissão de Alan Greenspan no Senado dos EUA é um exemplo que deveria encorajá-lo. Um homem idoso, no fim de uma carreira que parecia ter sido de grande sucesso, reconhece sem reservas que afinal estava errado. Uma atitude corajosa e digna que devia ser ponderada pelos jovens-turcos que abundam na nossa pobre academia.
NB: Acabo de ouvir no programa A cor do dinheiro (RTP-N) um 'analista' entrevistado por Camilo Lourenço assumir abertamente a necessidade de uma intervenção radical do Estado no sistema financeiro. Sim, é de nacionalizações que falava. Em Portugal, no jornalismo dos negócios, o 'mainstream' começa a abrir brechas!
segunda-feira, 19 de janeiro de 2009
Agora que eles já sabem
As previsões sobre riscos globais do Fórum Económico Mundial são sempre uma “lufada de ar fresco” para as nossas mentes desatentas. Ao relatório de 2009, apresentado na semana passada, acresce a pretensão de estabelecer as orientações para sarar as feridas provocadas pelo ‘desastre’ de 2008. Aos líderes mundiais é recomendada prudência: numa altura como estas, a precipitação poderá converter-se no maior risco que o mundo pode enfrentar em 2009. Na leitura que propõem sobre os riscos globais, sugerem que seja dado um passo atrás e, simultaneamente, se olhe para o longo prazo, agarrando as oportunidades e aprendendo as lições resultantes dos erros cometidos nos últimos anos. É esse o mote para Davos, aprender com os erros!
Pede-se, carinhosamente, aos líderes mundiais: deixem que 2009 seja o ano em que o mundo encontra uma agenda comum que permita começar a mitigar os impactos dos riscos globais acumulados. Mas qual é verdadeiramente a novidade trazida pelo relatório Global Risks 2009? Na “paisagem de riscos globais” anunciados para o ano que agora entrou destacam a deterioração/derrapagem das contas públicas (sobretudo nos países do G8), o risco de agravamento da queda do mercado de acções, as ameaças para a saúde resultantes das alterações climáticas, o aumento do desemprego, a queda dos níveis de confiança dos consumidores e das empresas, o desinvestimento em infraestruturas essenciais, a falta de liquidez financeira, entre muitos outros. Das previsões parece não vir muito suplemento de novidade. Passemos aos problemas que lhes estão associados: continuação do colapso do mercado de acções, crédito mal parado, ameaças à produção alimentar, deflação, ameaças sobre o clima do planeta, ameaças sobre os recursos naturais, escassez da água, mais tensões entre os países, entre outros. Também não parece ser por aqui. Será, então, nas respostas? O Fórum Económico Mundial propõe que se redefinam as instituições multilaterais para adaptá-las ao mundo actual e deixam, a título de aviso, muitos cuidados – cuidado com as decisões, cuidado com as vistas curtas, cuidado com o excesso de intervencionismo estatal, cuidado com a forma de regulação adoptada para que esta não enfraqueça os mercados, cuidados com as escolhas de empresas a salvar para que não se premeie a má gestão e se prejudique a concorrência. Aqui parece já haver alguma novidade. A novidade de quem pede que tudo mude para que tudo fique na mesma. O exercício de aprendizagem com os erros cometidos em mais não se traduz, afinal, do que na criação de instrumentos ou na redefinição dos existentes para que o mercado continue a funcionar na sua melhor forma. A maior novidade vem, enfim, da falta de novidade.
Mas há, de facto, outras novidades, e essas passam pela inclusão de “novos riscos” no Barómetro dos riscos globais. O Fórum Económico Mundial tem identificado todos os anos os riscos globais, dividindo-os em cinco grandes categorias: riscos económicos, riscos geopolíticos, riscos ambientais, riscos sociais e riscos tecnológicos. A turbulência de 2008, se outro efeito não teve, fez com que o Fórum Económico Mundial reconhecesse a existência da “novidade” nos tipos de riscos que devem ser avaliados anualmente. Nos riscos económicos foram incluídos como novos riscos o custo da regulação e o risco de sub-investimento em infraestruturas; nos riscos geopolíticos foi incluído o risco de falhas na governação global; aos riscos ambientais acrescentaram-se os riscos de inundações costeiras, de poluição atmosférica e de perda de biodiversidade; nos riscos sociais acrescentou-se o risco de migração (!); e, finalmente, aos riscos tecnológicos juntou-se o risco de perda ou fraude de dados. A ‘novidade’ destes riscos dispensa comentários. Agradecemos o aviso.
Agora que eles já sabem, o que podemos esperar de Davos 2009 senão uma vontade incontornável de cumprir (ou mesmo ratificar) protocolos e convenções internacionais sobre direitos humanos, desenvolvimento sustentável ou saúde, como, por exemplo, o Protocolo de Quioto? Agora que eles já sabem, não é legítimo que esperemos respostas fortes que não coloquem sistematicamente as ‘urgências’ económicas à frente de prioridades estratégicas no domínio do desenvolvimento sustentável? Agora que eles já sabem, talvez consigam, finalmente, fazer a distinção entre crescimento e desenvolvimento, perceber que os “riscos globais” têm impactos locais muito desiguais, que o sistema capitalista neoliberal gera modelos de produção injustos e insustentáveis, que o papel regulador dos Estados e que as instituições públicas contam sempre e não apenas na aflição.
É pena que ainda não saibam o quão exíguas são as fronteiras do ‘mundo de partida’ e do ‘mundo de chegada’ patente neste diagnóstico.
Pede-se, carinhosamente, aos líderes mundiais: deixem que 2009 seja o ano em que o mundo encontra uma agenda comum que permita começar a mitigar os impactos dos riscos globais acumulados. Mas qual é verdadeiramente a novidade trazida pelo relatório Global Risks 2009? Na “paisagem de riscos globais” anunciados para o ano que agora entrou destacam a deterioração/derrapagem das contas públicas (sobretudo nos países do G8), o risco de agravamento da queda do mercado de acções, as ameaças para a saúde resultantes das alterações climáticas, o aumento do desemprego, a queda dos níveis de confiança dos consumidores e das empresas, o desinvestimento em infraestruturas essenciais, a falta de liquidez financeira, entre muitos outros. Das previsões parece não vir muito suplemento de novidade. Passemos aos problemas que lhes estão associados: continuação do colapso do mercado de acções, crédito mal parado, ameaças à produção alimentar, deflação, ameaças sobre o clima do planeta, ameaças sobre os recursos naturais, escassez da água, mais tensões entre os países, entre outros. Também não parece ser por aqui. Será, então, nas respostas? O Fórum Económico Mundial propõe que se redefinam as instituições multilaterais para adaptá-las ao mundo actual e deixam, a título de aviso, muitos cuidados – cuidado com as decisões, cuidado com as vistas curtas, cuidado com o excesso de intervencionismo estatal, cuidado com a forma de regulação adoptada para que esta não enfraqueça os mercados, cuidados com as escolhas de empresas a salvar para que não se premeie a má gestão e se prejudique a concorrência. Aqui parece já haver alguma novidade. A novidade de quem pede que tudo mude para que tudo fique na mesma. O exercício de aprendizagem com os erros cometidos em mais não se traduz, afinal, do que na criação de instrumentos ou na redefinição dos existentes para que o mercado continue a funcionar na sua melhor forma. A maior novidade vem, enfim, da falta de novidade.
Mas há, de facto, outras novidades, e essas passam pela inclusão de “novos riscos” no Barómetro dos riscos globais. O Fórum Económico Mundial tem identificado todos os anos os riscos globais, dividindo-os em cinco grandes categorias: riscos económicos, riscos geopolíticos, riscos ambientais, riscos sociais e riscos tecnológicos. A turbulência de 2008, se outro efeito não teve, fez com que o Fórum Económico Mundial reconhecesse a existência da “novidade” nos tipos de riscos que devem ser avaliados anualmente. Nos riscos económicos foram incluídos como novos riscos o custo da regulação e o risco de sub-investimento em infraestruturas; nos riscos geopolíticos foi incluído o risco de falhas na governação global; aos riscos ambientais acrescentaram-se os riscos de inundações costeiras, de poluição atmosférica e de perda de biodiversidade; nos riscos sociais acrescentou-se o risco de migração (!); e, finalmente, aos riscos tecnológicos juntou-se o risco de perda ou fraude de dados. A ‘novidade’ destes riscos dispensa comentários. Agradecemos o aviso.
Agora que eles já sabem, o que podemos esperar de Davos 2009 senão uma vontade incontornável de cumprir (ou mesmo ratificar) protocolos e convenções internacionais sobre direitos humanos, desenvolvimento sustentável ou saúde, como, por exemplo, o Protocolo de Quioto? Agora que eles já sabem, não é legítimo que esperemos respostas fortes que não coloquem sistematicamente as ‘urgências’ económicas à frente de prioridades estratégicas no domínio do desenvolvimento sustentável? Agora que eles já sabem, talvez consigam, finalmente, fazer a distinção entre crescimento e desenvolvimento, perceber que os “riscos globais” têm impactos locais muito desiguais, que o sistema capitalista neoliberal gera modelos de produção injustos e insustentáveis, que o papel regulador dos Estados e que as instituições públicas contam sempre e não apenas na aflição.
É pena que ainda não saibam o quão exíguas são as fronteiras do ‘mundo de partida’ e do ‘mundo de chegada’ patente neste diagnóstico.
Produtos-conhecimento
Sendo certo que a reforma do Ensino Superior em Portugal moldou finalmente a Universidade às orientações hegemónicas do neoliberalismo, torna-se por isso extremamente frustrante constatar que estamos a pôr em prática um modelo de funcionamento desenhado para servir um mundo que, a montante, está a ruir. E aqui surgem as piores inquietações: se é teoricamente claro o rotundo falhanço do capitalismo de casino, por que razão o discurso dominante se centra apenas nas “oportunidades” da crise?
De facto, esta crise parecia dar bons motivos para a construção de um novo patamar de regulação global, com os apelos sonantes à “refundação do capitalismo”, e ao “capitalismo de rosto humano” mas, entretanto, os offshores continuam e continuarão incólumes, permitindo a fraude fiscal e o roubo de dinheiros públicos; os melhores políticos continuarão incapazes de fazer aprovar medidas contra a corrupção; a promiscuidade entre o estado, as empresas, as câmaras e os partidos terá ainda muito para oferecer aos ambiciosos e, claro, os currículos académicos continuarão a doutrinar novas gerações de estudantes com base no dogma da imaculada escassez.
Os apóstolos do dinheirismo e da teologia do mercado – incluindo todos aqueles vampiros que directa ou indirectamente encontram em toda a parte, na crise, na fome, na guerra, uma oportunidade para negociar e enriquecer – não desapareceram. E, ao que parece, estão aí as novas oportunidades de negócio, de promoção pessoal e enriquecimento para os que, graças à liturgia do empreendedorismo e da inovação, souberem tirar partido da estrutura de oportunidades emergente. A “ambição” e a “competitividade”, como células gémeas de um cancro que não se extirpa, aí estão mais fortes do que nunca, corroendo o que resta de um modelo de desenvolvimento falhado. Que mercadorias fictícias, que produtos-conhecimento, virão a seguir alimentar toda esta hysteresis?
De facto, esta crise parecia dar bons motivos para a construção de um novo patamar de regulação global, com os apelos sonantes à “refundação do capitalismo”, e ao “capitalismo de rosto humano” mas, entretanto, os offshores continuam e continuarão incólumes, permitindo a fraude fiscal e o roubo de dinheiros públicos; os melhores políticos continuarão incapazes de fazer aprovar medidas contra a corrupção; a promiscuidade entre o estado, as empresas, as câmaras e os partidos terá ainda muito para oferecer aos ambiciosos e, claro, os currículos académicos continuarão a doutrinar novas gerações de estudantes com base no dogma da imaculada escassez.
Os apóstolos do dinheirismo e da teologia do mercado – incluindo todos aqueles vampiros que directa ou indirectamente encontram em toda a parte, na crise, na fome, na guerra, uma oportunidade para negociar e enriquecer – não desapareceram. E, ao que parece, estão aí as novas oportunidades de negócio, de promoção pessoal e enriquecimento para os que, graças à liturgia do empreendedorismo e da inovação, souberem tirar partido da estrutura de oportunidades emergente. A “ambição” e a “competitividade”, como células gémeas de um cancro que não se extirpa, aí estão mais fortes do que nunca, corroendo o que resta de um modelo de desenvolvimento falhado. Que mercadorias fictícias, que produtos-conhecimento, virão a seguir alimentar toda esta hysteresis?
domingo, 18 de janeiro de 2009
O esquerdismo na Europa após a guerra fria (I)
Os partidos situados à esquerda do PS têm estado no centro do debate político pelo menos desde finais de 2007. Primeiro, porque têm evidenciado uma performance notável e consolidada em termos de “intenções de voto”. Segundo, porque se houvesse disponibilidade de qualquer das partes, o que manifestamente parece não ser o caso, em caso de maioria relativa do PS poderia eventualmente formar-se um governo de tipo “esquerda plural”, comum na Europa após 1989. Seja como for, com dois congressos (BE e PS) e três eleições em perspectiva, é pertinente reflectir sobre o “esquerdismo”na Europa do após guerra fria.
Nesse sentido, recomendo desde já a leitura da minha coluna do Público, 19/1/2009, precisamente intitulada “O esquerdismo na Europa após a guerra fria”, onde abordo o perfil das várias correntes “esquerdistas” e as razões do seu sucesso (ou insucesso) relativos. Apoiei-me num estudo do politólogo Luke March (Contemporary Far Left Parties in Europe. From Marxism to the Mainstream?, Fundação Friedrich Ebert, 11/2008). Uma obra em boa hora editada pela Fundação F. Ebert, que felicito vivamente, e cuja leitura recomendo, nomeadamente aos dirigentes das esquerdas portuguesas (mas também a todos os cidadãos interessados).
Nesse sentido, recomendo desde já a leitura da minha coluna do Público, 19/1/2009, precisamente intitulada “O esquerdismo na Europa após a guerra fria”, onde abordo o perfil das várias correntes “esquerdistas” e as razões do seu sucesso (ou insucesso) relativos. Apoiei-me num estudo do politólogo Luke March (Contemporary Far Left Parties in Europe. From Marxism to the Mainstream?, Fundação Friedrich Ebert, 11/2008). Uma obra em boa hora editada pela Fundação F. Ebert, que felicito vivamente, e cuja leitura recomendo, nomeadamente aos dirigentes das esquerdas portuguesas (mas também a todos os cidadãos interessados).
A ignorância em todo o seu esplendor - I
Luís Aguiar-Conraria (L A-C) aproveitou a resposta à questão colocada por José Medeiros Ferreira (Ainda se ensina o mesmo nas universidades sobre economia, finanças e gestão do que antes da crise?) para nos oferecer um bom exemplo do “rigor científico” hoje dominante nas nossas escolas de Economia. Começa por dizer que a “análise económica convencional” inclui gente de diferentes quadrantes políticos, obviamente “deixando de parte comunistas e afins um pouco mais folclóricos”.
Ora isto não passa de conversa de café, e de baixo nível, porque mistura desleixadamente dois domínios distintos: o das teorias económicas e o das ideologias. Claro que há articulações entre os dois, mas a forma como L A-C começa o seu texto é suficiente para nos dizer que o assunto lhe escapa.
Vejamos. Enquanto economista, o meu trabalho de investigação integra-se na corrente institucionalista, o que inclui Marx, Veblen, Commons, Polanyi, Keynes, Minsky, Galbraith, Myrdal, Hirschman, todo o institucionalismo contemporâneo não-‘mainstream’ (Hodgson, etc), evolucionistas Schumpeterianos (R. Nelson, etc), pós-Keynesianos (não confundir com novos-Keynesianos) e contributos da “escola da regulação”.
Ora, invocar uma filiação teórica nesta ampla corrente do pensamento económico, com inegáveis pergaminhos académicos e a atravessar um momento de grande rejuvenescimento, não chega para tirar conclusões sobre as minhas opções político-ideológicas. De facto, não sou comunista nem um “afim um pouco mais folclórico”. Talvez seja um “radical de esquerda”, como diz L A-C, mas no exacto sentido de que gosto de discutir a dinâmica do capitalismo indo à raiz das questões.
Quem ler este excelente artigo de Ha-Joon Chang fica a perceber melhor como alguns modelos da teoria neoclássica foram combinados com contributos de Hayek (em grande medida antagónico dos neoclássicos) e com valores do individualismo libertário para, ao longo de muitos anos e em condições sociais particulares, permitir a emergência da ideologia neoliberal. Também fica a perceber melhor como a teoria económica do bem-estar e das “falhas de mercado” não é uma teoria sólida para os que queiram bater-se contra o neoliberalismo na luta política.
Lamento ter de o dizer, mas L A-C deve ter mais cuidado com o que escreve. Como professor, fica muito mal na fotografia da nossa academia. Devia evitar expor na praça pública tanta ignorância sobre o que hoje não é ‘mainstream’ e sobre as relações entre teorias económicas, ideologias e luta política.
NB: para os que insistem em dizer que ‘neoliberalismo’ é apenas um chavão do esquerdismo radical, recomendo este texto escrito por um académico que sabe do que fala.
Ora isto não passa de conversa de café, e de baixo nível, porque mistura desleixadamente dois domínios distintos: o das teorias económicas e o das ideologias. Claro que há articulações entre os dois, mas a forma como L A-C começa o seu texto é suficiente para nos dizer que o assunto lhe escapa.
Vejamos. Enquanto economista, o meu trabalho de investigação integra-se na corrente institucionalista, o que inclui Marx, Veblen, Commons, Polanyi, Keynes, Minsky, Galbraith, Myrdal, Hirschman, todo o institucionalismo contemporâneo não-‘mainstream’ (Hodgson, etc), evolucionistas Schumpeterianos (R. Nelson, etc), pós-Keynesianos (não confundir com novos-Keynesianos) e contributos da “escola da regulação”.
Ora, invocar uma filiação teórica nesta ampla corrente do pensamento económico, com inegáveis pergaminhos académicos e a atravessar um momento de grande rejuvenescimento, não chega para tirar conclusões sobre as minhas opções político-ideológicas. De facto, não sou comunista nem um “afim um pouco mais folclórico”. Talvez seja um “radical de esquerda”, como diz L A-C, mas no exacto sentido de que gosto de discutir a dinâmica do capitalismo indo à raiz das questões.
Quem ler este excelente artigo de Ha-Joon Chang fica a perceber melhor como alguns modelos da teoria neoclássica foram combinados com contributos de Hayek (em grande medida antagónico dos neoclássicos) e com valores do individualismo libertário para, ao longo de muitos anos e em condições sociais particulares, permitir a emergência da ideologia neoliberal. Também fica a perceber melhor como a teoria económica do bem-estar e das “falhas de mercado” não é uma teoria sólida para os que queiram bater-se contra o neoliberalismo na luta política.
Lamento ter de o dizer, mas L A-C deve ter mais cuidado com o que escreve. Como professor, fica muito mal na fotografia da nossa academia. Devia evitar expor na praça pública tanta ignorância sobre o que hoje não é ‘mainstream’ e sobre as relações entre teorias económicas, ideologias e luta política.
NB: para os que insistem em dizer que ‘neoliberalismo’ é apenas um chavão do esquerdismo radical, recomendo este texto escrito por um académico que sabe do que fala.
Outra pergunta
Entre a pergunta de José Medeiros Ferreira, dirigida a dois blogues com perspectivas distintas sobre a Economia, e a provocação insinuadora de Pedro Lains (PL), dirigida apenas ao Ladrões de Bicicletas, vai a diferença entre um debate plural que não vai certamente parar e uma discussão que, tal como foi colocada, não tem ponta por onde começar.
No entanto, vou fazer de conta que a pergunta de PL - «Devem as universidades e o debate académico servir a luta partidária e pelo poder?» - caiu do céu, sem contexto e sem emissor. Sem um contexto de visível défice de pluralismo na Economia que muitos têm denunciado e que outros pretendem perpetuar (a palavra-chave é mesmo pluralismo). Sem um emissor que, de forma recorrente, tenta desqualificar este blogue e os que nele escrevem através do mais gasto dos truques ideológicos: a ideologia está sempre nos «outros».
A pergunta acima mencionada só tem uma resposta rápida. Uma universidade que serve «a luta partidária e pelo poder» deixa de ser uma universidade. Passa a ser outra coisa qualquer. E os que promovem estes processos deixam de ser universitários e passam a ter outras prioridades: ganhar dinheiro, acumular poder, obter prestígio, etc.
No entanto, é importante identificar o que hoje pode fazer com que a universidade deixe de ser universal e «passe a ser uni-versal: um só verso, um só lado». Ainda Miguel Vale de Almeida: «O conhecimento social e politicamente recompensado e acarinhado passou a ser o conhecimento aplicado e instrumental sobre as empresas; e as faculdades social e politicamente recompensadas e acarinhadas passaram a ser aquelas que mais consigam articular-se com o poder económico e político. As reformas universitária e científica serviram, aliás, para confirmar, consolidar e incentivar esta tendência».
José Maria Castro Caldas identificou, em artigo, algumas das forças que hoje erodem a integridade institucional necessária para a produção e difusão do conhecimento científico: «A ‘modernização’ que se tem em vista passa por forçar a universidade a ir ao ‘mercado’ vender os seus ‘produtos’. O ideal de referência é o de uma universidade ‘mercadorizada’».
Para quem continua a aderir ao liberalismo económico, nada disto tem grande importância. No fim ficam duas perguntas. Deve a universidade servir os poderes económico e político? Onde foi gerado o que o próprio Pedro Lains designou por «Consenso da Almirante Reis», ou seja, a versão portuguesa do neoliberalismo?
No entanto, vou fazer de conta que a pergunta de PL - «Devem as universidades e o debate académico servir a luta partidária e pelo poder?» - caiu do céu, sem contexto e sem emissor. Sem um contexto de visível défice de pluralismo na Economia que muitos têm denunciado e que outros pretendem perpetuar (a palavra-chave é mesmo pluralismo). Sem um emissor que, de forma recorrente, tenta desqualificar este blogue e os que nele escrevem através do mais gasto dos truques ideológicos: a ideologia está sempre nos «outros».
A pergunta acima mencionada só tem uma resposta rápida. Uma universidade que serve «a luta partidária e pelo poder» deixa de ser uma universidade. Passa a ser outra coisa qualquer. E os que promovem estes processos deixam de ser universitários e passam a ter outras prioridades: ganhar dinheiro, acumular poder, obter prestígio, etc.
No entanto, é importante identificar o que hoje pode fazer com que a universidade deixe de ser universal e «passe a ser uni-versal: um só verso, um só lado». Ainda Miguel Vale de Almeida: «O conhecimento social e politicamente recompensado e acarinhado passou a ser o conhecimento aplicado e instrumental sobre as empresas; e as faculdades social e politicamente recompensadas e acarinhadas passaram a ser aquelas que mais consigam articular-se com o poder económico e político. As reformas universitária e científica serviram, aliás, para confirmar, consolidar e incentivar esta tendência».
José Maria Castro Caldas identificou, em artigo, algumas das forças que hoje erodem a integridade institucional necessária para a produção e difusão do conhecimento científico: «A ‘modernização’ que se tem em vista passa por forçar a universidade a ir ao ‘mercado’ vender os seus ‘produtos’. O ideal de referência é o de uma universidade ‘mercadorizada’».
Para quem continua a aderir ao liberalismo económico, nada disto tem grande importância. No fim ficam duas perguntas. Deve a universidade servir os poderes económico e político? Onde foi gerado o que o próprio Pedro Lains designou por «Consenso da Almirante Reis», ou seja, a versão portuguesa do neoliberalismo?
sábado, 17 de janeiro de 2009
A Economia e o económico
Este é o título de um seminário a não perder. Dias 23 e 24 de Janeiro de 2009. Sala de Seminários do Centro de Estudos Sociais. O programa já está disponível. Deixo-vos um excerto do texto de apresentação: “A Economia atravessa actualmente um período de profunda transformação. Alguns falam mesmo de um processo de transição paradigmática. Nos últimos anos, múltiplos e diversos desenvolvimentos, designadamente ao nível conceptual e teórico-metodológico – não raramente em resultado da 'contaminação' por disciplinas exteriores à Economia, como as ciências cognitivas e a psicologia experimental ou as ciências da complexidade – vêm abalando a aparente solidez do velho paradigma neoclássico, suscitando a discussão em torno dos seus próprios fundamentos. É o que acontece com o pressuposto da racionalidade – elemento central na análise dos processos de escolha e deliberação caros aos economistas neoclássicos – ou com os conceitos de equilíbrio”.
sexta-feira, 16 de janeiro de 2009
Sacudir a água do capote
A resposta de LA-C a Medeiros Ferreira corresponde a um eloquente «sim». Sim, a teoria económica ensinada na academia portuguesa continua a ser a mesma e, pior do que isso, se a resposta de LA-C for tida como indicador, tudo continuará como dantes. LA-C, ao contrário de cada vez mais economistas neoclássicos, não vê qualquer responsabilidade da teoria económica na actual crise. Aliás, para LA-C as únicas causas para a crise, segundo os textos que recomenda, estão numa política monetária errada por parte da Reserva Federal. É um dos dogmas que esta crise vem deitar por terra: a ideia de que a política monetária é responsável pelas dinâmicas económicas fundamentais do capitalismo sob hegemonia da finança.
É nas dinâmicas dos liberalizados mercados financeiros das últimas décadas que encontrar as raízes da crise. Ora, a liberalização destes mercados e o seu funcionamento foi claramente moldado pela teoria económica que hoje se aprende na maioria dos cursos de economia, a começar pela hipótese da perfeita eficiência dos mercados financeiros, de Eugene Fama, povoados de agentes omniscientes. Os mercados integrariam sempre toda a informação. Nunca existiria especulação ou anomalias persistentes. Para uma boa lista de como a teoria dominante falhou na prática veja-se este informativo artigo.
Há, no entanto, um caso paradigmático do final dos anos noventa. A criação do Long-Term Capital Management, um Hedge Fund (fundo de alto risco) que foi, na altura, recebida como uma grande inovação onde trabalharam dois prémios Nobel da economia, Merton e Scholes (este último um dos criadores do fórmula Black-Scholes, que todos nós aprendemos nas aulas de economia financeira e sem a qual os mercados derivados não teriam tido o desenvolvimento que tiveram). Este fundo cresceu a um ritmo exponencial. No entanto, devido à crise financeira russa, em 1998, foi à falência, tendo as suas perdas sido assumidas pela Reserva Federal. Caso contrário, todo o sistema financeiro estaria em risco. Dez anos depois a história parece repetir-se, não? Mais como tragédia do que farsa.
LA-C queixa-se também que nunca ouviu nada que valesse a pena da teoria económica dita heterodoxa. Nunca ouviu porque não quis ouvir. Se tivesse lido os contributos do Political Economy Institute ou os de alguns economistas franceses (Dominique Plihon, Michel Aglietta ou Gerard Duménil) estaria melhor equipado para compreender a actual crise. Aliás, foi o que fizemos por estas bandas.
Finalmente, quanto às «teorias caducas e refutadas» invocadas por LA-C, basta lembrar o exemplo do pós-keynesiano (logo, não respeitável) Hyman Minsky, referido neste blogue antes da crise financeira, e hoje uma referência citada no Financial Times, e logo pelo economista liberal Martin Wolf, ou na The Economist. Há quem queira escrutinar seriamente a crise. Sem dogmas.
É nas dinâmicas dos liberalizados mercados financeiros das últimas décadas que encontrar as raízes da crise. Ora, a liberalização destes mercados e o seu funcionamento foi claramente moldado pela teoria económica que hoje se aprende na maioria dos cursos de economia, a começar pela hipótese da perfeita eficiência dos mercados financeiros, de Eugene Fama, povoados de agentes omniscientes. Os mercados integrariam sempre toda a informação. Nunca existiria especulação ou anomalias persistentes. Para uma boa lista de como a teoria dominante falhou na prática veja-se este informativo artigo.
Há, no entanto, um caso paradigmático do final dos anos noventa. A criação do Long-Term Capital Management, um Hedge Fund (fundo de alto risco) que foi, na altura, recebida como uma grande inovação onde trabalharam dois prémios Nobel da economia, Merton e Scholes (este último um dos criadores do fórmula Black-Scholes, que todos nós aprendemos nas aulas de economia financeira e sem a qual os mercados derivados não teriam tido o desenvolvimento que tiveram). Este fundo cresceu a um ritmo exponencial. No entanto, devido à crise financeira russa, em 1998, foi à falência, tendo as suas perdas sido assumidas pela Reserva Federal. Caso contrário, todo o sistema financeiro estaria em risco. Dez anos depois a história parece repetir-se, não? Mais como tragédia do que farsa.
LA-C queixa-se também que nunca ouviu nada que valesse a pena da teoria económica dita heterodoxa. Nunca ouviu porque não quis ouvir. Se tivesse lido os contributos do Political Economy Institute ou os de alguns economistas franceses (Dominique Plihon, Michel Aglietta ou Gerard Duménil) estaria melhor equipado para compreender a actual crise. Aliás, foi o que fizemos por estas bandas.
Finalmente, quanto às «teorias caducas e refutadas» invocadas por LA-C, basta lembrar o exemplo do pós-keynesiano (logo, não respeitável) Hyman Minsky, referido neste blogue antes da crise financeira, e hoje uma referência citada no Financial Times, e logo pelo economista liberal Martin Wolf, ou na The Economist. Há quem queira escrutinar seriamente a crise. Sem dogmas.
Uma pergunta
A pergunta de Medeiros Ferreira, dirigida aos Ladrões e ao blogue Destreza das Dúvidas, é crucial: «Ainda se ensina o mesmo nas universidades sobre economia, finanças e gestão do que antes da crise»? Luís Aguiar Conraria (LA-C) responde referindo, entre outras coisas, uns «radicais de esquerda» que se limitam a slogans e/ou a recuperar teorias «refutadas». Propostas nem vê-las. Parece que os desgraçados até aprendem algumas coisas com os contributos de economistas convencionais. Em quem é que LA-C, que parece ter ficado um pouco nervoso com a pergunta, estará a pensar? Talvez nos possa esclarecer.
Quanto à pergunta de Medeiros Ferreira, confesso que, nas actuais circunstâncias, não sou a melhor pessoa para responder. Aposto por algumas reacções - sim, ainda estou a pensar na posta de LA-C - que se continuará a aplicar, na maior parte dos casos, a velha máxima de John Kenneth Galbraith: «tal como é convencionalmente ensinada, a Economia é em parte um sistema de fé, cujo propósito não é tanto revelar a verdade, mas mais fortalecer a confiança dos que dela comungam nos dispositivos sociais estabelecidos». Os dispositivos sociais mudam. Enfim, talvez alguma coisa mude. Teremos inovações genuínas e recuperações, mascaradas de novidade, na mais policiada das ciências sociais. Muitas teorias «refutadas», quais espectros, regressarão. Aqui tudo se transforma e muito se recupera. O«progresso» nas ciências sociais é coisa bem complexa.
Sobre este tema, relembro o que aqui se escreveu nas últimas semanas: Da crise de realismo ao realismo da crise; Valentes asneiras; O debate entre economistas não é fácil; O debate não pode parar; Pensar como um economista?; Um avanço no debate: três (quase) acordos e um desacordo; Pluralismo no ensino da economia; A responsabilidade dos economistas como engenheiros de mercado; Negócio do costume ?; Os economistas produziram a crise ? (I, II e III); Fracasso institucional, fracasso da Economia dominante e fracasso moral !.
quinta-feira, 15 de janeiro de 2009
Esquerda plural: uma solução para Portugal?
Continuo a recuperação de partes do artigo “Esquerda plural e clareza das alternativas” que publiquei recentemente no Le Monde Diplomatique – edição portuguesa, Janeiro de 2009. Com disse atrás, para se perceber o conjunto da argumentação, bem como as referências e os dados que a sustentam, é mesmo necessário comprar o jornal, que aliás tem outros artigos muito interessantes sobre este tema (de Daniel Oliveira, António Abreu e José Neves).
Em Portugal, quando se fala de cooperação entre as esquerdas, geralmente as várias forças acusam-se mutuamente. Para justificarem a quase impossibilidade de entendimentos, os socialistas acusam as forças à sua esquerda de sectarismo e de fazerem do PS o seu principal adversário. Por seu lado, também para justificarem a quase impossibilidade de entendimentos, os bloquistas (e os comunistas) acusam o PS de executar políticas de direita e daí o obstáculo quase intransponível para se firmarem acordos.
A verdade é que, do meu ponto de vista, todos precisam de fazer o seu papel numa eventual aproximação. Ou seja, como de forma concisa e precisa referiu Manuel Alegre, para um entendimento é necessária uma dupla ruptura. Os socialistas precisam de reconhecer que, se se aproximassem mais dos partidos à sua esquerda, e não dos partidos à sua direita, como têm efectivamente feito, poderiam formar um bloco político (e social) mais forte no combate às desigualdades sociais, em geral, e à direita social e política, em particular. A extrema-esquerda precisa não só de ultrapassar algum do seu sectarismo e da sua cultura de contra-poder, mas também de perceber que, primeiro, o seu principal adversário não pode ser o PS e, segundo, se deixasse a porta entreaberta para possíveis entendimentos não só poderia capitalizar mais nas urnas como poderia também ganhar maior credibilidade entre os portugueses e maior capacidade de influência na política portuguesa, nomeadamente para corrigir o “enviesamento do sistema partidário para a direita”. E com uma maior clarificação ideológica ganharia também a democracia portuguesa.
Em Portugal, quando se fala de cooperação entre as esquerdas, geralmente as várias forças acusam-se mutuamente. Para justificarem a quase impossibilidade de entendimentos, os socialistas acusam as forças à sua esquerda de sectarismo e de fazerem do PS o seu principal adversário. Por seu lado, também para justificarem a quase impossibilidade de entendimentos, os bloquistas (e os comunistas) acusam o PS de executar políticas de direita e daí o obstáculo quase intransponível para se firmarem acordos.
A verdade é que, do meu ponto de vista, todos precisam de fazer o seu papel numa eventual aproximação. Ou seja, como de forma concisa e precisa referiu Manuel Alegre, para um entendimento é necessária uma dupla ruptura. Os socialistas precisam de reconhecer que, se se aproximassem mais dos partidos à sua esquerda, e não dos partidos à sua direita, como têm efectivamente feito, poderiam formar um bloco político (e social) mais forte no combate às desigualdades sociais, em geral, e à direita social e política, em particular. A extrema-esquerda precisa não só de ultrapassar algum do seu sectarismo e da sua cultura de contra-poder, mas também de perceber que, primeiro, o seu principal adversário não pode ser o PS e, segundo, se deixasse a porta entreaberta para possíveis entendimentos não só poderia capitalizar mais nas urnas como poderia também ganhar maior credibilidade entre os portugueses e maior capacidade de influência na política portuguesa, nomeadamente para corrigir o “enviesamento do sistema partidário para a direita”. E com uma maior clarificação ideológica ganharia também a democracia portuguesa.
Esquerda plural: experiências europeias
Na presente e na próxima posta, recupero partes do artigo “Esquerda plural e clareza das alternativas” que publiquei recentemente no Le Monde Diplomatique – edição portuguesa, Janeiro de 2009. Para se perceber o conjunto da argumentação, bem como as referências e os dados que a sustentam, será mesmo necessário comprar o jornal, que aliás tem outros artigos muito interessantes sobre este tema (de Daniel Oliveira, António Abreu e José Neves).
Como disse, uma das explicações para o “enviesamento do sistema partidário português para a direita” é a falta de cooperação entre as esquerdas. Até porque, na Europa, as experiências de cooperação são múltiplas e variadas.
Em França, a cooperação entre a extrema-esquerda (PCF, MRG, “verdes”, etc.) e o PSF para a formação de soluções de governo começou com a chegada de François Mitterrand à presidência da República e, subsequentemente, com as chamadas “eleições da alternância”, em 1981, quando a esquerda chegou pela primeira vez ao poder na V República. A última experiência foi o governo da “esquerda plural” (PSF, PCF, MDC, MRG, “verdes”), 1997-2002, liderado por Lionel Jospin.
Em Itália, depois do colapso do sistema partidário do após guerra, em 1994, e da sua refundação, a qual coincidiu com a adopção de um novo sistema eleitoral (“misto” de pendor maioritário), os partidos passaram a competir e a alternar no governo em blocos (esquerda versus direita). O bloco da esquerda tem incluído desde as forças da extrema-esquerda, como a Rifondazione Comunista, aos vários sucedâneos do PCI, tais como os Democratici di Sinistra (DS), recentemente reconvertido em Partito Democratico, além de outros partidos mais centristas). O sistema eleitoral incentiva a cooperação, embora em menor medida do que no caso francês. Porém, a enorme fragmentação do sistema partidário torna as coligações mais difíceis de gerir.
Em Espanha, já tínhamos tido uma coligação pré-eleitoral, em 2000, entre o PSOE e a Izquierda Unida, que só não chegou a ser uma solução de governo porque perdeu as eleições. Mais recentemente, entre 2004 e 2008, o governo minoritário do PSOE governou com o apoio da Izquierda Unida e da Esquerda Republicana da Catalunha (acordo de incidência parlamentar).
Na Alemanha, há uma longa experiência de cooperação entre os “verdes” e o SPD, nomeadamente nos governos nacionais liderados por Gerard Schröder (1998-2006). Recorde-se, porém, que a passagem dos “verdes”/B90 ao governo não se fez sem uma dolorosa clarificação no seio do partido. A estratégia do “novo centro”, de Schröder, desencadeou depois uma cisão da ala esquerda do SPD que se fundiu com os ex-comunistas do PDS no Die Linke. Segundo vários testemunhos que pude ouvir, a grande coligação (CDU/CSU-SPD) que governa actualmente a Alemanha deriva mais da dificuldade do SPD em se coligar (logo) com um partido liderado por um seu antigo secretário-geral, Oskar Lafontaine, bem como da dificuldade do SPD em fazer alianças com os ex-comunistas do PDS, que perseguiram os sociais-democratas nos tempos da RDA…, do que das divergências políticas propriamente ditas, embora estas sejam sem dúvida significativas. No futuro, estas tenderão a ser limadas pela propensão ao compromisso: o Die Linke tem já acordos com o SPD (e os Verdes) no Estado de Hessen e na cidade de Berlim. Mais, a imprensa dava conta que o SPD decidiu já formalmente em congresso que vai cooperar com o Die Linke para a formação de governos ao nível estadual.
Na Escandinávia metropolitana (Dinamarca, Noruega e Suécia), onde os sociais-democratas têm sido a força dominante durante décadas e apenas com algumas interrupções, a experiência dos governos minoritários é predominante. Porém, muitíssimas vezes os social-democratas (SD e SAP, respectivamente na Dinamarca e Suécia), apesar de governarem em minoria, têm constituído acordos de incidência parlamentar com a extrema-esquerda (com o Partido Liberal Radical/RV e o Partido Socialista Popular/SF, na Dinamarca, e com o Partido de Esquerda/VP, o Partido da Esquerda Comunista/VPK e os verdes/MP, na Suécia).
Como disse, uma das explicações para o “enviesamento do sistema partidário português para a direita” é a falta de cooperação entre as esquerdas. Até porque, na Europa, as experiências de cooperação são múltiplas e variadas.
Em França, a cooperação entre a extrema-esquerda (PCF, MRG, “verdes”, etc.) e o PSF para a formação de soluções de governo começou com a chegada de François Mitterrand à presidência da República e, subsequentemente, com as chamadas “eleições da alternância”, em 1981, quando a esquerda chegou pela primeira vez ao poder na V República. A última experiência foi o governo da “esquerda plural” (PSF, PCF, MDC, MRG, “verdes”), 1997-2002, liderado por Lionel Jospin.
Em Itália, depois do colapso do sistema partidário do após guerra, em 1994, e da sua refundação, a qual coincidiu com a adopção de um novo sistema eleitoral (“misto” de pendor maioritário), os partidos passaram a competir e a alternar no governo em blocos (esquerda versus direita). O bloco da esquerda tem incluído desde as forças da extrema-esquerda, como a Rifondazione Comunista, aos vários sucedâneos do PCI, tais como os Democratici di Sinistra (DS), recentemente reconvertido em Partito Democratico, além de outros partidos mais centristas). O sistema eleitoral incentiva a cooperação, embora em menor medida do que no caso francês. Porém, a enorme fragmentação do sistema partidário torna as coligações mais difíceis de gerir.
Em Espanha, já tínhamos tido uma coligação pré-eleitoral, em 2000, entre o PSOE e a Izquierda Unida, que só não chegou a ser uma solução de governo porque perdeu as eleições. Mais recentemente, entre 2004 e 2008, o governo minoritário do PSOE governou com o apoio da Izquierda Unida e da Esquerda Republicana da Catalunha (acordo de incidência parlamentar).
Na Alemanha, há uma longa experiência de cooperação entre os “verdes” e o SPD, nomeadamente nos governos nacionais liderados por Gerard Schröder (1998-2006). Recorde-se, porém, que a passagem dos “verdes”/B90 ao governo não se fez sem uma dolorosa clarificação no seio do partido. A estratégia do “novo centro”, de Schröder, desencadeou depois uma cisão da ala esquerda do SPD que se fundiu com os ex-comunistas do PDS no Die Linke. Segundo vários testemunhos que pude ouvir, a grande coligação (CDU/CSU-SPD) que governa actualmente a Alemanha deriva mais da dificuldade do SPD em se coligar (logo) com um partido liderado por um seu antigo secretário-geral, Oskar Lafontaine, bem como da dificuldade do SPD em fazer alianças com os ex-comunistas do PDS, que perseguiram os sociais-democratas nos tempos da RDA…, do que das divergências políticas propriamente ditas, embora estas sejam sem dúvida significativas. No futuro, estas tenderão a ser limadas pela propensão ao compromisso: o Die Linke tem já acordos com o SPD (e os Verdes) no Estado de Hessen e na cidade de Berlim. Mais, a imprensa dava conta que o SPD decidiu já formalmente em congresso que vai cooperar com o Die Linke para a formação de governos ao nível estadual.
Na Escandinávia metropolitana (Dinamarca, Noruega e Suécia), onde os sociais-democratas têm sido a força dominante durante décadas e apenas com algumas interrupções, a experiência dos governos minoritários é predominante. Porém, muitíssimas vezes os social-democratas (SD e SAP, respectivamente na Dinamarca e Suécia), apesar de governarem em minoria, têm constituído acordos de incidência parlamentar com a extrema-esquerda (com o Partido Liberal Radical/RV e o Partido Socialista Popular/SF, na Dinamarca, e com o Partido de Esquerda/VP, o Partido da Esquerda Comunista/VPK e os verdes/MP, na Suécia).
As utopias de mercado fazem mal à saúde II
Os estudos sobre os determinantes sociais de saúde têm vindo a apontar para um padrão claro: as utopias de mercado fazem muito mal à saúde. Ainda nesta fascinante área, lembro o recente relatório da OMS a que já tinha feito menção neste artigo: a injustiça social faz muito mal à saúde. Os padrões identificados pelo relatório e as suas recomendações de política são muito claros.
Em primeiro lugar, a maior vulnerabilidade à doença é uma das injúrias mais marcantes das cavadas divisões de classe. Os países com maiores desigualdades económicas tendem a exibir, para níveis mais ou menos idênticos de desenvolvimento económico, piores indicadores de saúde. Em segundo lugar, a precariedade laboral, sintoma de vulnerabilidade numa esfera essencial da vida, tem um impacto negativo na saúde dos indivíduos. Em terceiro lugar, quanto maior é o peso das despesas privadas no total das despesas em saúde, menor é a esperança de vida.
Assim, a maior robustez do Estado Social, a natureza pública da provisão de bens essenciais, o alcance das políticas públicas de redistribuição ou a maior e melhor regulação dos mercados, em especial do «mercado de trabalho», são decisivos para que todos os cidadãos possam ter vidas longas e saudáveis. A natureza da provisão dos serviços de saúde é obviamente parte essencial destes determinantes sociais. Os sistemas públicos e universais, financiados por impostos progressivos, são, segundo o relatório, a melhor solução. Neste contexto, conclui-se sensatamente que «a comercialização de bens sociais vitais, como a educação e a saúde, produz iniquidade na área da saúde». É por isso que «a provisão destes bens sociais vitais deve ser da responsabilidade do sector público, em vez de ser deixada aos mercados».
Nota final. Sobre este tema vale a pena ler o que o Nuno Teles já aqui escreveu (I e II), este artigo do economista Vicenç Navarro e este da autoria de Cipriano Justo.
Em primeiro lugar, a maior vulnerabilidade à doença é uma das injúrias mais marcantes das cavadas divisões de classe. Os países com maiores desigualdades económicas tendem a exibir, para níveis mais ou menos idênticos de desenvolvimento económico, piores indicadores de saúde. Em segundo lugar, a precariedade laboral, sintoma de vulnerabilidade numa esfera essencial da vida, tem um impacto negativo na saúde dos indivíduos. Em terceiro lugar, quanto maior é o peso das despesas privadas no total das despesas em saúde, menor é a esperança de vida.
Assim, a maior robustez do Estado Social, a natureza pública da provisão de bens essenciais, o alcance das políticas públicas de redistribuição ou a maior e melhor regulação dos mercados, em especial do «mercado de trabalho», são decisivos para que todos os cidadãos possam ter vidas longas e saudáveis. A natureza da provisão dos serviços de saúde é obviamente parte essencial destes determinantes sociais. Os sistemas públicos e universais, financiados por impostos progressivos, são, segundo o relatório, a melhor solução. Neste contexto, conclui-se sensatamente que «a comercialização de bens sociais vitais, como a educação e a saúde, produz iniquidade na área da saúde». É por isso que «a provisão destes bens sociais vitais deve ser da responsabilidade do sector público, em vez de ser deixada aos mercados».
Nota final. Sobre este tema vale a pena ler o que o Nuno Teles já aqui escreveu (I e II), este artigo do economista Vicenç Navarro e este da autoria de Cipriano Justo.
As utopias de mercado fazem mal à saúde
O economista Jeffrey Sachs defende, em artigo na Time, que as fronteiras entre o Estado e os mercados têm de ser redesenhadas para que os EUA possam sair da profunda crise socioeconómica em que se encontram. Constata que em áreas vitais da vida social, da saúde às infra-estruturas públicas, os EUA estão num bom buraco e reconhece que isso é o resultado da hegemonia das concepções neoliberais e da correspondente erosão da provisão pública dos bens sociais, pilar de qualquer comunidade política digna desse nome.
Lembram-se quando os EUA da desgraçada «Era de Friedman» eram apontados, por tantos e tantos economistas portugueses, como o último estádio do desenvolvimento económico para o qual todos os países deveriam convergir? Não se esqueçam. Como bem assinala Sandra Monteiro: «Sabemos que a memória é uma construção social. Isto não significa que a memória seja o reino de um relativismo em que verdade e mentira não se distingam, mas antes que não é neutra, e que só pode ser compreendida no tempo e no espaço – isto é, na história».
Lembram-se quando os EUA da desgraçada «Era de Friedman» eram apontados, por tantos e tantos economistas portugueses, como o último estádio do desenvolvimento económico para o qual todos os países deveriam convergir? Não se esqueçam. Como bem assinala Sandra Monteiro: «Sabemos que a memória é uma construção social. Isto não significa que a memória seja o reino de um relativismo em que verdade e mentira não se distingam, mas antes que não é neutra, e que só pode ser compreendida no tempo e no espaço – isto é, na história».
Uma notícia no FT de hoje relembra-me o passado pouco recomendável de Jeffrey Sachs. Nos anos oitenta e noventa, Sachs foi um dos principais «evangelistas de mercado» ao serviço do FMI. Esteve envolvido na chamada terapia de choque que devastou os países do antigo bloco soviético. Um estudo publicado pela Lancet, uma prestigiada revista médica, afirma que «a privatização maciça rápida, como estratégia de transição, foi um determinante crucial nas tendências de mortalidade entre adultos nos países pós-comunistas». Pelo menos um terço dos três milhões de mortes entre homens em idade para trabalhar pode ter sido devido ao desemprego e desestruturação social gerados pelas privatizações. Pelo menos, Sachs parece ter aprendido com os erros e tem hoje posições infinitamente mais decentes. Quem me dera assistir a evoluções destas entre os economistas neoliberais que ainda dominam o debate na comunicação social portuguesa. Haja esperança.
quarta-feira, 14 de janeiro de 2009
Da sustentabilidade da Segurança Social
António Dornelas, do Canhoto, não percebe a contestação à introdução do factor de sustentabilidade da segurança social. Através deste factor, o aumento da esperança média de vida resulta numa diminuição da reforma ou em mais tempo de trabalho. Ninguém se opõe a medidas que preservem o carácter público e universal da segurança social, mas é exactamente esse carácter que está a ser posto em causa com este factor. À medida que as reformas se vão - lentamente, reconheço - desvalorizando, tanto maior é o incentivo ao recurso a fundos de capitalização privados que sirvam de complemento. Uma privatização de facto da segurança social. Estes complementos, de duvidosa sustentabilidade, não são para quem quer, mas sim para quem pode.
António Dornelas não vê alternativas a este processo, mas elas existem. Contudo, antes de aí chegar, é necessária uma nota central a esta discussão. Quando se fala de insustentabilidade da segurança social, não se pode só invocar o benigno aumento da esperança média de vida. Há que introduzir as baixas taxas de fecundidade nacionais para explicar o progressivo envelhecimento da população. Ora, é aqui que entram as políticas públicas. Podemos aprender com países como a França, ou estados como o Québec, como fazer. Por outro lado, na discussão pública raramente se invoca uma das variáveis mais importantes nas projecções feitas: o crescimento económico. Sem taxas de crescimento económico robustas, não existe sustentabilidade de longo prazo possível para qualquer modelo de segurança social. Pode parecer ligeiro querer discutir crescimento económico em tempos de crise profunda, mas neste domínio a última década foi perdida pelos sucessivos governos. Devem, por isso, ser responsabilizados por todos nós.
Mas vamos então às alternativas. A primeira é o chamado modelo Meidner, que deve a sua designação ao nome de um economista social-democrata sueco e que é explicada nesta posta, recorrentemente "linkada" por nós. Como a social-democracia sueca dos anos oitenta deve ser demasiado radical para António Dornelas, como segunda alternativa podemos discutir as contribuições patronais por ele invocadas. Se o Governo fiscalizasse de facto a vergonhosa situação dos falsos recibos verdes que, um pouco por todo lado, são cada vez mais a norma do que a regra (ver aqui para bons relatos), as contribuições para a segurança social disparariam. Embandeirar com os vergonhosos 5% agora introduzidos, em vez dos normais 22%, é ridículo. Finalmente, o recurso ao orçamento de estado não me chocaria. Se tivermos em conta que o governo continua a subsidiar os fundos de pensões através de benefícios fiscais de que só alguns efectivamente beneficiam, porque não acabar com esses benefícios e aplicar a receita ganha? A sustentabilidade da Segurança Social como sistema público, universal, deve ser o resultado de uma ampla discussão, que não enjeite a criatividade nas formas de a preservar. Encolher os ombros perante a desvalorização das pensões não ajuda.
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