quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Desejo

Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

Como já vem sendo hábito neste dia, o artigo 1º da nossa Constituição. Tenham um bom ano de 2016.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Três coisas que correram bem à economia portuguesa em 2015 (oxalá continuem assim)

Os ventos sopraram de feição para a economia portuguesa em 2015. Desde pelo menos 2010 que não havia um ano assim: taxas de juro em níveis historicamente baixos, uma taxa de câmbio do euro face ao dólar que não era tão reduzida desde 2003 e o preço do petróleo a cair para metade do seu valor médio no quinquénio anterior.

Não devemos desvalorizar nenhuma destas evoluções. A forte apreciação do euro face ao dólar e a subida acentuada do preço do petróleo entre 2002 e 2008 foram cruciais para a acumulação de dívida externa que conduziu à intervenção da troika em 2011. Inversamente, o movimento de sentido contrário que agora se observa nestas duas variáveis tem ajudado a reduzir o valor das importações (via fatura energética) e a aumentar as exportações nacionais, permitindo que as contas externas se mantenham positivas apesar do aumento da procura interna.

Da mesma forma, a redução das taxas de juro tem-se revelado determinante para uma economia que se encontra fortemente endividada. Tudo isto, juntamente com uma política orçamental menos restritiva em 2015, ajudou a que o ano que agora termina fosse mais favorável para a economia portuguesa do que os anteriores, reflectindo-se no crescimento do PIB e do emprego (o que ajuda a explicar que as coisas tenham corrido menos mal à coligação de direita do que se poderia prever no Verão de 2014).

Boa parte do sucesso ou insucesso do actual governo passará pela evolução combinada destas três variáveis - juros, câmbios e preço do petróleo - que não são controladas pelas autoridades nacionais. Para já, as perspectivas para 2016 são, a este nível, positivas: o BCE já anunciou que manterá a sua actual política de juros baixos até 2017; o diferencial face às taxas de juro nos EUA (que já começaram a aumentar) faz com que o valor do dólar face ao euro se mantenha em alta; e a desaceleração das economias emergentes, conjugada com a decisão dos países produtores de petróleo em manter os níveis de produção, deverão favorecer a permanência dos preços de petróleo a níveis moderados.

Muitas outras coisas poderão correr mal, mas se estas três variáveis mantiverem as tendências para já expectáveis, já é meio caminho andado.

Não à privatização forçada da banca

Desde 2011, o Estado português foi forçado a intervir em quatro bancos, três privados - BCP, BPI e Banif – e um público, a Caixa Geral de Depósitos, e a resolver dois – BES e Banif. Depois de anos de distribuição de milhares de milhões de euros de dividendos aos accionistas privados, eis que o Estado é transformado em accionista de último recurso. Apesar de todas as vicissitudes dos últimos anos, que envolveram perdas de milhares de milhões de euros para o Estado, este processo ainda se encontra longe de estar resolvido. E 2016 promete ser um ano determinante para a banca portuguesa.

Na ausência de capital privado, e enquanto os bancos punham em prática planos de reestruturação que assegurassem a sustentabilidade da sua actividade, foi o Estado a garantir os níveis mínimos de capital exigidos pela regulação. Apesar de todas as diferenças*, a intervenção pública seguiu sempre a mesma lógica: a “ajuda de Estado” seria excepcional e temporária, não alterando a natureza essencialmente privada do sector financeiro. Uma vez ultrapassados os “tempos difíceis”, tudo voltaria ao normal: uma banca essencialmente privada e dependente apenas dos seus próprios recursos para funcionar.

Três anos depois de iniciado este processo, verificamos que nenhum banco foi capaz de reembolsar o Estado através de recursos gerados pela sua própria actividade. BPI e BCP não se tornaram subitamente rentáveis, limitaram-se a fazer aumentos de capital com o objectivo único de reembolsar o Estado.A Caixa, como tem o próprio Estado como único accionista, ainda não reembolsou nada, e só poderia fazer o que fizeram o BCP e o BPI se fosse privatizada, permitindo a entrada de capital privado, ou se os Cocos fossem convertidos em capital. O Banif não arranjou accionista privado que reembolsasse o dinheiro que o Estado lá havia injectado e teve de ser resolvido e posteriormente vendido ao Santander, implicando perdas superiores a 2000 milhões de euros para os contribuintes.E o BES — que dispensou a ajuda pública inicial, sendo apresentado como um modelo de virtudes da gestão e propriedade privadas — teve de ser resolvido, o que implicou uma ajuda pública de 4900 milhões de euros. Os custos de litigância ainda não são conhecidos, mas devem ser avultados e serão imputados ao fundo de resolução, isto é, ao Estado.

Fruto da intervenção decidida no final de 2012, o Banif tornou-se num banco público. Ao decidir intervir num banco que as autoridades europeias (sabemos agora) consideravam inviável, o Governo anterior comprometeu, de forma irresponsável, o património do Estado e dos contribuintes. Ao nada fazer durante três anos, o Governo anterior agravou ainda mais o problema, porque o enquadramento regulatório foi-se tornando mais restritivo com a passagem do tempo, estreitando as opções existentes. No final, restavam apenas a liquidação do Banif, que era ruinosa para o Estado, ou a sua resolução e posterior venda, que também era ruinosa, mas menos que o cenário de liquidação.

Se o Governo anterior deve ser responsabilizado pela gestão dos últimos três anos, a Direcção-Geral da Concorrência também não pode escapar às criticas. Em primeiro lugar, pela sua conivência com o Governo anterior, o que permitiu ocultar o problema até às eleições. Em segundo lugar, pela solução que acabou por impor, que, mais do que implicar perdas excessivas para o Estado, implicou ganhos excessivos e injustificados para o Santander, que recebeu um banco limpo de todos os seus problemas a preço de saldo.

Se as regras europeias em matéria de ajuda de Estado determinam que o Estado tem obrigatoriamente de abrir mão do banco que foi obrigado a resgatar, então essas regras têm forçosamente de ser revistas, porque não faz sentido considerar a intervenção do Estado necessária em termos de estabilidade sistémica e, depois de assumidas todas as perdas pelos contribuintes e pelo Estado, também necessário que os bancos intervencionados ou sejam liquidados ou vendidos a privados. O simples facto disto decorrer das regras constitui um subsídio inaceitável a accionistas privados de bancos, que ficariam a saber que o Estado não só tem de intervir, porque os custos de falência do sistema são incomportáveis, como também tem de vender, seja a que preço for. Sabendo que os Estados só podem escolher entra a falência de um banco e a sua privatização forçada, não há negócio de venda que possa ser rentável para o Estado: os accionistas privados sabem que enfrentarão sempre saldos significativos na compra.

Não há nenhuma justificação para que estes processos decorram desta forma. Os Estados deviam ter a opção de ficar com bancos nos quais detêm ou passam a deter a maioria do capital. Devia ter sido assim no Banif. Deve ser assim no Novo Banco. E tem de ser assim na Caixa.

No Banif devia ter existido a opção de integrar o banco na Caixa, porque a venda forçada ao Santander beneficia apenas o banco espanhol. No Novo Banco, depois de uma injecção de capital de 4900 milhões de euros e de necessidades adicionais de capital superiores a 1500 milhões de euros, o Estado deve vender se quiser, ou se for rentável fazê-lo, nunca podendo existir uma obrigação de venda forçada que desvaloriza o banco e lesa os contribuintes, em benefício dos privados.

O Estado não pode ser forçado a desempenhar um papel de garante sistémico de negócios privados. Se o Estado intervém em nome do interesse público, então deve ser o interesse público, e não uma ideia dogmática de economia privada e de concorrência, a presidir a todo o processo. Não se trata de defender a nacionalização da banca, mas apenas de combater a sua privatização forçada. Depois de uma crise financeira criada essencialmente por privados, parece-me uma ideia do mais elementar bom senso.

* De todos os bancos que receberam capital público, o Banif foi um caso singular, porque foi o único que recebeu injecções directas de capital público; todos os outros foram recapitalizados via obrigações convertíveis, os chamados Cocos. Isto só reforça a tese de que a intervenção decidida no final de 2012 devia ter sido de outra natureza.

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Num país sem classes

Segundo a sabedoria económica convencional, em Portugal não existem classes sociais, existindo quanto muito uma classe média. Existem, isso sim, “grupos de interesse”, sempre de natureza sindical e que condicionariam as possibilidades do imparcial Estado demoliberal. Mais nada. É claro que uma coisa é a sabedoria convencional e outra coisa é o capitalismo realmente existente, que não passa sem um Estado que também estruturou e estrutura o poder económico, sem um espaço para onde confluem as lutas de classes, onde estas também se manifestam, condicionando-as e sendo por estas condicionado. Um Estado de resto cada vez mais condicionado pelo poder da burguesia, ou pelo menos de certas fracções imbricadas com o exterior.

A diferença entre a sabedoria convencional e a realidade está bem exposta num artigo recente da Revista Crítica das Ciências Sociais - Representantes e dominantes: Os governantes e as relações de classe em Portugal - da autoria de Adriano Campos, Jorge Costa, João Teixeira Lopes, Francisco Louçã e Nuno Moniz: “Este artigo trata das ligações estabelecidas entre os detentores de capital e os grupos de governantes e ex-governantes, a partir de uma perspetiva crítica capaz de realçar o papel do Estado na estruturação do poder económico. É dado especial enfoque ao processo de cooptação, numa análise que engloba os dados referentes aos 776 governantes que ocuparam 1281 cargos nos 19 governos constitucionais (1976-2014).”

Entretanto, recupero uma crónica de António Guerreiro, onde este discute o que se passa para lá da porta onde está escrito proibido a entrada a pessoas estranhas ao serviço, a empresa, neste caso ao serviço de uma informação com cada vez mais condicionamentos de classe: “Um ambiente de medo, de chantagem e de aniquilação pura e simples é a regra em muitos locais de trabalho. Mas em relação a um jornal tendemos a pensar que nunca se chega a um tal nível. No entanto, algo se transformou nas últimas décadas e os jornais tornaram-se completamente permeáveis às lógicas mais duras das relações de trabalho. Os jornalistas são hoje uma classe proletarizada a quem não é reconhecida a pertença ao universo profissional dos que gozam de autonomia intelectual.”

domingo, 27 de dezembro de 2015

A opacidade legal reinante

Em cada episódio bancário, somos confrontados com as sucessivas camadas de opacidade, criadas para impedir o cidadão de aceder aos actos políticos dos seus representantes.

Para que tudo não se repita, há que rever os mecanismos vigentes. E modificar o que não serve. Um deles é a actual Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (LADA).  

A lei foi criada em 1993, sofreu diversas alterações e tem a sua versão mais actualizada na lei 46/2007. Ao fim de 22 anos de vigência, há que concluir que a lei foi importante, mas que é totalmente ineficaz junto de quem a queira não cumprir. Um responsável que não queira cumprir a lei, sai completamente impune dos seus actos. A lei é, por isso, um exemplo da falta de coragem política, fruto daquela intenção de reinar entre mundos contrários.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Feliz Natal


Pensando no bem comum, hoje precisamos que a política e a economia, em diálogo, se coloquem decididamente ao serviço da vida, em especial da vida humana. A salvação dos bancos a todo o custo, fazendo pagar o preço à população, sem a firme decisão de rever e reformar o sistema inteiro, reafirma um domínio absoluto da finança que não tem futuro e só poderá gerar novas crises depois duma longa custosa e aparente cura. A crise financeira de 2007 e 2008 era a ocasião para o desenvolvimento duma nova economia mais atenta aos princípios éticos e para uma nova regulamentação da actividade financeira especulativa e da riqueza virtual. Mas não houve uma reacção que fizesse repensar os critérios obsoletos que continuam a governar o mundo.

Papa Francisco, Carta Encíclica Laudato Si, 2015, p. 58. Leitura complementar: o artigo de Michel Lowy na Monthly Review sobre a natureza anti-sistémica da Laudato Si. Boas leituras natalícias.

Aplicam políticas das quais não gostam


Aplico políticas neoliberais das quais não gosto. 
Euclid Tsakalotos, Ministro das Finanças grego. 

Mário Centeno diz que o governo fez mais em três semanas no caso Banif do que a direita em três anos e tem razão. Sabemos que depressa e bem não há quem. O problema é a tal Europa, que não está connosco, reconhece Centeno: não autorizou a capitalização do banco e a sua fusão com a CGD, a boa solução defendida pelo governo e condicionou, também por via do uso da arma letal da liquidez do BCE, a solução, optando-se, neste contexto, pela que mais favorece um grande grupo financeiro estrangeiro, assim ajudado pela República. No entanto, como não é ajuda para robustecer os poderes públicos a favor do interesse nacional, não há problema por parte das instituições pós-democráticas da UE. O governo português também aplica políticas das quais não gosta. É o destino das esquerdas neste contexto estrutural, da Grécia a Portugal.

O problema é que a política, em última instância, não se avalia pelas intenções, pelos gostos, mas sim pelas consequências do que efectivamente se aplica. E manda a ética da responsabilidade que seja avaliado o que efectivamente se aplica: havia alternativa a votar contra o orçamento rectificativo? Não havia. A avaliação tem de se fazer política a política, decisão a decisão. Sem perder de vista as tais estruturas de constrangimento e a sua natureza de classe absolutamente transparente.

Entretanto, os europeístas têm muito que explicar, dada a forma esperançosa como ainda tendem a apresentar a transferência em curso de poderes regulatórios, mesmo que conformes ao mercado, para o centro. Eu que sou cada dia que passa mais eurocéptico (como não o ser?), e favorável há muito à desobediência soberana, até simpatizo com a regra europeia, em vigor a partir do próximo ano, mas que provavelmente se poderia ter aplicado desde já, de poder fazer pagar todos os accionistas e credores do banco, com excepção dos depositantes até cem mil euros, pela sua “resolução”. Não simpatizo mesmo nada é com a lógica sistémica de um modelo regulatório centralizado em Frankfurt-Bruxelas, desenhado para aprofundar a criação de mercados globais, com grupos financeiros a operar nessa escala e que comandam as instituições pós-democráticas, ao contrário da ilusão provinciana de que no “estrangeiro” não há donos daquilo tudo. Para nós, será bem pior porque as decisões retirarão cada vez mais centros de decisão nacionais, até não restar nada.

A regra em causa poderia bem ser uma regra nacional, parte sistema regulatório nacional, controlado pela democracia onde esta pode existir. Não vejo nenhuma razão para um governo de esquerda proteger os grandes credores de um banco; nenhuma razão para que um capitalista de origem madeirense, sei lá, com uns negócios na Venezuela e que usou o Banif das Bahamas, um paraíso, para fugir daí, rumo ao jardim fiscal da Madeira, seja protegido pelos que aqui vivem.

Tal regra até seria dispensável, uma vez estabilizado o sistema financeiro em novos moldes, tendo em conta que no tempo em que havia sistemas financeiros ditos reprimidos, entre o pós-guerra e os anos oitenta, praticamente não houve crises bancárias: com banca essencialmente pública, com especialização funcional, com controlos de capitais e um Banco de Portugal, com independência operacional, mas politicamente dependente do Ministério das Finanças, com moeda própria, tal como antes da década de noventa. No entanto, a tal regra até pode ser útil na transição. Enquanto esta transição não chega pela vontade soberana do povo, a política está reduzida a olhar para o passado em busca de responsáveis, exercício sempre útil, mas desprovido de consequências, até porque não há instrumentos de política onde está a política democrática. Sobra o moralismo. As consequências que contam, essas são profundamente imorais.

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Factos lamentáveis que o fim do BANIF vem confirmar

1º) Mais uma vez constatamos que há muita gente que tem muito poder - que pode impor elevados custos sociais e financeiros ao conjunto da sociedade - sem nunca poder ser responsabilizada por isso. Incluem-se aqui:

• os reguladores, pelo que permitem que os bancos façam sob a protecção dos Estados;
• os banqueiros, pelas suas práticas de gestão;
• o Banco de Portugal, pelas suas falhas de supervisão;
• os governantes, pelas suas decisões (de acção ou inacção);
• a Comissão Europeia, pela forma parcial como faz a regulação;
• a comunicação social (neste caso, a TVI), pela capacidade de gerar pânico infundado entre depositantes.

2º) Fica clara mais uma dimensão do falhanço do "programa de ajustamento" a que Portugal foi sujeito entre 2011 e 2014. Já tínhamos a noção de que o programa tinha sido errado no pilar da sustentabilidade das finanças públicas (como, mais uma vez, o FMI assumiu há poucos dias). E que o seu alcance foi, na melhor das hipóteses, modesto no pilar das chamadas "reformas estruturais". Agora temos a confirmação de que no pilar da estabilidade do sistema financeiro ficou quase tudo por resolver.

3º) Este processo mostra também a arbitrariedade na aplicação das regras orçamentais europeias: não há limites à utilização de dinheiros públicos quando se trata de salvar bancos; mas se for para salvaguardar postos de trabalho em empresas estratégicas, ou para relançar a economia através do investimento público, aí a inflexibilidade é total.

Há, de facto, muitas reformas estruturais que é preciso implementar, mas não são bem aquelas que nos querem impor.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Lançar três notas sobre o banif


1. O governo “resolveu”, de forma só aparentemente expedita, um problema político legado pelas direitas no Banif. Estas andaram a adiar o problema para iludir os portugueses sobre a natureza da banca: um problema de todos, cuja propriedade teria de reflectir este facto e é preciso repetir isto muitas vezes. Teria, mas não tem: para assegurar a venda rápida neste contexto decidiu-se criar todas as condições ao Santander, o que significa que o controlo da parte “boa” pode continuar a ser privado, mas os custos são sempre socializados, ou seja, tudo o que é mau e duvidoso fica, de forma assumida, por conta do Estado. Fala-se – a Comissão Europeia, que é, com o Banco Central Europeu, quem manda mais, já fala – em cerca de quatro mil milhões de euros de envolvimento estatal global, directo e indirecto, no Banif antes e depois da resolução: entre os mil e cem milhões já injectados, e hoje de resto aprovados em Bruxelas, até aos mais de dois mil milhões para cobrir a tal resolução, passando por uma almofada de centenas de milhões para cobrir riscos do Santander. E isto para um banco relativamente pequeno, com pouco mais de seis mil milhões de euros de depósitos.

2. Tal decisão do governo foi compelida por Bruxelas e por Frankfurt: o Banco que não é de Portugal, mas sim uma sucursal de Frankfurt, “tem em conta” pelo menos os seguintes aspectos: “as consequências de uma provável declaração de ilegalidade do auxílio de Estado ao Banif pela Comissão Europeia (...) a posição das instâncias europeias no sentido de que a alienação do Banif, com auxílio de Estado, é apenas viável num cenário de resolução”. Para tais poderes europeus, o ideal é a promoção de um processo de concentração à escala europeia, com grandes bancos estrangeiros no controlo do que resta na periferia no contexto de uma crise de financeirização indissociável da integração realmente existente. É isto que está de acordo com as suas regras e para isso os recursos públicos da periferia servem. Tudo o resto é ilegal.

3. O Banif deveria ter sido “resolvido”, mas com custos partilhados também pelos grandes depositantes, dado que a garantia pública de depósitos só vai em teoria até aos cem mil euros, e diluído num pólo bancário público revigorado, porque toda a conversa de regulação sem propriedade não passa aqui do equivalente intelectual ao que o sistema financeiro privado fez em grande escala: fraude. Mas este último ponto exigiria desafiar em grande medida as regras europeias (e evitar o primeiro ponto é outra das hipóteses para a pressa). Nada se faz no campo das alternativas sem controlo do Banco Central, sem um Banco de Portugal. A alternativa é rectificar e calar. Atenção, isto não é um país. No campo da moeda e do crédito, do que conta mais no poder económico, isto é uma região. E dependente.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Pedalada


“Nuno Teles vê duas alternativas no caso BANIF: aumento de capital ou BCE avança com resolução”. Ontem, na Antena 1, o Nuno discutiu mais do que as duas alternativas que se colocam no constrangedor quadro europeu. Na realidade, o Nuno deixa claro que é necessário ir para lá dele. Escutem.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Sem alma


“No meio do processo de venda foi ferido na alma de qualquer banco, a confiança dos depositantes.” Helena Garrido perscruta a alma da banca. Camilo Lourenço, também no Negócios, fala da banca como o sector mais “sensível” de uma economia, uma sensibilidade que só os políticos perturbariam, claro. Tudo para concluírem que o Estado português terá de aceitar perder dinheiro que injectou no Banif, sem entretanto ter exercido cabalmente o poder que vem com o capital, em mais um banco dito privado que caiu, com a “alma ferida”, dada a sua “sensibilidade”.

A verdade é que a banca é realmente especial, dado que o crédito é um bem público que tem de ser bem tratado, com a confiança que, em última instância, só o soberano pode dar. Não pode por isso ficar entregue à lógica da míope concorrência mercantil ao serviço de banqueiros ávidos de dinheiro e de poder. É evidente que isso Garrido e Lourenço nunca dirão. Ficam-se pelo moralismo imoral, incluindo a defesa da transferência dos custos para baixo por via de mais austeridade.

Mas sabem que mais? O Estado pode mesmo ter de suportar custos financeiros e a desonestidade do anterior governo foi não assumir isso, empurrando o problema com uma barriga cada vez maior. A banca é um problema de todos e a sua propriedade terá simplesmente de reflectir essa realidade. O Estado terá de procurar minimizar os custos, fazendo pagar muitos dos que estão financeiramente envolvidos no Banif, incluindo, se necessário for, depositantes com mais de cem mil euros. O banco terá provavelmente de ser “resolvido”, como agora se diz, e o que sobrar integrado e diluído com tempo num pólo bancário público revigorado, que passará a incluir também os restos do antigo novo banco. Sem clarificações radicais, esta crise bancária em câmera lenta não terá fim, com os custos associados.

Só com uma propriedade maioritariamente pública da banca é possível uma regulação pública deste bem público, dirigindo-o para os sectores economicamente mais promissores, sem pressões míopes para a especulação ou para o crédito improdutivo. Tudo muito bonito, mas quem manda não deixa, Frankfurt e Bruxelas não deixam. Dizem que o Estado fica com demasiado poder de mercado. O mito da concorrência não morre por lá, impondo vendas apressadas, servindo para dificultar as soluções por cá.

Pois é, precisamos de um Banco que seja de Portugal e que não se limite a ser o que é: uma sucursal do estrangeiro, ao serviço do capital financeiro, perdão, da “estabilidade financeira”.

Aumentar o salário mínimo como parte de uma estratégia global – e avaliar os resultados

O salário mínimo nacional foi criado na Nova Zelândia no final do século XIX. Desde então tornou-se um dos temas mais polémicos no debate público em vários países e dos mais analisados na investigação económica. O seu objectivo primordial consiste em proteger a parte mais fraca da relação laboral – os assalariados – evitando que haja quem trabalhe por montantes que não chegam para satisfazer necessidades básicas. No entanto, as suas implicações a outros níveis não são óbvias – desde logo, no que respeita aos impactos no volume geral de emprego na economia em causa.

Os resultados da investigação económica não são inteiramente conclusivos a este respeito. Poucos estudos concluíram que o aumento do salário mínimo tem impactos substanciais no volume de emprego. Muitos apontam para um pequena destruição de emprego, outros para alguma criação, outros ainda para efeitos nulos. Não sabemos quantos estudos não chegaram sequer a ser publicados por chegarem a resultados que não são estatisticamente significativos.

Em termos teóricos, são vários os argumentos a favor da existência e de um aumento gradual do salário mínimo nacional. Incluem-se aqui, em qualquer circunstância, uma mais justa repartição do rendimento entre assalariados e empregadores, a dignificação do trabalho e dos trabalhadores (na maioria dos casos, das trabalhadoras) e a redução da pobreza entre os assalariados. No caso de economias menos avançadas, o salário mínimo funciona também como pressão para a melhoria da eficiência dos processos produtivos e para a transformação estrutural das economias no sentido de actividades geradoras de maior valor acrescentado. Quando as economias estão a produzir abaixo do potencial, o aumento do salário mínimo pode contribuir para estimular a procura e para contrariar riscos de deflação (ou inflação demasiado baixa). Qualquer um destes argumentos joga a favor de um aumento do salário mínimo em Portugal neste momento.

Em qualquer caso, importa ter presente os vários riscos habitualmente referidos na literatura sobre este tema. A saber, o aumento do salário mínimo pode: levar a uma menor criação de emprego; criar dificuldades acrescidas para trabalhadores menos qualificados; aumentar as desigualdades de rendimento entre empregados e desempregados (ou inactivos involuntários); conduzir à perda de competitividade das empresas mais expostas à concorrência internacional; ou aumentar o défice externo também por via de um aumento das importações. Qualquer um dos riscos listados é relevante no caso português, ainda que com variações.

Por exemplo, a principal fonte de desigualdades em Portugal na actualidade é a inserção precária de mais de um milhão de activos no mercado de trabalho, muitas vezes associada às baixas qualificações, o que torna particularmente graves os primeiros três riscos referidos. Quanto aos impactos na competitividade, eles tendem a ser diminutos por vários motivos: em geral, o efeito de um aumento do salário mínimo nos custos salariais totais é marginal (e os custos salariais são uma pequena parte dos custos totais das empresas); a maioria dos indivíduos que auferem o salário mínimo trabalha em sectores que não estão expostos à concorrência internacional; os preços das exportações têm crescido mais rapidamente do que os salários, o que significa que as empresas que exportam têm mais margem para suportar os aumentos salariais (já de si modestos).

Em suma, podemos esperar impactos positivos de um aumento do salário mínimo, mas também existem riscos. A preocupação dos responsáveis políticos deve ser a de maximizar os primeiros e de minimizar os segundos. Isto faz-se de diversas formas: investindo na melhoria das competências de gestão das empresas; reforçando o esforço de qualificação das pessoas, em particular daquelas que estão mais expostas à exclusão do mercado de trabalho; mantendo uma política sistemática de desenvolvimento tecnológico e inovação; reduzindo os custos de criação de novas empresas (nomeadamente, em termos fiscais e burocráticos); desincentivando as importações menos estratégicas por via fiscal e da alteração dos padrões de consumo; etc.

Alguns destes tipos de medidas podem ter efeitos imediatos, outros só produzem resultados no longo prazo. Todos eles são indispensáveis. Seja como for, para que as vantagens potenciais do aumento do salário mínimo se realizem e os seus riscos sejam evitados é fundamental ter uma estratégia global de desenvolvimento para o país. E não só: como os resultados das políticas públicas nunca são inteiramente antecipáveis, é recomendável que elas sejam implementadas de forma gradual e que os seus efeitos sejam continuamente monitorizados e devidamente avaliados. É isto que espero de um acordo da Concertação Social sobre o aumento do salário mínimo nacional até 2019.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

As famílias que vivem em cima

Em Portugal, a única classe social que pode ser mencionada sem se perder a respeitabilidade no debate público ainda é a famosa, e convenientemente parda, classe média. É como se todos fizessem parte dela. O problema é que de vez em quando a inconveniente realidade, trazida pela mão de jornalistas atentas, impõem-se à sabedoria convencional: 1000 famílias que mandam nisto tudo (e não pagam impostos), título de um imprescindível artigo de Elisabete Miranda, ilustrando o chamado Estado fiscal de classe. Este não é o da tal média, sendo antes, uma vez mais, o Estado a que chegámos, sempre tão selectivamente permissivo, no capitalismo neoliberal realmente existente.

O estado a que chegámos

Significa isto que «o Estado a que chegámos» não foi objecto de destruição, mas de reformatação (ver, na edição de Dezembro, o dossiê «Culpar e punir: a viragem caritativa e autoritária do Estado»). Ou seja, as escolhas políticas que elogiam o privado e o individual são de facto um empreendimento com sede no Estado para levar tão longe quanto possível a transferência dos recursos gerados pela sociedade para outras finalidades. Incompatíveis com o Estado social, estas aprofundam as desigualdades, a pobreza e o desemprego, e impedem o desenvolvimento económico e social. Este empreendimento implica várias substituições: da universalidade por particularismos, das protecções sociais por um assistencialismo caritativo, dos investimentos da sociedade em si mesma por um elogio da meritocracia e do indivíduo empreendedor, da autonomia por culpabilização e punição, e ainda da participação democrática por um simulacro de cidadania sem informação nem intervenção na decisão. A sociedade portuguesa passou demasiado depressa do «Estado Novo» para este «novo Estado» neoliberal.

Sandra Monteiro, O Estado somos nós?, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Dezembro de 2015.

O Nuno Serra contribui para o dossiê com um artigo - “Do romance do empreendedorismo à miséria moral da caridade”: “Empreendedorismo e caridade são, neste contexto, duas faces de uma mesma moeda. E o regime de austeridade veio torná-lo ainda mais evidente.” O Nuno retoma, desenvolve e articula dois dos temas que tem explorado neste blogue: o «empreendedorismo» é só para disfarçar o vazio e a imoralidade do já têm sopa, que mais querem?

domingo, 13 de dezembro de 2015

A Europa do mais do mesmo e o crescimento da Frente Nacional

"Hoje, o grande programa de relançamento da União Monetária ficou praticamente reduzido ao reforço da vigilância orçamental e aos novos mecanismos de controlo e prevenção dos desequilíbrios macroeconómicos, com a agravante de que, na prática, vigiam sobretudo os países deficitários e não ousam interferir com os altamente excedentários.

Pior: o debate sobre a gestão comum da dívida soberana não só está esquecido como começa a ser substituído por outros novos, insidiosos, sobre a gestão da "falência organizada dos Estados" - o que nos aproxima do relançamento político da ideia de países terem de sair do Euro -, a limitação da exposição soberana dos bancos e mesmo a "valorização" do risco soberano.

Na União Bancária, a prometida garantia comum europeia dos depósitos - o terceiro pilar do edifício que é tanto mais essencial quanto a supervisão já é uma realidade e a resolução arranca em Janeiro -, também está em risco: o sistema de "resseguro" das garantias nacionais de depósitos que está agora na mesa já é uma versão mitigada da promessa original e que mesmo assim foi arrancada "a ferros" e já está desencadear uma rejeição violentíssima da Alemanha.

Estes debates estão nos antípodas da lógica da "comunitarização" crescente dos projetos comuns que sempre prevaleceu ao longo do processo de integração europeia e que, no pico da crise do Euro, era considerada indispensável para salvar o mais emblemático projecto da UE.

Esta evolução resulta, também, do facto de, por diversos motivos internos e externos à UE, os Estados se terem apropriado da agenda, desviando-a, precisamente, dos métodos "comunitários" de decisão e reforçando um método de cooperação entre Governos - intergovernamental - mais apropriado ao século XIX do que aos desafios actuais, e completamente contrário à agenda de partilha de soberania assente na confiança mútua. Quando a dúvida se instala sobre se o interesse comum não terá sido capturado pelo interesse dos mais poderosos, o projeto fica inevitavelmente inquinado e os mecanismos de autodefesa e renacionalização fertilizam.

A UE tem de se repensar urgentemente, incluindo as suas finalidades, as suas opções e o seu método de funcionamento. E tem, sobretudo, de cumprir as promessas feitas em tempo de crise. Sem uma mudança de rumo assumida em comum e para o bem comum, será Marine Le Pen a impor a pior mudança possível, da pior forma e pelas piores razões."

Elisa Ferreira, Público, 13/12/2015

Para lá da conjuntura favorável


As perspectivas conjunturais da economia portuguesa são bastante favoráveis, mas os constrangimentos estruturais não deixam de ser insustentáveis.

O novo governo tem a vantagem de tomar posse numa conjuntura singularmente favorável. É, aliás, a mesma conjuntura que permitiu ao governo anterior alimentar a ilusão, no último ano da legislatura, de uma retoma tornada possível pela sua própria acção governativa – mas que no essencial se deveu à conjugação, especialmente do verão de 2014 em diante, de petróleo barato, euro em baixa e juros reduzidos.

A queda do preço do petróleo, que actua como uma redução da carga fiscal para empresas e consumidores (com o consequente efeito macroeconómico expansivo), tem sido resultado de um excesso de oferta a nível global que, segundo os analistas do sector, decorre de uma estratégia deliberada de alguns dos principais países produtores, com destaque para a Arábia Saudita. O objectivo dessa estratégia tem passado por limitar a viabilidade de formas concorrentes de produção energética, especialmente o gás de xisto e a exploração petrolífera de grande profundidade, que nos últimos anos têm vindo a tornar-se uma ameaça crescente para os produtores tradicionais. Trata-se, por parte dos principais produtores que dominam o mercado, de garantir a manutenção das suas quotas de mercado e limitar a entrada de concorrentes, mesmo que isso implique sacrificar margens de lucro no presente. E as indicações provindas da Arábia Saudita sugerem que essa estratégia é para manter, permitindo apenas uma subida muito gradual, ao longo dos próximos dois anos, do preço do petróleo dos actuais 45 dólares por barril para 70 ou 80 (face aos 115 dólares por barril de meados de 2014).

sábado, 12 de dezembro de 2015

Uma boca de incêndio

Estranhos tempos estes em que temos um candidato apoiado pelos partidos de direita a fazer declarações amistosas a um governo apoiado pelos partidos da esquerda e uma candidata, que espera ser apoiada pela esquerda, a defender que dissolverá o Parlamento se o Governo de esquerda não respeitar os tratados europeus, mas que, na sua página, prefere sublinhar que não iria dissolver o Parlamento ao governo de esquerda.

Estranhos e sagrados tempos que nos permitem ver Paulo Portas a sustentar a candidatura de Marcelo Rebelo de Sousa quando, em tempos idos, cortara relações com ele por: "a lealdade não ser o forte dele", ser mau e por lhe ter mentido sobre um encontro em Belém com constitucionalistas (o célebre jantar de vichyssoise). Portas cortou com Marcelo porque, "se tem publicado aquela notícia, tinha enganado as pessoas". Disse-lhe: "Não quero vê-lo nem mais uma vez". "Para uma pessoa que quer ser primeiro-ministro, tem de se tornar confiável. E tornar-se confiável significa acreditarmos nele".

Recorde-se que esse corte de relações não resistiu até aos anos 90, quando Marcelo e Portas tentam recriar a AD. Digo "tentam" porque, depois de intrigas em que Marcelo tenta fazer com que o CDS afaste Portas, Portas estoira com tudo numa entrevista à SIC em março de 1999, em que conta o que Marcelo lhe contara que "a maioria da comissão permanente do PSD considera que Portas não era uma pessoa de bem nem uma pessoa honrada… E que Leonor Beleza até tinha insistido para não fazer campanha ao lado dele… E também diz que a comissão diretiva do PP colocou a rutura em cima da mesa… e agora revela que a maioria da direção do PSD era a favor do fim da coligação… Ele pede e exige ao PSD a lealdade que ele próprio deu… Diz que o PSD quer evacuá-lo… Se o PSD duvida e hesita, então cada um segue o seu caminho… O PSD que diga se confia ou não no líder do PP… Era a segunda vez na vida que Paulo Portas tramava Rebelo de Sousa na televisão. Desta vez o caso seria mais definitivo e grave que o da vichyssoise." Marcelo perde o PSD.

A História é uma farsa.

Voltem os tempos límpidos de uma ideologia clara e de um respeito pela inteligência das pessoas. E de alguma, pelo menos, alguma honestidade moral, sem um pensamento estratégico ancorado em sondagens.

Há momentos em que sonho com uma mangueira ligada a uma boca de incêndio. Mas depois retenho-me porque não é muito democrático não aceitar que pessoas esquivas e viscosas, verdadeiros hipócritas de pensamento, possam chegar ao mais alto cargo da Nação.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Em fase terminal


Nos dias que correm, o chamado “projecto europeu” assemelha-se a um barco no meio da tempestade metendo água por todos os lados. Alguns dos seus mais acérrimos defensores estão tão desmoralizados que, pelo que escrevem, mais parecem adversários da “construção europeia”. A título de exemplo: “Com uma união monetária que estiola no Sul. Com Schengen agonizante no Centro e no Leste, o projeto europeu transformou-se num trágico nó górdio, à espera de um génio que o desate ou, o que é mais provável, de um(a) louco(a) capaz de erguer a espada que o corte. Sem olhar às terríveis consequências que se lhe seguirão.” (Viriato Soromenho Marques, DN - 7 Dez 2015). De facto, para grande pesar dos europeístas de todos os quadrantes, o barco está mesmo afundar e não é preciso ser adivinho para perceber que o seu fim está escrito nos astros.

Como se já não bastasse a tragédia do resgate dos bancos credores das periferias, através da conversão da dívida do sistema financeiro em dívida pública à troika, agravada pela aplicação de uma política económica idêntica à dos anos trinta do século passado que converteu o crash financeiro de 1929 na Grande Depressão, temos agora a Finlândia a admitir referendar a sua participação na Zona Euro. Juntemos a recente vitória de um partido eurocético na Polónia e a passagem da Frente Nacional a partido mais votado nas eleições regionais em França. Isto para além do anunciado referendo no Reino Unido sobre a sua participação na UE.

Sendo a Zona Euro o coração da UE, percebe-se que o seu funcionamento cada vez mais debilitado acabará por comprometer a sobrevivência da totalidade do corpo político a que está ligado. Aliás, a crise que estamos a viver já não é designada por “crise das dívidas soberanas”, como nos habituaram os media, e alguns analistas já referem com naturalidade a “crise da UE”. Na verdade, as dívidas públicas grega e portuguesa, como de resto as de outros países europeus não intervencionados, não adquiriram subitamente a virtude da sustentabilidade. Aconteceu apenas que o BCE tranquilizou os mercados financeiros com a promessa de que em última instância as compraria (à revelia dos tratados) ao mesmo tempo que vai intervindo discretamente para controlar o respectivo preço. Ou seja, afastado de um horizonte mais próximo o colapso financeiro de bancos e Estados, o risco do fim da UEM passou a ser eminentemente político.

Até quando resistirá o povo grego ao massacre a que está sujeito? Até quando resistirá a Itália a uma estagnação sem fim à vista? Até quando resistirá a França à permanente desindustrialização e erosão do Estado-social? Até quando aceitará a Finlândia sofrer uma recessão sem poder recorrer à política económica (orçamental e cambial) de que precisa? Até quando Portugal e Espanha estarão dispostos a sofrer um nível de desemprego típico da Grande Depressão? Muito provavelmente, a crise dos refugiados que chegam em massa às portas da UE será o golpe de misericórdia neste projecto de submissão dos povos ao totalitarismo neoliberal. A França e a Alemanha participaram ativamente nas aventuras imperiais dos EUA no Próximo Oriente e agora, face ao efeito de boomerang das suas intervenções ao serviço de negócios criminosos, prometem à Turquia a integração na UE para que faça o que outros países têm feito simplesmente por razões humanitárias, ao mesmo tempo que impõem à Grécia uma nova polícia de fronteiras sob comando da burocracia comunitária. A Grécia é ameaçada de expulsão por duas vezes em poucos meses (Euro e Schengen), enquanto a frágil democracia Turca, conivente como os terroristas do EI, é convidada a entrar na UE? O projecto europeu entrou certamente na sua fase terminal.

A minha colaboração com este jornal termina aqui. Agradeço aos editores e aos leitores o tempo que me dedicaram.

(O meu artigo no jornal i)

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Por um novo movimento da Paz

Cada vez mais me custa ver os noticiários. O medo instigado fala alto. Irrita-me. Parece que a nossa defesa tem de passar pela morte de alguém. Como naquele raciocínio siciliano: "É bom que matemos toda a família do inimigo para que não haja vinganças". Mas é impossível matar toda a gente. E matar justificará que nos matem a nós. Estamos perdidos.

A ausência de um caminho saudável para a política externa ocidental está afunilar as soluções nacionais. A França acordou em Novembro passado com um governo dito de esquerda a fazer o que qualquer governo de direita faria: tropas na rua, medidas de emergência, suspensão da Constituição. Hollande voa para os Estados Unidos e anuncia uma intensificação de bombardeamentos. Aviões começam a despejar bombas sobre a Síria. A Rússia entra no conflito e ataca as forças apoiadas pelo ocidente contra Assad. A Turquia toma conta do norte da Síria, bombardeia os curdos, ao mesmo tempo que diz bombardear o “inimigo externo” ocidental, enquanto lhe compra o petróleo, que serve para financiar o esforço de guerra contra Assad. Um mês depois, o resultado não se fez esperar. Uma política bélica de direita, praticada por socialistas, insufla eleitoralmente a extrema-direita. Quem parece mais sincero: Valls ou Le Pen?

Estamos a ser conduzidos para a guerra e assistimos ao espectáculo. No meio das imagens da morte crua, alguém se recorda da lufada de ar fresco que foi o discurso de vitória de Barack Obama, em 2009?

Lançamento hoje: «E agora esquerda?»


Na Biblioteca da Assembleia da República (entrada lateral pela porta lateral do Palácio de São Bento, junto ao parque de estacionamento), a partir das 18h30. O novo livro de Porfírio Silva, que reúne textos políticos de intervenção pública, será apresentado por José Rebelo e José Castro Caldas.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Três derrotas

1. Juntem austeridade e globalização, inscritas no europeísmo realmente existente e criadoras de fracturas sociais e nacionais cada dia mais intensas, adicionem ataques terroristas e a vertigem securitária subsequente, aparentemente validadora da narrativa de uma extrema-direita que hegemoniza a insegurança social e nacional justamente sentida pelas classes populares, e têm o prato que foi servido nas eleições regionais de Domingo: a Frente Nacional é de novo o maior partido francês. Entretanto, as esquerdas francesas, em geral, e a dupla Hollande-Valls, em particular, e só podemos falar de “esquerda” neste último caso com aspas, são uma desgraça sem fim. No país que se orgulha de ter inventado a soberania popular, importa repetir a pergunta dirigida aos que deixaram o terreno nacional-popular livre, refugiando-se nos europeísmos inanes, esquecendo grande parte da sua história: como é que se diz depois queixem-se em francês?

2. Estava para escrever sobre a pesada derrota da esquerda bolivariana nas eleições legislativas venezuelanas, mas os comunistas portugueses dizem muito do que eu queria dizer. Acrescento só que a linha dominante na imprensa nacional é escandalosamente enviesada, sendo inspirada na imprensa internacional mais reaccionária no que à América Latina diz respeito: estranha ditatura esta em que a oposição ganha eleições participadas e plurais; apesar das dificuldades, é preciso lata para falar do caminho para a miséria no contexto do processo bolivariano, já que este país foi um caso de progresso social até à crise, graças aos triunfos eleitorais do chavismo. O que esta crise deixou à vista foi a fragilidade de um modelo ainda demasiado dependente da renda do petróleo, cujo preço colapsou, o que juntamente com erros de política cambial explica o essencial da crise. É, no entanto, melhor um modelo de redistribuição dessa renda do que a alternativa antes do saudoso Chávez, bem mais desigual e pauperizadora. De resto, a esquerda bolivariana ainda não está acabada, já que controla a presidência, o poder executivo.

3. Interrompida por via eleitoral foi também a experiência Kirchner na Argentina, até porque Cristina não pôde recandidatar-se à Presidência, depois de dois mandatos consecutivos, deixando o poder com níveis de popularidade recorde. O candidato de continuidade não conseguiu beneficiar disso face a uma direita neoliberal revigorada. A experiência de recuperação económica e social soberana depois do desastre neoliberal do início do milénio foi globalmente muito positiva, incluindo na capacidade de passar incólume até agora pela crise internacional, graças à mobilização de todos os instrumentos de política económica. Apesar do revés, também é cedo para dizer que o kirchnerismo está acabado. Cristina andará por aí e não há como a passagem dos neoliberais pelo poder, com a sua abertura à finança internacional e às crises, para avivar memórias. Dito isto, a excessiva dependência de lideranças carismáticas nas experiências nacional-populares é obviamente sempre uma fraqueza a prazo, como ficou à vista.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Prémio Miguel Portas: «Entre pontes e margens - Migrações»


Decorre, até ao próximo dia 15 de Dezembro, o período de candidaturas ao Prémio Miguel Portas 2015-2016, com o tema «Entre Pontes e Margens - Migrações». Este Prémio é instituído pela Associação Cultural Miguel Portas, tendo em vista celebrar o seu legado material e imaterial, premiando iniciativas, actividades, obras ou projectos de âmbito cultural, social, artístico ou político, já realizados ou em curso, que decorram em Portugal e se integrem no tema de cada edição.

Dada a pertinência e actualidade da questão das migrações, convidam-se todos os interessados a candidatar projectos que se desenvolvam nesta área, bem como a divulgar a presente iniciativa junto de pessoas ou entidades conhecidas que possam estar interessados em apresentar candidaturas.

Para concorrer, os candidatos devem preencher o formulário de candidatura disponível no site da Associação Miguel Portas e enviar a mesma, após digitalização, para o endereço electrónico [mp.premio@gmail.com], juntamente com todos os elementos adicionais que se considerem necessários para completar o processo.

Será atribuído um 1º Prémio com o valor de cinco mil euros e duas menções honrosas com o valor de mil e quinhentos euros cada uma. As candidaturas vencedoras do Prémio 2015-2016 serão divulgadas em Abril/Maio de 2016, numa sessão especialmente convocada para o efeito. O Prémio Miguel Portas 2015-2016 tem o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Borgen

O referendo europeu é uma das omissões de Borgen, a excelente série de televisão dinamarquesa inspirada na política deste país nórdico. Birgitte Nyborg teria sido derrotada. Na semana passada, na Dinamarca realmente existente, ocorreu, sem grande eco na imprensa nacional, mais um participado referendo e, uma vez mais, a maioria dos dinamarqueses recusou, contra quase todos os partidos, poder vir a abdicar de excepções conquistadas em matéria de regras europeias, em matéria de soberania. Os europeístas podem assim confirmar o que os seus dominantes representantes há muito sabem: esta integração só pode ser feita nas costas dos povos, de forma furtiva e pós-democrática. Isto nunca dá bons resultados, claro. A alternativa é uma integração conforme às vontades dos povos, ou seja, de geometria muito variável.

sábado, 5 de dezembro de 2015

Finlândia: a primeira saída da zona euro?

Ambrose Evans-Pritchard escreveu há duas semanas no Telegraph um texto sobre a Finlândia e a zona euro que vale a pena ler. A ideia resume-se assim.

A Finlândia está viver a maior crise económica dos últimos 30 anos. Trata-se de um país-modelo para o 'mainstream' europeu, que fez todas as "reformas estruturais" que o FMI, a OCDE e a Comissão Europeia consideram necessárias. No entanto, um conjunto de choques específicos - a queda da Nokia, a redução dos preços das matérias-primas, a crise na Rússia – têm estado a arrastar a economia finlandesa para o fundo.

No passado, o país lidou com crises desta natureza recorrendo a desvalorizações cambiais. Com a participação no euro isto deixou de ser possível. Para além disso, as regras orçamentais levam o governo finlandês a acentuar a crise, prosseguindo políticas recessivas de austeridade orçamental. Entretanto, os finlandeses olham para os vizinhos suecos – que optaram por manter a sua moeda nacional - e vêem a respectiva economia a crescer a bom ritmo.


Não admira, pois, que a eventual saída do euro se tenha tornado tema de debate nacional, levando parlamento da Finlândia a agendar para o próximo ano um debate sobre o tema.

Vale a pena estarmos atentos a estes desenvolvimentos: as surpresas vêm habitualmente de onde não estamos a olhar.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Famílias Endividadas


O endividamento das famílias constitui uma das transformações mais marcantes da sociedade portuguesa, tendo adquirido maior relevância com a crise económica, que colocou a descoberto a vulnerabilidade gerada pela dívida. Mas o endividamento das famílias não é uma peculiaridade nacional. É um fenómeno partilhado pela generalidade das economias capitalistas desenvolvidas, evidenciando a presença de causas comuns. Destaca-se a crescente hegemonia de políticas neoliberais de promoção dos mercados financeiros, resultando numa crescente imbricação dos Estados, das empresas e das famílias com a finança, sendo a dívida das famílias uma das suas principais manifestações. Reunindo os contributos de investigadores das áreas da economia política, economia comportamental, psicologia cognitiva e social e do direito, este livro aborda a problemática da dívida de um modo abrangente. Analisa a relação entre a decisão individual no campo financeiro e os seus contextos, e debate o modo como a sociedade lida com a dívida e com o incumprimento do devedor.

Do livro, coordenado por Ana Cordeiro Santos, que divulga alguns dos resultados de um projecto interdisciplinar do Centro de Estudos Sociais, reunindo economistas, psicólogos e juristas, em linha com tendências na economia política (análise crítica da financeirização) e comportamental (superação do homo economicus). Um número temático da Revista Crítica de Ciências Sociais sobre consumo e crédito ou um artigo na Análise Social sobre a regulação do consumidor de produtos financeiros apresentam outros resultados. Este último artigo indica-nos como a tendência para promover a chamada literacia financeira não pode ser desligada do esforço para transferir para os consumidores o ónus dos desmandos de um sector financeiro ainda demasiado poderoso, contendo eventuais iniciativas de regulação mais assertivas e menos amigas dos interesses financeiros. Nada que seja estranho a Carlos Costa e aos seus amigos banqueiros...

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Facilitadores


O ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais [Paulo Núncio do CDS-PP], vai voltar à consultoria fiscal privada no início do próximo ano. Irá reencontrar na Morais Leitão o advogado António Lobo Xavier, que convidou para presidir à Comissão da Reforma do IRC.

Elisabete Miranda, no Negócios, exemplifica uma faceta da nossa economia política de porta giratória que foi bem escalpelizada por Gustavo Sampaio. Atenção: por nossa não estou a pensar no “isto só neste país”. Por nossa, estou a pensar na economia política do capitalismo realmente existente em que estamos mergulhados; um capitalismo onde também a liberdade de circulação de capitais e os infernos fiscais promovidos pela integração realmente existente levam ao estado de coisas denunciado por Mariana Mortágua: quando o imoral se torna banal.

Um brincalhão


Paulo Portas no debate do programa do Governo: "Não fazemos parte de um filme cujo argumento o povo não escrutinou, cujo artefacto a Nação não validou". E eu a lembrar-me dos enormes aumentos de impostos sobre salários e pensões ou dos cortes pronunciados no Estado social que PSD ou CDS, em Junho de 2011, sempre negaram ao eleitorado que iriam fazer ao longo de 4,5 anos. Lembro-me de Paulo Portas a atirar foguetes quando o défice externo caía (fruto da quebra do rendimento e, com ele, do consumo) e, pouco mais tarde, a deitar foguetes quando o consumo subia, mercê da atenuação da austeridade (aumentando o défice externo).

As rugas na testa de Paulo Portas, a condizer com o fatinho, dizem muito do Portas é. Um brincalhão.
Paulo Portas gosta de pensar naquilo que vai dizer, de forma a parecer - a cada momento - inatacável. Mas esquece-se de que ele é o corolário de um enorme rasto de incongruências, contradições, falta de visão e de pensamento estrutural, precisamente porque, a cada momento, tenta passar pelos pingos da chuva, sempre deixando uma carícia aos seus "nichos" de eleitorado. E fá-lo sempre com um pendor anticomunista, tão antigo e, neste debate, tão infantil e ressabiado.

Foi confrangedor ver os deputados do CDS e do PSD neste debate. A repetir e a repetir-se sobre a "ilegitimidade" do Governo, ora frisando estar o Bloco de Esquerda na lapela do PS, ora que o PS está capturado pela "esquerda radical". Pareceram uns meninos que perderam o brinquedo e que choram pela ajuda da mãe que não vem. O que diria deles o seu grande pai espiritual, que nunca mais tiveram nenhum como ele?

Tempos novos, novas políticas e desafios


Está já disponível a quarta edição da revista Crítica Económica e Social. Em tempos de transição e mudança, um conjunto muito oportuno de textos sobre questões e soluções que emergem no novo ciclo político e governativo. Dos constrangimentos à governação (internacionais, políticos e mediáticos) à política de rendimentos, passando pela reforma da Segurança Social, investimento e reestruturação da dívida, políticas sociais, crise demográfica e política ambiental. E ainda reflexões de fundo sobre a Economia como ciência, a questão do futuro do emprego e a caracterização dos impactos do salário mínimo na economia e na sociedade portuguesa. Boas leituras!

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Desfaçatez, cegueira e loucura

Estou a ouvir o debate do Programa do Governo e há coisas que me deixam perplexo.

Primeiro, a desfaçatez. Os deputados da coligação de direita dão o corpo ao manifesto pelos seus partidos e põem questões, como o fez Hugo Soares e Adão e Silva, sobre quantos vão ser os beneficiários da Segurança Social a perder benefícios sociais. Eles que nunca levantaram um dedo para impedir o corte de beneficiários do Complemento Solidário de Idosos, do RSI, do abono de família, mesmo dos pensionistas. Pelo contrário, sempre defenderam um modelo de apoio social que consagrou esses cortes.

Segundo, a cegueira. Ouvir os deputados falar de um país recuperado, com o rendimento a crescer e com o desemprego a descer, quando ainda existem 1,15 milhões de pessoas em desemprego ou no subemprego, com uma emigração sem cessar de subir que afecta a população activa e mesmo a população total e que, claro está, explica de sobremaneira a redução do desemprego; ouvir isto é, no mínimo, não perceber nada do que se está a passar em Portugal e como os portugueses estão a viver.  De 2011 até ao 3T 2015 a população activa perdeu 254,1 mil pessoas, enquanto o desemprego em sentido lato subiu 94 mil pessoas. Ou seja, apesar da forte emigração, o desemprego criado desde 2011 não foi ainda "absorvido" pelas actividades em Portugal ou estrangeiro.

Terceiro, a loucura. Ouvir a bancada social-democrata salientar, e repetir, e repisar que o actual governo é "socialista e comunista" é frisar que a coligação de direita é isso mesmo: de direita. Por cada vez que colam o epíteto "comunista" ao governo socialista, tentando cavalgar uma direita ressabiada, apenas se encostam cada vez mais à direita. E mais tarde ou mais cedo será o próprio PSD que sentirá necessidade de mudar de discurso. E de líderes. E de deputados.

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Não é de Portugal


Com a autoridade política, intelectual e moral que só Cavaco Silva lhe reconhece, Carlos Costa, governador do Banco que não é de Portugal, mas que um dia voltará a ser, achou por bem juntar-se, logo no início do processo, aos coros das direitas, programaticamente contra a solução de governo que acabou por triunfar e que pretende virar a página em termos de austeridade: “todos os erros de política económica que se fizerem agora vão ser pagos em dois, três ou cinco anos, mas com muito mais dor (…) uma política económica sustentável requer um grande ajustamento, que é muito difícil de impôr à população”. Austeridade permanente.

Entretanto, Carlos Costa, em coerência com o espírito austeritário que é o seu, colocou Sérgio Monteiro a ganhar trinta mil euros por mês a vender o novo banco. Trata-se de uma recompensa, em linha com os hábitos das elites num país desigual, por aquilo que Monteiro sabe fazer melhor: vender o rectângulo a patacos, ajudando a destruir sectores inteiros, em negócios de que um dia, esperemos que próximo, se saberão todos os contornos, a começar pela TAP. Será que o Banco, que também é suposto regular o sector financeiro, não tinha entre os seus qualificados quadros ninguém que pudesse ser destacado para esta mais do que duvidosa missão, provavelmente condenada nos seus próprios termos, parte da crise bancária em câmera lenta a que estamos a assistir? É claro que a única forma de manter o sector bancário, bem como outros sectores estratégicos, em mãos nacionais, estabilizando-os e reconfigurando-os, é garantir o controlo público dominante, sendo que o Estado detém actualmente mais de um terço do sector bancário, mas não age em conformidade num sector socializado nos seus custos, sabendo ainda nós, pelo exemplo de outros, que o controlo estrangeiro da banca aumenta a propensão para crises financeiras.

Aproveito também para sublinhar o óbvio: estas instituições ditas independentes, de regulação conforme ao mercado, consequentemente pós-democráticas, são um exemplo de degradação intelectual, política e moral, um façam força que eu gemo permanente e bem remunerado, servindo muitas vezes de biombo para a acção política dos governos e/ou dos interesses. E não, isto não é “só neste país”. Em Bruxelas é igual ou pior, bem pior, dada a escala dos interesses capitalistas que aqui temos assinalado: agora é o “conluio entre Bruxelas e empresas de combustíveis fósseis”. Durante décadas, o neoliberalismo vendeu a ideia da separação multi-escalar entre condução da política económica e controlo democrático. Os resultados estão à vista todos os dias, em todas as escalas.

Tudo o que falta fazer para defender a escola pública

Ao longo dos últimos meses os vários partidos de esquerda denunciaram o financiamento injustificado do ensino privado com recursos públicos como um exemplo do que não se deveria fazer na Educação. Este não é um tema menor, pois traça uma linha vermelha entre quem defende um sistema público de educação universal e quem, escudando-se na retórica da "liberdade de escolha", considera que os colégios privados devem ser financiados em pé de igualdade com as escolas públicas. No entanto, apesar do seu peso simbólico, esta é apenas uma das inúmeras questões que afectam o futuro da educação pública em Portugal.

Nos últimos quatro anos e meio assistimos a um ataque sem precedentes à escola pública, com uma redução acentuada de recursos, uma sobrecarga do trabalho dos professores, um aumento de alunos por turma e o absolutismo da "pedagogia dos exames" e da "cultura da exigência" (que se traduziu em pouco mais do que a sujeição das aprendizagens à obsessão das metas curriculares). Antes disso foram anos a fio de burocratização da educação, de desconsideração pela profissão docente e de generalização de um modelo de gestão das escolas que parece tirado das teorias de gestão de empresas da década de 1920. Foi nestas condições que a escola pública teve de gerir todas as dimensões da crise social que se instalou em Portugal (desemprego, pobreza, subnutrição, problemas psicológicos, falta de cuidados médicos básicos, etc.), que lhe entram pelos portões adentro todos os dias sem excepção.

Os resultados estão à vista. A escolar pública portuguesa é hoje um local muito pouco atractivo para trabalhar e menos atractivo do que já foi para estudar. Hoje, muitas pessoas da classe média e com educação superior hesitam em pôr os filhos em escolas públicas - ou desesperam para garantir uma vaga para os seus filhos numa das poucas escolas da rede pública consideradas de excelência (o que frequentemente significa evitar de todas as formas possíveis os estabelecimentos da sua área de residência). Este é um indicador preocupante de insustentabilidade do ensino público. No dia em que os segmentos mais qualificados população recusarem o que o sistema de ensino público tem para lhes oferecer, o projecto de criação de uma educação promotora da igualdade de oportunidades tem os dias contados.

As escolas públicas têm de ter projectos pedagógicos claros e coerentes. Têm de ser locais de aprendizagem de conteúdos e de desenvolvimento de competências - científicas mas também artísticas, sociais e cívicas. Têm de proporcionar oportunidades de desenvolvimento a alunos com diferentes interesses e potencialidades. Têm de assegurar a segurança física e psicológica das crianças e jovens que as frequentam. E têm de ter condições logísticas, financeiras e, acima de tudo, humanas para o fazer.

Tudo isto vai requerer muito mais do que parar com o desvio de recursos a favor do ensino privado. Vai exigir muito empenho, inspiração e sensatez da nova equipa da 5 de Outubro. E também uma atenção e uma intervenção permanentes de toda a comunidade escolar - professores, gestores, técnicos, funcionários, alunos e encarregados de educação. Não tenhamos dúvidas: mudar de governo foi apenas um pequeno passo para tudo o que ainda é necessário fazer para defender a educação pública em Portugal.

domingo, 29 de novembro de 2015

Ladrões batem novo recorde



Neste mês de Novembro de 2015 o blog Ladrões de Bicicletas bateu o recorde mensal de visitas (mais de 130 mil) desde que foi criado em 17 de Abril de 2007. Estão de parabéns os que pedalam e os que acompanham a pedalada.

Para quem não sabe, foi aqui que tudo começou (com o João, o Nuno, o Pedro e o Zé): http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2007/04/os-dilemas-trgicos-que-os-indivduos-tm.html

Lambchop: I'm thinking of a number



sábado, 28 de novembro de 2015

A carta

«Exmo. Sr. Presidente da República,
Após a leitura atenta das seis condições que colocou para a minha indigitação como primeiro-ministro, posso garantir-lhe o seguinte:
a) Quanto à aprovação das moções de confiança, pode ficar descansado. Não lhe escondo que os meus acordos com os outros partidos são frágeis. Há, sem dúvida, divergências bastante profundas, e por vezes é complicado divisar um único ponto de encontro. Mas, nas alturas mais difíceis, PS, PCP, BE e PEV lembram-se sempre da única questão na qual estão cem por cento de acordo: que V. Exa. é tragicamente incapaz. Ninguém nos tira essa sólida base de entendimento, sobre a qual pretendemos edificar lindas convergências.
b) Quanto à aprovação de orçamentos de Estado que ainda não são conhecidos, os três partidos comunicaram-me que desejam tomar como inspiração o seu exemplo de aprovar cegamente orçamentos de Estado, inclusivamente inconstitucionais. Dizem que gostavam de ler os documentos antes de os aprovarem, se V. Exa. não se importa. Por outro lado, ficamos à espera que se submeta à mesma obrigação, em nome da estabilidade: que aprovará sem questionar qualquer orçamento que lhe apresentarmos. Aquele que estamos a preparar contém uma alínea muito gira sobre a reforma do Presidente da República. Acreditamos que apreciará a poupança que ali propomos;
c) Acerca do cumprimento das regras de disciplina orçamental, estamos em condições de garantir o seguinte: o meu governo respeitará tanto os tratados europeus quanto o governo anterior respeitou a Constituição. Sendo V. Exa. um admirador da governação de Passos Coelho, cremos que também apreciará a minha;
d) Em relação ao respeito pelo nosso compromisso com a NATO, e após conversa telefónica com o deputado Jerónimo de Sousa, posso dar-lhe a seguinte garantia: a consideração do PCP pela NATO é tão grande que os comunistas portugueses vão propor aos seus velhos camaradas do leste europeu a reactivação do Pacto de Varsóvia, só para que a NATO tenha o prazer de voltar a extingui-lo. Esta extinção do Pacto de Varsóvia pela NATO terá periodicidade semanal;
e) No que diz respeito ao papel do Conselho Permanente de Concertação Social, deixo-lhe outra promessa: o meu governo não tratará qualquer interlocutor como "força de bloqueio". Esses tempos negros de falta de diálogo já passaram;
f) Por último, quero sossegar V. Exa. acerca das medidas que o meu governo vai tomar no sentido de garantir a estabilidade do sistema financeiro. São elas: impedir que qualquer amigo de V. Exa. funde ou administre bancos; propor um aditamento à Constituição que impeça V. Exa. de fazer considerações acerca dos bancos nos quais os portugueses podem ou não confiar.
Creio que estas garantias satisfarão V. Exa. Agora, e como dizia o outro, deixem-me trabalhar.

Atentamente, António Costa»

A crónica de Ricardo Araújo Pereira na Visão desta semana (via Joana Lopes), que é bem mais que um excelente texto de humor (o que já não seria pouco).

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

De novo a Europa com o PS?


A direita está em pânico e não creio que seja apenas porque muitos boys vão ter de ceder os jobs a outros boys. O que mais inquieta a direita é o anúncio de uma política económica que vai tentar romper com alguns dos seus dogmas, que, contando com a cumplicidade dos media, nos foram apresentados como política séria e inevitável. Só o facto de o novo governo assumir a necessidade de um estímulo à procura interna para, fazendo crescer o PIB, mais facilmente alcançar um défice orçamental abaixo dos 3%, é motivo de escândalo. É certo que o impulso dado à procura interna será parcialmente canalizado para importações, exigindo medidas complementares para reduzir essa fuga de rendimento. Receio que a criatividade dos novos ministros para minimizar este efeito não evite um confronto com a Comissão Europeia (CE). Porém, a alternativa proposta pela direita – estagnação da procura interna e promoção das exportações – é ainda mais problemática porque as exportações contribuem pouco para as receitas do orçamento e, sendo essa a política preferida pela CE, não têm potencial para crescer significativamente. Dado que as exportações de uns são as importações dos outros, não admira que a política económica dominante na zona euro tenha produzido uma estagnação duradoura e o permanente risco da deflação, que o próprio BCE reconhece ter dificuldade em travar. Por isso, com a política que acaba de ser despedida, ainda seria mais difícil o cumprimento das metas propostas para o défice. Tudo isto sem questionar a estúpida exigência europeia de uma política orçamental recessiva em tempo de depressão.

Outro dogma em risco, cada vez mais discutido nos media, é o de uma reformulação da carga fiscal sobre o rendimento e o património das famílias no sentido de lhe conferir maior progressividade. Não faltam convites ao jornalismo dos negócios e aos fiscalistas para virem dizer, de preferência no horário nobre das televisões, que os ricos não são taxáveis porque põem o dinheiro fora do país, pelo que fica apenas ao alcance do fisco um pequeno segmento da classe média que, imagine-se, corre o risco da proletarização (“Jornal de Negócios”, 26 de Novembro). Como é evidente, para estes especialistas em fuga ao fisco, que no seu conjunto constitui um poderoso lobby ao serviço dos mais ricos e das grandes empresas, a redistribuição do rendimento por via de um sistema de impostos progressivo é anátema. A cada momento lembram que os impostos prejudicam o crescimento da economia e que, a haver redistribuição, será sempre mais tarde porque primeiro é preciso produzir. Quer dizer, nunca. Para melhor transmitirem a sua mensagem, contam com a cumplicidade dos media para não ser contraditados. De facto, não faltam estudos científicos de grande qualidade a comprovar que a redução da desigualdade na distribuição do rendimento ou da riqueza, para lá das considerações de justiça e bem-estar social, é um importante factor de crescimento económico (ver R. Wilkinson e K. Pickett, “O Espírito da Igualdade”, Ed. Presença; Bill Mitchell, “Rising income and wealth inequality –1% owns more than bottom 99%”). Outra questão é saber se a CE aceitará alterações progressistas de pequena escala, quase cirúrgicas, em nome de um potencial impacto negativo na confiança dos mercados. Tal argumento já é mencionado nas declarações dos fiscalistas quando declaram que “mexer sistematicamente na lei dos impostos quebra a confiança”. Em boa verdade, aos olhos desta classe profissional a mudança de política que a democracia proporciona é incompatível com os interesses dominantes nas economias dominadas pela finança global. Claro, sabemos qual é a sua escolha.

O novo governo vai enfrentar a breve prazo uma oposição feroz da direita, interna e da UE. Com o apoio do eixo Bruxelas-Berlim-Frankfurt, assistiremos nos próximos meses a uma reedição, adaptada às novas circunstâncias, da campanha que esmagou o ingénuo projecto grego de “mudar a Europa”. Talvez o PS conte com promessas de apoio de partidos europeus da sua família política. O mais provável é assistirmos a uma nova traição, mas oxalá esteja enganado.

(O meu artigo no jornal i)

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

A propósito de bicicletas e das convergências à esquerda (II)


Cinquenta e três dias depois das eleições legislativas de 4 de Outubro, tomou hoje posse o XXI Governo Constitucional, liderado por António Costa, com apoio maioritário da esquerda parlamentar. Para a História ficará a quebra de um tabu - o do entendimento entre as esquerdas - e um processo muito interessante de confluência de vontades e de identificação de denominadores comuns, necessários à formulação de uma solução de governo que permita virar a página da austeridade e devolver a esperança ao país, com realismo e determinação.

Este é pois um bom dia para sublinhar e enaltecer o esforço de todos quantos, no Partido Socialista, no Bloco de Esquerda, no Partido Comunista Português e no Partido Ecologista «Os Verdes», contribuíram, com o seu empenho e abertura, para que se tivesse chegado aqui. Considerando a «prata da casa», uma menção especial ao José Gusmão e ao Pedro Nuno Santos, dois «ladrões» que estiveram sentados à mesa das negociações, como assinalava a Suzete Francisco no jornal «i», em meados do mês passado (recordando, de caminho, as origens deste blogue).

Da estrutura e da conjuntura

Portugal nunca pagou tão pouco pelas emissões de dívida como em 2015. No leilão de ontem, Portugal emitiu dívida a dez anos a uma taxa de juro de 2,3975% (2,4249% no penúltimo leilão e uma taxa de juro média ponderada nos dez leilões deste ano de 2,47%). Útil informação retirada do Negócios, um dos jornais que, durantes estas últimas semanas, deu espaço à desavergonhada linha de propaganda das direitas lapidarmente definida pelo Nuno Teles: os vossos desejos não são notícia.

Como acontece nas sociedades crescentemente dependentes, as dinâmicas internas são crescentemente sobredeterminadas pelo centro: neste caso, o registo da dívida deve-se à acção do soberano monetário estrangeiro, de quem enquadra e conduz as forças de mercado, do BCE. O que o BCE deu, o BCE pode tirar, claro. Tudo depende de uma avaliação política pós-nacional e pós-democrática, como já por várias vezes tivemos possibilidade de atestar. Isto é obviamente um problema. O problema, diria mesmo. O problema da soberania limitada e logo da democracia limitada.

É claro que enquanto o pau vai e vem, folgam as costas, ou seja, atenua-se a austeridade: é preciso aproveitar este momento para conseguir o máximo de ganhos socioeconómicos, para mudar tanto quanto for possível a correlação de forças, sem contudo esquecer as estruturas externas que nos governam, condicionam e que estão por superar, até porque se tudo correr bem teremos de nos confrontar com elas.

Creio que a actual solução política nacional está tão bem calibrada quanto é politicamente possível para aproveitar uma conjuntura marcada por taxas de juro baixas ou pela vontade francesa e italiana de declarar uma espécie de estado de excepção orçamental. Esta vontade foi ontem apoiada pelo editorial do Financial Times, um diário esquerdista ao pé da nossa imprensa económica intransigentemente direitista, dado que a política monetária é por si só, como qualquer economista keynesiano, qualquer economista razoável, sabe, incapaz de afastar das economias o espectro da deflação e da crise.