A crise do grupo Espírito Santo é um novelo intrincado. Apesar das revelações de comadres zangadas e de algum notável jornalismo de investigação, não dispomos ainda de uma noção clara e completa do que está em causa. Mesmo com a procissão no adro, porém, podemos desde já tecer algumas considerações acerca do seu significado mais amplo.
1. Não se trata apenas de gestão danosa ou incompetente.
Não é ainda claro até que ponto é que a crise do BES envolve responsabilidades de natureza criminal, nomeadamente em termos de gestão danosa, mas há indícios de que efectivamente terá sido esse o caso. Por outro lado, coloca-se a questão de até que ponto é que a derrocada deste império financeiro teria sido evitável mediante uma gestão mais prudente ou sensata - em suma, mais competente. Seguramente, a queda em desgraça de Ricardo Salgado tem todo o atractivo da derrocada de um barão da finança, antes idolatrado, subitamente revelado demasiado humano na sua competência e probidade.
Contudo, reduzir esta crise aos seus aspectos criminais ou de competência de gestão obscurece o que ela tem de estrutural - e que a meu ver é o mais importante. Os casos do BPN, BPP, BANIF, BCP e BES, no que têm de distinto e de comum, não revelam um súbito acréscimo de incompetência ou propensão criminal entre os capitães da finança portuguesa nos últimos cinco ou seis anos. Revelam, isso sim, a vulnerabilidade da banca portuguesa no contexto da grande estagnação internacional e da crise económica portuguesa dos últimos anos. A estagnação do investimento produtivo em Portugal, a lenta deflação da bolha imobiliária, os níveis crescentes de crédito mal-parado e a cada vez maior imbricação entre o endividamento público e o endividamento bancário externo têm vindo a pôr cada vez mais em causa a viabilidade do modelo de negócio da banca portuguesa. Ainda que parcialmente compensado por tentativas mais ou menos bem sucedidas de diversificação internacional, é esta tendência que, em última instância, propicia comportamentos de gestão mais arriscados (de modo a salvaguardar os níveis de rendibilidade) e torna mais visíveis as consequências de opções incompetentes ou danosas.
2. O fim de uma era
O sector financeiro foi o pivô central da acumulação de capital na economia portuguesa desde a privatização do sector e a liberalização dos fluxos de capitais na década de 1980, permitindo a consolidação de grupos económicos que conseguiram posicionar-se à sombra do Estado para beneficiarem das principais dinâmicas da economia portuguesa nas décadas seguintes - da privatização de parte substancial da restante actividade económica ao recurso crescente às parcerias público-privadas, passando pela aposta na bonificação do crédito à habitação ou pela intermediação bancária entre o BCE e o estado português. A ajudar tudo isso, claro está, esteve sempre a forte promiscuidade entre os mundos empresarial e governativo, sobejamente ilustrada pelos 25 ministros e ex-ministros da república que nalgum momento passaram pelo BES.
Para o bem e para o mal, porém, esta era está a chegar ao fim. A vulnerabilidade económica destes "centros de decisão nacional", consequência dos constrangimentos estruturais com que se confronta a economia portuguesa como um todo, tem vindo a ser cada vez mais demonstrada - e sê-lo-á ainda mais à medida que o default soberano português se for tornando mais obviamente inevitável para todos, com o que isso implica em termos de imparidades para a banca portuguesa. No longo prazo, há duas grandes vias possíveis de resolução desta crise: a nacionalização da banca num contexto de ruptura com o quadro institucional europeu; ou a absorção dos centros de acumulação da economia portuguesa (e da banca em particular) pelo capital internacional num contexto de sangria arrastada da economia portuguesa.
3. "Não há dinheiro" quer dizer diferentes coisas em diferentes alturas.
O estado português prepara-se para injectar 4500 milhões de dólares com vista a viabilizar o "novo banco" resultante da divisão do BES em banco "bom" e banco "mau". Os contornos da operação ainda não são totalmente claros, mas a Ministra da Finanças alega que se trata de um empréstimo "sem risco". Porém, não deixa de ser legítimo que perguntemos: se é suposto que o banco "mau" concentre todos os activos tóxicos e imparidades, para que é que o banco "bom" precisa de uma recapitalização desta ordem de magnitude? Estamos a falar de um montante equivalente a mais de metade do orçamento anual para a saúde, várias vezes superior ao impacto orçamental dos chumbos do Tribunal Constitucional há poucos meses. Se o banco "bom" está assim tão necessitado de recapitalização, qual a garantia que temos que o buraco não continua a aumentar, como sucedeu no caso do BPN, e que os contribuintes não acabam por suportar as perdas? Se isso vier a verificar-se, desta vez nem sequer temos o direito de nos mostrarmos surpreendidos.
Vivemos na era do domínio da finança. Em Portugal, é um domínio com pés de barro, internacionalmente subordinado e totalmente dependente do Estado. Mas isso não o torna menos perigoso para todos nós.