sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Pobres de nós

O facto da pobreza ser fundamentalmente relacional implica que todos os pobres sejam, em certo sentido, pobres de nós. Dizem-no as ciências sociais, mas também, de forma especialmente evocativa, a literatura.

A pobreza é um exemplo de um conceito com uma carga semântica muito ampla e que, em grande medida por isso mesmo, é objecto de múltiplas formas de definição e operacionalização no contexto das ciências sociais. Segundo diferentes tradições e abordagens, podemos encontrar a pobreza definida, operacionalizada e medida de forma absoluta ou relativa; em termos de rendimento ou consumo; face a um limiar de rendimento, a um limiar calórico ou a um cabaz de necessidades básicas; ou ainda enquanto conjunto multidimensional de privações definidas em termos de capacidades humanas consideradas fundamentais - e isto para referir apenas algumas das abordagens mais comuns.
Nenhuma destas abordagens é intrinsecamente mais correcta, já que traduzem aspectos distintos (e interrelacionados) da realidade social. Para determinados propósitos pode ser mais relevante a questão da incidência e profundidade da privação absoluta; para outros a questão da pobreza relativa, que na verdade não é mais do que outro nome da desigualdade.
Em todo o caso, a tendência das últimas décadas tem sido no sentido do entendimento da pobreza de forma crescentemente multidimensional e relacional. Multidimensional no sentido do reconhecimento da importância das privações em diferentes domínios materiais e imateriais (rendimento, saúde, educação, liberdade face à opressão, autonomia, dignidade,...). Relacional num primeiro sentido, de "relativo" (pois não se é pobre senão em relação aos referenciais da sociedade em que se vive), e num segundo sentido mais fundamental, de "produzido relacionalmente" (pois a privação é sempre gerada, enquadrada e perpetuada por processos sociais).
A este propósito, a mais notável definição de pobreza que alguma vez vi provém da literatura - e embora se encontre num livro publicado já em 2004 ("Bocas do Tempo", de Eduardo Galeano), encontrei-a pela primeira vez apenas há dias: "Pobres são os que têm a porta fechada". Eis como, com notável economia de palavras, se pode evocar verdades profundas: a multidimensionalidade (são várias e de diferentes tipos as portas que se nos podem fechar); os elementos intrínsecos de exclusão, impotência e ofensa à dignidade; e o carácter relacional (cada porta que se fecha é fechada por alguém - e há sempre quem entre e saia como lhe aprouver).
Há por isso muitas e diferentes formas de ser pobre. São pobres os 1,8 milhões de habitantes de Gaza bombardeados sem possibilidade de fuga após décadas de dignidade violentada. São pobres os migrantes que enfrentam todos os riscos em barcos apinhados para atravessarem o Mediterrâneo em busca de uma solução. São pobres os 10% de agregados familiares com crianças dos Estados Unidos que se revelam consistentemente incapazes de proporcionar uma alimentação adequada e nutritiva a essas mesmas crianças. Como são pobres os que, na Grécia, em Espanha ou em Portugal, perderam o emprego, a casa, o acesso a tratamentos de saúde ou a possibilidade de continuarem a estudar - e com eles a dignidade ou a esperança.
São-no todos na medida em que se deparam com diferentes tipos de portas fechadas - as quais resultam de processos políticos e arranjos sociais geradores de exclusão que, em última instância, ofendem a humanidade e a dignidade de todos nós.
(publicado originalmente no Expresso online)

1 comentário:

vernon disse...

Muito boa abordagem a este assunto!

Muito boa, também, a imagem das portas, que podem ser portões ou postigos, e que se vão fechando a uma maioria em contraste com o entra e sai dos que têm chaves para muitas portas. Ou têm gazuas!