Ainda sobre os incêndios deste ano na Amazónia, o gráfico manhoso que andou a circular por aí enferma de dois problemas essenciais. Por um lado, como se mostrou aqui, compara valores totais anuais (para o período entre 2003 e 2018) com valores parciais (para 2019, apenas até julho). Por outro, acentuando o enviesamento e a desinformação, apenas considera em 2019 os meses da «época baixa» de incêndios (janeiro a julho), no Brasil.
De facto, quando se consideram os valores médios mensais dos últimos dezasseis anos (2003-2019), verifica-se que a área ardida entre janeiro e julho corresponde apenas a 15% do total anual (cerca de 13 mil dos 67 mil Km2 registados, em média, por ano). Ora, só até julho de 2019 (32 mil Km2) já ardeu cerca de metade (e não 15%) do valor médio anual registado entre 2003 e 2018, com a habitual «época de incêncios», sublinhe-se, apenas agora a começar (registando julho um aumento vertiginoso de área ardida - cerca de +211% face à média dos últimos dezasseis anos - em contraste os meses anteriores de 2019, não se afastam das médias mensais desse período).
Significa isto, por seu turno, que julho de 2019 é não só o mês com maior área ardida da série anual disponível, como - atendendo à distribuição ao longo do ano dos meses da «época de incêndios» - que o pior estará para vir. De facto, se num cenário mais otimista (e menos verosímil) se poderão atingir os 86 mil Km2 de área ardida (presumindo que os acréscimos apenas equivalem, em termos absolutos, a valores próximos da média registada nos últimos três anos), num cenário mais realista a situação será bem pior. Isto é, caso se mantenham as taxas de variação mensal registadas nos últimos três anos, entre julho e dezembro, a devastação poderá atingir os cerca de 270 mil Km2 no final do ano.
Estamos neste caso, evidentemente, perante um contexto em que a intencionalidade política pesa muito mais que as razões imputáveis à seca, à sazonalidade ou às alterações climáticas. Isto é, estamos perante as primeiras evidências materiais da concretização do programa político de Bolsonaro para a floresta Amazónica (aqui referido), com as suas imbricações internas (associadas ao agronegócio e à mineração, por exemplo) e os seus prolongamentos à escala global (a que o João Rodrigues fez alusão no post anterior). E portanto é sobretudo no plano da ação política, e das decisões e orientações que o atual governo brasileiro vier a adotar, que se joga a dimensão final da catástrofe, neste ano de 2019.
sábado, 31 de agosto de 2019
sexta-feira, 30 de agosto de 2019
Meia dúzia de notas no fim do querido mês
1. Parafraseando Mao, há caos debaixo dos céus do G-7, a situação é excelente. Esta organização dos ricos capitalistas, que merece ir para o caixote do lixo da história, foi criada, em 1975, em reacção à assertividade do chamado nacionalismo internacionalista do Terceiro Mundo, manifestada, por exemplo, pela aprovação na ONU, em 1974, do projecto de Nova Ordem Económica Internacional. Este assentava, entre outros, no controlo nacional dos recursos estratégicos. Um espectro a esconjurar pelo G-7.
2. As contradições aparentes entre os países do G-7 e a perigosa deriva russofóbica e sinofóbica, sintomas da preocupação com a necessária multipolaridade que aí se exprime, só são ultrapassadas pela hipocrisia dos países mais ricos em relação à Amazónia que arde. Não é apenas o facto de haver empresas multinacionais do Atlântico Norte aí directamente envolvidas, é também, por exemplo, o facto de a UE ter assinado um princípio de acordo de comércio e investimento ditos livres com o Mercosul de Bolsonaro e de Macri, dando fôlego a uma agronegócio de exportação que avança em direcção à floresta.
3. Como bom globalista, António racha-sindicalistas Costa conseguiu ter o topete de defender este acordo, típico da globalização neoliberal, com o argumento de que haveria uma qualquer cláusula ambiental nele contido. Enfim, a protecção do ambiente requer, pelo contrário, desglobalização, cadeias de valor menos extensas e mais localizadas, menos picanha e carne das pampas deste lado. A incrustação nacional e local de partes crescentes da economia é uma questão de controlo democrático e sem este não há planeamento com preocupações ambientais ou outras que nos valha.
4. Este tipo de acordo com Mercosul deve ser atirado para o caixote do lixo da história, tal como a máquina de liberalização chamada UE que o promove. Que haja gente de esquerda que ainda acha que uma UE que faz acordos destes com gente desta merece ser defendida como uma espécie de baluarte anti-fascista é algo que escapa à compreensão. Na realidade, a UE é hoje uma máquina de geração de fascismo em parte do continente. Os mecanismos gritam. O anti-fascismo, hoje como ontem, só floresce com enraizamento nos concretos solos pátrios, o que não é incompatível, antes pelo contrário, com o internacionalismo mais consequente.
5. É realmente intolerável, mas sintomático de uma tentação autoritária que casa bem com o globalismo, que o nosso Ministério Público pareça andar agora à caça de sindicatos, complemento do braço direito do Estado à histeria de verão de elites, incluindo de certa esquerda. Esta última é a que não só não mexe uma palha por quem trabalha, como até convive bem com quem aprova prolongamentos da experiência da mais absoluta precariedade e aceita a herança da troika para o mundo do trabalho, desculpem, da colaboração, assim é que é.
6. António racha-sindicalistas Costa diz que não quer a esquerda no governo. Realmente, nesta correlação de forças e com o PS neste estado ideológico, a irrepetível solução foi o melhor que se conseguiu e com nervos de aço para remover as direitas do poder. Esperando assistir a mudança na tal correlação, espero não assistir aos apelos dos do costume para não sei que convergências, baseadas em não sei que vagos programas.
quarta-feira, 28 de agosto de 2019
Deriva Perigosa
Isto num país em que a liberdade de associação sindical é, antes do mais, a liberdade dos trabalhadores se organizarem definindo o âmbito do seu sindicato. Querem abrir a caixa de Pandora e começar a investigar os filiados dos sindicatos, por esse país fora?
Quem quer ver-se livre de sindicatos que acha indesejáveis trate de os esvaziar, motivando os seus membros a filiar-se em sindicatos que efetivamente respondam aos problemas específicos dos seus trabalhadores... MAS que respondam MESMO!!! E que sejam MESMO CAPAZES de o fazer!
Quem quer que os sindicatos SEJAM MESMO CAPAZES de responder aos problemas dos trabalhadores e pesar na negociação coletiva faça o favor de respeitar o direito à greve constitucionalmente consagrado; e de legislar revogando as normas de caducidade unilateral das convenções coletivas e repondo o princípio do tratamento mais favorável aos trabalhadores! Quem quer que os sindicatos SEJAM MESMO CAPAZES de responder aos problemas dos trabalhadores faça o favor de devolver o Direito do Trabalho à sua nobre função de proteção da dignidade do trabalhador e do trabalho decente - base de equilíbrio das relações laborais.
Depois não se queixem dos movimentos 'inorgânicos'! Lembrem-se do ensinamento de Brecht: "Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.""
O texto acima é o comentário de Maria Da Paz Lima à notícia Ministério Público pede dissolução do sindicato de motoristas de matérias perigosas.
O governo defende os ricos em prejuízo dos pobres (II)
“O governo civil, na medida em que é instituído com vista à segurança da propriedade, é, na realidade, instituído com vista à defesa dos ricos em prejuízo dos pobres, ou daqueles que possuem alguma propriedade em detrimento daqueles que nada possuem.”
Adam Smith*
* Este post tinha sido prometido aqui. Adicionalmente, uma terceira parte será publicada oportunamente.
Adam Smith*
* Este post tinha sido prometido aqui. Adicionalmente, uma terceira parte será publicada oportunamente.
A Amazónia de Bolsonaro
1. Circula por aí um gráfico que sugere que a «devastação da Amazónia» foi «bem mais severa durante os governos "progressistas" de Lula e Dilma», surgindo o governo de Bolsonaro com o menor valor de área ardida desde 2003. Sucede, porém, como se demonstrou aqui, que o autor do referido gráfico compara valores anuais totais entre 2003 e 2018 com os valores parciais de 2019 (janeiro a julho), induzindo os leitores em erro.
2. De facto, quando se analisa - como é suposto - a evolução em termos homólogos (neste caso de janeiro a julho), obtém-se para 2019 o valor mais elevado de área ardida na série temporal anual disponibilizada pelo INPE (ainda sem os dados de agosto, o mês claramente mais severo até agora). Isto é, cerca de 33 mil Km2 de área ardida em 2019, que representam quase o triplo do ano anterior (12 mil Km2) e mais do dobro da média registada no período 2003-2019 (15 mil Km2/ano), com o valor mais próximo (cerca de 31 mil Km2) a verificar-se em 2004.
3. Aliás, o aumento vertiginoso da área ardida em 2019 está em linha com o acréscimo do número de focos de incêndio registado até 26 de agosto (cerca de 43 mil, que traduzem um aumento de 129% face ao valor homólogo de 2018), atingindo-se assim o registo mais elevado desde 2010. E também em linha com o aumento da área de desmatamento, que se estima possa vir a atingir cerca de 14 mil Km2 no final do ano, que representam - nesse caso - um aumento de 81% face a 2018 e o valor mais elevado desde 2006.
4. Como é óbvio, o problema da desflorestação da Amazónia não surge apenas agora, com Bolsonaro. A questão é que tudo aponta para uma clara inversão da tendência de menor pressão sobre a floresta, registada desde 2005. De facto, quando se comparam os valores médios mensais de área ardida nos últimos 17 anos com os de 2019, verifica-se um brutal aumento em julho, que triplica o valor médio do período. Da mesma forma, se o nível de desmatamento nos últimos três anos e em 2019 é semelhante até abril, ocorre desde então uma divergência de valores, atingindo-se os 2,3 mil Km2 em julho passado (mais do dobro da média registada entre 2017 e 2019).
5. Sem surpresa, estes dados traduzem a concretização da política de Bolsonaro para a Amazónia, centrada numa exploração sem escrúpulos nem limites e em ganhos de curto-prazo, criando as condições para o ecocídio a que se refere Jonathan Watts no The Guardian. É em nome dessa política que Bolsonaro nomeou para o Ambiente um ministro condenado por fraude ambiental, minou o Ibama e demitiu o diretor-geral do INPE (responsável pelos dados de satélite sobre a destruição da floresta), alienou os apoios financeiros da Noruega e da Alemanha, atacou verbalmente as comunidades indígenas (incentivando os ataques de fazendeiros e mineiros), ou ignorou os alertas sobre a «operação dia do fogo», engendrada por agricultores e «grileiros» e marcada para 10 de agosto. Números e factos que retiram qualquer credibilidade à ideia de que a maior ameaça da Amazónia não se chama Bolsonaro.
2. De facto, quando se analisa - como é suposto - a evolução em termos homólogos (neste caso de janeiro a julho), obtém-se para 2019 o valor mais elevado de área ardida na série temporal anual disponibilizada pelo INPE (ainda sem os dados de agosto, o mês claramente mais severo até agora). Isto é, cerca de 33 mil Km2 de área ardida em 2019, que representam quase o triplo do ano anterior (12 mil Km2) e mais do dobro da média registada no período 2003-2019 (15 mil Km2/ano), com o valor mais próximo (cerca de 31 mil Km2) a verificar-se em 2004.
3. Aliás, o aumento vertiginoso da área ardida em 2019 está em linha com o acréscimo do número de focos de incêndio registado até 26 de agosto (cerca de 43 mil, que traduzem um aumento de 129% face ao valor homólogo de 2018), atingindo-se assim o registo mais elevado desde 2010. E também em linha com o aumento da área de desmatamento, que se estima possa vir a atingir cerca de 14 mil Km2 no final do ano, que representam - nesse caso - um aumento de 81% face a 2018 e o valor mais elevado desde 2006.
4. Como é óbvio, o problema da desflorestação da Amazónia não surge apenas agora, com Bolsonaro. A questão é que tudo aponta para uma clara inversão da tendência de menor pressão sobre a floresta, registada desde 2005. De facto, quando se comparam os valores médios mensais de área ardida nos últimos 17 anos com os de 2019, verifica-se um brutal aumento em julho, que triplica o valor médio do período. Da mesma forma, se o nível de desmatamento nos últimos três anos e em 2019 é semelhante até abril, ocorre desde então uma divergência de valores, atingindo-se os 2,3 mil Km2 em julho passado (mais do dobro da média registada entre 2017 e 2019).
5. Sem surpresa, estes dados traduzem a concretização da política de Bolsonaro para a Amazónia, centrada numa exploração sem escrúpulos nem limites e em ganhos de curto-prazo, criando as condições para o ecocídio a que se refere Jonathan Watts no The Guardian. É em nome dessa política que Bolsonaro nomeou para o Ambiente um ministro condenado por fraude ambiental, minou o Ibama e demitiu o diretor-geral do INPE (responsável pelos dados de satélite sobre a destruição da floresta), alienou os apoios financeiros da Noruega e da Alemanha, atacou verbalmente as comunidades indígenas (incentivando os ataques de fazendeiros e mineiros), ou ignorou os alertas sobre a «operação dia do fogo», engendrada por agricultores e «grileiros» e marcada para 10 de agosto. Números e factos que retiram qualquer credibilidade à ideia de que a maior ameaça da Amazónia não se chama Bolsonaro.
terça-feira, 27 de agosto de 2019
O governo defende os ricos em prejuízo dos pobres (I)
“O governo civil, na medida em que é instituído com vista à segurança da propriedade, é, na realidade, instituído com vista à defesa dos ricos em prejuízo dos pobres, ou daqueles que possuem alguma propriedade em detrimento daqueles que nada possuem.”
Karl Marx*
*Este post será objecto de uma segunda parte a publicar oportunamente.
Actualização (28/08/2019): segunda parte, aqui.
Karl Marx*
*Este post será objecto de uma segunda parte a publicar oportunamente.
Actualização (28/08/2019): segunda parte, aqui.
domingo, 25 de agosto de 2019
Jorge Leite
«Deixou a sua marca em muita legislação portuguesa e teve uma participação importante em muitos momentos decisivos após o 25 de abril, na produção de legislação. Foi um ser humano fabuloso e de uma honestidade intelectual à prova de bala, muito dedicado à causa dos trabalhadores. Em questões como as 40 horas de trabalho, ou o trabalho infantil, as centrais sindicais devem-lhe muito. Tomando partido nos combates políticos, era talvez a personalidade mais independente, o ser humano que a partir da exposição clara das suas opções tinha a capacidade de construir posições com fundamento e independentes.»
Manuel Carvalho da Silva
«Perdemos hoje o Jorge Leite. Um jurista, professor e cidadão empenhado, a quem os trabalhadores portugueses devem muitíssimo. Da redacção de algumas leis laborais fundamentais, daquelas que trouxeram avanços na vida dos trabalhadores, até à presença constante sempre que os poderes político e económico procuraram impor regressão social. (...) Tinha convicções firmes como o aço por detrás daqueles gestos suaves e ternos. A sua maneira de estar, tão discreta como brilhante no que sabia e explicava, marcaram certamente todos os que com ele conviveram. É e será uma das minhas bússolas da moral social. Se vocês forem como eu, muitas vezes têm de parar para saber o que pensam sobre as coisas que se passam à vossa volta. Até aquelas coisas que parecem suscitar um posicionamento automático, mas que nunca serão um pensamento, um posicionamento, algo que podem exprimir com o mínimo de segurança, se não tiverem alavancas que iniciam a reflexão e resistem aos contra-argumentos que nós próprios somos capazes de antever. O Jorge Leite é uma das pessoas que construiu as minhas alavancas. (...) Tudo começa no trabalho. Até a falta que o Jorge Leite nos vai fazer começa no trabalho. Morreu um homem bom. Um dos nossos melhores.»
Sandra Monteiro
«A vida de Jorge Leite é uma referência para todos e todas que lutam pela justiça social e pelos direitos do trabalho. Trata-se de uma enorme e irreparável perda, de alguém para quem a inteligência, a generosidade, a bondade e o compromisso com os de baixo sempre foram indissociáveis e indivisíveis. (...) Hoje é um dia muito muito triste. Perdemos um gigante de lucidez, de conhecimento e sensibilidade. Eu perdi alguém que passou a ser meu amigo, mas que nunca deixou de ser meu herói. (...) O Jorge Leite, referência maior do Direito do Trabalho em Portugal, é o exemplo de como o conhecimento pode ser uma forma de sensibilidade, de como a sabedoria pode ser uma forma de atenção, de como a generosidade pode ser um compromisso de vida.»
José Soeiro
sexta-feira, 23 de agosto de 2019
Uma questão de poder
Vale a pena ouvir a entrevista de Bernie Sanders, candidato democrata às presidenciais norte-americanas de 2020, no podcast do liberal Joe Rogan (entrevista completa aqui). Aqui fica um excerto da entrevista, em resposta à ideia de que um aumento do salário mínimo nos EUA para 15$/hora seria insustentável para as empresas:
"O salário mínimo não foi aumentado nos últimos 10 anos, sendo de 7,25$/hora, o que é inaceitável. O custo da habitação está a aumentar rapidamente, as pessoas não conseguem suportar cuidados de saúde ou estudos universitários, e não penso que seja irrealista [aumentar o salário mínimo] nas condições atuais. No fim de contas, tudo se resume ao poder. A agenda política das grandes empresas nos EUA baseia-se em promover cortes na Segurança Social, Medicare e Medicaid, ao mesmo tempo que se eliminam todos os impostos sobre as empresas. É essa a essência da ganância - querer tudo. É por isso que existe uma empresa como a Amazon, detida por Jeff Bezos, o homem mais rico dos EUA com uma riqueza avaliada em 150 mil milhões de dólares, que não pagou um cêntimo em impostos federais sobre o rendimento, à semelhança de dezenas de outras empresas. Além disso, existem biliões de dólares escondidos nas Ilhas Caimão, nas Bermudas, no Luxemburgo e outros paraísos fiscais. E tudo isto é legal porque são estas pessoas que fazem as leis."
quinta-feira, 22 de agosto de 2019
Ser socialista
Video de campanha eleitoral do PS, 2019 |
Sobretudo quando um governo socialista interpreta como um ataque ao seu desempenho e ao país a vantagem negocial que certos grupos de trabalhadores têm face à sua entidade patronal, fruto da sua actividade ter impacto na vida dos portugueses e dos estrangeiros.
Já se assistira durante a greve dos motoristas a uma tentativa - bem conseguida - de esvaziar a eficácia da greve marcada, raiando a violação da lei da greve e sem que o Governo seja sensível aos problemas que estão na base da greve, alguns deles violando a lei laboral.
O Governo decretou serviços mínimos abusivos, mobilizou forças de segurança e mesmo as forças armadas(!), aumentou as compras de combustível em Espanha (algo que corresponde a uma substituição de grevistas, proibida pela lei nº 7/09 proíbe, art 535), o que já fora feito na greve dos estivadores, com apoio público e até policial.
Agora, temos mais um déjà vu com a greve dos trabalhadores da Ryanair. E mais uma vez o Governo acha que pode ficar ao largo do problema de fundo da greve, em que os grevistas acusam a companhia de violar a lei portuguesa, quanto ao pagamento de subsídios de férias e de Natal, e mesmo contra a lei da greve.
O despacho dos secretários de Estado Alberto Souto de Miranda (Infraestruturas e Comunicações) e Miguel Cabrita (Emprego) parece estar mais preocupado com outras coisas, que, na realidade, fazem Governo colar-se ao lado patronal. Na definição dos serviços mínimos, foi tido em conta:
1) a “duração relativamente longa da greve (cinco dias)”;
2) a “estação do ano abrangida – verão – em que se verifica um crescimento considerável da procura do transporte aéreo, que os cidadãos e cidadãs cada vez consideram mais imprescindível”;
3) ser importante “evitar o aglomerado de passageiros nos aeroportos nacionais durante os meses de verão, dado que tal pode potenciar riscos para a segurança de pessoas e bens”;
4) “o facto de para os portugueses residentes no Açores e na Madeira o transporte aéreo ser a única forma de garantir o direito à deslocação de uma forma célere e eficiente”;
5) “existirem em Inglaterra, França e Alemanha significativas comunidades de emigrantes cidadãos portugueses deslocados, para quem agosto é tipicamente o mês eleito para visitar as suas famílias em Portugal”;
6) e finalmente o facto de “Portugal ser cada vez mais um destino de eleição para os turistas europeus, com particular enfoque na época estival”.
Ora, estes critérios podem ser uma forma ínvia de corresponder ao espírito da lei.
Leituras
«Como é óbvio, não se trata de considerar impróprio um abstrato museu sobre o salazarismo. Creio que o ponto fundamental é outro: é que os museus têm contexto e estão inseridos num território. O discurso produzido no local – e a experiência da visita – ficará determinado pelo complexo memorial onde o museu se inscreve: a antiga escola, a casa e os seus objetos domésticos, os espaços onde o ditador se fez moço, a campa rasa para atestar a imagem desse político que se representou como antipolítico e como humilde e desinteressado servidor da nação.»
Miguel Cardina, Ainda a história do «Museu Salazar»
«O sobrinho neto do ditador português, Rui Salazar, é o grande entusiasta da iniciativa. Conheci Rui Salazar há uns anos. Vive num mundo paralelo. Solitário, rodeado dos livros do tio, das garrafas que o tio guardava na adega, dos sapatos e roupas velhas do tio, dos relatórios e contas dos quase 40 anos que levou de presidente do conselho (números que sabia de cor). O homem era simpático e lunático. (...) Confesso que ao ouvir um autarca avançar com a ideia do Museu Salazar, nos mesmos moldes que o sobrinho defendera numa conversa comigo vinte anos antes, me arrepiei.».»
Luís Osório, Postal do dia
«Há sete anos, estive em Gori, na Geórgia, terra onde nasceu Estaline e se pode visitar um Museu que lhe é dedicado – grande, cheio de fotografias, documentos e objectos bem-apresentados. Mas, da primeira à última sala, passa-se por um verdadeiro «monumento» laudatório e glorioso, no mínimo aterrador e que me dispenso de descrever… (...) A maioria dos «filhos da terra», orgulhosos do seu herói, bem ao contrário dos outros georgianos que conheci, querem que o Museu e a casinha logo ao lado, onde Estaline nasceu e se guardam alguns dos seus pertences sem qualquer interesse, continuem a homenageá-lo como sempre.»
Joana Lopes, Museus de Ditadores
«Se o museu sobre Salazar em Santa Comba Dão se apresenta, como li, como um "centro interpretativo do Estado Novo", gostaria que os promotores me esclarecessem se: 1. Terá uma secção, explícita e sem rodeios, sobre as torturas e encarceramentos pela PIDE; 2. Terá uma secção, explícita e sem rodeios, sobre o corporativismo que reprimiu os sindicatos, e sobre o apoio dos e aos monopólios das grandes famílias empresariais; 3. Terá uma secção explícita sobre pobreza e analfabetismo, sem uma desculpa histórica, considerando que tais problemas não se verificavam em muitos contextos europeus de então; 4. Terá uma secção, explícita e sem rodeios, sobre o racismo oficial das primeiras décadas do regime, o trabalho obrigatório nas colónias, o estatuto do indigenato, e a guerra colonial; 5. Terá uma secção, explícita e sem rodeios, sobre o tratamento das mulheres como cidadãs de segunda, tuteladas em tudo por pais e maridos; 6. Terá uma secção, explícita e sem rodeios, sobre o tratamento de gays e lésbicas como doentes e criminosos, encaminhados para a Mitra ou para tratamentos psiquiátricos violentos; 7. Terá uma secção que contextualize a ditadura no mundo de então, no qual havia democracias perfeitamente funcionais. Outras questões se colocariam, mas creio que estas são suficientemente - como dizê-lo? - "interpretativas"...»
Miguel Vale de Almeida, O museu de Santa Comba dá?
«É quando o discurso sobre o passado deixa de ser politicamente relevante que esse passado se pode repetir. A memória da nossa ditadura não é o único elemento que trava o crescimento da extrema-direita, mas conta. A democracia não sobrevive quando se instala a ideia que entre ela e a ditadura há apenas divergências de opinião. Não trata os seus inimigos da mesma forma que trata os seus aliados. Tem os seus códigos, os seus rituais, a sua iconografia e o seu discurso oficial. Que podem integrar os que não se revêm nela, mas não lhes dão dignidade simbólica. A tolerância democrática acaba onde começa a sua destruição. Não há temas e personagens tabu. Salazar deve ser estudado e revisitado. Mas um museu sobre o ditador não pode servir para celebrar, branquear e normalizar a ditadura.»
Daniel Oliveira, A democracia recorda a ditadura, não a normaliza
quarta-feira, 21 de agosto de 2019
Tudo é negociável?
Na vida pessoal e na vida colectiva há coisas que não são negociáveis. Cumprir a lei é uma delas.
Bastava que o Ministro das Infraestruturas tivesse dito que o sindicato devia retirar a exigência prévia do aumento de 50€ e que, quanto às horas extraordinárias, elas também podiam cair porque o governo iria fazer uma auditoria através da Inspecção Geral de Finanças, e da Autoridade para as Condições de Trabalho, no sentido de apurar o que tem havido de ilegal, ou de violação do ACT, pondo fim aos invocados pagamentos por fora da folha de salários, ... e teria desarmadilhado o impasse.
Estou convencido de que uma frase discreta sobre este ponto, num tom diplomático como é seu timbre, seria bem recebida pelos trabalhadores e teria como efeito uma mudança na posição intransigente dos líderes do sindicato.
Ao colocar o Governo totalmente alinhado com os patrões - aceitando que no âmbito da mediação também se pode negociar pagamentos por fora - o Ministro falhou como governante e falhou como mediador. Mas ainda pode mudar o seu discurso, mesmo a contragosto de António Costa.
Bastava que o Ministro das Infraestruturas tivesse dito que o sindicato devia retirar a exigência prévia do aumento de 50€ e que, quanto às horas extraordinárias, elas também podiam cair porque o governo iria fazer uma auditoria através da Inspecção Geral de Finanças, e da Autoridade para as Condições de Trabalho, no sentido de apurar o que tem havido de ilegal, ou de violação do ACT, pondo fim aos invocados pagamentos por fora da folha de salários, ... e teria desarmadilhado o impasse.
Estou convencido de que uma frase discreta sobre este ponto, num tom diplomático como é seu timbre, seria bem recebida pelos trabalhadores e teria como efeito uma mudança na posição intransigente dos líderes do sindicato.
Ao colocar o Governo totalmente alinhado com os patrões - aceitando que no âmbito da mediação também se pode negociar pagamentos por fora - o Ministro falhou como governante e falhou como mediador. Mas ainda pode mudar o seu discurso, mesmo a contragosto de António Costa.
Da representação democrática (II)
Quem defende o atual sistema de círculos eleitorais de base distrital (por oposição a um círculo eleitoral único), com o argumento de que é necessário assegurar a representação parlamentar dos legítimos interesses de cada região, deveria questionar-se sobre até que ponto este sistema tem contribuído para a redução das assimetrias regionais e para um desenvolvimento mais equilibrado do país.
De facto, se assumirmos que a população residente constitui um indicador-chave para diferenciar as regiões mais desenvolvidas das que se encontram em declínio e analisarmos, para o efeito, a evolução registada desde os primeiros censos em democracia (1981), constatamos que o desequilíbrio entre litoral e interior não se inverteu nos últimos quarenta anos. As perdas de população nos distritos de Vila Real, Bragança, Guarda, Portalegre e Beja são superiores a 25% (menos 275 mil habitantes), sendo também significativas as perdas (entre -11 e -25%) nos casos de Viseu, Castelo Branco e Évora (menos 81 mil habitantes). Ou seja, em contraste com o aumento de população (acima de 25%) registado nos distritos de Faro e Setúbal (mais 310 mil habitantes), ou nos distritos de Braga, Porto e Aveiro, com ganhos de população entre 11 e 25% (mais 335 mil, no total). Para já não falar do caso de Lisboa, que no período considerado registou um aumento de 196 mil habitantes (9%, acima da média registada no continente, de 5%).
No atual sistema eleitoral, a perda de peso demográfico dos distritos em declínio (que representavam 32% da população residente em 1981 e passam a representar apenas 25% em 2018), traduz-se naturalmente numa redução do seu peso eleitoral. O que quer dizer que estamos perante um ciclo vicioso: não só os círculos eleitorais distritais parecem não estar a contribuir para a redução dos desequilíbrios, como dessa circunstância resulta uma perda progressiva do peso eleitoral das regiões em declínio, que se tornam assim, tentadoramente, cada vez mais dispensáveis nos cálculos e programas dos partidos.
A opção por um círculo eleitoral único não garante evidentemente, de per se, nenhuma mudança de paradigma nas políticas de combate às assimetrias regionais, pois essa é uma questão que tem que ver sobretudo com o grau de «consciência do território» (e que se reflete nas propostas programáticas e na escolha de candidatos pelos partidos). Contudo, ao não se verificarem, na prática, as supostas vantagens da «representação territorial», associadas aos círculos eleitorais distritais, a opção por um círculo único permitiria, pelo menos, acabar com os atuais enviesamentos relativamente a uma efetiva representatividade democrática da Assembleia da República.
De facto, se assumirmos que a população residente constitui um indicador-chave para diferenciar as regiões mais desenvolvidas das que se encontram em declínio e analisarmos, para o efeito, a evolução registada desde os primeiros censos em democracia (1981), constatamos que o desequilíbrio entre litoral e interior não se inverteu nos últimos quarenta anos. As perdas de população nos distritos de Vila Real, Bragança, Guarda, Portalegre e Beja são superiores a 25% (menos 275 mil habitantes), sendo também significativas as perdas (entre -11 e -25%) nos casos de Viseu, Castelo Branco e Évora (menos 81 mil habitantes). Ou seja, em contraste com o aumento de população (acima de 25%) registado nos distritos de Faro e Setúbal (mais 310 mil habitantes), ou nos distritos de Braga, Porto e Aveiro, com ganhos de população entre 11 e 25% (mais 335 mil, no total). Para já não falar do caso de Lisboa, que no período considerado registou um aumento de 196 mil habitantes (9%, acima da média registada no continente, de 5%).
No atual sistema eleitoral, a perda de peso demográfico dos distritos em declínio (que representavam 32% da população residente em 1981 e passam a representar apenas 25% em 2018), traduz-se naturalmente numa redução do seu peso eleitoral. O que quer dizer que estamos perante um ciclo vicioso: não só os círculos eleitorais distritais parecem não estar a contribuir para a redução dos desequilíbrios, como dessa circunstância resulta uma perda progressiva do peso eleitoral das regiões em declínio, que se tornam assim, tentadoramente, cada vez mais dispensáveis nos cálculos e programas dos partidos.
A opção por um círculo eleitoral único não garante evidentemente, de per se, nenhuma mudança de paradigma nas políticas de combate às assimetrias regionais, pois essa é uma questão que tem que ver sobretudo com o grau de «consciência do território» (e que se reflete nas propostas programáticas e na escolha de candidatos pelos partidos). Contudo, ao não se verificarem, na prática, as supostas vantagens da «representação territorial», associadas aos círculos eleitorais distritais, a opção por um círculo único permitiria, pelo menos, acabar com os atuais enviesamentos relativamente a uma efetiva representatividade democrática da Assembleia da República.
terça-feira, 20 de agosto de 2019
A precariedade é má, mas é boa
O presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa (MRS), decidiu promulgar por três más razões o pacote de medidas supostamente de combate à precariedade no emprego. Essas três más razões são, contudo, aquelas que melhor retratam a sua superficialidade.
O que MRS afirma na sua página, lembra muito aquela famosa cena dos Gato Fedorento:
O seu pensamento pode ser resumido desta forma, mais adaptada a estes momentos:
O que MRS afirma na sua página, lembra muito aquela famosa cena dos Gato Fedorento:
O seu pensamento pode ser resumido desta forma, mais adaptada a estes momentos:
A precariedade é má? É! Mas ela está prevista na lei? Está! Mas é má? É! Mas o pacote é bom porque atenua a precariedade? Sim! Mas a precariedade é boa porque permite às empresas resistir à recessão? É! Mas isso quer dizer que é a precariedade que torna as empresas mais fortes? Sim! Mas a precariedade é má? É! Mas se ajuda as empresas é boa então? Sim! Mas é má? É! Isso não é um bocadinho inconsistente? Pshiiu!
segunda-feira, 19 de agosto de 2019
Os governos não jogam futebol
“O governo não ganhou 3-0 à greve porque, se quisermos ir pela analogia futebolística, era árbitro e não equipa no terreno. O seu papel era o de impedir que o direito à greve não colidisse com a satisfação de necessidades fundamentais e a sua alegria por tê-lo conseguido deveria ficar contida a ter sido um árbitro eficaz” escreve, num blogue que vale sempre a pena visitar, Paulo Pedroso.
A meu ver, o problema coloca-se melhor da seguinte forma: se o primeiro-ministro afirma implicitamente que ganhou é porque, ao invés de arbitrar, jogava; se estavam duas equipas em campo, patrões e camionistas grevistas, e se os camionistas grevistas alegadamente perderam e o Governo ganhou, de que lado jogou o Governo?
A formulação de Paulo Pedroso confunde o papel que o Governo devia ter tido com aquele que teve: não “era árbitro”, era equipa.
A meu ver, o problema coloca-se melhor da seguinte forma: se o primeiro-ministro afirma implicitamente que ganhou é porque, ao invés de arbitrar, jogava; se estavam duas equipas em campo, patrões e camionistas grevistas, e se os camionistas grevistas alegadamente perderam e o Governo ganhou, de que lado jogou o Governo?
A formulação de Paulo Pedroso confunde o papel que o Governo devia ter tido com aquele que teve: não “era árbitro”, era equipa.
Avisos à navegação
A edição desta semana do The Economist traz avisos à navegação nos mercados financeiros: há "ansiedade" e "inquietação" entre os investidores, à medida que a economia global parece caminhar para uma nova recessão.
"Procurar sentido nos mercados financeiros é como procurar padrões num mar revolto. A informação que emerge é produto de compras e vendas feitas por pessoas, com todas as suas contradições. Os preços refletem um misto de emoções, enviesamentos e cálculos racionais. No entanto, de um modo geral, os mercados dão pistas sobre o estado de espírito dos investidores e sobre o temperamento de um dado período. Habitualmente, o sinal mais atribuído aos mercados é o da complacência. Os perigos são geralmente ignorados até ser demasiado tarde. Contudo, o estado de espírito atualmente dominante, à semelhança de grande parte da última década, não é de complacência, mas antes de ansiedade. E tem aumentado todos os dias."
O artigo lista alguns riscos dos tempos que atravessamos: taxas de juro e custo do crédito historicamente baixos, recuo da produção industrial e das trocas entre países, e, sobretudo, imposição de novas tarifas aduaneiras com a guerra comercial entre os EUA e a China. No entanto, de todos os motivos para a instabilidade dos mercados financeiros, a incerteza é o mais relevante: "Os limites da disputa [entre os EUA e a China] foram alargados, passando das importações de alguns metais industriais para uma categoria mais abrangente de bens de consumo. Outras frentes de combate, incluindo cadeias de fornecimento de tecnologia e, este mês, as flutuações cambiais, foram abertas. É difícil prever o que poderá estar em causa no futuro."
Numa altura em que o crescimento das economias ocidentais tem abrandado, o que se traduz em reduzidos níveis de investimento e procura agregada, empurrando os bancos centrais para novas injeções de liquidez, é de esperar que os juros se mantenham baixos. Estes, por sua vez, fomentam a concentração do capital em aplicações financeiras e a especulação, aumentando a instabilidade dos mercados. Daí que a política monetária não seja solução para a incerteza dos tempos. Encontra-se uma resposta possível na política orçamental - os Estados têm capacidade para impulsionar os salários e a procura através da despesa pública, contrariando as tendências recessivas. Noutras palavras, é necessário enfrentar o consenso neoliberal das últimas décadas. Teremos capacidade para travar o caminho para o abismo?
"Procurar sentido nos mercados financeiros é como procurar padrões num mar revolto. A informação que emerge é produto de compras e vendas feitas por pessoas, com todas as suas contradições. Os preços refletem um misto de emoções, enviesamentos e cálculos racionais. No entanto, de um modo geral, os mercados dão pistas sobre o estado de espírito dos investidores e sobre o temperamento de um dado período. Habitualmente, o sinal mais atribuído aos mercados é o da complacência. Os perigos são geralmente ignorados até ser demasiado tarde. Contudo, o estado de espírito atualmente dominante, à semelhança de grande parte da última década, não é de complacência, mas antes de ansiedade. E tem aumentado todos os dias."
O artigo lista alguns riscos dos tempos que atravessamos: taxas de juro e custo do crédito historicamente baixos, recuo da produção industrial e das trocas entre países, e, sobretudo, imposição de novas tarifas aduaneiras com a guerra comercial entre os EUA e a China. No entanto, de todos os motivos para a instabilidade dos mercados financeiros, a incerteza é o mais relevante: "Os limites da disputa [entre os EUA e a China] foram alargados, passando das importações de alguns metais industriais para uma categoria mais abrangente de bens de consumo. Outras frentes de combate, incluindo cadeias de fornecimento de tecnologia e, este mês, as flutuações cambiais, foram abertas. É difícil prever o que poderá estar em causa no futuro."
Numa altura em que o crescimento das economias ocidentais tem abrandado, o que se traduz em reduzidos níveis de investimento e procura agregada, empurrando os bancos centrais para novas injeções de liquidez, é de esperar que os juros se mantenham baixos. Estes, por sua vez, fomentam a concentração do capital em aplicações financeiras e a especulação, aumentando a instabilidade dos mercados. Daí que a política monetária não seja solução para a incerteza dos tempos. Encontra-se uma resposta possível na política orçamental - os Estados têm capacidade para impulsionar os salários e a procura através da despesa pública, contrariando as tendências recessivas. Noutras palavras, é necessário enfrentar o consenso neoliberal das últimas décadas. Teremos capacidade para travar o caminho para o abismo?
domingo, 18 de agosto de 2019
sábado, 17 de agosto de 2019
O país pode parar
Choraminga alguma esquerda a propósito da greve dos motoristas que "o país não pode parar". Mas é claro que o país pode parar.
As únicas classes que têm medo de ruínas são as que, como nunca levantaram uma parede, por isso ficam com muito medo de como vai ser se caírem as que estão de pé. A classe operária levantou cada tijolo, cada parafuso, cada fio eléctrico, cada pormenor do mundo que temos. Se o deitar abaixo, sabe muito fazê-lo de novo. E o mais certo, sem mandantes a dar palpites nem patrões a lixar-lhe a vida, é que faça um mundo muito melhor que o que estava.
João Vilela
As únicas classes que têm medo de ruínas são as que, como nunca levantaram uma parede, por isso ficam com muito medo de como vai ser se caírem as que estão de pé. A classe operária levantou cada tijolo, cada parafuso, cada fio eléctrico, cada pormenor do mundo que temos. Se o deitar abaixo, sabe muito fazê-lo de novo. E o mais certo, sem mandantes a dar palpites nem patrões a lixar-lhe a vida, é que faça um mundo muito melhor que o que estava.
João Vilela
sexta-feira, 16 de agosto de 2019
A resposta ao Governo
Na minha perspectiva política, enquanto se mantiver a requisição civil, qualquer abastecimento de marinas, e de outras atividades e serviços não essenciais à comunidade, significa necessariamente que o tempo de trabalho usado para o fazer podia ter tido uma aplicação alternativa, concretamente umas daquelas que asseguram o abastecimento a atividades e serviços de facto indispensáveis à comunidade.
Aqui a resposta do Governo.
Aqui a resposta do Governo.
A resposta do Governo
Uma fonte do Ministério do Ambiente e Transição Energética contactou-me para mostrar o seu desacordo com este post e, ao pedido que o fizesse por escrito, respondeu com o texto que passo a publicar:
“As marinas não foram incluídas na requisição civil, nem têm qualquer abastecimento garantido pelos serviços mínimos. Estes abastecimentos foram feitos pela Galp, ao abrigo dos seus contratos de fornecimento normais e recorrendo aos seus próprios meios, sem qualquer intervenção do governo ou das forças de segurança”.
“As marinas não foram incluídas na requisição civil, nem têm qualquer abastecimento garantido pelos serviços mínimos. Estes abastecimentos foram feitos pela Galp, ao abrigo dos seus contratos de fornecimento normais e recorrendo aos seus próprios meios, sem qualquer intervenção do governo ou das forças de segurança”.
Tudo na economia política é público
Como se chegou a esta situação? O resumo é simples: privatizou-se uma empresa estratégica para o país, dando a uns poucos os lucros que deveriam ser de todos; externalizou-se parte da operação recorrendo-se ao outsourcing para as atividades que anteriormente eram desempenhadas pelos trabalhadores do quadro de pessoal, esperando que a selva do mercado trouxesse a desregulação laboral que ansiavam — o que aconteceu com os motoristas de matérias perigosas; os motoristas passaram de trabalhadores a empreendedores, incentivados a criarem a sua própria empresa — ou contratados por outros nessa situação — perdendo direitos pelo caminho. Ao longo deste processo os lucros aumentaram, a riqueza ficou ainda mais concentrada nos acionistas, e os salários caíram. É motivo para indignação? Claro que é. Esta introdução explica o contexto que nos trouxe às lutas de hoje. Para quem achava que esta história era apenas entre interesses privados, fica claro como o poder público está na sua origem e dela nunca esteve desligado.
Pedro Filipe Soares, A greve, Público, 16 de Agosto de 2019.
Comparem este artigo, denunciando também os enviesamentos anti-laborais do governo, com as sonsices mais ou menos liberais, com separação entre público e privado e tudo, de Rui Tavares na última página. No meio de um pensamento que universaliza o que julga ser a situação social e a atitude política de um leitor típico do Público, salva-se o alerta para o precedente grave aberto pela acção deste governo. No entanto, há ali demasiados estados de alma genéricos, esvaziados de economia política, projectados no passado e no futuro. É nisto que dá um certo tipo de idealismo.
Entretanto, acho justo que o Presidente do Grupo Parlamentar do BE escreva à sexta-feira neste jornal, sendo ainda assim menos que o fundador do Livre. Lembro-me que um dia este saltou para cima de um palanque e disse basicamente: eu sou um partido. Felizmente, não tem tido muitos seguidores. Acho é mesmo injusto, mas revelador, que os comunistas não tenham o mesmo espaço neste jornal. É princípio que vigora na comunicação social: comunista não entra.
quinta-feira, 15 de agosto de 2019
Tristes espectáculos
Hoje, o editorial do Público regressou à medíocre normalidade neoliberal, agora que Manuel Carvalho, imagino, regressou da sua quinzena de férias. Ontem, em mais um corajoso editorial – Greve: o que ficámos a saber por estes dias –, a indispensável Ana Sá Lopes denunciou as implausíveis teorias da conspiração que têm sido alardeadas por sectores de esquerda. Um triste espectáculo, realmente.
Pelo menos os comunistas portugueses têm a autoridade de quem nunca abandonou o movimento operário português e o terreno da luta de classes, que também é nacional, como se tem a obrigação de saber por cá pelo menos desde Álvaro Cunhal.
O mesmo não se pode dizer de parte da intelectualidade portuguesa. É realmente um triste espectáculo ver gente que não levanta um dedo durante o ano pelos trabalhadores chegar ao verão e atacar agora esta greve, provavelmente a partir de uma qualquer estância balnear.
E isto sem se confrontar por um minuto com as justas aspirações dos motoristas em matéria de horários, descontos para a segurança social, condições de trabalho, etc. Sem se confrontar com as coisas evidentes, denunciadas por Mafalda Pratas, ou com algumas das perguntas simples, feitas por Helena Araújo, uma portuguesa na Alemanha e que pensa bem sobre os do seu país. E sem parar um minuto para pensar nos perigosos precedentes que este governo está a abrir e que serão certamente aproveitados pelas direitas, como bem denunciou Pedro Manuel Costa, um corajoso militante do PS em artigo no Público. Corajosas excepções, realmente.
Ao contrário destes trabalhadores, uma parte não despicienda da intelectualidade portuguesa dita de esquerda faz parte dos chamados passageiros frequentes, dos vencedores da globalização, e trocou há muito o marxismo por um social-liberalismo conformado, misto de neoliberalismo na economia e de perverso libertarianismo moral e cultural.
Pelo menos a direita portuguesa tem a virtude da consistência de classe. Por exemplo, Pedro Mota Soares escreveu um artigo no último Expresso, onde defende o seguinte: a economia política pós-troika nacional depende cada vez mais das exportações, incluindo de serviços como o turismo. Este é de resto o lugar medíocre que nos reserva uma UE incensada. No contexto de cadeias de valor extensas e dependentes do just in time, os fluxos mercantis não podem ser postos em causa por aqueles que afirmam que o trabalho não é uma mercadoria descartável. E sem esquecer que o turismo depende da paz dos cemitérios laborais. No fundo, como defende Mota Soares do CDS, as greves têm de ser limitadas em nome da integração europeia, versão potente da globalização.
É odioso? É. Faz sentido? Tendo em conta o lugar de classe, faz.
O resto é mesmo um triste espectáculo.
quarta-feira, 14 de agosto de 2019
Uma justificação ilustrada para a requisição civil
Como sabemos, não há direitos absolutos. Neste caso, o direito à greve foi subordinado ao direito de passear de iate. Isto, depois de ponderada avaliação política. Ou não?
Do outro lado do mundo
Se há coisa a greve dos camionistas revela é que os jornalistas, mais uma vez, não parecem entender o que está em causa.
A greve dos motoristas tem todos os contornos para ser considerada estranha:
1) um grupo profissional que esteve "parado" durante 20 anos, de repente "acorda" e é capaz de fazer greves por tempo indeterminado (como se não precisassem dos salários) e durante um período pré-eleitoral, em que está em julgamento um governo apoiado à esquerda; 2) uma greve que surge mesmo após outra greve por tempo indeterminado - a dos enfermeiros dos blocos operatórios - que afectou apenas hospitais públicos (nos privados não havia blocos operatórios?) e que foi financiada por um fundo de greve pouco transparente, em que, nalguns dias, entravam a cada hora centenas de euros; 3) um sindicato dos motoristas que nasceu com um dirigente que é advogado, especialista em offshores e até há bem pouco tempo desconhecido do movimento sindical; 4) e em todas as lutas, numa e noutra, com um apoio maciço das suas centenas de profissionais, capaz de ter efeitos generalizados sobretudo sobre a população e capaz de desestabilizar um país, tudo cheirando a demasiada organização, com traços semelhantes a outras manobras que já se viram noutros países, como no Chile em 1973, visando derrubar o governo legítimo do socialista Salvador Allende.
Por isso, primeiro, sente-se o seu embaraço. Em geral, os jornalistas andaram ao colo com os novos "sindicatos independentes" - que eram genuínos e renovados -, desvalorizando o velho papel sindical, sobretudo dos sindicatos "afectos" (não são capazes de usar a palavra filiados) a uma central sindical, a CGTP. Mas agora parecem assustar-se. Hoje de manhã, o pivot da SIC designou-os como os sindicatos "ditos independentes" e em crónicas várias quase que se pede o regresso dos "civilizados" sindicatos "afectos" ao PCP. E não foram precisos muitos meses.
Antes, sentia-se que estavam a favor das lutas desses sindicatos independentes - talvez porque atingiam o Governo socialista. Antes da greve, um outro pivot da SIC, noutra emissão, quase trucidou em entrevista o representante da ANTRAM. Agora, aceitam a requisição civil que, claramente, dá força a um dos lados do conflito e põe em causa o direito à greve, mesmo que respaldado num parecer do conselho consultivo da Procuradoria-Geral da República, favorável à ideia da requisição preventiva, coisa que não existe no ordenamento jurídico.
No programa Praça Pública desta manhã, na SIC, os dois jornalistas em estúdio questionavam-se sobre a quem mais favorecia esta luta. E dizia um deles: "Ao Governo: já não se fala de mais nada senão na greve. Nem se fala dos hospitais, nem dos fogos...". Veja-se bem: eles a queixar-se de que os jornalistas não se preocupam com mais nada senão com a luta dos motoristas, porque aquilo com deviam preocupar-se era apenas... com a ruptura dos hospitais e com os fogos!
Segundo, os jornalistas não conseguem entender uma luta por jornadas de trabalho de 8 horas ou uma greve a trabalho extraordinário porque, eles próprios jornalistas, acham que isso faz parte de uma reivindicação do tempo da Revolução Industrial. Todos recebem subsídios de isenção de horário e aceitam que o trabalho seja "o que for preciso fazer". Mesmo que isso corresponda ao trabalho de duas pessoas!
Nas entrevistas aos membros do Governo, raramente ou nunca os jornalistas lhes perguntam como é possível que a Autoridade das Condições de Trabalho (ACT) não tenha - durante 20 anos - fiscalizado e posto na ordem um sector com jornadas de trabalho como as dos motoristas! A jornada de trabalho é tão adulterada que a própria requisição civil fortalece a greve em curso, ao impor um horário de 7 horas - que é o dos funcionários públicos -, que fura os próprios "serviços mínimos", estimados - pelo Governo - com base em jornadas de trabalho mais alargadas, porque verificadas no período homólogo!! Numa entrevista recente no programa 360, Ana Lourenço fez essa pergunta ao ministro Vieira da Silva e sentiu-se o seu embaraço.
A greve dos motoristas tem todos os contornos para ser considerada estranha:
1) um grupo profissional que esteve "parado" durante 20 anos, de repente "acorda" e é capaz de fazer greves por tempo indeterminado (como se não precisassem dos salários) e durante um período pré-eleitoral, em que está em julgamento um governo apoiado à esquerda; 2) uma greve que surge mesmo após outra greve por tempo indeterminado - a dos enfermeiros dos blocos operatórios - que afectou apenas hospitais públicos (nos privados não havia blocos operatórios?) e que foi financiada por um fundo de greve pouco transparente, em que, nalguns dias, entravam a cada hora centenas de euros; 3) um sindicato dos motoristas que nasceu com um dirigente que é advogado, especialista em offshores e até há bem pouco tempo desconhecido do movimento sindical; 4) e em todas as lutas, numa e noutra, com um apoio maciço das suas centenas de profissionais, capaz de ter efeitos generalizados sobretudo sobre a população e capaz de desestabilizar um país, tudo cheirando a demasiada organização, com traços semelhantes a outras manobras que já se viram noutros países, como no Chile em 1973, visando derrubar o governo legítimo do socialista Salvador Allende.
Por isso, primeiro, sente-se o seu embaraço. Em geral, os jornalistas andaram ao colo com os novos "sindicatos independentes" - que eram genuínos e renovados -, desvalorizando o velho papel sindical, sobretudo dos sindicatos "afectos" (não são capazes de usar a palavra filiados) a uma central sindical, a CGTP. Mas agora parecem assustar-se. Hoje de manhã, o pivot da SIC designou-os como os sindicatos "ditos independentes" e em crónicas várias quase que se pede o regresso dos "civilizados" sindicatos "afectos" ao PCP. E não foram precisos muitos meses.
Antes, sentia-se que estavam a favor das lutas desses sindicatos independentes - talvez porque atingiam o Governo socialista. Antes da greve, um outro pivot da SIC, noutra emissão, quase trucidou em entrevista o representante da ANTRAM. Agora, aceitam a requisição civil que, claramente, dá força a um dos lados do conflito e põe em causa o direito à greve, mesmo que respaldado num parecer do conselho consultivo da Procuradoria-Geral da República, favorável à ideia da requisição preventiva, coisa que não existe no ordenamento jurídico.
No programa Praça Pública desta manhã, na SIC, os dois jornalistas em estúdio questionavam-se sobre a quem mais favorecia esta luta. E dizia um deles: "Ao Governo: já não se fala de mais nada senão na greve. Nem se fala dos hospitais, nem dos fogos...". Veja-se bem: eles a queixar-se de que os jornalistas não se preocupam com mais nada senão com a luta dos motoristas, porque aquilo com deviam preocupar-se era apenas... com a ruptura dos hospitais e com os fogos!
Segundo, os jornalistas não conseguem entender uma luta por jornadas de trabalho de 8 horas ou uma greve a trabalho extraordinário porque, eles próprios jornalistas, acham que isso faz parte de uma reivindicação do tempo da Revolução Industrial. Todos recebem subsídios de isenção de horário e aceitam que o trabalho seja "o que for preciso fazer". Mesmo que isso corresponda ao trabalho de duas pessoas!
Nas entrevistas aos membros do Governo, raramente ou nunca os jornalistas lhes perguntam como é possível que a Autoridade das Condições de Trabalho (ACT) não tenha - durante 20 anos - fiscalizado e posto na ordem um sector com jornadas de trabalho como as dos motoristas! A jornada de trabalho é tão adulterada que a própria requisição civil fortalece a greve em curso, ao impor um horário de 7 horas - que é o dos funcionários públicos -, que fura os próprios "serviços mínimos", estimados - pelo Governo - com base em jornadas de trabalho mais alargadas, porque verificadas no período homólogo!! Numa entrevista recente no programa 360, Ana Lourenço fez essa pergunta ao ministro Vieira da Silva e sentiu-se o seu embaraço.
Apoiar a greve é defender o trabalho, a segurança social e a democracia
“(...) A ANTRAM, associação patronal dos motoristas, quer continuar a explorar os motoristas e restantes trabalhadores ao seu serviço com baixos salários e más condições de trabalho; continua a ignorar - tal como o Governo - um conjunto de ilegalidades denunciadas pelos trabalhadores de desrespeito pelo pagamento das contribuições devidas, mantendo parte dos pagamentos de salários através de subsídios que, assim, não são contabilizados para a reforma, acidente ou baixa dos trabalhadores, realidade que saqueia não apenas os motoristas mas também a generalidade dos contribuintes (...)”; excerto da petição Solidariedade com os Motoristas de Matérias Perigosas e de Mercadorias.
terça-feira, 13 de agosto de 2019
Da representação democrática (I)
Com a criação de círculos uninominais de regresso ao debate público, no âmbito das propostas de reforma do sistema eleitoral e da alegada necessidade de «aproximar os eleitos aos cidadãos», vale a pena recuperar um post de 2011 do Alexandre Abreu, sobre os mecanismos de representação democrática.
Assuma-se, para o efeito, uma ideia simples. A ideia de que quando um eleitor (de Gouveia, Sintra ou Grândola, por exemplo) se dirige à sua secção de voto em dia de legislativas tem a expetativa, ao assinalar o partido ou coligação em que decidiu votar, de que o seu voto seja «válido» para eleger um deputado. Isto é, a expetativa de que o seu voto não seja desprezado no processo de composição democrática de um Parlamento que é, por natureza, um parlamento nacional (e a partir do qual emerge, de resto, o Governo da nação).
Ora, como bem se sabe, não é isso que acontece. O atual sistema eleitoral está desenhado para favorecer, sobretudo nos círculos eleitorais de menor dimensão, os dois maiores partidos. Se um eleitor de Vila Real, Castelo Branco ou Portalegre tiver a expetativa realista de contribuir para a eleição de um deputado que o represente, deverá votar no PS ou no PSD, sendo inútil - em termos de contabilização de resultados eleitorais - o voto em qualquer outro partido (tanto mais quanto esse voto nem sequer será considerado num putativo círculo nacional, que pudesse complementar os círculos eleitorais existentes).
É por isso que quando confrontamos os resultados eleitorais, em termos de deputados eleitos, com a distribuição proporcional dos resultados de cada partido à escala nacional, obtemos configurações parlamentares bastante distintas (como mostra o gráfico, para as legislativas de 2011). De facto, numa lógica de círculo nacional, mais fiel à expressão da vontade democrática do eleitorado, o PS passaria de 74 para 67 deputados e o PSD de 108 para 93. Em contrapartida, o PCP-PEV passaria de 16 para 19 deputados, o BE de 8 para 12 e o CDS-PP de 24 para 28. E seriam ainda eleitos 11 deputados de partidos que, com o sistema vigente, não tiveram direito a representação parlamentar.
É bem certo que a discussão sobre os mecanismos de representação democrática é complexa, com vantagens e desvantagens em qualquer modelo. Mas se de facto se quer melhorar o sistema eleitoral, no sentido de uma maior representação democrática (que implica, necessariamente, uma composição mais plural do Parlamento) e de uma «maior aproximação entre eleitores e eleitos», o resultado não deverá nunca ficar aquém daquele que emana do sistema atual e que se revela, já de si, suficientemente imperfeito.
segunda-feira, 12 de agosto de 2019
Um jornal com vínculos
Há vínculos que libertam. Nem todos o fazem e é raro libertarem completamente, mas podem ir nesse sentido. Foi o que aconteceu em Portugal na legislatura que está a terminar (...) Na próxima legislatura vai ser fundamental ter um Parlamento plural e vinculado à esquerda. Para avançar, sem dúvida, mas também para resistir.
Sandra Monteiro, Plural e vinculado à esquerda, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Agosto de 2019.
Aproveito para deixar um resumo, feito pelo jornal, do artigo que Paulo Coimbra e eu escrevemos:
Da proposta política aos textos jornalísticos, por toda a parte se depara com um discurso moralista sobre a poupança. Baseado numa teoria económica que ainda hegemoniza o espaço público, esse discurso distorce a realidade e estabelece relações causais falaciosas entre poupança e investimento. Na verdade, a poupança depende do investimento, e não ao contrário. Mas o discurso neoliberal, mil vezes repetido, serve para favorecer umas mudanças, como a da entrega da Segurança Social à predação financeira, e para bloquear outras, como a da consciência dos constrangimentos quase coloniais que criam estagnação e crises em países periféricos como Portugal.
domingo, 11 de agosto de 2019
Não vamos nessa
Na véspera de uma greve, saúdo a linha que corajosamente Ana Sá Lopes traçou esta semana em dois editoriais no Público, aproveitando talvez as férias do director: a resposta do governo tem sido desproporcionada, abrindo perigosos precedentes anti-laborais (diz que a Vanessa tem uma espécie de namorado camionista de matérias perigosas e tudo...). Enfim, com excepção dos comunistas, existem silêncios que não se admitem, mesmo que não se concorde com esta linha sindical.
Neste contexto material perigoso, Ana Sá Lopes sublinhou a ausência de sindicalistas nas listas do PS às próximas legislativas, assinalando a ruptura com a tradição socialista. Na realidade, como assinalou no editorial seguinte, o PS sempre foi mais tributário da tradição “racha-sindicalistas” de um Afonso Costa, condenando a República ao isolamento social, do que a qualquer tradição operária da restante social-democracia europeia (em larga medida desaparecida, entretanto).
Na sua história, e com muito honrosas excepções (por todos, Kalidás Barreto), a actividade sindical do PS pode resumir-se ao esforço de divisão do movimento operário português, tendo pesadas responsabilidades na perigosa pulverização que agora, ironicamente, muitos aí lamentam.
Entretanto, e se calhar não a despropósito, julgo que os sobreinvestimentos liberais em quotas, para abrir as carreiras a talentos, e em outras medidas congéneres, para entreter burguesas e burgueses, escondem o subinvestimento na questão social. Já repararam como aí ninguém fala na importância de ter eleitos oriundos das classes trabalhadoras e ligados aos seus problemas? Este silêncio ensurdecedor é generalizado. É como se o operariado não tivesse existência política. É até possível ouvir e ler dirigentes socialistas, rendidos ao empresarialmente correcto, falar de “colaboradores” em panegíricos a duvidosos capitalistas.
Isto é só a declinação no campo discursivo de realidades ideológicas e materiais bem mais graves: da ofuscação ideológica de um Centeno com “visões de mercado” para as relações de poder, que submetem quem trabalha, à aceitação da pesada herança da troika nesta área.
Neste contexto material perigoso, Ana Sá Lopes sublinhou a ausência de sindicalistas nas listas do PS às próximas legislativas, assinalando a ruptura com a tradição socialista. Na realidade, como assinalou no editorial seguinte, o PS sempre foi mais tributário da tradição “racha-sindicalistas” de um Afonso Costa, condenando a República ao isolamento social, do que a qualquer tradição operária da restante social-democracia europeia (em larga medida desaparecida, entretanto).
Na sua história, e com muito honrosas excepções (por todos, Kalidás Barreto), a actividade sindical do PS pode resumir-se ao esforço de divisão do movimento operário português, tendo pesadas responsabilidades na perigosa pulverização que agora, ironicamente, muitos aí lamentam.
Entretanto, e se calhar não a despropósito, julgo que os sobreinvestimentos liberais em quotas, para abrir as carreiras a talentos, e em outras medidas congéneres, para entreter burguesas e burgueses, escondem o subinvestimento na questão social. Já repararam como aí ninguém fala na importância de ter eleitos oriundos das classes trabalhadoras e ligados aos seus problemas? Este silêncio ensurdecedor é generalizado. É como se o operariado não tivesse existência política. É até possível ouvir e ler dirigentes socialistas, rendidos ao empresarialmente correcto, falar de “colaboradores” em panegíricos a duvidosos capitalistas.
Isto é só a declinação no campo discursivo de realidades ideológicas e materiais bem mais graves: da ofuscação ideológica de um Centeno com “visões de mercado” para as relações de poder, que submetem quem trabalha, à aceitação da pesada herança da troika nesta área.
sexta-feira, 9 de agosto de 2019
Alemanha - problemas no motor europeu?
Os dados sobre a produção industrial na Alemanha fizeram soar os alarmes entre os jornais de referência – a quebra anual da produção alemã foi a maior dos últimos 9 anos, registando-se uma surpreendente redução de 1,5% em Junho face ao mês anterior. A queda prevista inicialmente pelos analistas era de apenas 0,4%.
A explicação avançada pelo economista Alexander Krüger prende-se com a guerra comercial entre os EUA e a China, que parece estar a prejudicar o comércio internacional e a ter efeitos negativos para economias exportadoras como a alemã. Reconhecendo que “a quebra prolongada é assustadora”, Krüger alertou para o facto de que “as previsões de crescimento para a Alemanha poderão ter de ser novamente revistas em baixa.”
O cenário alemão é desolador – os índices de produção sofreram uma quebra em vários setores, da construção à energia e à indústria automóvel (esta última particularmente afetada pela transição de carros a diesel para veículos elétricos). “Presumimos que este é o prelúdio de uma recessão técnica”, explica Andreas Scheuerle, do DekaBank. Nos mercados financeiros, povoados de investidores de gatilho fácil, a instabilidade mantém-se.
Esta “quebra assustadora” tem motivado o interesse em soluções menos ortodoxas para o problema. No final do ano passado, o ministro da economia, Peter Altmeier, anunciou a “Estratégia Industrial Nacional 2030”, um projeto onde se delineavam algumas orientações de política industrial a serem prosseguidas pelo Estado alemão de forma a relançar a produção. Altmeier notou que “não existe um único país bem-sucedido que se baseie exclusivamente em forças de mercado para atingir os seus objetivos”, sugerindo um conjunto de medidas públicas de promoção da indústria alemã.
No entanto, esta orientação é diametralmente oposta à que a própria Alemanha assume como boa prática económica, defendendo uma política industrial assente na definição de regras de concorrência ordoliberais e na atuação contida dos poderes públicos, tanto a nível nacional como europeu. Não é, por isso, de estranhar que os economistas e empresários alemães tenham reagido de forma hostil ao plano do ministro, como notou Peter Bofinger.
Embora a estratégia tenha sido pouco discutida, Bofinger defende a importância de um debate sério sobre as questões da política industrial, apontando alguns problemas ao plano de Altmeier (como a incapacidade de os países europeus atingirem as metas pretendidas com base em planos nacionais descoordenados, ou o facto de não relacionar a política industrial com a necessária transição energética das economias desenvolvidas). É uma discussão tão importante quanto necessária. Mas a crescente tensão entre os EUA e a China, aliada à inflexibilidade da política económica ortodoxa, eternamente desconfiada do Estado e das políticas públicas, parecem condenar o motor da economia europeia à estagnação.
Duas décadas de estagnação dos salários. Que mil greves floresçam!
No final de 2018 os salários reais encontravam-se ao nível de 1999. Isto, apesar do PIB real por trabalhador, no mesmo período, ter crescido 15%.
Este governo apenas conseguiu impedir que a parcela da riqueza criada no país e destinada a remunerar o trabalho não continuasse a cair.
Em 2015 foi vital suster a furiosa ofensiva da direita contra os direitos de quem trabalha. Contudo, chegámos a 2019 com estes resultados, muitíssimo insuficientes. Que mil greves floresçam!
Em 2015 foi vital suster a furiosa ofensiva da direita contra os direitos de quem trabalha. Contudo, chegámos a 2019 com estes resultados, muitíssimo insuficientes. Que mil greves floresçam!
Economia Política em Portugal
A Associação Portuguesa de Economia Política constituiu-se com o objetivo de promover a consolidação, em Portugal, do domínio científico da economia política. A economia política pressupõe uma abordagem ampla que não separa o económico do social ou do político. A economia é inevitavelmente uma relação social e política. Muitos equívocos teriam sido evitados se esta constatação simples não tivesse sido a dada altura abandonada.
Em janeiro de 2018, realizou-se o 1º Encontro Anual de Economia Política promovido pela associação. O tema escolhido foi a economia enquanto realidade substantiva, convocando a tradição institucionalista nesta área, em especial o contributo de Karl Polanyi.
O último número da Revista Crítica de Ciências Sociais dedica um dossier temático a este primeiro encontro, contando, entre outros contributos, com três artigos dos oradores convidados – Ben Fine, Helena Lopes e José Luís Garcia. Boas leituras.
quinta-feira, 8 de agosto de 2019
Recensear economia política
Da recessão democrática à democracia iliberal, muitos são os que agora diagnosticam uma crise das democracias ditas liberais de matriz ocidental. Estas estariam a ser postas em causa por uma antielitista raiva popular, fomentada por nacional-populistas. Nos Estados Unidos da América (EUA), tal tendência teria um nome óbvio: Donald Trump.
Em contraste com uma literatura superficial, o último livro de Robert Kuttner tem como título aquela que é talvez a questão mais importante da economia política internacional nas presentes circunstâncias históricas: “será que a democracia pode sobreviver ao capitalismo global?”.
Trata-se de um livro escrito por um economista, que é um intelectual público, de orientação vincadamente social-democrata; um “liberal”, na peculiar terminologia dos EUA, da ala esquerda dos democratas, um dos fundadores da revista American Prospect e do Economic Policy Institute, o principal think-tank ligado ao crescentemente frágil movimento sindical norte-americano. Enquanto jornalista, colunista e ensaísta, várias vezes premiado, tem escrutinado as perversas tendências no campo da economia política desde o seu primeiro livro, de 1980, sobre a revolta fiscal dos ricos, na altura só a começar. Os seus livros costumam de resto conter boas sínteses, combinando investigação aturada e divulgação da mais relevante literatura académica num estilo acessível, beneficiando também de ligações universitárias. Trata-se da versão crítica de um perfil habitual na enviesada esfera pública dos EUA, hegemonizada por intelectuais públicos neoliberais. Estes últimos têm há muito tempo a seu favor o maciço financiamento privado para cruzadas intelectuais e mediáticas.
O livro de Robert Kuttner inscreve-se numa linha que não separa – antes articula – as formas institucionais, ditas políticas, de que a democracia se tem de revestir e as formas institucionais que moldam as relações sociais no campo da provisão (a economia substantiva, como diria Karl Polanyi, uma das principais referências mobilizadas). A história da democracia e das suas crises não pode ser separada da história do capitalismo e das suas crises, bem como da história das alternativas sistémicas pós-capitalistas. A história da democracia é também e sobretudo a história da luta de classes e das suas cristalizações institucionais nacionais; uma história de economia política, em suma, contra uma abordagem puramente política ou economicista.
O resto da recensão, publicada na Revista Crítica de Ciências Sociais, pode ser lido no sítio da revista.
quarta-feira, 7 de agosto de 2019
Citações com classe
Num crónica oportuna no último Expresso, Daniel Oliveira assinala “os riscos para a esquerda da obsessão identitária”, “uma tragédia que começou com o abandono pela esquerda da representação de classe”, citando a socialista norte-americana Alexandra Ocasio-Cortez: “O que está em causa não é a diversidade ou a raça, é a classe.”
Neste contexto de perversas ideias atomizadoras que também vêm do outro lado Atlântico e dos que as combatem, ainda que de forma desigual, na origem, lembrei-me de um outro socialista norte-americano chamado Bernie Sanders, citado num importante artigo sobre o argumento de esquerda contra as fronteiras abertas na excelente American Affairs. Questionado sobre se seria a favor de fronteiras abertas, Sanders respondeu: “Fronteiras abertas? Não. É uma ideia dos irmãos Koch”, ou seja, uma ideia dos bilionários financiadores de todas as causas do neoliberalismo mais radical. De facto, sem fronteiras, sem controlos dos fluxos, não há democracia que resista à globalização capitalista mais intensa.
Neste contexto de perversas ideias atomizadoras que também vêm do outro lado Atlântico e dos que as combatem, ainda que de forma desigual, na origem, lembrei-me de um outro socialista norte-americano chamado Bernie Sanders, citado num importante artigo sobre o argumento de esquerda contra as fronteiras abertas na excelente American Affairs. Questionado sobre se seria a favor de fronteiras abertas, Sanders respondeu: “Fronteiras abertas? Não. É uma ideia dos irmãos Koch”, ou seja, uma ideia dos bilionários financiadores de todas as causas do neoliberalismo mais radical. De facto, sem fronteiras, sem controlos dos fluxos, não há democracia que resista à globalização capitalista mais intensa.
Sexta, em Tavira: apresentação do nº 3 da Manifesto
Desta vez a sul, em Tavira, apresentação do número 3 da revista Manifesto, sobre a crise da política, da democracia e das estruturas e processos de mediação (comunicação social, sindicatos, partidos), indissociável do crescimento da extrema-direita. É já na próxima sexta-feira, dia 9, a partir das 22h00, na Casa das Artes, com a participação de Daniel Oliveira. Apareçam.
terça-feira, 6 de agosto de 2019
Mais três notas sobre Cristas e o acesso ao ensino superior
«Não faz qualquer sentido que uma família portuguesa, cujo filho não se classificou para entrada no curso ou na escola da sua preferência, dado o "numerus clausus", não possa escolher aceder a essa vaga, pagando o seu custo real, tal como pode escolher uma universidade privada ou uma universidade estrangeira» (Assunção Cristas)
1. Ao contrário do que o CDS-PP e Cristas sugerem - para justificar que os alunos portugueses sem média de acesso devem poder ingressar, mediante pagamento, no ensino superior público - os alunos estrangeiros não se limitam a «pagar para entrar», estando igualmente sujeitos a numerus clausus, como já se procurou demonstrar aqui. Mais: não só nem todos os candidatos estrangeiros ingressam no ensino superior público português, como são muito poucos os que efetivamente pagam a sua frequência a preços de mercado. De facto, se considerarmos que os alunos de países membros da UE estão sujeitos às mesmas regras que se aplicam aos estudantes nacionais, e se admitirmos que os alunos da CPLP beneficiam, em muitos casos, de acordos bilaterais entre Estados, o universo de «estrangeiros pagantes» é muito mais reduzido (apenas 153, dos cerca de 180 candidatos, no ano de 2018), do que Cristas e o seu partido nos querem fazer crer .
2. Vale a pena assinalar devidamente, em segundo lugar, um aspeto com especial significado ideológico, nesta proposta. Ao contrário do que tem defendido noutros domínios (nomeadamente na educação, na saúde e na ação e segurança social), o CDS-PP não propõe, neste caso, a existência de um «sistema» único, constituído pelo público e pelo privado e que cabe ao Estado financiar (como chegou a sugerir Passos Coelho, em 2011). O que Cristas defende, para o ensino superior, é que o Estado permita a inscrição de alunos sem média suficiente no subsistema público (e não, como seria expectável, o financiamento da sua inscrição em universidades privadas). Ou seja, mesmo não sabendo o que leva Cristas a este desalinhamento ideológico (talvez o descrédito em que mergulhou, com algumas exceções, o ensino superior privado em Portugal), o certo é que não é só a conversa da «meritocracia» que vai pelo cano. É também a congruência e consistência programática de um partido que proclama que o Estado deve financiar, nos diferentes domínios (através de PPP ou de vouchers), o setor privado.
3. Por último, a ideia de que o pagamento do «custo real» da formação deve ser suficiente para possibilitar a entrada, no ensino superior público, a um aluno que não obteve média de ingresso, é bem reveladora do «espírito de classe» que subjaz à proposta do CDS-PP. Isto é, Cristas e o seu partido limitam-se a pensar em famílias cujos níveis de rendimentos permitem, para lá do pagamento da formação a preços de mercado, assegurar todas as despesas inerentes à frequência do ensino superior (alimentação, alojamento, livros, etc.). Ou seja, como assinala Susana Peralta em artigo recente no Público, em «meia dúzia de filhos e filhas de boas famílias como a sua». Podem por isso chamar-lhe muita coisa, mas esta não é, por diversas razões, uma proposta preocupada com a democratização do acesso ao ensino superior.
1. Ao contrário do que o CDS-PP e Cristas sugerem - para justificar que os alunos portugueses sem média de acesso devem poder ingressar, mediante pagamento, no ensino superior público - os alunos estrangeiros não se limitam a «pagar para entrar», estando igualmente sujeitos a numerus clausus, como já se procurou demonstrar aqui. Mais: não só nem todos os candidatos estrangeiros ingressam no ensino superior público português, como são muito poucos os que efetivamente pagam a sua frequência a preços de mercado. De facto, se considerarmos que os alunos de países membros da UE estão sujeitos às mesmas regras que se aplicam aos estudantes nacionais, e se admitirmos que os alunos da CPLP beneficiam, em muitos casos, de acordos bilaterais entre Estados, o universo de «estrangeiros pagantes» é muito mais reduzido (apenas 153, dos cerca de 180 candidatos, no ano de 2018), do que Cristas e o seu partido nos querem fazer crer .
2. Vale a pena assinalar devidamente, em segundo lugar, um aspeto com especial significado ideológico, nesta proposta. Ao contrário do que tem defendido noutros domínios (nomeadamente na educação, na saúde e na ação e segurança social), o CDS-PP não propõe, neste caso, a existência de um «sistema» único, constituído pelo público e pelo privado e que cabe ao Estado financiar (como chegou a sugerir Passos Coelho, em 2011). O que Cristas defende, para o ensino superior, é que o Estado permita a inscrição de alunos sem média suficiente no subsistema público (e não, como seria expectável, o financiamento da sua inscrição em universidades privadas). Ou seja, mesmo não sabendo o que leva Cristas a este desalinhamento ideológico (talvez o descrédito em que mergulhou, com algumas exceções, o ensino superior privado em Portugal), o certo é que não é só a conversa da «meritocracia» que vai pelo cano. É também a congruência e consistência programática de um partido que proclama que o Estado deve financiar, nos diferentes domínios (através de PPP ou de vouchers), o setor privado.
3. Por último, a ideia de que o pagamento do «custo real» da formação deve ser suficiente para possibilitar a entrada, no ensino superior público, a um aluno que não obteve média de ingresso, é bem reveladora do «espírito de classe» que subjaz à proposta do CDS-PP. Isto é, Cristas e o seu partido limitam-se a pensar em famílias cujos níveis de rendimentos permitem, para lá do pagamento da formação a preços de mercado, assegurar todas as despesas inerentes à frequência do ensino superior (alimentação, alojamento, livros, etc.). Ou seja, como assinala Susana Peralta em artigo recente no Público, em «meia dúzia de filhos e filhas de boas famílias como a sua». Podem por isso chamar-lhe muita coisa, mas esta não é, por diversas razões, uma proposta preocupada com a democratização do acesso ao ensino superior.
segunda-feira, 5 de agosto de 2019
De ontem
«A grande catástrofe não pertence ao passado. É apenas de ontem. Da minha geração. Quando o campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau foi libertado, eu era menino, tinha 3 anos de idade. Ontem faz parte das nossas vidas. A grande catástrofe é de hoje.
Os racistas e xenófobos de hoje, que querem reunir-se em Portugal no próximo dia 10, trazem tatuada, nas t-shirts e na pele, a glorificação dos assassinos de ontem. Enquanto tivermos memória podemos, e devemos, combater com todas as nossas forças qualquer tentativa de fazer reviver o crime que dá pelo nome de Shoah, Holocausto, Catástrofe, Genocídio...
Uso, preferencialmente, Shoah, mas o nome não é o mais importante, porque nenhum nome será capaz de dizer plenamente a parte da nossa História contemporânea em que milhões de pessoas foram não só eliminadas fisicamente, mas também privadas da sua identidade e da sua humanidade.
Não está em causa, apenas, o imperativo dever de não esquecer a Shoah, mas algo mais: está em causa o imperativo ético e político de “tornar presente o que não é da ordem da presença”, como escreveu Jean-Luc Nancy, de tornar visível o que o nazismo de ontem – que o nazismo de hoje pretende comemorar – quis manter invisível.
Para dizer a trágica experiência da Shoah, é pois necessário recorrer a todas as formas possíveis de memória e resistir a toda a reemergência e difusão da ideologia nazi. Sob pena de renunciarmos às nossas responsabilidades perante a História.
Quase oito décadas depois da libertação dos campos da morte continuamos a ser contemporâneos da Shoah e de todas as suas vítimas.»
Abílio Hernandez (facebook)
sábado, 3 de agosto de 2019
sexta-feira, 2 de agosto de 2019
O m€rito segundo Cristas
«Aquilo em que o CDS acredita é numa versão para a universidade da política que esse mesmo partido inventou para a imigração: o visto dourado. O visto dourado, ou “golden visa”, separava o imigrante comum dos mortais, a quem todos os obstáculos se poderiam levantar, do imigrante rico que se poderia acolher de braços abertos se gastasse meio milhão de euros, muitas vezes a branquear capitais, no mercado imobiliário. Agora o que o CDS defende para a universidade é a mesma coisa: para os comuns dos mortais, o esforço de ter as notas mais altas; para quem pode, então que entre pagando um “golden visa” na universidade.» (Rui Tavares)
1. Os problemas e contradições da proposta do CDS-PP foram já sinalizadas aqui pelo João Rodrigues e no Público por Rui Tavares, ou ainda aqui, pelo José Gusmão. Da ideia de que tudo se compra e tudo se vende à noção de que mérito e dinheiro são uma e a mesma coisa, passando pelo propósito de introduzir lógicas privadas no ensino público e pela subordinação de princípios a interesses de classe. Nada que surpreenda, num partido que já nos habituou a defender uma coisa e o seu contrário, consoante a conveniência do momento.
2. Para lá destas questões, subsistem outras perplexidades e equívocos. A ideia de permitir que um aluno possa pagar, a «preços de mercado», a frequência de um curso para o qual não obteve média de ingresso, sugere que a oferta pública de ensino superior é ainda insuficiente, justificando uma medida deste tipo. Sucede, porém, que o volume de oferta formativa se encontra desde 2000 alinhado com o da procura (ver gráfico), registando-se apenas, desde então, oscilações entre o número de vagas e candidatos (e em que o número de candidatos tende aliás a ser inferior às vagas existentes). Ou seja, o que o CDS pretende não é permitir ingressos adicionais pagos para responder a eventuais insuficiências do sistema, mas tão só permitir o acesso a alunos com notas (de euro) mas que não têm notas (escolares) para entrar.
3. Por outro lado, o argumento de que existe já o precedente de alunos estrangeiros a frequentar o ensino superior público português, pagando os cursos a preço de mercado, também não colhe, uma vez que estes alunos estão igualmente sujeitos - ao contrário do que o CDS de Cristas sugere - a numerus clausus. De facto, dos cerca de 800 candidatos em 2018 apenas 600 ingressaram no ensino superior público português. Ou seja, tal como no caso dos alunos nacionais - e ao arrepio do que pretende Cristas - não bastou «pagar para frequentar»: foi mesmo preciso ter média para garantir o ingresso. Aliás, a taxa de colocação de alunos estrangeiros (75% em 2018) é inferior à registada no universo de nacionais (81%), dado o maior peso relativo de estudantes não colocados por média insuficiente.
4. Por último, se o que inquieta Cristas e o CDS são as médias elevadas em alguns cursos (como medicina e arquitetura, por exemplo) e se o que o partido pretende é um aumento do acesso ao ensino superior público (e não do acesso ao privado, curiosamente) proponham o aumento de vagas e a expansão da oferta formativa, assumindo um compromisso com o respetivo investimento e fundamentação das necessidades. Isto é, comprometam-se com o reforço das dotações orçamentais do ensino superior público, respeitando as médias como critério de entrada e deixando de lado o vício dos cheques-ensino.
1. Os problemas e contradições da proposta do CDS-PP foram já sinalizadas aqui pelo João Rodrigues e no Público por Rui Tavares, ou ainda aqui, pelo José Gusmão. Da ideia de que tudo se compra e tudo se vende à noção de que mérito e dinheiro são uma e a mesma coisa, passando pelo propósito de introduzir lógicas privadas no ensino público e pela subordinação de princípios a interesses de classe. Nada que surpreenda, num partido que já nos habituou a defender uma coisa e o seu contrário, consoante a conveniência do momento.
2. Para lá destas questões, subsistem outras perplexidades e equívocos. A ideia de permitir que um aluno possa pagar, a «preços de mercado», a frequência de um curso para o qual não obteve média de ingresso, sugere que a oferta pública de ensino superior é ainda insuficiente, justificando uma medida deste tipo. Sucede, porém, que o volume de oferta formativa se encontra desde 2000 alinhado com o da procura (ver gráfico), registando-se apenas, desde então, oscilações entre o número de vagas e candidatos (e em que o número de candidatos tende aliás a ser inferior às vagas existentes). Ou seja, o que o CDS pretende não é permitir ingressos adicionais pagos para responder a eventuais insuficiências do sistema, mas tão só permitir o acesso a alunos com notas (de euro) mas que não têm notas (escolares) para entrar.
3. Por outro lado, o argumento de que existe já o precedente de alunos estrangeiros a frequentar o ensino superior público português, pagando os cursos a preço de mercado, também não colhe, uma vez que estes alunos estão igualmente sujeitos - ao contrário do que o CDS de Cristas sugere - a numerus clausus. De facto, dos cerca de 800 candidatos em 2018 apenas 600 ingressaram no ensino superior público português. Ou seja, tal como no caso dos alunos nacionais - e ao arrepio do que pretende Cristas - não bastou «pagar para frequentar»: foi mesmo preciso ter média para garantir o ingresso. Aliás, a taxa de colocação de alunos estrangeiros (75% em 2018) é inferior à registada no universo de nacionais (81%), dado o maior peso relativo de estudantes não colocados por média insuficiente.
4. Por último, se o que inquieta Cristas e o CDS são as médias elevadas em alguns cursos (como medicina e arquitetura, por exemplo) e se o que o partido pretende é um aumento do acesso ao ensino superior público (e não do acesso ao privado, curiosamente) proponham o aumento de vagas e a expansão da oferta formativa, assumindo um compromisso com o respetivo investimento e fundamentação das necessidades. Isto é, comprometam-se com o reforço das dotações orçamentais do ensino superior público, respeitando as médias como critério de entrada e deixando de lado o vício dos cheques-ensino.
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