sábado, 30 de setembro de 2023

Somos nós


Somos nós os trabalhadores, somos nós que produzimos a riqueza, somos nós que trabalhamos todos os dias, temos de ter direito a uma habitação digna para todos.

Diz-se o essencial nas grandes manifestações pelo direito à habitação (via uma página numa rede social).

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Não aprendem

Fonte: Privataria, da autoria de Mariana Mortágua e Jorge Costa

Ana Sá Lopes resume o momento político-económico: “A Iniciativa Liberal, o PSD e a direita só não ficam contentes porque vêem, pesarosamente, o PS a cumprir os seus programas.” 

Com a irresponsável privatização da TAP, o PS confirma o regresso às iniciativas liberais dos Josés Penedos desta economia política com décadas. Quando era Secretário de Estado de um governo do PS que batia recordes nas privatizações, este afiançou: “Por cada privatização que faço, abro uma garrafa de Champanhe”. 

Da PT à REN, da destruição ao controlo estrangeiro de setores vitais e raramente privatizados, os resultados estão à vista. Não aprendem.

Portugal está mesmo próximo do pleno-emprego?

 

Esta semana, numa notícia do Público, discutem-se os motivos pelos quais a taxa de desemprego tem permanecido relativamente baixa na economia portuguesa após a pandemia. Embora já se tenha registado uma ligeira subida do desemprego, a verdade é que a taxa de desemprego se tem mantido à volta dos 6% nos últimos anos.

Os economistas ouvidos pelo Público - Pedro Martins, ex-secretário de Estado do governo de Passos Coelho, e João Cerejeira, que tem participado em eventos da Iniciativa Liberal - dizem que Portugal poderá estar próximo de uma situação de pleno-emprego, em que o desemprego atinge o seu nível mais baixo: a "taxa de desemprego natural", um conceito que é popular entre a maioria dos economistas. No entanto, apesar de ser sempre referido como algo autoevidente, o conceito tem muito pouca sustentação teórica e ainda menos empírica. E tem profundos impactos na nossa vida coletiva.

A teoria, originalmente desenvolvida por Milton Friedman, diz-nos que uma economia possui uma taxa de desemprego que depende das suas condições estruturais e da qual não é possível baixar sem provocar inflação. O motivo é o de que a taxa natural é o único ponto em que se compatibilizam as expetativas de trabalhadores e empresários sobre o seu rendimento real. Um desemprego mais baixo daria mais poder ao trabalho e levaria a maiores exigências salariais, levando as empresas a aumentar preços. Com a subida generalizada de preços, os trabalhadores exigiriam novos aumentos, obrigando as empresas a nova ronda de aumentos dos preços, e assim sucessivamente: o risco seria o de se gerar uma espiral inflacionista (de que temos ouvido falar bastante ultimamente).

A teoria diz-nos que, para baixar o desemprego evitando a inflação, os governos só podem remover "barreiras" no mercado de trabalho ou reduzir as expetativas salariais dos trabalhadores: ou seja, reduzir o seu poder negocial, a proteção no emprego, subsídio de desemprego, etc. É uma ideia que marcou o programa de ajustamento da Troika e que continua a estar presente nas recomendações do FMI a Portugal.

O principal problema deste raciocínio é o de olhar para os salários apenas como um custo para as empresas, sem ter em conta que estes representam, também, poder de compra e estímulo ao investimento. Como o investimento depende sobretudo da procura que as empresas esperam ter, um aumento da procura - por via de uma redução do desemprego e/ou de aumentos salariais - pode estimular o investimento e gerar ganhos de produtividade. Ou seja: a redução do desemprego e a subida dos salários não provocam necessariamente um surto inflacionista. Além disso, a teoria tem outros problemas, como o facto de assumir que as margens das empresas se mantêm naturalmente constantes, omitindo o conflito distributivo (uma crítica teórica mais exaustiva pode ser encontrada aqui). Em resumo, a teoria é tudo menos neutra.

A evidência empírica também é frágil. Alguns estudos recentes (aqui ou aqui) mostram que as estimativas da taxa natural feitas pela Comissão Europeia são pró-cíclicas: dependem mais das fases de expansão e recessão económica do que de características estruturais do mercado de trabalho. Ou seja, em vez de representar a taxa de desemprego que decorre de fatores estruturais da economia ("rigidez" da proteção laboral, do subsídio de desemprego, etc.) e que só pode ser afetada com reformas que atuem sobre esses fatores, há um enviesamento pró-cíclico.

O caso português sugere-o: a estimativa da taxa "natural" de desemprego da Comissão Europeia para Portugal tem seguido uma tendência relativamente alinhada com a da taxa de desemprego real. Ou seja, as estimativas refletem essencialmente as variações cíclicas da economia. Qual é o grande problema disto? É que, quando nos encontramos em contextos em que o desemprego real é maior, somos levados a crer que a taxa natural (da qual não podemos baixar sem inflação) é maior. Na prática, o enviesamento do cálculo funciona como forma de desencorajar medidas de combate ao desemprego.

Na Zona Euro, o problema agrava-se se tivermos em conta que a taxa de desemprego natural - e o PIB potencial, associado a esta - são as variáveis que a Comissão Europeia utiliza para avaliar a margem de que os países dispõem à luz das regras orçamentais europeias.

Por partes: a estimativa da taxa de desemprego natural influencia a do PIB potencial - isto é, o produto que seria obtido se se registasse a taxa de desemprego natural, o que constitui a situação em que se considera que a economia está a operar em pleno de forma sustentável. Se se sobre-estimar sistematicamente a taxa de desemprego natural, como parece ser o caso, o PIB potencial será sistematicamente menor (uma vez que corresponde a um nível de produto atingido com menor nível de emprego dos recursos disponíveis). Isso faz com que a diferença entre o PIB real e o PIB potencial - aquilo a que os economistas chamam o "hiato do produto" - também seja menor.

O hiato do produto é, por sua vez, usado pela Comissão Europeia para calcular a sustentabilidade orçamental de um país. Como? As regras da UE focam-se no saldo estrutural: o saldo das receitas e despesas de um governo quando se excluem medidas extraordinárias e efeitos cíclicos. Para calcular os efeitos cíclicos, a CE usa a diferença entre o PIB real e o PIB potencial (o hiato, que indica a "fase do ciclo" em que estamos). Então: ao sobre-estimar a taxa de desemprego natural, subestima-se o PIB potencial e, em consequência, o hiato do produto. Os tais efeitos cíclicos calculados são, por isso, inferiores ao que se esperaria, o que faz com que o défice estrutural calculado seja maior.

De novo, olhemos para Portugal: as estimativas do hiato do produto da Comissão dizem que a economia se encontrava acima do potencial entre 2017 e 2019 e voltou a estar desde 2022. Faz algum sentido, tendo em conta os níveis de desemprego e subutilização do trabalho neste período? Todo o argumento é absurdo: não só não é credível que o suposto nível "natural" de desemprego na economia portuguesa tenha passado de 14% para 6% em poucos anos, como não há nenhuma justificação sólida para que consideremos os atuais 6% de desemprego demasiado baixos.

Em resumo: os problemas associados ao cálculo destas variáveis levam a que o défice estrutural dos países seja sobre-estimado, indicando uma situação orçamental mais negativa e, por isso, um reforço das restrições impostas pela Comissão à despesa pública. É preciso ter em conta que nenhuma destas variáveis é observável: todas são conceitos cuja medição envolve várias hipóteses, é alvo de enorme controvérsia e nem as principais instituições chegam a acordo sobre a melhor forma de as medir. Mas as suas consequências são bastante visíveis.

O que é que podemos concluir? Essencialmente, que a taxa natural de desemprego é um péssimo guia para a política económica: o conceito tem fraca sustentação teórica e as tentativas de estimação empírica estão envoltas numa série de problemas. A ideia de que existe uma taxa "natural" de desemprego serve para desencorajar políticas de promoção do pleno-emprego e favorecer a redução dos direitos laborais. Na Zona Euro, tem servido ainda para reforçar as restrições orçamentais dos países. Já é tempo de a abandonar.

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

O imobiliário na sua bolha


O Portugal Real Estate Summit é considerado o «o maior evento de investimento imobiliário da Península Ibérica» e realizou-se no Estoril na semana passada. Numa das sessões, foi referido que «Portugal vai continuar a ser um destino atrativo para os investidores internacionais» e que, apesar da diminuição das vendas e de o ritmo de crescimento dos preços ter abrandado, «o mercado residencial está a registar uma evolução positiva este ano, (...) com as pré-vendas a manterem-se muito fortes (acima de 50%)». Sendo ainda salientado, entre outras considerações, o «impacto extremamente positivo» no mercado português de medidas como a «criação dos Vistos Gold».

É certo que também foram sinalizados fatores críticos, tidos como impeditivos de um investimento ainda maior no mercado português, com destaque para a «inconstância nos prazos e licenciamentos», a «incerteza que existe na lei do arrendamento» ou a questão dos impostos. Matérias que, no seu conjunto, são apontadas como «os principais desafios para quem investe». Seja como for, garante-se, «os investidores estão de "olhos postos em Portugal"».

O imobiliário tem hoje no nosso país uma importância muito maior que há uma década atrás. Bastará referir, por exemplo, que se trata da atividade económica com maior aumento em termos de volume de emprego entre 2008 e 2022 (+88%), passando, segundo a Pordata, de cerca de 27 mil para 50 mil trabalhadores neste período. E é natural, portanto, que as respetivas empresas e seus profissionais encarem com bons olhos os elevados preços da habitação e o investimento estrangeiro que os impulsiona, por mais que os mesmos dificultem o acesso das famílias à habitação.

O curioso é constatar um alinhamento perfeito entre as reivindicações do setor e as propostas da Iniciativa Liberal (IL) em matéria de política de habitação. Não é por acaso, de facto, que a IL insiste, de forma particularmente enfática, na tese simplista da «falta de casas», rejeitando por completo o impacto das novas formas de procura, especulativas, na atual crise de habitação. É que enquanto puserem todas as fichas nessa tese, a especulação imobiliária internacional e os investimentos turísticos em Alojamento Local nas grandes cidades estarão a salvo.

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

30 de setembro: Casas para Viver


Realizam-se no próximo sábado, 30 de setembro, as manifestações pela Habitação, convocadas pela Plataforma Casa Para Viver, que pretende assim, depois da manifestação de 1 de abril e da concentração de 22 de junho, «voltar a chamar a atenção» para esta questão e mostrar que as medidas do Governo são «uma mão cheia de nada».

As manifestações terão lugar em diversas localidades, de norte a sul do país, de Braga a Portimão, de Lisboa a Viseu, de Aveiro à Covilhã. do Barreiro a Faro. Para divulgar a iniciativa, a associação Chão das Lutas expôs no passado domingo vários cartazes no Largo do Intendente, em Lisboa, na sequência do pedido feito a diversos ilustradores, como forma de mobilizar mais pessoas para a causa.

O desemprego nunca é natural


Esta manchete do Público de ontem torna visível como a hegemonia neoliberal perdura. Infelizmente, aceita-se aí o conceito de “taxa natural de desemprego”, originalmente forjado por Milton Friedman. É preciso lembrar que pleno emprego é quando quem quer trabalhar tem emprego. Estamos longe do pleno emprego e logo do mais baixo que é desejável e possível.

Nada é natural em economia e muito menos a ideologia com impacto na política económica. Esta taxa arbitrária destina-se precisamente a naturalizar uma suposta impotência de uma política económica orientada para o pleno emprego e a esconder o programa ineficiente e injusto: é preciso usar o desemprego para manter os trabalhadores sem veleidades reivindicativas para também assim estabilizar os preços. Isto é parte de uma opção de política, com óbvia declinação de classe, dominante a partir de 1979, aquando do brutal aumento nas taxas de juro decidido por Paul Volcker da Reserva Federal dos EUA. 

Convém mesmo tornar invisíveis as várias formas de austeridade, da orçamental à monetária, e o seu impacto negativo no que é decisivo: a procura e o emprego. Portugal já teve taxas de desemprego mais baixas e os direitos laborais eram superiores ao actuais, vejam lá. E, sim, há um antes e um depois do euro, que também não é natural, nestas e noutras matérias. 

Naturalizar é uma forma de se tentar despolitizar. E isto é uma forma intensamente ideológica de se fazer política económica, de resto naturalmente favorável a uma redistribuição do trabalho para o capital.

7º Encontro Anual de Economia Política - Chamada de comunicações


"A Associação Portuguesa de Economia Política (EcPol) anuncia a chamada de comunicações para o 7º Encontro Anual de Economia Política a ter lugar no ISEG, Lisboa, nos dias 25 a 27 de janeiro de 2024, com o tema Economia Política e Democracia: Reimaginar o mundo nos 50 anos do 25 de Abril.

O Encontro visa juntar todos/as aqueles/as que, a partir das mais diversas áreas disciplinares e abordagens, entendem os fenómenos económicos como sendo eminentemente configurados por fatores de ordem social, política, jurídica, cultural, tecnológica e ecológica e devendo ser estudados nos seus contextos institucionais, históricos e geográficos.
"

A chamada de comunicações está aberta até 10 de outubro e estão todos/as convidados/as. Mais informações aqui.

terça-feira, 26 de setembro de 2023

Amanhã na FEUC, em Coimbra


Promovida pelo núcleo de docentes de História Económica e Social da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC) e pela Associação Portuguesa de Economia Política (EcPol), realiza-se amanhã, naquela faculdade (Sala Keynes), a partir das 9h30, a conferência «A economia portuguesa e a crise de 1973».

Historiadores, economistas e sociólogos vão assim debater «os principais aspetos do impacto da crise petrolífera internacional na economia portuguesa, o final do marcelismo e os impasses da modernização do país nas vésperas da Revolução de Abril». A entrada é livre, apareçam.

Não há lenha que detenha o FMI

No início deste ano, o Fundo Monetário Internacional (FMI) publicou um relatório em que apresentava uma conclusão surpreendente: "em média, as estratégias de consolidação orçamental não reduzem o rácio da dívida pública sobre o PIB". A conclusão não surpreende propriamente pelo conteúdo, mas sim pelo facto de ser enunciada pela instituição que foi a campeã da austeridade ao longo da última década. No relatório, o fundo reconhecia ainda que o fracasso dos programas de austeridade neste domínio se devia, em parte, ao facto de "a consolidação orçamental reduzir o crescimento" da economia.

Além de ser um entrave ao desenvolvimento económico, a austeridade tem também profundos impactos distributivos: um estudo de quatro investigadores da Universidade de Boston, publicado em 2021, avaliou o efeito dos programas de ajustamento do FMI em 79 países em desenvolvimento ao longo das últimas duas décadas e concluiu que a imposição de medidas de austeridade mais rígidas está associada ao aumento das desigualdades e da pobreza. De acordo com este estudo, os programas de austeridade tendem a concentrar o rendimento nacional nos 10% do topo, ao passo que todos os outros escalões saem a perder.

No entanto, muito pouco parece ter mudado. Uma análise da Human Rights Watch (HRW), que avaliou os empréstimos concedidos pelo FMI a 38 países desde o início da pandemia e as condições associadas aos mesmos, conclui que "apesar das suas promessas de aprender com os erros do passado, o FMI está a promover políticas que têm um longo historial de exacerbação da pobreza, de desigualdade e de enfraquecimento de direitos."

A esmagadora maioria dos empréstimos concedidos tem como condição explícita o "aperto do cinto" por parte dos Estados que os recebem. Mais de metade prevê o aumento de impostos ou a imposição de limites ou cortes aos salários dos trabalhadores da administração pública, minando também a qualidade dos serviços públicos nestes países. Segundo a HRW, as promessas feitas pelo FMI após a pandemia sobre o seu compromisso com a mitigação dos impactos perversos da austeridade "falharam ou foram ineficazes", colocando em causa os "direitos económicos, sociais e culturais" das populações.

A maioria dos programas do FMI foi dirigida a países do Sul global, que foram particularmente afetados pela pandemia. No entanto, os princípios são aplicados de forma generalizada: para Portugal, por exemplo, um dos últimos relatórios recomenda que, apesar da descida significativa do rácio da dívida pública em apenas dois anos, o país continue a restringir a despesa pública pelo menos até... 2028. Apesar da retórica de mudança, o FMI continua a insistir numa política que sabe que não resulta em reduções da dívida, mas que é bastante eficaz a transferir rendimentos da base para o topo.

domingo, 24 de setembro de 2023

Factos sólidos e rigorosos há muitos, Dr. Gonçalo Matias

Em artigo recente no Diário de Notícias, o Presidente da fundação pingo doce, vulgo FFMS, Gonçalo Matias, escreveu sobre A crise da habitação. Na sua perspetiva, e referindo um estudo patrocinado pela fundação que dirige, trata-se de uma crise que «é, no essencial, resultado da falta de oferta», reconhecendo apenas vagamente um certo aumento da procura, «motivada por diversos fatores, sobretudo sociológicos e de estrutura familiar», mas sem os especificar.

Uma premissa que lhe permite afirmar, logo de seguida, que «a procura de habitação por estrangeiros tem um efeito diminuto», sugerindo que «a sua limitação não terá grande efeito do ponto de vista da redução da procura», podendo, isso sim, «prejudicar o país no plano reputacional e de atratividade de investimento estrangeiro, tão necessário ao nosso desenvolvimento económico».

Talvez valesse por isso a pena, de facto, que o presidente da FFMS tomasse boa nota de um relatório recente do Banco de Portugal, citado neste artigo de José Soeiro, que conclui que, «nos últimos 10 anos, o aumento significativo da participação de compradores não residentes marcou o mercado imobiliário residencial em Portugal». Ou seja, confirmando o que há muito se sabe mas que, por razões diversas, certos setores teimam em não reconhecer: ocorreu uma mudança profunda no mercado de habitação, indissociável do investimento imobiliário estrangeiro.


Os mais recentes dados do INE, aliás, confirmam isso mesmo. Não só a percentagem de compradores estrangeiros tem vindo a subir em número e em montante (de 8,4 para 12,3% e de 4,5 para 7,2%, entre 2021 e 2023), como o valor médio das transações por compradores estrangeiros tem igualmente evoluído em crescendo (sobretudo a partir de 2021), superando sempre, e de forma expressiva, os valores registados no caso de compradores nacionais.

Não é um exclusivo nacional. O investimento imobiliário estrangeiro tem tido uma forte incidência em países do sul da Europa (nomeadamente Espanha, Itália e Portugal), sendo que «o mercado português foi o que registou maior aumento» em 2022, segundo a Savills, considerando a consultora que «os fundamentos do mercado continuarão fortes e a atrair investidores».

Dir-se-á que, ainda assim, os valores de investimento imobiliário internacional são pouco expressivos. E esse é um segundo problema: ao desvalorizar o seu impacto na subida dos preços, ignora-se a incidência territorial deste investimento (como evidencia o caso do Algarve, onde a procura disparou em 2023). E esquece-se que o investimento imobiliário estrangeiro é apenas uma parte da atual procura especulativa de habitação, que inclui o impacto do investimento turístico (e a consequente supressão de casas para fins residenciais), bem como o redireccionamento das poupanças e rendimentos das famílias para o setor, sobretudo a partir de 2013.

Mas claro, é bem mais fácil, e sobretudo conveniente, resumir a questão à fórmula simplista da «falta de casas», ignorando que a variação do número de famílias e de alojamentos, na última década, não justifica a subida vertiginosa dos preços. Refere o Presidente da FFMS, no seu artigo, que «o importante debate sobre habitação (...) deve assentar em factos sólidos e rigorosos». E tem razão. Só que factos sólidos e rigorosos há muitos. E apenas considerando a sua diversidade, e o necessário pluralismo de perspetivas, se pode garantir um verdadeiro debate sobre a questão.

sábado, 23 de setembro de 2023

O BCE causa dor na economia


Chama-se Tim Gurner e é um dos maiores capitalistas australianos do imobiliário. Recentemente, adquiriu fama mundial ao expor, de forma tão brutal quanto clara, a economia política de todas as iniciativas liberais: “O desemprego tem de aumentar (...) Tem de haver dor na economia. Devemos lembrar as pessoas que trabalham para os empregadores e não o contrário (...) Temos de eliminar a atitude de arrogância dos empregados, o que passa por agredir a economia. E é isso que os poderes públicos têm feito, por forma a restaurar uma certa normalidade”. 

Pouco tempo depois, a presidente do Banco Central Europeu (BCE), Christine Lagarde, anunciou a décima subida consecutiva da taxa de juro, o preço mais diretamente político no capitalismo, atingindo 4%, o valor nominal mais elevado da história do euro, num ciclo que nem sequer tem paralelo na história do antecessor do BCE, o Bundesbank alemão, desde 1948, como se assinalava no Financial Times

Na sua conferência de imprensa, Lagarde teve os cuidados ideológicos que faltaram a Gurner e que aliás já o obrigaram a um ofuscador pedido de desculpas: “As condições de financiamento tornaram‑se mais restritivas e estão a refrear cada vez mais a procura, o que constitui um importante fator para fazer a inflação regressar ao objetivo”. A tradução de classe, com todo o realismo capitalista, é óbvia.

O resto da crónica pode ser lido no setenta e quatro.

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

É isto que passa por investigação no BCE?


No post anterior tinha deixado uma ligação para este assunto e comentado o facto da proposta apresentada pela Comissão Europeia para a reforma das regras de governação económica da UE ignorar olímpica e ideologicamente os factos da economia e as melhores conclusões da ciência económica. 

Porque é que Reinhart e Rogoff estão errados? Neste artigo responde-se à questão. Neste outro, de passagem, também.

Eles insistem, nós também.

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

A exigência dos proprietários faz sentido?


Entre protestos e ameaças veladas, tem-se assistido à reação de associações representativas dos proprietários a medidas para o setor. Mais recentemente, a propósito da atualização das rendas para 2024, os senhorios defendem a simples aplicação da lei que indexa o aumento à inflação registada (6,94%, apurados pelo INE em agosto). Esta oposição à limitação da atualização das rendas não é nova. A questão colocou-se igualmente para as rendas de 2023, tendo o governo fixado um teto de 2% (em vez do valor da variação média do índice de preços do INE, de 5,43%).

Alegando estar em causa um novo «congelamento» das rendas (e não a limitação da sua atualização), a Associação Lisbonense de Proprietários (ALP) considera que o resultado da não aplicação da lei será «dramático», avisando que a maior parte deles «deixarão de colocar as casas no mercado». Por sua vez, António Frias Marques, da Associação Nacional de Proprietários (ANP), chegou mesmo a sugerir que o teto de 2% levou a que as rendas aumentassem «exponencialmente» e que muitos senhorios, «assim que puderam, se opuseram à renovação dos contratos».

A estranheza que estas posições suscitam incide, desde logo, na ideia de que os senhorios deviam ser poupados ao impacto da inflação, que recai sobre os cidadãos e a economia em geral. Esquecendo, além disso, que a subida das rendas nos últimos anos superou a dos salários, não estando por isso em causa - com a limitação do seu aumento - uma perda de rendimento que justifique retirar (ou não colocar) casas do mercado. De facto, a fazer fé na Numbeo, e deduzindo contribuições e impostos, a subida das rendas permitiu aos senhorios de Lisboa um proveito extra de 5,2 mil euros entre 2015 e 2022, tendo os salários registado um acréscimo de apenas 2,2 mil euros, no mesmo período.

Talvez o cerne da questão seja mesmo uma certa habituação à quase inexistência de mecanismos de regulação favoráveis aos inquilinos, num país onde o Estado, historicamente, nunca teve uma política pública de habitação digna desse nome, apesar do que nos querem fazer crer os jogos de ilusionismo das iniciativas liberais.

Tudo começou no cavaquismo


Esta semana ficámos a saber, através do Público, de um estudo que ilustra uma dimensão da economia política do individualismo possessivo – causadora de poluição, morte e pressão negativa na nossa balança corrente –, que tem dominado este país:

“A rede ferroviária portuguesa diminuiu 18% entre 1995 e 2018 – o terceiro maior declínio entre um grupo de países que inclui a União Europeia a 27, o Reino Unido, Noruega e a Suíça (...) No mesmo período, a rede rodoviária em Portugal cresceu 2378 km no mesmo período, ou seja, 346% – estamos também em terceiro lugar, mas entre os países em que o número de estradas mais aumentou.”

Infelizmente, o estudo não cobriu o período do cavaquismo, quando esta arte de desgovernar começou. Tem a palavra o jornalista Carlos Cipriano, que escreve, e bem, sobre ferrovia há décadas: 

“Em 1988 o governo de Cavaco Silva apresentou o Plano de Modernização e Reconversão dos Caminhos de Ferro (1988-1994) que passava por encerrar linhas e modernizar outras. Modernização quase não houve, mas as linhas foram encerradas: de 3608 quilómetros de rede ferroviária no início do período, chegou-se ao fim com 2850 quilómetros. Enquanto isso, o número de quilómetros de auto-estradas em Portugal duplicava de uns modestos 314 quilómetros em 1988 para 687 em 1995.”

Recordo-me do encerramento da estação ferroviária de Viseu, uma cidade familiar, entre 1988 e 1990, tornando-a na maior cidade europeia sem ligação ferroviária: primeiro foi a linha do Dão (entre Santa Comba Dão e Viseu) a ser encerrada e depois foi a linha do Vouga, na parte entre Sernada e Viseu.

Sim, a desvalorização do que é público começou no cavaquismo. Têm sido décadas de míopes iniciativas liberais até dizer chega. 

E a linha da Beira Alta já não é em novembro que reabre.

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Notas sobre a reforma da governação na UE

Dos múltiplos problemas que a zona euro e a União Europeia (UE) enfrentam, três deles, estruturais, merecem, na minha perspetiva, ser destacados. 


O primeiro deles é a necessidade de uma transição suficientemente rápida para um modelo económico ambientalmente sustentável, que proteja a vida, o que é irrealizável num quadro de regras de governação que, desprovidas de fundamento económico, constrangem e impossibilitam o investimento que, para aquele fim, é necessário realizar. 

Os outros dois são problemas de divergência económica circular e cumulativa. 

No interior da zona Euro, trata-se da divergência que resulta do comércio praticado de forma totalmente irrestrita numa zona económica heterogénea e amarrada a uma política monetária comum, o que cava um fosso, que se aprofunda continuamente, entre o centro/norte e a periferia, entre países credores e países devedores, e cria incessantemente dívida externa e, consequentemente, dívida privada e pública. 

Na relação da UE com o resto do mundo, a divergência resulta de decisões estratégicas tardias, porque meramente reativas, ou simplesmente más, forçadas pela necessidade de resposta às questões colocadas pelo recuo da globalização decorrente da pandemia e pela política protecionista adoptada por Trump e reforçada por Biden. Divergência que é também consequência da guerra na Europa. Em resultado das sanções, o preço a que se paga a energia, a ocidente dos Urais e até à nossa costa atlântica, tornou-se comparativamente mais elevado, a que acresce a maior dificuldade deste espaço económico em aceder a mercados terceiros. Assim, também no plano externo à UE, a divergência começou a cavar um fosso. A UE, de um lado, e a China e os EUA, do outro. Circunstância que, à escala internacional, tende a colocar a UE numa posição idêntica à que, no seu seio, se encontra a periferia. 

Neste contexto, onde decide focar-se a Alemanha, perdão, a Comissão e os economistas que nos trouxeram até aqui? No endividamento público. Num problema artificialmente criado pelos próprios. 

A proposta da Comissão relativa a novas regras orçamentais introduz uma abordagem, que é apresentada como nova, para classificar os países em termos de endividamento público com base numa Análise da Sustentabilidade da Dívida (ASD), dividindo-os em grupos de alto, médio e baixo risco. Objetivo semi-declarado? Inscrever a austeridade, ainda mais profundamente, nas regras de governação económica e social, assumida ‘razão de ser’ do novo ordenamento proposto. 

Isto apesar dos mais de 260%/PIB de dívida pública do Japão, que não tem qualquer problema de “sustentabilidade” da sua dívida. 

Isto apesar da fraude de Reinhart e Rogoff ter revelado o que nunca devia ter deixado de ser claro: pura e simplesmente não há um limite numérico pré-determinado que possa definir para toda e qualquer economia um nível adequado de endividamento público. 

Isto apesar de até o FMI, disponibilizando evidência empírica, reconhecer que a austeridade não diminui a dívida

Isto apesar de, desde o fim do padrão-ouro, um Estado monetariamente soberano não enfrentar problemas de incumprimento na dívida denominada na sua moeda.


“Concordo plenamente com Christian Lindner quando diz: ‘Os mercados de capitais não distinguem entre os motivos nobres ou menos nobres pelos quais a dívida é contraída e aquilo em que é investida. Os mercados simplesmente avaliam se é sustentável ou não é sustentável.’ Um forte argumento a favor da utilização da análise de sustentabilidade da dívida”, defende Blanchard

Sem surpresa, e num só tuite, o ordoliberal ministro das finanças alemão mostra quem estabeleceu os termos da discussão. Os termos de quem, de facto, manda na UE: alegadamente, os mercados, e apenas os mercados, sozinhos, decidem da sustentabilidade das finanças públicas e fazem-no em função de critérios exclusivamente técnicos e neutros, pretensamente ditados por uma análise de sustentabilidade que gera conclusões inequívocas e unívocas. Tudo errado. Tão errado como necessário, contudo, ao colete de forças da política única que, de facto, temos na UE. 

Sem surpresa, o antigo economista-chefe do FMI concorda com o ordoliberal ministro das finanças alemão. 

O que faz este tipo de análises a que Blanchard e Lindner se referem é, essencialmente, comparar a taxa de crescimento de uma economia nacional (g) com a taxa de juro que paga a sua dívida pública (r). Comparação esta realizada em termos nominais, o que significa que inflação conta, e muito, como mostra a evolução recente da dívida portuguesa, cujo recuo se deve, em grande medida, à parte nominal do crescimento do PIB. 

Em termos aritméticos, nesta forma de analisar a sustentabilidade, se g = r, o crescimento do PIB nominal é suficiente para pagar os juros sem necessidade de cobrar mais impostos ou diminuir a despesa. Ou seja, sem alteração da posição orçamental, o que pode ser económica e/ou politicamente impossível de fazer. Por isso, nesta análise, todas as situações em que o crescimento (g) é igual ou maior que a taxa de juro (r) indicam uma dívida pública sustentável e o inverso nas restantes possibilidades. 

Para lá da aritmética, contudo, na análise da sustentabilidade há uma óbvia dimensão política associada à escolha das formas de condicionar a evolução do crescimento (g) e da taxa de juro (r), que pode ser mantida na sombra. 

“Discordo totalmente de Blanchard e de Lindner. A sustentabilidade da dívida pública dependerá em grande medida do facto de a dívida ser utilizada para investimentos que aumentam o potencial de crescimento de uma economia e a tornam mais resistente ou para financiar coisas que não o fazem”, responde Uli Volz

De facto, no que a crescimento (g) diz respeito, a sustentabilidade da dívida depende do multiplicador orçamental, ou seja, do efeito da despesa pública na evolução do PIB. 

Multiplicador orçamental este que, em 2013, colocou Blanchard no centro do debate político quando, na qualidade de economista principal do Fundo Monetário Internacional (FMI), se viu obrigado a reconhecer “que o fundo falhou nas suas previsões para a Grécia e para outras economias europeias, porque não compreendeu bem como é que os esforços de austeridade do governo poderiam prejudicar o crescimento económico”. Mas a Economia que temos é, infelizmente, isto. Se não fosse, a reputação de Blanchard dificilmente continuaria a permitir-lhe estas tiradas influentes. 

A clarificadora resposta de Uli Volz, contudo, não trata da outra parte da equação que determina a sustentabilidade da dívida pública, a taxa de juro. Uma variável que é essencialmente o resultado da decisão – plenamente discricionária na zona euro - do banco central. 

Em 2011, este tipo de desenho institucional, cujas disfuncionalidades esta proposta da Comissão acentua, permitiu uma intervenção não democrática, passiva mas nem por isso com menor alcance, na periferia da zona Euro. Tenho para mim que seria bom que todos compreendêssemos que a decisão do banco central de intervir e, no caso, de não intervir, no mercado de dívida pública, tendo consequências na capacidade de financiamento do Estado, é sempre, necessariamente, uma decisão política, com efeitos políticos

As regras propostas pela Comissão não só carecem de fundamento económico como não resolvem, pelo contrário, nenhum dos três problemas fundamentais enunciados no início deste texto. 

Draghi, insuspeito de antipatia pela austeridade, mostra estar mais atento. Não descolando inteiramente destas regras, vem a este debate dizer que a proposta da Comissão é insuficiente e que é necessário um orçamento comum, propondo, por isso, que se avance para uma UE Federal. Draghi sabe de experiência vivida que a arquitetura do Euro é disfuncional e que as divergências acima enunciadas podem tornar-se insanáveis. 

As elites europeias, entretanto, receosas, alardeiam uma mais que justificada preocupação com o resultado das suas políticas. 

Alguém imagina a opinião pública alemã a permitir contribuições necessariamente muito avultadas para um orçamento federal? E alguém imagina um orçamento federal sem uma perda total da soberania democrática nacional?

Razões para inquietação não faltam. Deixar a política entregue aos mercados e a instituições supranacionais pretensamente  independentesvulnerabiliza, não só, a economia, como a própria democracia.

terça-feira, 19 de setembro de 2023

Centeno no cortejo fúnebre


Fomos ontem informados do seguinte: “Centeno diz que inflação é mais injusta do que medidas para a combater”. Como membro do cortejo fúnebre da economia portuguesa, Centeno diz o que for preciso para tentar legitimar o poder de quem manda no Banco que não é de Portugal. 

A inflação moderada em curso ajuda os devedores e prejudica os credores, erodindo o valor real da dívida. Nós somos uma economia endividada. A inflação não galopante e relativamente previsível é neutra na outra relação antagónica fundamental: entre trabalhadores e patrões. Na realidade, estando associada a taxas de desemprego mais baixas, pode ajudar os trabalhadores. Se os salários diretos e indiretos estivessem indexados, a vida seria facilitada.

Pelo contrário, a subida da taxa de juro, a pretexto de um dogmático objetivo para a inflação de 2%, é favorável aos credores e, ao gerar desemprego, prejudica os rendimentos e as reivindicações dos trabalhadores. A evidência empírica sugere que subidas da taxa de juro aumentam a desigualdade económica e logo a injustiça social. 

E nos Estados periféricos sem soberania económica de qualquer tipo, a subida da taxa de juro decidida pelo BCE compele à intensificação da injusta e ineficiente austeridade. 

Cortejo fúnebre, mesmo.

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Para além do pacto estúpido


Após décadas de absurdo económico e de imposições injustas e contraproducentes, as regras de governação económica vão finalmente ser alteradas. O que não está claro é se as novas regras serão mais do mesmo, pior do mesmo ou alguma coisa realmente diferente. Este Sábado, estarei a organizar uma conferência sobre Governação Económica e sobre algumas das mudanças necessárias para que as regras europeias, no mínimo, não atrapalhem.

Em cima da mesa estarão a discussão sobre (1) o desenho de estratégias orçamentais que não falhem em todos os objetivos, como as que tivemos durante a troika, (2) uma verdadeira proteção do investimento público e do seu papel estratégico e (3) a necessária centralidade das instituições democráticas nacionais nas escolhas determinantes para o futuro do nosso país. E dos outros. Os painéis são plurais e qualificados. O debate é garantido.

A entrada é livre e a inscrição é aqui.

A emigração dos jovens e as políticas responsáveis

 

Mais de metade dos jovens a trabalhar em Portugal admite emigrar, de acordo com uma sondagem recente da Aximage. Entre os mais de oitocentos jovens entre os 18 e os 34 anos que responderam ao inquérito, a instabilidade financeira e os problemas no acesso à habitação são os principais motivos de preocupação apontados. No Expresso, o economista Pedro Martins escreveu um artigo de opinião em que lamenta os “níveis de emigração elevados” e argumenta que “trabalhar em vários dos outros países europeus significa, em geral, não só dobrar ou triplicar o salário de Portugal, mas também ter acesso a contratos de trabalho mais estáveis, cargas fiscais mais baixas, melhores serviços públicos, menos incertezas sobre pensões e habitação a preços mais acessíveis.”

O diagnóstico é maioritariamente acertado: embora não seja verdade que a carga fiscal seja maior em Portugal do que noutros destinos (na verdade, o IRS pago por um salário médio em Portugal é bastante inferior à média europeia), vários dos fatores listados são relevantes. O que Pedro Martins omite são os responsáveis políticos pelas condições que a economia portuguesa oferece hoje aos jovens.

O resto do artigo pode ser lido no Setenta e Quatro.

domingo, 17 de setembro de 2023

Antiliberalismo, antifascismo


Esta semana ficámos a saber que os liberais vão votar a favor da moção de censura dos fascistas do Chega. É a enésima confirmação - liberais até dizer chega

Há método e racionalidade nas suas formas de proceder, numa espécie de divisão de trabalho entre IL e Chega, parte de uma comum radicalização das culturas das direitas. Esta vai desde a rua, que procuram começar a disputar à esquerda, ainda sem sucesso, até às salas alcatifadas de grandes escritórios de advogados e de certas empresas, onde ninguém os trava. 

Com um programa pleno de convergências, colocam-nos num plano inclinado de degradação institucional, que já vem pelo menos do tempo de Pedro Passos Coelho, por quem, afinal, esperam: a economia política e a política económica são decisivas neste plano, tornado cada vez mais inclinado pelas políticas sociais-liberais de austeridade do actual executivo, que governa com maioria política absoluta para uma minoria social. No fundo, estamos perante duas expressões políticas e organizativas das fracções mais reaccionárias do capital, apostadas em terminar o trabalho do governo da Troika.

Atentem no poder capitalista instalado, atentem, por exemplo, em Pedro Ferraz da Costa e no financiamento que, quase de certeza, vem atrelado a este diagnóstico: “A Iniciativa Liberal e o Chega são quem tem, neste momento, alguma vontade forte de querer mudar coisas”.

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Sem tugir, nem mugir

O BCE subiu a taxa de juro para 4%, pela décima vez consecutiva, colocando-a num nível sem precedentes na zona Euro e num contexto de uma economia cada vez mais débil

Não nos esqueçamos que subir a taxa de juro não baixa o preço da energia e não resolve problemas do lado da oferta.

Desde que o BCE começou a subir taxa de juro, quanto aumentou a prestação mensal do crédito à habitação? Neste empréstimo, a título de exemplo, o aumento foi de 80%.


E é isto que significa para nós a ‘plena discricionariedade’ estatuária do pós-democrático BCE: encaixar decisões com efeitos dramáticos para a economia portuguesa e não ter a possibilidade de tugir ou mugir.

Teoria prática



O país é que nunca mais cresceu, curiosamente – os famosos 20 anos de estagnação coincidem exactamente com a adesão ao euro, uma moeda que está infinitamente “acima das nossas possibilidades” (...) Vamos pagar caro os erros do BCE, em nome de uma ortodoxia financeira que não está a dar resultados, a não ser a recessão.

Quando economistas do cortejo fúnebre da economia portuguesa – de António Nogueira Leite a Luís Aguiar-Conraria – apodam uma análise de Ana Sá Lopes de “estúpida” sabemos que ela está a acertar em termos da economia política e da política económica. Estes economistas liberais até dizer chega fingem que a política monetária não é política, ou seja, que não é parte do conflito distributivo entre trabalhadores e patrões ou credores e devedores. 

Estimou-se que o BCE, ainda antes do décimo aumento da taxa de juro, irá remunerar anualmente o rentismo financeiro dos bancos da zona euro em mais de 150 mil milhões de euros. As famílias desta periferia podem continuar a ser expropriadas financeiramente e a arriscar perder os seus empregos. 

Pelo contrário, eles estão seguros com esta teoria prática euro-liberal.

Pedalar é preciso


De acordo com os dados recentemente divulgados pelo Eurostat, Portugal continua a ser o maior produtor de bicicletas da União Europeia, com cerca de 2,7 milhões unidades fabricadas no ano passado, contribuindo para as exportações com um valor de 800M€. À escala europeia, o nosso país detém assim uma quota de produção a rondar os 18%, valor que representa um acréscimo de 8 pontos percentuais face à quota registada em 2012. De resto, a tendência na UE é de crescimento do setor desde 2017, passando-se de cerca de 10 milhões de bicicletas produzidas nesse ano para um valor próximo dos 15 milhões, em 2022 (cerca de +48%).

Face aos enormes desafios colocados pelas alterações climáticas, mas também pelo que estes dados revelam sobre as possibilidades de revitalização do nosso tecido verdadeiramente produtivo, esta é uma muito boa notícia. Como lembrava neste blogue há uns meses a Vera Ferreira, citando Iván Illich, «o socialismo exige, para a realização dos seus ideais, um certo nível de energia: não pode vir a pé, nem pode vir de carro, mas somente à velocidade da bicicleta». Pedalemos pois, que pedalar é preciso.

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Introdução à economia política liberal


O desemprego tem de aumentar (...) Tem de haver dor na economia. Devemos lembrar as pessoas que trabalham para os empregadores e não o contrário (...) Temos de eliminar a atitude de arrogância dos empregados, o que passa por agredir a economia. E é isso que os governos têm feito, por forma a restaurar uma certa normalidade.

A economia política das iniciativas liberais realmente existentes foi resumida nesta intervenção, incluindo a política dos bancos centrais ditos “independentes”, peça essencial das vitórias desta gente em lutas de classes que decorrem sempre numa economia monetária de produção. 

quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Ilusionismos das iniciativas liberais

Na apresentação do seu pacote para a habitação, no qual, entre outras medidas, se defende que os privados reabilitem os imóveis de propriedade pública e os coloquem no mercado, «através de concursos para a sua privatização», o presidente da Iniciativa Liberal (IL), Rui Rocha, afirmou que o mercado foi «muito condicionado [pelo Estado] nos últimos anos e nas últimas décadas e é precisamente por isso é que os resultados estão à vista».

Os resultados que estão à vista são, evidentemente - e nisso é fácil estar de acordo com o presidente da IL - uma profunda crise de habitação, que afeta não só Portugal mas também a generalidade dos países europeus. A lata suprema da IL é, contudo, achar que a crise resulta do facto de o mercado ter sido «muito condicionado» pelo Estado «nos últimos anos e nas últimas décadas».

Do que a IL e Rui Rocha convenientemente se esquecem é que, por essa Europa fora, não só a tendência nas últimas décadas foi de alienação do parque habitacional público, como o peso relativo da despesa pública na promoção direta de alojamentos é muito inferior à despesa em Saúde, Educação e Proteção Social. De facto, o Eurostat mostra que se entre 1995 e 2021 a despesa em Habitação é de apenas 2%, as percentagens de despesa na Saúde, Educação e Proteção Social rondam, respetivamente, 14%, 10% e 40% do total. Estado a mais na habitação, a sério?

Quanto a Portugal, e em linha com os países do sul europeu (com Estados Sociais tardiamente criados), não só a oferta pública de habitação é comparativamente exígua (apenas 2% do total de alojamentos), como os níveis de regulação do arrendamento (e do mercado de compra e venda, já agora), são praticamente inexistentes.


Mais: se há momento na história da política habitacional do nosso país em que a despesa pública global no setor foi mais expressiva, é justamente o período de apoios públicos massivos à aquisição de casa própria, que não são outra coisa que intervir, subsidiando, através dos privados. Nada que impeça os nossos liberais, contudo, de falar em «falta de confiança» por parte do mercado, alegadamente «muito condicionado» pelo Estado. É preciso ter lata.

De resto, as propostas da IL são apenas, portanto, mais do mesmo. A crença no mercado como mecanismo eficaz de provisão (e o Estado que apoie e não atrapalhe), com os «resultados que estão à vista». O pacote da IL é uma espécie de dose requentada das políticas essenciais seguidas nas últimas décadas e que nos trouxeram até aqui. A uma crise a que se somam os desafios colocados pelas novas procuras especulativas (de um investimento estrangeiro potencialmente insaciável à subtração de habitações para fins turísticos), e que a IL não quer enfrentar, preferindo tentar criar a ilusão de que o problema é a regulação pelo Estado e não um mercado a funcionar em roda livre.

terça-feira, 12 de setembro de 2023

As iniciativas liberais até dizer chega matam

 Fonte

O livro Pinochet’s Economists de Juan Gabriel Valdés é a história intelectual da formação da economia política neoliberal no Chile, do nascimento dos Chicago Boys, da formação doutoral bem financiada durante décadas no Departamento de Economia da Universidade de Chicago à transferência de homens armados com essa formação para o bem conectado Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica do Chile.

O programa económico neoliberal da ditadura militar, o “tijolo”, foi ali criado. Os quadros económicos da ditadura militar foram ali recrutados. Um dos personagens mais sinistros desta economia que matou chama-se Sergio de Castro, de professor a ministro, depois da “imensa alegria” de ver La Moneda ser bombardeada. Teve a imensa alegria de ser um a cortar as despesas de educação, de saúde ou de habitação em mais de 50% e de ver a economia a afundar 12% em 1975 e a colapsar ainda mais em 1982-1983. Em 1986, o PIB per capita chileno era ainda inferior ao do início da década anterior, como sublinha José Luís Fiori

Durante a ditadura, o emprego e o poder de compra dos salários nunca recuperaram da desvalorização social imposta a tiro. A ditadura teve de socializar as perdas dos bancos na crise dos anos 1980. A indústria também não recuperou. A pobreza chegou a atingir mais de metade dos chilenos e o Chile tornou-se um dos países mais desiguais do mundo. Houve uma maciça transferência de rendimentos do trabalho para o capital. 

As iniciativas liberais, que começaram há cinquenta anos, matam. São um desastre para a grande maioria. E eles sabem isso, até porque trabalham para a minoria.

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Vivem


Trabajadores de mi Patria, tengo fe en Chile y su destino. Superarán otros hombres este momento gris y amargo en el que la traición pretende imponerse. Sigan ustedes sabiendo que, mucho más temprano que tarde, de nuevo se abrirán las grandes alamedas por donde pase el hombre libre, para construir una sociedad mejor. 

¡Viva Chile! ¡Viva el pueblo! ¡Vivan los trabajadores! 

Estas son mis últimas palabras y tengo la certeza de que mi sacrificio no será en vano, tengo la certeza de que, por lo menos, será una lección moral que castigará la felonía, la cobardía y la traición. 

 Santiago do Chile, 11 de setembro de 1973

domingo, 10 de setembro de 2023

Teodora Cardoso (1942-2023)


Morreu Teodora Cardoso. Discordámos sempre dela. Quando morre uma figura pública em democracia, manda a decência que tenham a palavra os que a apreciaram. Prestou um serviço à cultura portuguesa ao ser uma das tradutoras de A Riqueza das Nações, de Adam Smith.

sábado, 9 de setembro de 2023

Ativista ou militante?


Ouço e leio as pessoas referirem-se umas às outras como ativistas em alguns círculos. E nem as militantes mortas estão a salvo: a militante Maria Lamas, por exemplo, também foi “ativista”, isto a fazer fé na desmemoriada introdução da importante reedição de As mulheres do meu do país pelo Público

De onde veio esta moda? Veio do mundo anglo-saxónico, creio, o que raramente augura algo de bom nas áreas da ação coletiva. As palavras são importantes. Não simpatizo com esta moda, incapaz, e não creio que seja apenas por disposição conservadora, de afastar associações: dispersão, fragmentação, desorganização ou aversão ao poder. 

Prefiro uma palavra antiga – militante – e que nem tem de estar associada apenas à necessária forma partido, sendo indissociável da palavra camarada, palavras escalpelizadas e defendidas, olhem, pela norte-americana Jodi Dean, por exemplo. Onde falta organização, sente-se mais. 

“E se há um camarada à tua espera, não faltes ao encontro e sê constante”, cantava Zeca Afonso: um militante persevera, procura estar preparado, sabe que as suas prioridades têm de ser disciplinadamente articuladas com as de muitos outros, num todo que é maior do que a soma das partes. A política militante organiza, procura alcançar multidões, procura homogeneizar e criar clivagem, alcançar a hegemonia.

Gosto de pensar que este blogue é, à sua maneira, militante, mas sei que tal é praticamente impossível nas redes sociais, desenhadas para alimentar ativismos cada vez mais microscópicos, até se chegar ao eu politicamente impotente. Talvez isto também ajude a explicar a vulgarização da palavra ativista?

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Centeno, encruzilhadas e paradoxos


Ao mesmo tempo que afirma que o “peso da despesa permanente na economia continua acima de 2019, mas deve reduzir-se”, Centeno, reconhecendo que estamos numa “encruzilhada [que] traz maior aperto financeiro a famílias e empresas”, postula que a mitigação de riscos passa pelo “reforço da poupança e a redução do endividamento.”

Neste blogue já tratámos este paradoxo vezes sem conta. Aquiali e acolá, por exemplo.

Numa economia monetária de produção, como é o capitalismo, as receitas de uns são as despesas dos outros; superávites e défices também, logicamente. Assim sendo, o corolário é que o somatório dos saldos financeiros dos setores privado, setor público e externo (invertido) é sempre igual a zero. Sempre.

Se a poupança financeira do setor privado cresceu significativamente em 2009, num ano em que o país manteve grande parte do enorme défice externo do ano anterior, é porque a poupança do setor público teve uma evolução simétrica e decresceu quase no mesmo valor.

Se a poupança financeira do setor privado cresceu significativamente em 2020, num ano de saldo quase nulo do setor externo, é porque a poupança do setor público teve uma evolução simétrica, de sentido contrário.

Se a poupança financeira do setor privado caiu abruptamente em 2022, num ano de saldo externo só ligeiramente negativo, é porque a poupança do setor público aumentou praticamente na mesma proporção.

Se em 2023, na ausência de um milagre exportador, o Estado voltar a diminuir a sua despesa liquida, de facto o que está a fazer é diminuir a poupança do setor privado doméstico, setor este altamente endividado e confrontado com um acréscimo muito significativo da sua despesa com juros.

Isto a menos que o setor privado se recuse a aceitar a degradação do seu saldo e, reduzindo a sua despesa não financeira, provoque uma recessão.

De facto, não parece demais repeti-lo, se um país mantiver um saldo nulo nas contas externas, como obriga uma política não mercantilista que vise, simultaneamente, salvaguardar a soberania nacional, o setor privado só terá mais receitas que despesas, ou seja, só terá superávite, se o setor público incorrer em défice.

Todo o país é composto de mudança


Na “era da ebulição global” (nas palavras de António Guterres), o livro Sobre a mudança. Justiça climática e transição ecológica no século XXI, escrito por Luís Fazendeiro, oferece-nos uma mensagem de esperança e insta-nos a lutar pelo “mundo melhor que sabemos ser possível” (p. 207). Numa síntese primorosa, que conjuga divulgação científica e análise crítica, Fazendeiro identifica os contornos socioeconómicos e políticos da transição ecológica, centrando-se no caso português. Rejeitando quaisquer fatalismos – “o futuro não está escrito!” (p. 271), como faz questão de relembrar –, o autor não nos deixa sucumbir à paralisia e ao medo (embora a crise climática seja, de facto, um motivo legítimo para temer pelo futuro) e oferece-nos um vislumbre de alternativas políticas mais democráticas e ecológicas.

O resto da crónica pode ser lida no setenta e quatro.

quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Notas parlamentares - O poder dos “verdadeiramente social-democratas”

Ana Mendes Godinho, sobre as pensões. Será capaz de dizer o mesmo para os trabalhadores?

“No 2º trimestre deste ano, Portugal alcançou o maior número de sempre de trabalhadores - 4,979 milhões. Para além do emprego criado, o desemprego continua a descer. Entre o 1º e 2º trimestre deste ano, temos menos 55 mil cidadãos no desemprego. A coesão social do emprego é um elemento central para um partido de esquerda. E é por isso que, desde 2015, com estas políticas, temos menos 700 mil portugueses em risco de pobreza e exclusão social. Só uma política de esquerda de um partido verdadeiramente social-democrata que tem as pessoas no centro pode prosseguir estas políticas e alcançar estes resultados.” (Brilhante Dias, líder da bancada parlamentar do Partido Socialista, declaração política hoje no Parlamento)
Os tempos vão mesmo muito difíceis. Daqui a pouco, estaremos a comemorar os 50 anos do 25 de Abril, daquele dia em tudo parecia ser possível. A sociedade era tão desigual que, nessa altura, o Partido Socialista - segundo a sua Declarações de Princípios de Dezembro de 1974 - tinha opções claras:

Investimento das famílias e novas procuras de habitação

Dados recentes do Banco de Portugal, relativos ao património dos particulares e noticiados aqui, dão conta de que as famílias portuguesas tinham em 2022 «uma riqueza em casas de habitação superior a 498 mil milhões de euros», valor que ultrapassa, pela primeira vez desde 2010, o do património financeiro (480 mil milhões de euros), sugerindo que «foram desviados dos ativos financeiros para o investimento em casas mais de 17 mil milhões de euros».

De facto, o valor de património dos agregados em imóveis tem vindo a aumentar a uma taxa média anual de 6% desde 2017, acima dos cerca de 4% de aumento no caso dos produtos financeiros. Se estabelecermos 2015 como base de referência (2015=100), esta diferença crescente torna-se mais clara, com o investimento das famílias em imóveis a atingir em 2022 um valor de 159,2, situando-se a aplicação de recursos em património financeiro em cerca de 124,1.


O aumento do valor do património em habitação não deixa de refletir, evidentemente, a exuberância dos preços nos últimos anos, que ajuda a explicar, ao mesmo tempo, a reorientação das opções de investimento para o setor, dada a sua maior atratividade, em termos comparativos, face aos investimentos financeiros. Tal como não são alheias a este processo as baixas taxas de juro registadas até há pouco tempo, que tornam estes investimentos mais apelativos.

Seja como for, o importante é considerar que, a par do investimento imobiliário estrangeiro e dos impactos da intensificação do turismo na subtração de oferta residencial, se está também aqui perante um processo indissociável das dinâmicas especulativas que marcam hoje o setor e que se encontram na génese da grave crise de habitação que o nosso país, tal como a generalidade dos países europeus, está a atravessar.