terça-feira, 2 de novembro de 2021

É ao contrário


Num intervalo entre conspirações, Marcelo Rebelo de Sousa aproveitou o famigerado “dia da poupança” para insistir numa teoria económica tão vulgar quanto equivocada:

“A pandemia que vivemos no último ano e meio demonstrou a importância da poupança, seja para o país, seja para cada família ou cidadão (...) Embora para muitos concidadãos não seja fácil poupar, a promoção da poupança nacional é importante para o financiamento do investimento público e privado (...) A capacidade de poupança do país é também um garante de autonomia e de liberdade nas escolhas individuais e coletivas.”

É tudo ao contrário. A pandemia gerou medo, que se traduziu numa brutal diminuição das despesas privadas de consumo e de investimento, gerando-se uma recessão bem cavada. Estávamos em pleno paradoxo da poupança: o que parecia racional para aqueles que o podiam fazer – aumentar a poupança, o tal “barómetro da incerteza em relação ao futuro”, de que falava Keynes – estava a gerar um resultado irracional para o país, traduzido numa quebra das despesas e logo dos rendimentos (as despesas de uns são os rendimentos de outros). 

Felizmente, o Estado acabou por ser forçado a fazer o contrário do sector privado: aumento dos gastos e diminuição dos impostos arrecadados, atenuando o efeito recessivo. Aliás, com o saldo externo razoavelmente constante, estamos no domínio da pura contabilidade: o aumento do saldo positivo do sector privado tem como contrapartida necessária um saldo negativo do sector público. Neste contexto, se os privados querem poupar, o Estado tem de gastar.

De resto, repetimos as vezes que forem necessárias até nos livrarmos de uma teoria que não poupa o país

A qualquer montante poupado corresponde uma dívida de igual montante pecuniário. A poupança não financia a actividade económica (ao contrário, necessita de ser financiada), estando, isso sim, dependente ex-post do rendimento gerado por aquela actividade económica. O investimento é posto em marcha pela moeda-crédito, criada endogenamente pelos bancos, onde se inclui o banco central, pináculo do sistema financeiro. Isto significa que nem os bancos são meros intermediários entre aforradores e investidores, nem a taxa de juro é o mecanismo equilibrador entre a procura e a oferta de crédito.

Entretanto, e porque isto anda tudo ligado na macroeconomia que não se deixa reduzir à microeconomia, reafirmamos que o que garante a autonomia e a liberdade colectivas é a capacidade produtiva plenamente utilizada, num contexto em que o país tem instrumentos de política decentes para cuidar do único equilíbrio que conta se não queremos cair nas mãos de estranhos: o saldo externo.

1 comentário:

Jaime Santos disse...

É curioso (e triste) como todo este debate se resume às sound-bytes (eu próprio recorro a elas amiúde). A Direita diz-nos que não há árvores de dinheiro mágicas, no que tem parcialmente razão, porque elas existem mas não são mágicas, e a Esquerda logo vem falar-nos no multiplicador de crédito, essa capacidade que os bancos têm de, ao conceder crédito, gerar também depósitos e desses conceder mais crédito, numa certa fração definida pela necessidade de manter liquidez, como bem referiu o Paulo Coimbra.

A seguir fala da capacidade que o Banco Central tem de imprimir moeda 'at will' num sistema fiduciário, esquecendo convenientemente que isso gera inflação, e que é polémico, to say the least, que ela possa ser devidamente controlada, por isso é que a opção atual é pelo financiamento nos mercados internacionais de dívida (a posição de um Krugman crítico da MMT, Magic Money Tree, se bem o entendo).

Eu devo dizer que o meu instrumento favorito ainda é o chamado 'quantitative easing', que mais não é do que a impressão de dinheiro para a compra de dívida pública, mas no mercado secundário, mantendo os juros baixos e obrigando os bancos a procurar outras fontes de rendimento, ou seja, o dinheiro é injetado no setor privado e não exclusivamente no público (os Estados ainda beneficiam de juros baixos). Uma espécie de repressão financeira, mas sem os efeitos perniciosos desta...

Por explicar, além do dito controle da inflação, fica justamente o modo como se controla o saldo externo. Pode controlar-se os fluxos financeiros, mas presume-se que isso não agrade muito aos investidores estrangeiros, já que terão mais dificuldade em repatriar os lucros, como a recente situação de crise em Angola mostrou a tantas empresas portuguesas que lá dispõem de filiais.

Resta a parte mais complexa que é pois dispor de uma economia dinâmica que não gere deficits comerciais crônicos. A Alemanha consegue superavits sucessivos graças ao seu Mittelstand e ao malvado ordoliberalismo e não seguramente a um qualquer planeamento econômico centralizado, João Rodrigues.

Esse não tem um historial auspicioso, digamos, e desculpe se me repito, porque se é realmente necessário repetir o genérico, também é necessário pedir os detalhes da política que se pretende implementar para alcançar os objetivos propostos.

Ou seja, considero que tem toda a razão, o debate sobre política financeira deveria de facto ser considerado algo secundário, e ser substituído por um debate sobre política econômica, pelo menos para Países que não dispõem de uma moeda de referência como o petrodólar (a Economia Americana recicla afinal todos os dólares que são utilizados para pagar o petróleo aos países produtores) ou a libra (o sector financeiro inglês absorve, ou lava para sermos mais francos, muito do dinheiro sujo mundial, como bem notou há anos o Roberto Saviano, https://www.independent.co.uk/news/uk/home-news/roberto-saviano-britain-corrupt-mafia-hay-festival-a7054851.html).

O problema é que nessa frente a Esquerda não tem grandes cartas para mostrar...