Tudo aquilo que o Governo grego fez desde Janeiro até ao dia da convocação do referendo só tem racionalidade se o objectivo for tirar a Grécia do euro, convencendo os gregos que foram os europeus que a empurraram para fora da moeda única (…) Sim, têm sido extraordinariamente inteligentes, frios e manipuladores.
Num editorial de puro ódio, típico de quem não aprendeu nada com esta crise, Helena Garrido até acabou ontem no Negócios por inadvertidamente agigantar a liderança grega. No entanto, Garrido está errada, creio. Eles não deixam de ser políticos com p grande, mas talvez por outras razões.
Quem tenha feito um esforço, por pequeno que seja, para conhecer o Syriza e seus aliados, sabe que a maioria da sua liderança política é (era, tenhamos esperança) composta por convictos europeístas, dos da euro-keynesiana “modesta proposta”, dos do Plano Marshall para o Sul, dos da superação da austeridade com reestruturação da dívida dentro do Euro, dos de “uma outra Europa é possível”; sabe igualmente que o Syriza é composto por democratas convictos. Estes meses representaram um esforço para negociar num espírito de conciliação de princípios irreconciliáveis no quadro institucional do Euro, bastando ver a última e dolorosa proposta apresentada e rejeitada com vermelho e tudo.
Num partido onde existe uma minoria crescentemente influente, com um diagnóstico bem mais realista da economia política do Euro, justamente convicta de que a saída é a única solução, confrontada com a integração europeia realmente existente, com a sua natureza pós-democrática, feita de mil formas de corrupção da democracia, incluindo a cooptação das elites do poder, a maioria do Syriza revelou capacidade de aprendizagem, optando pela democracia quando as convicções europeístas se revelaram obstáculos a esta.
Estamos gratos pelos gestos deste fim-de-semana, misturando instinto de sobrevivência política, ou não fosse o objectivo das instituições europeias derrubar o governo, fidelidade ao povo e seriedade de propósitos.
Uma liderança assim, que aprende com os erros, que aprende com o isolamento a que foi votada, com as operações de desestabilização financeira, com a intransigência dos credores, tem toda a “racionalidade”. É extraordinariamente “inteligente”, como só podem ser as lideranças que emergem das organizações plurais e forjadas nas lutas sociais. Espero que seja “fria” e calculista e outras coisas supostamente mais quentes também. Precisamos mesmo de
príncipes modernos, de partidos deste tipo. Já as “manipulações”, deixo-as para os políticos com p pequeno e para os seus ideólogos.
É que neste processo, o que estamos a ver não é uma manipulação, mas sim uma vontade geral nacional-popular sendo forjada. Creio, e é mais uma aposta num texto cheio delas, que a vitória do não no referendo é um momento importante deste processo criador do tal nós, a primeira pessoa do plural de que depende a hegemonia. Em Portugal, estamos bem mais atrasados, claro, se calhar também porque, como aventava Pacheco Pereira no sábado, a consciência nacional foi aqui mais erodida do que na Grécia. Enfim, teremos, e é a última aposta, de queimar etapas...