sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Grandes transformações

O socialismo é, essencialmente, a tendência imanente a uma civilização industrial no sentido de superar o mercado autorregulado, subordinando-o conscientemente a uma sociedade democrática. É a solução natural aos olhos dos operários industriais, que não encontram qualquer razão para que a produção não seja directamente regulada em termos políticos ou para que os mercados sejam mais do que um elemento útil, mas subordinado numa sociedade livre. Do ponto de vista da comunidade no seu conjunto, o socialismo é simplesmente a continuação desse esforço para tornar a sociedade um conjunto de relações propriamente humanas entre pessoas, que, na Europa, sempre esteve associado às tradições cristãs. Do ponto de vista do sistema económico, corresponde, pelo contrário, a uma rutura imediata com o passado imediato, na medida em que recusa a tentativa de tornar os ganhos monetários privados o incentivo geral das actividades produtivas, e na medida em que não reconhece o direito dos indivíduos a disporem a título privado dos principais instrumentos de produção (…) [O] sistema de mercado deixará de ser autorregulado, até mesmo no plano dos princípios, pois deixará de incluir a força de trabalho, a terra e a moeda [mercadorias fictícias] (…) o fim da sociedade de mercado de modo nenhum significa a ausência de mercados (…) [estes] continuarão a assegurar a liberdade do consumidor, a indicar as modificações da procura, a exercer a sua influência sobre os rendimentos do produtor e a servir de instrumentos de contabilidade, embora deixando por inteiro de ser órgãos de uma autorregulação da economia (…) a regulação expande e ao mesmo tempo restringe a liberdade (…) tudo o que importa aqui é a comparação entre as liberdades perdidas e conquistadas (…) a sociedade industrial poderá permitir-se ser, ao mesmo tempo, justa e livre.

Excertos de capítulos finais de A Grande Transformação (1944), de Karl Polanyi, editada entre nós pelas Edições 70 (na excelente colecção História e Sociedade), em Julho de 2012, com segura tradução de Miguel Serras Pereira. Um acontecimento cultural tão importante quanto tardio. Para além das duas introduções que constam da edição norte-americana consolidada, de 2001, o leitor da edição portuguesa é brindado com mais duas. A primeira, da autoria de Diogo Ramado Curto, Nuno Domingos e Miguel Jerónimo, contém várias ideias com as quais pretendo entabular um diálogo crítico. Destaco duas, em particular: não “é simples (…) encontrar um projecto social e político definido em A Grande Transformação”, já que “a luta de Polanyi contra uma economia desincrustada da sociedade não assume uma forma visível”, e a “crítica de Polanyi à economia de mercado revelava um desejo de regresso a uma comunidade idealizada, que a industrialização teria destruído. Este anseio assinalava a uma nostalgia por um certo espaço autárquico, autossufuciente, assente no trabalho comunitário e na família, que em grande medida configurava uma espécie de conservadorismo social, que apenas na superfície se constitui como crítica radical.”

Os excertos de Polanyi que seleccionei são o meu ponto de partida para questionar estas interpretações na apresentação que farei amanhã no socialismo 2012 sobre o projecto socialista de Karl Polanyi, da sua participação no debate sobre o cálculo económico em socialismo, iniciado na Viena dos anos vinte, à sua visão madura em A Grande Transformação, escrita já nos EUA. Ideais centrais: Polanyi é um pensador socialista original, não-marxista (entre outros elementos, a teoria do valor-trabalho é por si rejeitada desde cedo), sem ser anti-marxista (não é por acaso que são tantas as afinidades com um certo marxismo humanista ou que até é hoje considerado um autor charneira do chamado marxismo sociológico); os conceitos de realismo e de utopia são por si mobilizados para defender que o socialismo, um certo socialismo, com lugar circunscrito, mas real, para os mercados e focado na expansão das liberdades, é uma hipótese realista na época da grande empresa e de todas as interdependências socioeconómicas; pelo contrário, o liberalismo de Mises e Hayek, entre outros, seria “intrinsecamente utópico”, seria totalmente incompatível com o que se julga saber sobre as naturezas humana e das relações sociais.

De resto, a ligação entre Polanyi e Keynes, aludida pelos autores na introdução, é potencialmente interessante, desde que estejamos a falar de um Keynes e de uma tradição que não encaixa na ideia do Estado reduzido a um “instrumento técnico” e muito menos em qualquer hipótese do homo economicus, supostamente na base da teoria económica. Keynes é um economista político e moral, cujas intuições, por exemplo, sobre o comportamento humano em contexto de incerteza radical, têm sido usadas pela economia comportamental ou por alguma sociologia económica dos mercados financeiros, e quem aprofundou muitas das suas ideias coloca a política no centro, o que não quer dizer que não existam questões técnicas ou que tudo seja redutível a uma qualquer vontade indómita, claro. Tanto Polanyi como Keynes, apesar das diferenças ideológicas, estavam apostados em compatibilizar uma ideia de soberania democrática de base nacional, o que exigia superar o sistema cambial rigido, a circulação irrestrita de capitais e a ideologia do comércio dito livre, com arranjos internacionais que fomentassem a cooperação entre unidades mais autónomas, mas nunca autárcicas. Esse projecto assumidamente ético-político-económico (sem separações artificiais), leia-se este artigo de Keynes e compare-se com Polanyi, parece-me tão necessário hoje como na altura.

Bom, a minha sugestão, para quem não leu o livro, é que comece por Polanyi propriamente dito, lá para a página 100 da edição portuguesa, deixando as estimulantes introduções e os debates sem fim para o fim. Esqueça também este poste, portanto. Boa leitura.

Os amanhãs que cantam

Em Novembro do ano passado, o ministro da recessão e do desemprego, Álvaro Santos Pereira, profetizava que 2012 iria, «certamente (...), marcar o fim da crise». Dois meses mais tarde, caberia a Vítor Gaspar anunciar que o país se estava a aproximar de «um ponto de viragem». E, no início do ano, seria o próprio Passos Coelho a garantir que «a recuperação económica de Portugal começaria na segunda metade de 2012», sendo corroborado por Cavaco Silva que - mais cauteloso com datas - terá contudo encontrado também sinais disso mesmo (possivelmente nas entranhas de um matinal jaquinzinho). Mais recentemente, em pleno aquashow («meter água», em português técnico), o primeiro-ministro volta a decretar o fim da crise, postergando-o contudo para 2013.

O próprio governo, porém, é hoje forçado a assumir o que já há muito se sabe: Portugal não vai cumprir a meta do défice acordada com a troika para 2012. O desemprego atingiu o valor histórico de 15,4% em Junho, as receitas fiscais caem a pique cada mês que passa, as falências sucedem-se e a economia extingue-se no estado comatoso em que foi mergulhada. Nada que faça estremecer, porém, as delirantes convicções de António Borges: «o programa [de ajustamento] está a correr bem. Digam o que disserem, o programa está a correr melhor do que se pensava. (...) Por isso não precisamos nem de mais tempo, nem de mais dinheiro. (...). Bastará portanto, deduz-se, reforçar a dose de veneno que tem devastado a economia e empobrecido o país. Não importa, para Borges a recuperação está à vista: «para o ano, no fim deste ano, em 2014... não sabemos». Há-de acontecer, ponto.

Mas não se zanguem com António Borges. Ele está apenas a tratar da vidinha e dos interesses que o rodeiam. Não se perde uma oportunidade destas para ir ao pote e abocanhar serviços públicos e bens colectivos. É por isso que o «aquashow» tem que continuar. À custa da economia e de todos nós, evidentemente.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Miséria moral

Vale a pena recuar até 2007 para perceber, com maior clareza, o quadro moral das motivações que levam o governo a obrigar os beneficiários de RSI a efectuar trabalho voluntário não remunerado, a favor da «comunidade». Decorria nesse ano a campanha do referendo pela despenalização da IVG. Propondo manter o aborto como crime, Bagão Félix defendia que apenas fosse alterada a moldura penal então vigente: em vez do encarceramento, as mulheres deveriam ser condenadas a efectuar trabalho comunitário, de modo a poderem «expiar [sim, leram bem: expiar] a sua própria dificuldade moral perante a situação».

O simples facto de o «trabalho comunitário» constar do Código Penal, figurando entre as possíveis medidas de condenação que o mesmo prevê, deveria ser suficiente para demover qualquer tentativa de o transpor para o universo dos direitos e prestações sociais, em que se enquadra o RSI. Por isso, ao proceder a essa transposição, a actual maioria revela uma vez mais a miséria moral em que chafurda: o trabalho «obrigatório voluntário» que estabelece significa, também ele, uma espécie de «expiação da dificuldade moral perante a situação», de pobreza e desemprego, em que os beneficiários do Rendimento Social de Inserção se encontram. Isto, claro está, para além do argumento da «compensação à comunidade», através de trabalho não remunerado, pelas míseras esmolas que a prestação representa.

Mas a miséria moral da coligação PSD/PP e de certos sectores sociais que a apoiam não fica por aqui. Ela revela-se igualmente no oportunismo sórdido que esta decisão encerra, ao permitir que as IPSS beneficiem, sem quaisquer encargos, de mão-de-obra gratuita e forçadamente submissa, que com muita facilidade se converterá, na prática, em «pau para toda a colher». No fundo, é o Estado, ou seja, os contribuintes, que passam a subsidiar graciosamente estas instituições, através do trabalho «voluntário obrigatório» a que passam a ficam compelidos os pobres e desempregados.

O ministro Pedro Mota Soares lembra constantemente que o contrato de inserção estabelece um quadro de direitos, mas também de deveres, para os beneficiários. Mas esquece-se, contudo, de referir que esse contrato também estabelece um quadro de deveres para o Estado: entre eles, o de encontrar soluções credíveis, dignas e substantivas de inserção. Porque o RSI constitui um instrumento e não a «medida transitória de esmolagem», paga com suor escravo, em que a actual maioria de direita o pretende converter.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Bater com a cabeça quatro vezes


1. Mario Monti sabe que é preciso mudar, na prática, a forma de actuação do BCE para manter intacta essa máxima expressão da constitucionalização supranacional do capitalismo neoliberal que dá pelo nome de euro, através de uma intervenção decidida do BCE que ancore expectativas e evite, pelo menos temporariamente, a subida das taxas de juro da Itália e da Espanha para níveis incomportáveis. Diz Monti que, caso contrário, o tiro monetário sairá à Alemanha pela culatra. Bom, há sinais económicos disso. É claro que Monti apoia a austeridade e a neoliberalização, os dois elementos reais que estão a favorecer a corrida para o fundo, e que são também parte da chantagem de um Draghi que não pôde ir ao encontro da elite monetária internacional em Jackson Hole por causa do “excesso de trabalho”.

2. Para lá da ideologia, que esquece até a história recente do Bundesbank na compra de obrigações, e da pressão imperialista às periferias, o que justifica a associação, feita por Weidmann, secundado por Merkel, entre as funções de um banco central como credor indirecto de última instância dos Estados e a “droga”? Bom, droga só se for a que os operadores dos mercados financeiros consomem. De resto, a elite alemã já está a fazer contas para lá do euro, só pode, o que pode ser, aliás, a melhor forma de acelerar o seu fim. Pensam já não em termos de federalismo monetário, mas na exposição do Bundesbank à periferia que entrará em incumprimento.

3. A Espanha prepara-se para uma intervenção externa, que reforçará a dose de austeridade, encolhendo um mercado que vale para nós quase tanto como o mundo que existe para lá da zona euro. Regastes regionais, fuga de capitais, provando que a convenção “um euro num banco espanhol não vale o mesmo do que um euro num banco do centro” está bem de saúde, e consequências recessivas da austeridade criam os perfeitos maus ventos.

4. Entretanto, neste canto, a direita e muitos editores, directores e subdirectores de economia, criaram dois novos indicadores económicos todos qualitativos e tudo: o de intenções económicas de um governo de quem a troika gosta e o do diz que os analistas financeiros internacionais falam bem de nós. Esqueçam a taxa de desemprego ou a recessão, esqueçam o défice como variável endógena. O que conta são vagos sentimentos. Servirão para alguma coisa face ao peso do que se conta? Bom, sabemos que a única forma de evitar o caminho grego é evitar as políticas que foram até agora prosseguidas e apoiadas. É por esse volte-face que o governo tem de ser avaliado. Trata-se de começar a negociar com uma troika feita para pensar em termos dos interesses das elites do centro. É que estamos também no plano inter-nacional.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Os caminhos da incerteza


«Portugal - Os caminhos da incerteza», um imperdível documentário de François Manceaux sobre a trajectória do país nas últimas décadas: do momento de exaltação da Expo 98 à actual crise. O que mudou e o que permaneceu. Com testemunhos, entre outros, de Boaventura de Sousa Santos, Daniel Oliveira, Eduardo Lourenço, Inês de Medeiros, Ricardo Paes Mamede e Rui Tavares.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Publico tudo?

Num tempo em que cada vez mais coisas se compram e vendem, em que há cada vez mais universidades limitadas ou anónimas, em que bens culturais fundamentais para o desenvolvimento humano são cada vez mais intensamente mercadorizados, com consequências negativas para a integridade das práticas e para a democratização do acesso a esses bens, é aparentemente paradoxal ver que o que devia estar à venda é oferecido gratuitamente: por exemplo, meia página na secção de opinião de um jornal de referência para fazer publicidade. Falo do Público de hoje, onde Nélson Santos de Brito, “CEO para Portugal da Laureate International Universities”, com investimentos recentes numa instituição de ensino superior de Lisboa, tem todo o espaço para todas as transparentes vulgaridades do marketing universitário multinacional – “ter feito do rigor e da qualidade o seu modus operandi”, “estamos em Portugal porque acreditamos que podemos construir um projecto educativo de qualidade”, etc. O paradoxo acima referido dissolve-se se pensarmos que associada à mercadorização sem fim está a subversão de esferas que deviam estar mais ou menos separadas. Não há critérios editoriais para impedir estas confusões inadmissíveis? Deixo a resposta ao cuidado do provedor do leitor, sempre atento à necessidade de manter a integridade das práticas editoriais.

domingo, 26 de agosto de 2012

Na frente das ideias...


1. Como assinala o economista socialista João Galamba, a utilidade dos custos unitários do trabalho, “que pouco ou nada nos dizem sobre os salários”, é mais ideológica do que outra coisa, tratando-se de um indicador que se presta à manipulação e à propaganda para o abaixamento do peso dos salários no rendimento nacional, peça fundamental da política de um governo assessorado por um Banco que não é de Portugal. Este é um tema em que aqui também temos insistido. Se procurarem neste blogue por custos unitários do trabalho, encontram logo, por exemplo, um texto bastante claro do Alexandre Abreu, que critica a aceitação acrítica por alguma esquerda deste conceito e das suas implicações para o mundo do trabalho, ao mesmo tempo que os custos do capital são ignorados.

2. As divergências sobre o passado e o presente de algumas “ilusões” políticas não me impedem, pelo contrário, de chamar a vossa atenção para um texto recente do historiador comunista João Arsénio Nunes, que o Nuno Ramos de Almeida em boa hora postou, sobre “política comunista e previsão histórica”. Um daqueles textos que vale a pena imprimir e ler com atenção. Se bem que o pretexto seja, em parte, uma resposta a Miguel Urbano Rodrigues num debate interno ao PCP, partido que continua a ser condição necessária para uma alternativa política de esquerda, e também por isso esta não será fácil, julgo que o texto avança, sobretudo no final, com uma perspectiva útil para todos os que querem proteger a democracia e começar a criar as condições para que esta se torne mais avançada no nosso país.

sábado, 25 de agosto de 2012

A bela e o monstro


Perante as notícias do desvio colossal na execução orçamental, Helena Garrido no Negócios e Bruno Proença no Económico, inspirados por Cavaco, concluem, respectivamente, que o “monstro não se deixa domar com facilidade” e que “o monstro do Estado ganha”. De Cavaco só se aproveita mesmo um tardio e oportunista assomo de sensatez: o défice é uma “variável endógena”, estando dependente do andamento da economia. De resto, o monstro que nenhuma bela dispensa já está preso monetariamente pelo euro e pela troika que dele é indissociável, obrigado a comportar-se como se fosse uma bela em crise e que ninguém vem ajudar, cortando na sua ‘despesa’ e tentando encontrar fontes regressivas de receita, despojado de toda a liberdade, de toda a soberania, de toda a possibilidade de ser parte da solução para superar a crise. Acontece que este comportamento, que ainda é considerado tão belo por uma minoria que com ele lucra material e/ou ideologicamente (os que gemem), gera uma recessão monstruosa e desemprego sem fim (os que fazem força). É o que dá ter a bela e o monstro juntos a tentar poupar ao mesmo tempo, o que gera todos os paradoxos conhecidos da economia da depressão, ainda para mais quando as belas e os monstros estrangeiros também o fazem. De resto, o objectivo do défice é só um horizonte, e sabemos como o horizonte funciona, um dos meios para cortar nos salários directos e indirectos da bela e do monstro. Esta é uma das reais monstruosidades nesta história sem final feliz à vista.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Uma economia não é uma família



Mesmo quando os governantes e seus acólitos na comunicação social exultam com o quase equilíbrio da balança comercial, pela via da redução das importações de bens de consumo e de investimento, também estão a mentir. Está nos livros de introdução à economia que as importações são uma função do produto e, portanto, teriam forçosamente de baixar com a quebra da procura interna que foi promovida. Sabendo que este efeito é apenas conjuntural, evidentemente não podem explicar como é que as importações deixam de crescer no dia em que a economia retome o crescimento. A honestidade, intelectual e política, obrigaria a reconhecer que o problema do nosso défice externo não tem uma solução enquanto o país permanecer na zona euro. Só a desvalorização externa da moeda, encarecendo os produtos importados relativamente aos produzidos no país, permite que na retoma do crescimento a procura interna se redireccione para os produtos que geram emprego em Portugal. Em todos os países que romperam com a política económica do FMI, a desvalorização da moeda foi o principal motor da sua recuperação das contas externas no curto prazo. Esta é a verdade que a (boa) teoria económica e os factos históricos confirmam, mas que a ideologia deste governo e a de alguma esquerda obstinada em manter o país na moeda única impede de reconhecer.

(Do meu artigo no jornal i)

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Uma notícia com custos


Partilho a perplexidade revoltada de Pedro Lains, mas, considerando sempre que este Banco não é de Portugal, acho que neste caso a confusão foi sobretudo criada pelo jornalista do Público (é difícil encontrar uma notícia mais confusa sobre um tema que não é nada simples, sobretudo quando entramos por alguns indicadores adentro sem cuidado) e, já agora, confusão criada pelo editorial, que pelo menos não o disfarça. De facto, nem ninguém acredita que a quebra dos salários como custo seja menor em Portugal do que no conjunto da Zona Euro, nem os indicadores mobilizados autorizam essa interpretação. Por um lado, temos a evolução de um índice de taxa de câmbio efectiva real do euro, deflacionada pela evolução dos tais custos unitários do trabalho (na passagem de nominal para real usa-se aqui evolução dos cut’s em vez da inflação), em relação a 20 parceiros com quem a Zona Euro no seu conjunto, que inclui Portugal, transacciona, cujo andamento parece ser influenciado pela desvalorização do euro nos mercados cambiais nos últimos tempos. Por outro lado, temos um índice de taxa de câmbio efectiva real de Portugal, deflacionado pela evolução dos custos unitários do trabalho, em relação aos mesmos 20 parceiros e aos outros 16 países com quem se partilha o euro em rígido sistema de câmbios fixos e com quem se transacciona muito mais. Esta diferença entre os dois indicadores tem de ser tida em consideração e não autoriza as comparações que são feitas na notícia, ao mesmo nível das definições incompletas de conceitos que são dadas, como é o caso dos enviesados custos unitários do trabalho, que também incluem a evolução da produtividade real, facto que é ignorado. Dizer que a zona Euro ganhou mais competitividade-custo em relação ao exterior do que Portugal em relação a esse mesmo exterior (os tais 20) mais aos restantes países dessa mesma Zona Euro (os tais 16 que somam para construir o índice nacional para cada país) é comparar alhos e bugalhos. Não se pode dizer que Portugal esteja mais distante em relação à evolução de uma qualquer “média” de competitividade-custo da Zona Euro, porque não há nenhuma média mas sim a avaliação de um todo (zona euro) em relação aos parceiros comerciais de fora da zona. Portugal foi um dos países onde no ano passado a tal medida de competitividade-custo mais caiu na Zona Euro em resultado da tal desgraçada desvalorização interna que aqui temos criticado (o que se vê comparando com a evolução dos índices construídos para os outros países da zona euro). Enfim, um exemplo de tratamento confuso de assuntos difíceis e com implicações política tormentosas pouco digno de um jornal dito de referência e que na economia até o costuma ser. Fica uma pergunta: estes dados foram divulgados assim pelas fontes oficiais?

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Mastodontes

1. “Duelo de monopólios (ou quase) com autoridades de concorrência a ver. E a gente a pagar.” Pedro Lains com poder de síntese. O romance da concorrência de mercado pode ficar na prateleira. O que conta neste capitalismo realmente existente é mesmo a acção dos mastodontes, Pingo Doce, de um lado, SIBS, bancos, do outro. A SIBS, presidida por um grande adepto da concorrência entre trabalhadores chamado Vítor Bento, indica como o planeamento, digamos, central, a coordenação, cria uma rede multibanco e um sistema de pagamentos moderno, eficaz, sem concorrência a atrapalhar. É claro que este caso também revela uma das especialidades do sistema bancário sem controlo político adequado: extrair taxas e comissões a quem pode. Poder é coisa que também não falta à grande distribuição, os produtores que o digam. Seja como for, o tal duelo, na ausência de controlo social e político adequado destes mastodontes incontornáveis, vai manter “a gente a pagar”.

2. Entretanto, ainda Lains sobre um governo que finge defender o interesse público face a outros inevitáveis mastodontes, mesmo que alguns estejam financeiramente fragilizados, mas que apenas revela as consequências da sua austeridade tão assimétrica: “Este deve ser um caso raro de país em que o desinvestimento tem o nome de ‘poupança’. Ou ainda nem toda a gente percebeu que é isso que está a acontecer nas PPPs e que o que fica, fica exactamente na mesma, com as tais 'rentabilidades elevadas'? Pelo meio, vão ficando as obras paradas, as obras incompletas, um país de estaleiros - e desempregados.”

terça-feira, 21 de agosto de 2012

É a política


Em 1970 foi apresentado o relatório Werner que delineava um mapa em direcção a uma união económica e monetária fixada para 1980. O resto é história. Curioso é que em 1971, há mais de quarenta anos, portanto, Nicholas Kaldor, um dos mais importantes economistas keynesianos sem abastardamentos, considera que pensar que “a união económica e monetária pode preceder a união política” é um “erro perigoso”. No fundo, sem governo europeu, com todo o poder orçamental redistributivo, nada feito, alerta. Pensar que a UEM pode fomentar a união política é um erro grosseiro, segundo Kaldor, já que “se a criação da união monetária e o controlo comunitário dos orçamentos nacionais gerarem pressões que levem à quebra de todo o sistema, isso impedirá o desenvolvimento da união política, ao invés de a promover”. Sem política económica de pleno emprego nada feito politicamente. Sem instrumentos de política adequados na escala adequada, o resto é a lógica da “causalidade circular e cumulativa”, a antítese realista da obsessão com o equilíbrio da economia convencional, a executar o seu trabalho de geração de desequilíbrios externos, de polarização económica e de desentendimento político. Previsão de padrões com mecanismos identificados pelo caminho. Muito presciente, não? Vários economistas nesta tradição foram alertando ao longo do tempo, em especial quando a coisa voltou para cima da mesa em tempos de hegemonia neoliberal. Em Portugal, também foi assim...

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Convergência?


Um economista do Deutsche Bank diz à The Economist, a fonte do ilustrativo gráfico, que é “difícil para a Alemanha crescer em circunstâncias negativas”. Profundo. Parece que é difícil crescer quando por todo o lado se promovem políticas de austeridade que minam o crescimento. Será que, apesar do desenvolvimento desigual, estamos a assistir ao início de uma depressiva convergência? Se sim, será que assim se facilitará a superação da austeridade com escala europeia, mas com declinações periféricas que ainda são mais danosas, agora que as interdependências estão claras? Não apostaria numa resposta positiva a esta última questão, dado o peso político da narrativa moralista, das estruturas europeias e dos seus enviesamentos em matéria de política económica, para já não falar da profunda deslegitimação de um processo de integração que se revelou, graças a um euro desenhado pelas utopias liberais, um elemento decisivo de todas as fracturas socioeconómicas com impactos políticos nacionais, mesmo que agora possa ser factor de tardia convergência...

sábado, 18 de agosto de 2012

Do capitalismo medíocre

João Ramos de Almeida noticia esta semana a irracionalidade e desumanidade sistémicas do capitalismo medíocre, cada vez mais descoordenado, em tempos de desemprego, subemprego de massas e precariedade causados pela crise permanente: horários de trabalho superiores a 41 horas estão a crescer no nosso país e 465 mil desempregados estão sem receber protecção há 9 meses. De resto, o novo código do trabalho e a sempre regressiva austeridade inscrita neste euro estão desenhados para compelir os que ainda têm emprego a aceitar condições cada vez mais gravosas para si e para os que estão lá fora, para “as pessoas estranhas ao serviço”, que estão proibidas de entrar e que estão cada vez mais desprotegidas. Trata-se de fazer avançar um sistema que mata o tempo livre de múltiplas formas, deixando cada vez mais tempo ao medo dentro e fora.

Nos países de especialização produtiva mais avançada, salários mais elevados e que ainda retêm, apesar da neoliberalização intensa, alguns mecanismos de coordenação típicos de uma das variedades de capitalismo, freios e contrapesos laborais, a crise é, para muitos, uma época de redução pactuada e subsidiada dos horários de trabalho para manter postos de trabalho, o que tem efeitos na procura que assim não quebra tanto (porque a actual crise é de procura, de procura e também de procura). Algumas ilhas industriais em Portugal conhecem esta realidade.Também por isso se trabalha menos horas por ano, deixando mais tempo para que mais tenham actividades mais livres, nos países lá mais para o norte, atenuando alguns dos paradoxos da depressão. Estes paradoxos são transferidos hoje, na medida possível do desenvolvimento desigual com tantas expressões institucionais, para “sul”...

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Finança em roda livre



Este é um dos sintomas mais evidentes da libertinagem financeira a que o capitalismo nos conduziu desde que o neoliberalismo se tornou hegemónico (traduzi daqui):

“As bolsas são hoje uma zona de guerra em que computadores operam algoritmos que lutam uns contra os outros na disputa de cêntimos, milhões de vezes por segundo,” escreve Felix Salmon na sua coluna mais recente para a Reuters e BuzzFeed.
O argumento de Salmon é baseado na figura animada que mostra o volume de transacções de alta frequência [TAF] nas bolsas, entre Janeiro de 2007 e Janeiro de 2012.
Notem a explosão da actividade total à medida que se aproxima do presente. Para Salmon, isto é motivo para grande apreensão.
Em particular, Salmon questiona o valor que esta actividade possa ter criado. "Os spreads ter-se-ão apertado um pouquinho relativamente ao que seriam sem esta actividade?", pergunta. "Talvez, mas isso não tem qualquer efeito nos rendimentos dos investidores de longo e mesmo de médio prazo."
Então, por que devem ser defendidos os lucros de uns quantos especuladores quando essas actividades não produzem nenhum benefício real para a sociedade? Não devem, sugere Salmon. Nunca mais. Qual a proposta? Uma taxa sobre as transacções financeiras - uma solução a que o próprio Salmon se opôs em 2007. A razão para a sua mudança de opinião é simples. O custo potencial [das transacções de alta frequência] é enorme; os benefícios de curto prazo são minúsculos" escreve Salmon. "Façamos às TAF o funeral que merecem."

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Quem é que parte o CoCo a rir?

Na bancarrotocracia, o Estado assume encargos com fundos de pensões de bancos incapazes de garantir o que quer que seja, apesar de ainda patrocinarem a performativa linha sobre a falência da segurança social pública. Na bancarrotocracia, o Estado injecta capital nos bancos, através da criação de um instrumento híbrido, obrigação eventualmente convertível em acção, CoCos, feito à medida para evitar o horror do controlo público directo, embora possa ser só para adiar o impensável que pode tornar-se inevitável. Na bancarrotocracia parece que CoCos podem significar uma poupança de mais de 400 milhões de euros para os bancos em encargos fiscais, mostrando que quem sabe, sabe. Entretanto, diz-se que Gaspar usa o inglês como língua de trabalho nas reuniões do Terreiro do Paço. A denúncia terá partido de Fernando Ulrich. Não percebo de que se queixa: Contigent Convertible (bond) é CoCo, o inglês é a língua da finança e é para para a finança que se governa neste tempo. Não foi você que pediu uma intervenção externa?

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Uma vergonha!


O Primeiro-Ministro fez ontem um discurso que ilustra bem o desespero em que se encontra tentando iludir por mais algum tempo os cidadãos menos instruídos. Com a economia portuguesa numa recessão grave, com a recessão europeia em aprofundamento, com a desaceleração do crescimento global, fatalmente o nosso défice orçamental afastar-se-á substancialmente das metas previstas. Mesmo com alguma benevolência da troika, temerosa de uma repetição da situação grega, Passos Coelho será forçado a tomar decisões de política económica (vulgo "austeridade") que vão acelerar a recessão e convertê-la numa depressão. Ainda assim, ousa dizer que “2013 será o ano da estabilização económica e preparação da recuperação.” No Sul da Europa, apenas o Primeiro-Ministro de Portugal se atreve a fazer este tipo de discurso. Uma vergonha!

Infelizmente, os próximos meses vão tornar mais claro o que significa a adopção por grande parte da UE de orçamentos (quase) equilibrados, a chamada "regra de ouro" que a Assembleia da República se apressou a aprovar e que o Primeiro-Ministro tanto deseja inscrever na Constituição.

Entretanto, enquanto os cidadãos portugueses mais esclarecidos não se organizam para salvar este país, vale a pena ler com atenção este texto de Amartya Sen de que traduzo um parágrafo:

"A frequentemente invocada "analogia" com os sacrifícios da Alemanha para realizar a unificação da Alemanha de Leste e de Oeste ofusca algum pensamento europeu e é completamente enganadora. Isto é assim, em parte, porque o sentido de unidade nacional que sustentou o sacrifício alemão não existe, neste momento, entre as diferentes nações europeias, e também porque o sacrifício presente nesse notável exercício de unidade nacional foi suportado principalmente pela parte mais rica da Alemanha no Oeste, e não pelas áreas mais pobres como agora está a ser pedido a muitos dos países europeus aflitos, da Grécia à Espanha."

Perguntem às empresas...

Os últimos dados do INE sobre PIB e desemprego confirmam a espiral recessiva engendrada pela austeridade com a taxa de desemprego a bater novos recordes históricos. Embora a austeridade tenha sido justificada como forma de aumentar a confiança de quem controla o investimento, parece que os capitalistas, ou pelo menos uma fracção (capitalistas, como capitalismos, há muitos e representantes nem se fala...), estão cada vez mais desconfiados e menos dispostos a enfrentar as forças obscuras da incerteza radical, já que a quebra do investimento não cessa. Os seus desígnios não são totalmente insondáveis. O INE faz perguntas às empresas e elas respondem e tudo: "Os factores limitativos ao investimento mais referenciados como principais pelas empresas continuaram a ser a deterioração das perspetivas de vendas (59,1% em 2011 e 60,4% em 2012) e, embora com menor expressão, a incerteza sobre a rentabilidade dos investimentos (14,5% e 14,2%) e a dificuldade em obter crédito bancário (11,7% e 11,6%)."

Das fraudes

Passaram vinte anos desde que, a 14 de Agosto de 1992, foi publicada no Diário da República a Lei n.° 20/92, que aumentou as propinas no ensino superior público (...) Os argumentos dos defensores do novo modelo não resistiram à prova do tempo e da realidade. O co-financiamento dos custos do ensino pelos estudantes e suas famílias, além de desresponsabilizar o Estado, sobrecarregou duplamente quem já contribuíra por via fiscal para o financiamento público e encetou uma corrida a parcerias com investidores externos que transporta para as universidades perigosas lógicas de mercadorização do ensino e dos saberes. Sandra Monteiro

 O nosso mundo está infestado com dados arbitrários ou falsificados (Libor, «regra de ouro», nível da dívida ou dos défices públicos que não pode ser ultrapassado…) em nome dos quais são martirizados povos inteiros, como em Espanha (...) Os que infligem tais punições com mais crueldade mantêm uma aura de respeito, presidam eles a um banco central sem controlo ou a uma agência de notação. Quatro anos depois do desencadeamento de uma das maiores crises financeiras da história, está no entanto aberta a questão da utilidade social destas instituições. Serge Halimi

Mais informações sobre o número de Agosto de um jornal com memória das várias fraudes dos neoliberalismos...

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Lições

FMI: Resgate à Islândia tem lições a dar aos países em crise. Política de um Estado que soube usar a sua soberania democrática tem lições a dar aos países em crise: transferir alguns dos custos do ajustamento para os credores, instituir controlos de capitais, manter a protecção social e recorrer a uma política cambial assente na desvalorização da moeda fazem parte do menu. Por contraste com a destrutiva desvalorização interna em curso nos países sem soberania, através da quebra dos salários nominais e do desemprego de massas permanente, esta opção islandesa revelou-se mais rápida e eficaz a estimular exportações e a desincentivar importações, com efeitos favoráveis na procura, teve custos para os trabalhadores, em termos de quebra dos salários reais, incomparavelmente menores e reversíveis, evitou a destruição de emprego em curso no euro-sul e não exigiu alterações regressivas nas regras laborais e sociais com efeitos negativos permanentes na correlação das forças sociais, um elemento decisivo da economia política da nossa desvalorização interna. Muitas lições. Só falta quem as queira aprender.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

OIT versus BCE

O BCE, tal como a Comissão Europeia, só pensa em reduzir os rendimentos do trabalho, assegurando que os salários reais da esmagadora maioria crescem abaixo da evolução da produtividade real, como já aconteceu, por exemplo, nos até há pouco incensados EUA ou na Alemanha, assim alterando a repartição entre trabalho e capital e, também graças à desregulamentação laboral, aumentando as desigualdades salariais. O resultado disto à escala global foi a emergência de modelos nacionais guiados pelas exportações e de modelos guiados pelo endividamento, duas faces de uma mesma desequilibrada moeda que compensou a falta de procura salarial. Bom, agora a insensatez dos gestores deste euro anti-laboral promete agravar cada vez mais a crise. Como assinala a Organização Internacional do Trabalho, uma organização internacional cujo poder é inversamente proporcional à qualidade da sua análise económica, a prescrição do BCE promete prejudicar o crescimento, através de uma espiral de insolvências e de contracção da procura, e logo a criação de emprego: é que se os salários são um custo a conter para fomentar investimento numa certa noção medíocre de competitividade, também são uma fonte de procura tanto mais relevante quanto se sabe que a principal razão para a ausência de investimento está nas fundadas expectativas pessimistas sobre a evolução da procura interna e externa; a primeira destruída pela austeridade nacional e a segunda ameaçada pelo sucesso da prescrição do BCE em cada vez mais países.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Like?


Sem surpresa, Cavaco Silva, através do facebook, apoiou a chantagem, que dá pelo nome de “condicionalidade”, de um BCE capaz de definir, coadjuvado pelo resto da troika, as “políticas orçamentais e estruturais adequadas” por todo o lado, graças ao seu poder monetário sem controlo democrático. As intervenções do BCE no mercado secundário estabilizam temporariamente uma situação permanentemente desestabilizada pela austeridade. Um Banco Central a sério faz o que tem a fazer como prestamista de último recurso do Estado soberano e não pia; ou melhor, até pode piar, mas no fundo não manda. Estado e Banco Central, em necessária ligação, são coisas que não existem, e que não existirão, por estas bandas europeias. Entretanto, o PS apela ao PSD para que reveja a sua posição sobre o BCE, deixando-se de obstinações ideológicas. Estranho que o PSD não o faça, até porque isso não teria quaisquer efeitos práticos na política económica, mas poderia sossegar uma certa oposição formal: lá para Frankfurt não ligam muito a esta política de apelos gentis que têm menos poder político do que um like no facebook. É a isto que vai sendo reduzida a política democrática em Estados sem soberania.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Enterrar a cabeça na areia


Bem sabemos que só o BCE, convertido num verdadeiro banco central, com recursos financeiros ilimitados, pode acabar no imediato com a especulação. Mas converter o BCE num banco central e mutualizar pelo menos uma parte da dívida dos Estados da zona euro significa criar um Estado federal com um orçamento que pague transferências das regiões ricas para as pobres. Acontece que a própria Alemanha é um Estado federal, sendo muito duvidoso que a maioria dos seus cidadãos esteja disposta a integrar um Estado federal de nível superior, os Estados Unidos da Europa. Acresce que a unificação alemã criou, como não podia deixar de ser, um sistema permanente de transferências financeiras para os estados de Leste, um processo que ainda não foi completamente assimilado pelos alemães ocidentais e que grande parte da opinião pública alemã não imagina que possa ser reproduzido no âmbito da federalização da UE. Aqui, os federalistas não podem fugir à deliberação democrática dos cidadãos a pretexto da urgência das decisões.

(Excerto do meu artigo no jornal i)

Os pobres e os desempregados que se lixem


No primeiro trimestre de 2012 entraram na Segurança Social, em média, 12 mil processos de RSI por mês. Em 2011 esse valor situou-se em cerca de 8 mil processos mensais e, no último trimestre desse ano, em 9 mil. Nada que surpreenda: por um lado, as «políticas activas de desemprego» levadas a cabo pela actual maioria PSD/PP geraram, em apenas um ano, 140 mil novos desempregados; por outro, com a degradação das condições de acesso ao subsídio de desemprego (em prazos e montantes), o número de desempregados que perderam o direito a esta prestação aumentou sem cessar (de cerca de 404 mil para 473 mil entre Junho de 2011 e Junho de 2012). Sendo mais do que previsível, o acréscimo de processos de RSI entrados não se traduziu, contudo, num aumento proporcional do número de beneficiários desta prestação (apenas cerca de mais 15 mil, no mesmo período).

Comprometido com cortes substanciais nas despesas sociais, Pedro Mota Soares viu-se pois a braços com a necessidade de conter os encargos orçamentais com o RSI, prestação a que a direita dedica um ódio particular. Em vez de reconhecer o que seria expectável, para quem defende a «ética social na austeridade», isto é, o reforço financeiro da medida dado o aumento de cidadãos em situação económica que os deveria tornar elegíveis para a receber, Pedro Mota Soares decide fazer o contrário: aperta ainda mais as regras de acesso e fiscalização da prestação, esforçando-se assim - tanto quanto pode - para manter a imagem (e o estigma) de que o RSI é um puro «subsídio à preguiça» e fonte inesgotável de «fraudes e abusos».

Os dados, porém, desmentem sistematicamente esta deliberada mistificação. Se olharmos para o relatório mais recente da CNRSI, de Junho de 2011 (isto é, anterior ao reforço do cerco persecutório e populista montado aos beneficiários do RSI pelo actual governo), verificamos que dos 642 mil processos entrados e avaliados no primeiro semestre de 2011, cerca de 40% foram indeferidos ou arquivados (o que demonstra que o crivo é, logo à partida, muito relevante).

Mas mais interessante ainda é constatar os motivos de cessação da prestação no mesmo período: a maior parte ocorre por alteração dos rendimentos (52%) e restrição dos critérios de acesso (12%), representando as situações de provável «fraude e abuso» (incumprimento do programa de inserção, falsas declarações, falta à convocatória do IEFP, recusa do plano pessoal de emprego ou posse de património mobiliário superior ao limite) apenas 10% do total de processos cessados (clicar no gráfico para ampliar).


Não, nem o RSI é um alfobre de «fraudes e abusos» nem o governo se pauta por qualquer espécie de «ética social na austeridade». Mas sim, e apenas, por uma repugnante e inesgotável miséria moral.

Adenda: Se ponderarmos o número médio mensal de cessações fundamentadas em casos de «fraude e abuso» (incumprimento do programa de inserção, falsas declarações, falta à convocatória do IEFP, recusa do plano pessoal de emprego ou posse de património mobiliário superior ao limite) pela média mensal de famílias beneficiárias de RSI no primeiro semestre de 2011, constatamos que o peso percentual das referidas «fraudes e abusos» se restringe a uns residuais 3% (o que desautoriza - de forma inequívoca - a sanha persecutória do ministro Mota Soares).

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Eurodestruição?

Exceptuando o Haiti, a Itália foi o país que menos cresceu a nível mundial na primeira década do milénio, tendo Portugal também conquistado um lugar neste duvidoso pódio. É o que dá uma moeda forte num tempo que foi de aposta política europeia na intensificação dos fluxos económicos globais. No euro-sul quem cresceu foi quem teve o capital financeiro (inter)nacional a fazer bolhas na construção e no consumo. Ao contrário do que parece pensar a opinião convencional, a procura interna esteve mais ou menos estagnada nos dois países do euro que subiram ao tal pódio. Bom, agora os países do euro-sul estão sendo alinhados por uma austeridade que promete já não mais uma década perdida para alguns, mas sim uma década de perdição para todos. As novidades que vêm de Itália apontam para aprofundamento da recessão, com uma queda do PIB de 2,5% em termos homólogos, e da austeridade recessiva, com mais 20 mil milhões de cortes prometidos por Monti. É o círculo vicioso já conhecido. Entretanto, a recessão aproxima-se da França e a poderosa e extrovertida indústria alemã começa a pagar o preço do encolhimento do mercado interno europeu, o resultado vicioso global do somatório de austeras virtudes nacionais: a despesa de uns é o rendimento de outros, as importações de uns são as exportações de outros. Neste contexto, eu percebo bem por que é que os Camilos Lourenços apostam tudo na manutenção de um “consenso” político nacional a três que só serve o programa de quem, a partir da sua zona de conforto, trata a crise como uma oportunidade para destruir o que resta de social-democracia nesta economia política. Não percebo é o que faz o PS neste “consenso”, mas, pelos vistos, a social-democracia em Portugal, na Itália do também lamentável Partido Democrático e noutros países está apostada em dar razão aos que vaticinaram a sua eurodestruição.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Caetano Veloso: O estrangeiro


Do empobrecimento do Estado

Persiste na opinião pública um conjunto de ideias-feitas sobre o Estado: que gasta mais do que ganha, que é ineficiente por natureza ou que consome os recursos da economia (como se os serviços que presta não fossem também eles economia e «alavancadores» - como agora se diz - da economia). A sobrevivência e persistência destas ideias muito deve não só ao simplismo das formulações que as veiculam (embebidas num moralismo populista tão eficaz quanto fraudulento), como à desinformação (por ausência de atenção) em relação a processos continuados de empobrecimento deliberado do Estado.

Não é possível, de facto, perceber a actual situação das finanças públicas sem dar conta destes processos. Estamos a falar, entre outras coisas, do historial trágico de privatizações de sectores relevantes e lucrativos para o Estado, ou da concessão de benefícios e isenções fiscais que aprofundam iniquidades, ao mesmo tempo que depauperam as receitas públicas. No tempo recente, devem ainda somar-se a estes processos os impactos económicos e orçamentais - sobre as economias do sul - da sangria provocada por um euro desenhado para os países do norte europeu e o modelo de financeirização da economia seguido nas últimas décadas.

João Ramos de Almeida, num artigo do Público de ontem que merece ser lido na íntegra, dá conta de uma das dimensões deste processo de empobrecimento do Estado. De acordo com os cálculos efectuados, entre 1990 e 2010, «o montante dos resultados contabilísticos positivos das empresas multiplicou-se por 13, enquanto a receita de IRC apenas triplicou». Ou seja, se «em 1990 o IRC liquidado pelo Estado representava 27% dos resultados contabilísticos positivos declarados pelas empresas», passados «20 anos o IRC pesou já só 6% desses resultados», o valor mais baixo da série apurada (ver gráfico acima).

A perda de receitas gerada por esta via deve-se essencialmente a sucessivas reduções da taxa de IRC, sobretudo através da alteração da base de tributação aplicada às empresas (metade dos resultados contabilísticos deixou de ser tributado) e à diversificação das rubricas de dedução à colecta. Por sectores, em 2010 foi a banca a conseguir a maior redução de taxa efectiva. Desconfiem portanto quando ouvirem dizer que o Estado social é desmesurado e insustentável, face à capacidade financeira do Estado.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Lideranças

Os editoriais do Público que alinham com o euroliberalismo não acertam uma: nem há uma crise de lideranças na Europa, nem Mario Monti é excepção ao que quer que seja. Mas que lideranças estão a imaginar lá no passado para este presente? As lideranças de Delors, Mitterrand e Kohl, por exemplo, os que assinaram Maastricht, a origem da nossa infelicidade europeia? Não há crise de lideranças, mas sim crise causada pela ideologia e pelas forças sociais que lideram o processo europeu de integração desde há muito. Monti é da mesma cepa, a da Goldman Sachs, a da classe capitalista transnacional, que Draghi e tantos outros; a que apostou tudo num euro feito à medida para destruir as conquistas do pós-guerra com toda a austeridade, todos os cortes sociais e todas as desregulamentações laborais de que as lideranças forem capazes. A diferença está na posição que os vários líderes ocupam. Desde o golpe europeu que o colocou como primeiro-ministro de Itália, Monti é obrigado a saber que a neoliberalização que lidera à escala nacional requer um enquadramento monetário e financeiro europeu com modificações na margem para não descarrilar. Apesar disso, Monti é capaz de dizer que o euro é a “torre mais perfeita” da catedral europeia. Isto num país a quem o euro não serviu, serve ou servirá. Que uma parte substancial das esquerdas italianas e europeias alinhe com tais personagens, indica-nos como o euroliberalismo ainda lidera e permite-nos antecipar as derrotas que aí vêm se o euroliberalismo continuar a vencer e se for derrotado…

sábado, 4 de agosto de 2012

Ainda sobre a privatização do Pavilhão Atlântico

«As coisas mais simples são muitas vezes incompreensíveis para as mentes mais sofisticadas. O Estado construiu o PA por 50 milhões de euros. Fê-lo porque considerou que este equipamento era importante no plano de recuperação urbanística da zona oriental de Lisboa. Trata-se de um equipamento cuja utilização comprova a justeza da opção do Estado já que os objectivos que presidiram à sua construção têm sido alcançados. Em função desse sucesso as receitas que gera são superiores aos custos incluindo os custos financeiros a ele associados. Não entra aqui nestas contas o valor de uso embora seja esse valor que justifica a construção de qualquer equipamento desta natureza. Não interessa sequer discutir se para esta construção existiram ou não financiamentos comunitários a fundo perdido.
O que interessa é o facto de não existir nenhuma racionalidade económica em alienar um equipamento, ainda novo, por menos de metade do seu custo apenas e só porque, afinal, o Estado não se revê na função de gestor de equipamentos culturais. Não existe racionalidade mas também não existe surpresa já que esta tem sido a nossa triste história. Infelizmente alguns teimam em não perceber mesmo as coisas mais simples.»

(O certeiro comentário de José Guinote, numa discussão a propósito deste post)

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Da chantagem pós-democrática

As primeiras páginas do Público acabam por dar conta da chantagem dos políticos supranacionais do BCE, sem legitimidade democrática, mas com poder monetário, sobre os políticos nacionais com legitimidade democrática, mas sem soberania monetária. Assim se confirma, contra a complacência a que os editoriais do Público têm sido por vezes atreitos, que o euro, como versão extremada de um sistema de câmbios fixos com liberdade de capitais, bloqueia as democracias europeias porque constrange severamente a escolha de política económica soberana. E sem prática, enquanto não se responder com chantagem à chantagem, a democracia atrofia. Isto não impede, antes estimula, um anúncio da Comissão Europeia, na página a seguir ao destaque do Público, que diz o seguinte: “Em que União Europeia gostaria de viver em 2020? A sua opinião é decisiva para estabelecer os seus direitos e construir o futuro de todos”. Parece que se pode opinar num sítio qualquer e tudo. Quem é que ainda se deixa enganar pela propaganda de Bruxelas quando a realidade é a da destruição europeia de direitos de cidadania democrática que os povos com tanto custo construíram num tempo de democracia menos limitada à escala nacional?

Escola pública: encolher, degradar, dualizar

De uma forma gradual, por vezes quase imperceptível, o ministro Nuno Crato está a levar a cabo uma transformação profunda do sistema educativo. Trata-se de uma estratégia que articula três eixos fundamentais: encolher a oferta estatal; subtrair recursos indispensáveis a um ensino de qualidade e proceder a uma dualização da escola pública.

O objectivo último desta transformação parece ser claro: criar condições que favoreçam a expansão da oferta educativa privada, cedendo-lhe progressivamente o espaço desocupado pela erosão, delapidação e desqualificação da rede pública de ensino. Pelo caminho, o ministro de um partido que ainda ousa designar-se como social-democrata, desfere um golpe violentíssimo naquela que é uma das funções primordiais dos sistemas educativos próprios de sociedades democráticas: garantir a todos igualdade de oportunidades, criando e favorecendo condições de ascensão económica e social a grupos mais desfavorecidos.

Só ao arrepio deste princípio se pode compreender, de facto, a sucessão das medidas já tomadas e o anúncio gradual das que se pretendem implementar. Para além dos cortes orçamentais (muito para lá da troika) e do encerramento consecutivo de escolas, desprovido de fundamentos pedagógicos credíveis e cujos impactos territoriais se negligenciam, a contracção da rede pública de educação assenta numa redução substantiva do número de docentes (através da supressão de ofertas curriculares e do aumento do número de alunos por turma), num país em que os persistentes défices de escolarização e qualificação impedem qualquer comparação com os seus congéneres europeus.

Simultaneamente, abrem-se as portas à possibilidade de as escolas poderem vir a contratar de forma directa os professores e insinua-se no horizonte a implementação generalizada do famoso «cheque-ensino», embalado na perversa ficção do «direito de escolha do estabelecimento escolar» por parte dos alunos e seus encarregados de educação. A par do reforço da margem de autonomia das escolas para constituir turmas homogéneas (agregando os alunos em função dos resultados escolares obtidos), estas opções enformam no seu conjunto as bases de uma espiral de dualização e divergência no seio da rede pública de educação. As melhores escolas passarão a ser ainda melhores e as que enfrentam mais dificuldades (que reflectem essencialmente os meios socio-económicos em que se inserem) são deixadas à sua sorte.

Os impactos socio-espaciais destes processos de contracção, degradação e dualização da escola pública são evidentes, permitindo antever um aprofundamento dramático das desigualdades de acesso e sucesso escolar. Estamos a recuar décadas, às mãos de um governo que é o primeiro, no Portugal democrático, a considerar que a escola não é, afinal, para todos.

(Este texto, hoje publicado no Diário Económico, faz parte do frente-a-frente «esquerda vs. direita» que o jornal manterá até ao final de Agosto. O texto «da direita», de André Azevedo Alves, pode ser lido aqui).

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Do faremos tudo ao não fazemos nada...

Há coisas que não mudam: o BCE é o que é, como está feito, um banco condicionado pela ideologia do Bundesbank que lhe serve de referência. A convenção “fim do euro” tem todas as condições para se continuar a afirmar nos mercados financeiros. O reforço da austeridade exigida pelo BCE vai destruir a Espanha e a Itália. Interessante comparar os títulos do Público e do El Pais: La falta de acción sacude la bolsa e dispara la prima de riesgo e BCE prepara compras de obrigações mas apenas se Espanha e Itália pedirem resgate.

Gato escaldado ou uma Economia de «folha de excel»?

O gráfico aqui ao lado foi ontem publicado pelo Jornal de Negócios (que cita como fonte o Ministério de Álvaro Santos Pereira). Representa a estimativa dos supostos impactos que as principais alterações à lei laboral terão no emprego e diz-nos, essencialmente, que esses impactos serão diminutos no «curto prazo» (dentro de um ano) e mais relevantes (passe a força de expressão) no «longo prazo».

Mas há no gráfico um detalhe que causa estranheza: a manifesta discrepância entre o rigor cirúrgico dos cálculos efectuados (apresentados até à segunda casa décimal) e a aparente incapacidade para fixar uma previsão temporal concreta. Se no «curto prazo» (em que os impactos são praticamente nulos) se estima «um ano», o «longo prazo» fica no vazio do tempo: o Ministério da Economia e do Emprego parece não se querer comprometer com nenhuma data.

O que é que esta «discrepância de rigor» poderá significar? Que a diferença de valores se baseia num mero exercício de fé quanto ao comportamento desejado das variáveis (próprio da Economia de «folha de excel», na feliz expressão de Nicolau Santos)? Ou simplesmente o receio fundado de um ministro em se comprometer com o futuro, depois de ter sentenciado que 2012 «certamente [iria] marcar o fim da crise e [seria] o ano da retoma para o crescimento de 2013 e 2014», que todos já sabem não irá acontecer?