segunda-feira, 31 de maio de 2021

A CAP e a Ordem dos Advogados? Que surpresa...


Foi noticiado que a CAP e a Ordem dos Advogados enviaram representantes ao encerramento do convénio fascista do CH reunido em Coimbra.

Para relembrar: A CAP foi aquela organização cujo secretário-geral, Luís Mira, numa entrevista concedida ao jornal I, disse que alguns contentores onde viviam os imigrantes de Odemira tinham ginásio e ar condicionado e que até ele gostaria de ir lá passar férias. Por seu lado, a Ordem dos Advogados, pela voz do seu presidente, Luís Menezes Leitão, foi aquela organização que mobilizou todos os seus recursos a favor dos proprietários do ZMAR, que se indignaram contra o alojamento de migrantes no complexo por motivos de saúde pública. Numa ironia trágica, Menezes Leitão alegou que o realojamento violava os direitos humanos dos proprietários.

O CH tem a fórmula mil vezes usada pelo fascismo: usar a linguagem e o insulto de taberna para mobilizar o povo que assim atraído vai fazer número na defesa dos que comem no gambrinos.

As elites que lá se deslocam só vão observar com gáudio sádico os idiotas úteis que o seu ator principal conseguiu reunir em sua defesa.

domingo, 30 de maio de 2021

Lutar contra a periferização do país


A TAP é uma rara grande empresa controlada nacionalmente, ainda para mais uma importante exportadora que assegura ligações às comunidades nacionais. A atitude complacente de Susana Peralta em relação ao seu destino é tributária da míope lógica neoliberal que, em nome das sacrossantas concorrência e soberania do consumidor, tem levado ao desmantelamento da capacidade produtiva do país: da Cimpor à PT. Peralta pensa na UE como se esta fosse os EUA e parece resignada com a periferização a que as tendências do capitalismo, no quadro de regras europeias enviesadas e interpretadas por fanáticos do mercado único, votam um país desprovido de política industrial. 

Obviamente, o pirata da Ryanair não é do agrado de Peralta, mas pelos vistos também não o é um Ministro, Pedro Nuno Santos, que não partilha da complacência que favorece objectivamente o tal pirata. Conclui que o tom dos argumentos por refutar, de resto com saudáveis implicações soberanistas, do Ministério prejudicam a “nossa reputação colectiva”. Sim, a reputação do bom aluno euro-liberal de mestres europeus cada vez mais medíocres tem produzido resultados maravilhosos. Duas décadas de estagnação e de periferização não bastaram? Pelos vistos, não. 

Vá lá perceber-se porquê, lembrei-me que não é por acaso que um dos segredos dos Estados desenvolvimentistas asiáticos foi não deixar a elite tecnocrática ser influenciada pela economia neoclássica, com as suas ficções das vantagens comparativas estáticas: nesse sentido, é preferível ter engenheiros em vez de economistas convencionais a influenciar a condução de países com instrumentos de política e vontade de os usar para trepar na hierarquia internacional. Estamos muito longe disto, desgraçadamente.

sábado, 29 de maio de 2021

Ainda os rankings de escolas

«Acho que já passou tempo suficiente para eu poder falar disto em público.
Há mais de 10 anos, trabalhei com a Inspeção Geral de Educação num programa de avaliação de escolas. Conheci gente muito profissional com quem calcorreei dezenas e dezenas de escolas públicas em quase todos os distritos do Norte.
Nunca me esquecerei da primeira escola que visitei, a pouco mais de 50 km do Porto. Uma criança que só tomava banho nos dias das aulas de Educação Física. Tinha vergonha e o professor mandava-a para o balneário 10 minutos mais cedo para ela se lavar. Quem levava a roupa suja da criança e lha trazia lavada e passada no dia seguinte era uma contínua da escola.
Depois vieram outras histórias que fui amealhando. Meninos cuja única refeição quente era o almoço da cantina. Miúdos que à tarde levavam os restos do almoço escolar para casa para servirem de jantar para a família. Miúdos que ao fim de semana se alimentavam de bolachas Maria. Miúdos que aprenderam a gostar de ler na biblioteca da escola, que em casa nunca tinham visto um livro. Escolas que no inverno acabavam as aulas às 4 da tarde para que os pais das meninas não as vendessem por meia hora aos senhores dos Mercedes pretos parados à porta a coberto do escuro. Crianças alcoolizadas. Professores e funcionários à beira de uma exaustão horrível porque tinham de fazer de pais, mães, psicólogos, médicos, confidentes, assistentes sociais. Crianças que nunca tinham ido mais longe do que à vila lá da terra.
A merda dos rankings, a cloaca dos rankings, a vergonha dos rankings serve para quê? Qual é o espanto em constatar sadicamente que os miúdos de casas sem pão ficam em último e os das fábricas de notas em primeiro? Ponham-me a jogar à bola com o Ronaldo e não é preciso vir nenhum ranking dizer-me que nunca lá chegarei.
As escolas que se dão ao luxo de escolher à partida os seus alunos, que recebem os alunos que em casa comem e leem e viajam e falam inglês não têm grande trabalho a fazer. Todos nós, professores, sabemos que trabalhar com bons alunos é fácil. Difícil, desafiante (e apaixonante) é fazer dos fracos bons.
O resultado de uma escola não se mede só pelas notas a Inglês e a Biologia. Há escolas em que o sucesso é alimentar e lavar os miúdos e isso não passa no radar dos filhosdaputa (pardon my French, mas o vernáculo é para ocasiões destas) dos rankings, cuja única função é apontar ainda mais a dedo aqueles que já são estigmatizados, excluídos, ridicularizados todos os dias, e fazer publicidade enganosa aos colégios "do topo".
Conheço paizinhos com filhos problemáticos que acham que transformariam os seus filhos em génios se os inscrevessem de repente numa dessas escolas. Acreditam que há algo nessas escolas, uma varinha mágica impermeável ao resto, que fabrica génios. A ficha cai-lhes quando são os próprios colégios, em privado, a tirar-lhes o tapete. Nem sequer os admitem à entrevista. É bem feito.
Honestidade intelectual: vão buscar um desses meninos que não comem nem tomam banho em casa, ponham-no numa das "top five" (mas ponham mesmo, não façam de conta), não lhes mudem nada nas condições de vida, e vejam se é isso que os manda para o MIT.
»

João Veloso (via Ricardo Noronha)

sexta-feira, 28 de maio de 2021

A função da concertação social


Palavras para quê?

... Mas depois a direita parlamentar (!) insiste que o Parlamento não pode ou não deve decidir sem que, antes, as leis que se quer aprovar sejam concertadas na Comissão Permanente da Concertação Social. Como se antes de aprovar legislação modernizadora se tenha se passar tudo pelo crivo troglodita da lógica "pois se eles estão habituados a muito menos, assim lucramos todos, é um win-win".

Aliás, foi exactamente essa a lógica que esteve na base do escancaramento das fronteiras, do desmantelamento de barreiras à entrada dos países europeus que deixaram passar, sem alcavalas, a produção vinda de zonas em que a mão-de-obra era bem mais barata, sob o argumento de que todos ganhavam. Os indígenas porque ganhavam um salário que nunca tinham recebido, os consumidores do ocidente porque tinham produtos mais baratos, os empresários europeus porque baixavam o salário médio nacional, e as multinacionais porque conseguiam ter margens de lucro de 3 dígitos ao beneficiar dessa via verde, sem pagar direitos à entrada e cujo rendimento até era capaz de ir parar a um paraíso fiscal, pouco contribuindo para os esforços públicos!

E tudo isto dando lições de moral à esquerda por, ao defender o proteccionismo, não ter espírito de internacionalismo proletário, ao condenar à fome a classe operária de países menos desenvolvidos. E ainda são capazes de acrescentar que o trabalho ao nível nacional terá de se adaptar a estas novas condições, porque é melhor ter um emprego assim - o único possível dado o facto de vivermos em globalização - do que estar no desemprego, a receber um subsídio que, aliás, deve ser reduzido para que os trabalhadores não se habituem ao ócio viciante e aceitem o trabalho que lhes for dado, ao preço que for necessário.

É que, para que a produção de tomate cherry seja competitiva, tem de ser feita nas condições de trabalho dos... indígenas. Não percebem isso? Assim fica-se muito mais próximo do mercado consumidor e poupa-se em transportes e desperdício... Isto é feito em nome da produção nacional!

(O PCP divulgou recentemente uma gravação entre uma angariadora de mão-de-obra e um dos trabalhadores das explorações de agricultura intensiva no Alentejo.
Ele e os seus colegas tinham dois meses de salários em atraso. Ao se dirigirem à Segurança Social (para irem para o desemprego) descobrem que o patrão, para além de não pagar os salários, ainda lhes roubou os descontos à segurança social. A chantagem, o desprezo pela condição daqueles homens e mulheres, a coacção e a ameaça são a marca de água de um regime de trabalho de super-exploração, são o próprio rosto do capitalismo. contratados.)
É interessante ver como basta um pouco de realidade para que, rapidamente, se percam de vista todos os argumentos "técnicos" e venha ao de cima o que interessa. Bem hajam empresários nacionais e organizações patronais desta estirpe, a quem é dada a função nobre de legislar.

(fotografia roubada ao José Gusmão)

quinta-feira, 27 de maio de 2021

Um atalho sem saída?


«O encontro [MEL] coincide com a a abertura cada vez mais clara de Rui Rio a Ventura. Os que querem uma direita mais dura, mas capaz de governar, percebem que o voto no Chega não é perdido. Os que, querendo uma alternativa ao PS, não querem um governo que dependa de Ventura, percebem que o PSD não lhes dá essa garantia. Rui Rio perde a direita e o centro» (Daniel Oliveira, A direita na sua bolha).

A dificuldade em apresentar um programa político distintivo e consistente (de rutura com a linha austeritária de Passos e que ao mesmo tempo não se preste a confusões com o PS), foi alimentando no PSD a tentação aritmética de aproximação à Iniciativa Liberal (IL) e ao Chega, como forma de alcançar, com o CDS-PP, uma maioria à direita capaz de derrubar a esquerda em eleições.

Este projeto - assumido como a única forma de regresso ao poder e que constitui, nessa medida, uma espécie de atalho político - prenuncia uma «avantesma» bem mais esquisita que a PAF e assenta no pressuposto de que os novos partidos à direita apenas servem para somar percentagens. Ou seja, que numa eventual aliança pós-eleitoral o peso político da IL e Chega não condiciona, em termos de exigências mais radicais (e para lá das zonas de convergência), a linha convencional de governação à direita.

Contudo, o que PSD e CDS-PP parecem não estar a perceber é que a «nova direita» está numa clara tendência de crescimento desde as legislativas de 2019, e em particular desde dezembro de 2020 (ver gráfico). De facto, se em outubro de 2019 a IL e o Chega representavam cerca de 3% das intenções de votos (e cerca de 10% do total de votos à direita), em maio de 2021, de acordo com a Intercampus, estes partidos representam já 14% das intenções de voto (e cerca de 34% do universo das intenções de voto nos partidos à direita).

Tudo isto enquanto, à esquerda, PS, BE e PCP praticamente mantém o peso eleitoral conjunto obtido em outubro de 2019 (passando dos 53% obtidos nessa data para intenções de voto a rondar os 52% em maio de 2021), sem que as novas formações políticas neste campo do espetro partidário - PAN e Livre - registem uma dinâmica de crescimento idêntica à do Chega e IL, bem pelo contrário.

segunda-feira, 24 de maio de 2021

A filantropia de Cristiano Ronaldo em perspetiva


Foi hoje inaugurada uma ala no Hospital Santa Maria financiada por Cristiano Ronaldo em 3,4 milhões de euros. Todos os órgãos de comunicação irão desfazer-se em elogios ao jogador.

Mas convém colocar o episódio em perspetiva. Cristiano Ronaldo foi acusado e condenado de evasão fiscal no estado espanhol avaliada em cerca de 14 milhões de euros, envolvendo um esquema de criação de empresas falsas em paraísos fiscais como a Irlanda ou as ilhas Virgens Britânicas.

A ironia torna-se óbvia: o jogador foge conscientemente aos impostos num país, que depende desses impostos para financiar a saúde e a educação, e devolve depois uma fração desse valor ao Estado (neste caso, a outro Estado, mas isso pouco importa) sob a forma de filantropia, ainda capitalizando o marketing favorável que a iniciativa lhe proporciona.

Não se equivoquem. Este post nada tem de pessoal. O que me interessa é a dimensão sistémica do problema. Um sistema que permite um emaranhado legal à escala internacional cujo objeivo é que os super ricos possam não ter o seu dinheiro taxado e ainda devolverem uma parte desse roubo mascarado de filantropia.

É ultrajante e degradante. Estados que se debatem a financiar os seus Estados sociais são "presenteados" pela ação benemérita daqueles cuja ação criminosa torna os fundos públicos escassos para as suas funções sociais.

É aqui que reside o problema dos tempos que vivemos. Mas sobre isto os atores ao serviço das elites nada têm a dizer. Para eles, o problema são os miseráveis que recebem o RSI com uma prestação média de 140 euros/mensais.

Saibamos sempre colocar em perspetiva.

sábado, 22 de maio de 2021

JMT devia estudar mais (escolha o colégio que quiser)


João Miguel Tavares faz mais uma das suas no Público de hoje. Escreve a certa altura sobre os resultados dos rankings escolares: 

"Significa que as escolas privadas melhoraram muitíssimo mais, e que a sua competitividade, no que diz respeito à preparação dos alunos para ingressar no ensino superior, é cada vez maior." 

Não, João Miguel Tavares, não significa isso. Está a tirar uma conclusão que os dados não permitem. Os resultados podem estar apenas a assinalar que as escolas privadas são frequentadas por alunos que têm um ambiente familiar mais favorável à aprendizagem, que os seus pais investem mais dinheiro em explicações e/ou que as escolas privadas têm vindo cada vez mais a seleccionar os seus clientes em função das notas que têm, não aceitando ou convidando a sair os que têm desempenhos menos bons. Sendo assim, o contributo dos colégios para a preparação dos exames (fora a preparação para tudo o resto) poderia até ser nulo, que os resultados dos rankings seriam os mesmos. 

JMT está apenas a alimentar a falta de rigor de análise e as leituras que dela decorrem. 

É sintomático que uma pessoa com tanta capacidade para se indignar não se indigne com o facto de os dados sobre a composição socioeconómica dos alunos dos colégios privados continuarem a ser ocultados. Só esses dados (e outros sobre o desempenho dos alunos à entrada e à saída da escola) permitiriam perceber o que o ensino público e o privado andam de facto a fazer.

Regressos há muitos


No fundo, para que a moeda tenha um impacto previsível na economia, tem de ser gasta de uma forma previsível. E tal só acontece se o Estado gastar. A política monetária só é eficaz se o Banco Central for um agente do Tesouro. Mas ninguém admite isto, porque o Tesouro é perverso e o Banco Central é virtuoso. Assim, a política monetária permanece a língua oficial da política macroeconómica. Qualquer correlação com a política orçamental é pura coincidência.

Com fina ironia e imensa sabedoria, Robert Skidelsky destila num parágrafo décadas de pensamento crítico na tradição keynesiana ou não fosse o autor da mais completa biografia de Keynes (por traduzir). A sabedoria macroeconómica convencional das últimas décadas não passou de uma forma de ofuscação para benefício do capital financeiro. 

É claro que esta sua discussão sobre o que realmente está a acontecer num contexto de incerteza é sobretudo relevante para países com soberania monetária, como o Reino Unido. No nosso caso, temos um Banco que não é de Portugal, estamos dependentes da bondade monetária de estranhos neoliberais, ao serviço do mercado único e da política única que lhe tende a estar associada, e temos receio de regras orçamentais austeritárias só temporariamente suspensas. Neste contexto, não haverá socialização do investimento relevante.

Habitação: a Europa em debate


Enquadrada na Presidência Portuguesa da UE, realiza-se na próxima terça-feira, 25 de maio, uma conferência internacional sobre os desafios que hoje se colocam à UE em matéria de habitação. Sendo um debate sobre este domínio das políticas sociais, é porém sobretudo a própria Europa que está em questão, dado o défice histórico de orientações, medidas e apoios a esta escala, na perspetiva das políticas públicas para o setor. De facto, a crise pandémica apenas evidenciou uma crise habitacional que não é de hoje e que afeta a generalidade dos países europeus, marcada pela crescente dificuldade de acesso a uma habitação digna e compatível com os rendimentos das famílias.

Tendo como mote «Rumo a uma abordagem europeia à política de habitação», participam nesta conferência Isabel Dias (IHRU), Marina Gonçalves (secretária de Estado da Habitação), Boris Cournède (OCDE), Maria João Freitas (consultora), Anne Katrin Bohle (secretária de Estado do Ministério Federal do Interior, Equipamentos e Comunidade, Alemanha), Francisco Parrón (Secretário-Geral da Agenda Urbana e da Habitação, Espanha), Robert Rozâc (Secretário de Estado do Ministério do Meio Ambiente e Ordenamento do Território, Eslovénia), Sorcha Edwards (Housing Europe), Paula Marques (Associação Portuguesa de Habitação Municipal), Orna Rosenfeld (consultora), Kim Van Sparrentak (Parlamento Europeu) e Pedro Nuno Santos (ministro das Infraestruturas e da Habitação). Moderam as sessões Mafalda Anjos (Visão) e José Vítor Malheiros (consultor de comunicação de ciência). O programa do evento pode ser consultado aqui e a sessão acompanhada em direto aqui, na terça, a partir das 9h30.

sexta-feira, 21 de maio de 2021

A sonsice sem-vergonha da comunicação social na hora dos rankings

1. Os jornais, rádios e televisões divulgaram mais um exercício de ranking de escolas, elaborado a partir dos resultados dos exames do ensino secundário realizados em 2020. Em linha com os exercícios feitos nos últimos vinte anos, as escolas privadas continuam a não fornecer dados de contexto. Isto é, informação sobre o perfil socioeconómico dos seus alunos e respetivas famílias (rendimentos, nível de escolaridade dos pais, etc.), indispensável para interpretar com um mínimo de rigor e seriedade a mera ordenação dos resultados por escola.


2. Fingindo que não percebem a falácia e a fraude grosseira que daqui resulta, a generalidade dos órgãos de comunicação social continua a publicar as parangonas do costume: «Escolas privadas esmagadoras no topo das melhores médias», lê-se na capa do Público, que acrescenta e detalha, na sua edição online, que «No top 50 há 47 escolas privadas e só três públicas»; «Liderança, ambição e exigência: a receita das escolas para chegar ao topo», sentencia o Expresso; «Primeiros 50 lugares são para privadas», opina com ligeireza o Observador. «As 31 melhores escolas do país são privadas», remata a TVI24.

3. A informação veiculada pelo Público (ver imagem) nem sequer é correta. Não, não é o Ministério da Educação que não «fornece dados de contexto socioeconómico» das escolas privadas. São elas próprias, numa decisão concertada, que decidem não os comunicar ao ME, ao contrário das públicas. Porquê? Porque receiam não sair bem numa fotografia que calibre os resultados obtidos com o perfil dos seus alunos. E os jornais, rádios e televisões, em vez de recusar integrar nos rankings os colégios que não forneçam estes dados (como aconselharia o rigor, a isenção e a decência), preferem continuar a pactuar com o logro, alimentando o mito da superioridade do ensino privado (que a inflação de notas ou a pior preparação para o ensino superior, por exemplo, refutam).

4. Não é difícil perceber a profunda distorção que está em causa, bem mais relevante que as propaladas tretas da «liderança, ambição e exigência», alarvemente apresentadas como qualidades intrínsecas e exclusivas do privado. A prática instituída de seleção de alunos pelo setor (com muito honrosas exceções), é logo à partida mais do que meio caminho andado para o «sucesso». De facto, a maior heterogeneidade social dos alunos das escolas públicas (fixada desde logo pelo grau de capacidade em pagar as mensalidades do privado), e cujo valor formativo tende aliás a ser negligenciado, traduz-se evidentemente numa maior tendência para puxar a média dos resultados dos exames para baixo, por maior que seja (e é-o de forma notável em muitos casos), o esforço destas escolas para romper com as desigualdades sociais de partida (esforço a que a generalidade dos colégios, sobretudo os de topo, são poupados).

quarta-feira, 19 de maio de 2021

Desfaçatez ou ignorância?

 
Fonte: INE, Banco de Portugal


Há um cartaz dos liberais (novos neoliberais) em que um homem sobrecarregado de impostos é exortado a libertar-se... do socialismo.

Não há maior cinismo do que o de alguém que sabe que, desde a década de 80 do século passado - sim, há quase 40 anos! - se tem vindo a realizar uma integração europeia e mundial à bruta, acompanhada de uma rápida transformação político-institucional colada à UE e de políticas alinhadas com um ideário neoliberal, as quais redundaram em Portugal numa estagnação da riqueza produzida (desde 2000), numa subida exponencial do desemprego (ainda mais, dos trabalhadores considerados subutilizados*) e, consequentemente, numa estagnação salarial. E desemprego e maus salários são as causas da pobreza em Portugal, uma pobreza que, por isso, dura há décadas e se mantém nos 20% da população. Quem nasce pobre, pobre fica e, entretanto, alguém lucra com os seus baixos salários.  

Como foi que isso aconteceu? Não se disse que a globalização traria mais riqueza para todos? Não se defendeu que Portugal deveria habituar-se a viver em mercado e, como tal, nada melhor do que vivê-lo sem protecções? Não se disse que as empresas que nesse processo se tornassem insolventes deviam falir e que, se calhar, Portugal deveria ser um  país de serviços? Não se disse que, se Portugal fosse mais competitivo (com mais baixos salários), todos tinham a lucrar com isso? 

Observe-se o gráfico seguinte e veja-se no que resultou essa estratégia. E sinta-se a urgência do governo actual em retomar rapidamente o funcionamento da "monocultura" do turismo, como forma de resolver a profunda dependência externa, nunca assumida. 

      Fonte: Banco de Portugal

Pois, perante este monstro adormecido, estas pessoas, por ignorância ou desfaçatez, culpam, antes, a existência do Estado Social - sobretudo a educação, saúde e a protecção social públicas - que tem de ser financiada por impostos. Vêem o ratio (Impostos + Contribuições sociais) / PIB - vulgo carga fiscal - e esquecem simplesmente que, se esse ratio sobe, isso se deve mais à estagnação ou queda do denominador - o PIB. Mas sobre esse fenómeno essas pessoas ou nada dizem - porque lhes custa assumir a ineficácia dos seus argumentos teóricos; ou argumentam precisamente que a estagnação se deve ao peso dos impostos (no PIB) e não saiem disto.

Ainda hoje o deputado Cotrim de Figueiredo - durante uma interpelação do PCP sobre a defesa dos direitos dos trabalhadores - voltou a insistir na asneira de que melhores salários se conseguem se forem menos tributados. Tudo em nome dos "interesses dos trabalhadores" que, a prazo, ficariam sem escola, sem saúde, sem protecção social...  Tudo para que o rendimento disponível dos trabalhadores possa subir, à custa do Estado, sem que o patronato pague mais! 

Eis a enorme dependência externa da nossa burguesia nacional, pobremente visionária, sempre tão permeável aos argumentos que vêm de fora e que geralmente favorecem... as empresas estrangeiras.    

Por desfaçatez ou ignorância, essas pessoas omitem que foi nesses décadas que as confederações patronais foram pressionando e conseguindo a redução de mínimos legais, que liquefizeram os contratos de trabalho, os horários de trabalho, os acordos colectivos, a proteção à greve, os desincentivos aos despedimentos, os direitos sindicais, as próprias empresas (ao autonomizarem-se secções a funcionar com falsos trabalhadores por conta própria ou fornecidos por empresas de trabalho temporário, criando pesadelos inspectivos à Autoridade para as Condições no Trabalho que raramente consegue responsabilizar  o "dono da obra" efetivo) - tudo para que os trabalhadores ficassem desarmados para defender o seu salário. 

E, se tudo falhar, que se desarme as regras da contratação, que se aprove todo o tipo de contratos precários e flexíveis, temporários e de curtíssima duração, e que se empregue imigrantes a ainda mais baixos salários, para realizar trabalhos que os trabalhadores portugueses se recusam a fazer por baixos salários, para que assim não suba o salário médio dos trabalhadores nacionais.

E já agora apoie-se forças políticas que exortem os trabalhadores nacionais contra os imigrantes. Se aderirem a esse impulso emotivo contra o outro, o estranho, os trabalhadores nacionais aceitam melhor a exploração dos imigrantes, sem perceber que têm tudo a ganhar em defendê-los - porque estarão a defender os seus próprios salários. 

Apoiar a extrema-direita xenófoba visa, pois, baixar salários. E há beneficiários dessa deriva política.

Ora, estas políticas não libertaram os trabalhadores das suas sobrecargas: aliviaram os trabalhadores dos seus salários, roubaram-lhes rendimento. E deixaram-nos mais pobres, mais fracos. Não foi o Estado Social, não foi a política fiscal: foi a política laboral liberal

Se há desfaçatez - porque não se trata de ignorância - é aquela que quer fazer confundir socialismo com o roubo do rendimento dos trabalhadores. Ora, não é o Estado quem rouba rendimento aos trabalhadores. O problema não está, pois, nos sem-abrigo a quem acudir: o problemas está nas empresas. E nos responsáveis das empresas que defendem essas ideias.

O que é interessante na História é que nos mostra que nada se perde. Tudo renasce sobe outras formas. Mas no final, o objectivo parece ser sempre o mesmo. Manter o poder, nem que seja virando os trabalhadores conta si próprios. E tudo em nome da sua felicidade que tarda em chegar. E se alguém se rebelar, a culpa é... do socialismo

 

* Trabalhador "subutilizado" (conceito INE) = Indicador que agrega a população desempregada, o subemprego de trabalhadores a tempo parcial, os inativos à procura de emprego mas não disponíveis e os inativos disponíveis mas que não procuram emprego.

terça-feira, 18 de maio de 2021

Exemplar

 
O Público trazia ontem uma reportagem sobre “os bons exemplos que nos chegam do Douro”. E que bons exemplos são esses? Basicamente o de um capitalista agrário, com 25 hectares e “falta de mão-de-obra”, que se “sentia na mão de meia dúzia de homens capazes de fazer o trabalho necessário”, correndo se calhar o risco de ter de lhes pagar mais ou assim. 

O problema foi resolvido de forma empreendedora, com a criação da “sua própria empresa de prestação de serviços, recorrendo a estrangeiros”. Tudo legal e sem máfias. E toda a gente trabalhou feliz para sempre? Não sabemos, mas o capitalista está satisfeito e “investe nos migrantes”, ou seja, paga-lhes o salário mínimo e tudo. Um novo trabalhador até chegou a perguntar se era preciso pagar para trabalhar quando foi contactado. 

Para lá do estilo vai correr tudo bem, não se sabe bem é a quem, a reportagem revela-nos a realidade exemplar do capitalismo agrário no actual contexto de intensa concorrência. A exploração, de que agora se fala tanto, mais do que um defeito moral, é um feitio sistémico, cuja intensidade é também função de relações de força demasiado invisíveis.


segunda-feira, 17 de maio de 2021

Pedro Lains


Soubemos que faleceu Pedro Lains (1959-2021). Uso o plural: neste blogue divergimos e convergimos muito. E aprendemos também: afinal de contas, desde os anos noventa que lemos os trabalhos de um dos mais influentes economistas e historiadores económicos da sua geração. O Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, onde trabalhava desde 1984, recorda o seu percurso

Em linha com uma certa tradição liberal, a melhor, reforçou apostas social-democratas com a crise e as políticas neoliberais da troika, de que foi crítico. O seu trabalho, partindo da chamada Nova História Económica, influenciada pelo quadro económico convencional, aproximou-se da economia política, por exemplo na consideração das contingências político-ideológicas nas respostas às crises. 

Foi um intelectual público, um economista suave, título de duas colectâneas das suas crónicas, e qualificou o debate.
 

“Se o senhor CEO da Pfizer o diz…” – crítica aos argumentos do Governo português em defesa das patentes


"Comecemos por rever o segundo argumento da cronologia, por ser aquele que, num primeiro olhar, aparenta ter maior sustentação teórica. Será que, neste caso, quebrar patentes colocaria em causa a inovação futura? Em primeiro lugar, importa sublinhar que dentro do debate económico sobre patentes não existe nenhum consenso firmado. Por um lado, a propriedade intelectual limita a difusão de conhecimento e do progresso tecnológico existente, contribuindo para conter a inovação futura. Por outro lado, a propriedade intelectual pode ser uma condição necessária para que a inovação se verifique. Em grande medida, as empresas alocam fundos próprios para investigação e desenvolvimento porque têm a expetativa de gerar receitas futuras provindas do monopólio temporário criado pela propriedade intelectual sobre o produto desenvolvido. Sem essa propriedade intelectual, o incentivo para alocar fundos a investigação e desenvolvimento seria menor e o produto inovador poderia nunca existir.

É este último argumento que está implícito na posição de António Costa. O problema é que ele não tem qualquer aplicação no caso das vacinas para a covid-19, porque o financiamento para a investigação das vacinas não foi realizado, em larga medida, com fundos próprios das empresas. A esmagadora maioria do financiamento foi público. Segundo um estudo publicado recentemente por investigadores do UCL, Oxford e Cambridge, estima-se que entre 97 e 99% do financiamento da AstraZeneca tenha sido público. Na mesma linha, num fact checking publicado no USA Today, concluiu-se que a farmacêutica Moderna terá recebido cerca de 2,5 biliões de dólares de fundos públicos. E, mesmo que não tivessem recebido qualquer financiamento para investigação, o mercado garantido e os fundos adiantados para as encomendas seriam incentivo bastante para estimular a descoberta da vacina. Segundo o noticiado pelo New York Times, por exemplo, o governo norte-americano assinou um contrato de dois biliões de dólares em meados de 2020 com a Pfizer para garantir a produção das doses a serem administradas nos Estados Unidos.

Com efeito, o argumento trazido por António Costa não tem qualquer aplicação neste contexto. Os fundos para desenvolvimento foram maioritariamente públicos e, por conseguinte, o lucro monopolista que advém das patentes não é necessário para incentivar qualquer investimento em I&D num momento anterior. Por outro lado, o mercado garantido à escala global, com contratos de centenas de milhões de doses pagas antes de serem sequer produzidas, seria um estímulo suficiente para a criação da vacina.

Os lucros das farmacêuticas falam por si. A BioNTech, empresa alemã parceira da Pfizer, obteve lucros de 1,3 biliões de dólares no primeiro trimestre deste ano, o que compara com apenas 53 milhões no ano anterior. A economia política deste processo e os interesses da Alemanha não poderiam ficar mais explícitos
."

Artigo completo aqui.

sábado, 15 de maio de 2021

Um jornal para disputas


A pandemia veio revalorizar o papel do Estado e demonstrar a sua centralidade no funcionamento da sociedade. Quem faz esta constatação pensa frequentemente nas respostas sanitárias e nos apoios sociais de emergência, ou no papel exercido por serviços públicos e poder local. É do Estado, afirma-se, que podem surgir as políticas capazes de proteger a vida, de garantir rendimentos, de sustentar o emprego e a actividade económica, de combater a pobreza e as desigualdades. Que esta consciência alastre é algo que deve ser valorizado, em particular quando passam dez anos do pedido de empréstimo de Portugal à Troika, com o violento programa de «ajustamento estrutural» que se lhe seguiu (ver, na edição de Maio, o artigo de Jorge Bateira). 

 Mas o Estado é um instrumento em permanente disputa. Com ou sem pandemia, e mesmo havendo maior consciência social de que ele deve ser robusto, justo, redistributivo e igualitário, permanecem actuantes orientações antagónicas quanto às suas finalidades e à sua configuração. E os arautos da austeridade neoliberal, cada vez mais ruidosos, só esperam a oportunidade para lhe reduzir a capacidade de servir o desenvolvimento e a coesão, social e territorial.

Sandra Monteiro, O Estado, o temporário e o permanente, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Maio de 2021.

sexta-feira, 14 de maio de 2021

"Eles não querem trabalhar"


Marcelo Rebelo de Sousa (MRS): - Há aqui ilações políticas mais vastas. Uma  ilação é como vemos a imigração. Nós somos uma pátria de emigrantes e ficamos legitimamente revoltados quando os nossos emigrantes não são bem tratados lá fora. Temos de começar a ver da mesma maneira quando são emigrantes de outros países que são imigrantes cá dentro. Segundo, é abrirmos os olhos para uma realidade: precisamos de os imigrantes. Economicamente. Mais: vamos precisar de mais imigrantes. Mais qualificados uns, menos qualificados outros. Mais qualificados uns, para muitos trabalhos, mas outros menos qualificados para trabalhos que os portugueses não aceitam fazer... Não aceitam... Mesmo em períodos de desemprego...

António José Teixeira (AJT): - Não existe mão-de-obra suficiente...

MRS: - Não é só não haver mão-de-obra suficiente: prefere outro tipo de trabalhos. Não quer fazer aquele tipo de trabalho. É um facto. (...) Porque há problemas com imigrantes a trabalhar na construção civil. Nós tivemos, no verão passado, quando os surtos de Lisboa tinham a ver com pessoal de limpeza e da construção civil, que nunca tinham confinado, e que viviam em condições de habitabilidade na AML...

AJT: - O que vai fazer? 

MRS: - Vou acompanhando esta matéria. Numa parte, vou fazendo pedagogia. Num momento em que é muito apetecível a xenofobia... "Ah! o problema é termos imigrantes a mais, temos de correr com eles".  (...) E estando nesse número levantam sempre problemas de legalidade, de condições económicas e sociais. E eu tenho de fazer  pedagogia. Que não é por aí que se resolve a questão.


Mais uma vez, Marcelo Rebelo de Sousa olha para o mundo do Trabalho e vê-o perfeito.

Ontem na entrevista que deu  à RTP, voltou a dizer - sobre Odemira - que a chegada de imigrantes a Portugal cumpre uma função imprescindível porque vêm fazer "trabalhos que os portugueses não querem fazer" e que, por isso, devem ser bem tratados pelos nacionais. Mas desta forma redonda, omite qualquer crítica aos empresários que os contratam. Omite qualquer crítica às leis e à sua aplicação que permitem uma vasta gama de contratos precários, mal pagos, a preencher funções permanentes.  

Marcelo Rebelo de Sousa cola-se, assim, a um discurso empresarial que se queixa da falta de mão-de-obra nacional, uma ideia que até entronca naquela ideia muito dominante da União Europeia de que essa falta de trabalhadores existe por causa de um desajuste entre os empregos oferecidos e as habilitações de quem os poderia preencher. Uma ideia que nunca aborda a questão que lhe está subjacente: e se os salários fossem mais altos, será que os portugueses se interessariam pelos trabalhos que este empresariado oferece? 

Ou será que estamos condenados a ter empregos mal pagos? E se assim for, que raio de futuro teremos como país? Porque baixos salários atraem trabalhadores não qualificados, enquanto o emprego qualificado se esvai para a emigração. E se assim for, tudo se degrada: juventude perdida e sem oportunidades, que trabalham de graça (como já acontece no turismo), natalidade fraca, contas públicas periclitantes, instabilidade na Segurança Social, etc. E no final, continuaremos a ter programas da Antena 1 sobre "Os portugueses no mundo" em que apenas se entrevista - de forma feliz! - a emigração bem sucedida dos nossos quadros. E a pagar fortunas do OE com aliciamentos injustos a alguns residentes não-habituais...

Nunca falando deste tema, MRS só consegue disfarçar - mal! - a sua crítica aos portugueses que se recusam a aceitar trabalhos que, na verdade, mal justificam ser feitos pelo preço pago, e que apenas são sustentáveis dividindo uma casa com mais vinte pessoas. Os portugueses, aos olhos do seu presidente da República, parecem uns madraços que não querem sujas as mãos, nem se dobrar no campo. Algo que é um típico olhar de direita que se julga uma elite e que olha o seu povo e diz: "Ah! Antes nós dávamo-nos tão bem com o povo! Agora são uns parvenus que apenas querem comprar carros, aspiradores e frigoríficos". E, claro está, receber o RSI e subsídios...

Ao omitir qualquer crítica às condições laborais, MRS transforma a realidade laboral num problema de imigrantes, de subsidio-dependentes e, na verdade, contribui para alimentar a questão que dizia criticar - a xenofobia, o racismo, a extrema-direita. Ao preferir falar de algo que não é "nem direita nem de esquerda" e que tem a ver com direitos humanos, com as condições de habitabilidade, MRS omite outros direitos humanos, como a devida paga. E omite-o porque se afastasse essa omissão, isso obrigava-o a ter um discurso de esquerda. E a criticar tantos amigos...

Ao afunilar as questões laborais para um assunto de imigração e da xenofobia, Marcelo Rebelo de Sousa desvaloriza -  eclipsa, na verdade - o mundo do Trabalho. Cria uma falsa divisão racial. Valoriza a raça, em detrimento do que esse ser humano faz. E, ao fazê-lo, não resolve nem o problema laboral nem o problema dos imigrantes, nem da xenofobia. Torna-se apenas cúmplice da actual situação de degradação crescente nas condições laborais em Portugal que afectam, na realidade, tanto imigrantes como nacionais e que, assim, é perpetuada.

A ilação é, pois, outra, senhor Presidente. E o senhor está a passar ao lado dela. E cá para mim, de propósito. 


quinta-feira, 13 de maio de 2021

Longe


“Perdemos a classe trabalhadora”, reconheceu recentemente Keir Starmer, perante mais uma derrota dos trabalhistas britânicos. Foi mais um dos bastiões do norte de Inglaterra que caiu, perdido de forma retumbante para os conservadores numa eleição intercalar. Confirmou-se que a eleição para líder dos trabalhistas de um dos principais responsáveis pela desastrosa opção de um segundo referendo, que de resto ditou a sorte de Corbyn entre a eleição de 2017 e a de 2019, foi uma prenda para Boris Johnson. Starmer é uma espécie de Blair fora de tempo e sem carisma. 

Johnson, por sua vez, compreendeu o potencial do Brexit entre as classes populares e tem-no explorado politicamente, reposicionando socioeconomicamente os conservadores mais à esquerda, superando aí a herança de Thatcher e da austeridade, ancorando-os num discurso de confiança patriótica, de controlo dos fluxos migratórios e de segurança em sentido amplo, com uma campanha de vacinação bem-sucedida no quadro do SNS, com anúncios de mais investimento público, sem deixar de ter o governo com mais membros oriundos de minorias étnicas e um dos mais equilibrados em termos de género, refletindo sem dramas tendências sociais de fundo. Os trabalhistas arriscam-se a ser um partido duradouramente minoritário, agora sem programa. Isto está em linha com uma social-democracia perdida na integração supranacional, como se não houvesse ligação entre democracia, pertença e fronteira, talvez com a excepção dinamarquesa, curiosamente fora do Euro. 

É também curioso como este reposicionamento dos conservadores praticamente não encontra eco nos nossos anglófilos de gema nas direitas, totalmente dominados pela melancolia neoliberal da troika, como se verá quando se reunirem todos em convenção para entoar loas à UE e à liberdade dos de cima. Deve ser do confinamento, que os tem impedido de ir beber chá longe da piolheira periférica...

terça-feira, 11 de maio de 2021

Voltámos ao argumento "vivemos acima das nossas possibilidades"?


 

Chega e sobra


Em coerência com a subscrição de apelos que incluem ministros do governo da troika, Rui Tavares insitiu ontem na ideia: o europeísmo até está para lá da esquerda e da direita. Em Portugal, a direita é toda europeísta e faz muito bem, dado que a condicionalidade externa tranca o essencial das suas políticas, restando-lhe esperar pela lógica da alternância. O processo europeu de federalização teria explicitamente como horizonte distópico a realização de uma espécie de EUA num continente de nações, confirmando que esta esquerda termina num caldo tão pós-nacional quanto euro-liberal, com uns assomos de ambientalismo de mercado e sem luta de classes, ou seja, com assomos de jardinagem

Para lá da metáfora, a jardinagem propriamente dita é preferível a esta política, que não polariza, nem mobiliza, feita de convenções europeias em modo zoom ou em modo passageiro frequente, com vista a mimetizar uma economia política nacional que continua a não ser recomendável. Se é para isto, então a apatia política é perfeitamente racional: nada de sociedade, só indivíduos e suas famílias. O vazio e o simulacro ocupariam definitivamente o lugar da política dita progressista nesta periferia. Nas ruas do Porto, graças à CGTP, houve outras possibilidades. 

Aproveitando umas infelizes declarações de circunstância europeísta da Ministra do Trabalho espanhola, oriunda do PCE, Tavares crítica o saudável eurocepticismo que ainda existe na esquerda portuguesa, do PCP até ao BE, sublinhando negativamente a “desilusão” de Catarina Martins com a operação de propaganda portuense, que muito terá favorecido a carreira europeia de Costa. A redução dos direitos laborais, já tão causticados, seguirá dentro de momentos, bem como a aposta no desmantelamento da Segurança Social ou na fragilização de um Serviço Nacional de Saúde rodeado de capitalistas da doença por todos os lados. 

No quadro da UE, em geral, e da Zona Euro, em particular, o máximo que que esta esquerda consegue é uma política defensiva de mínimos, a que a mobilidade dos factores se vai furtando, e de apelos à suposta razoabilidade das elites do poder, mesmo quando tem posições governativas, o que de resto é cada vez menos o caso. Experimentem reverter a herança laboral das troikas e verão a reacção da UE. A social-democracia nacional já nem experimenta e até alinha por cá com a defesa maximalista dos direitos de propriedade intelectual patente na acção da UE, ou seja, da Alemanha. Porque será?

Já agora, contraste-se a ilusória propaganda em jornais como o Público com a quase ausência de referências na imprensa internacional a esta recuperação portuense de todas as vacuidades sociais da Agenda de Lisboa de má memória. Duas décadas de estagnação e de regressão socio-laboral não bastaram? Pelos vistos, não. Não há imaginação para mais, dada a manifesta decadência da terceira via, essa diluição da social-democracia. 

Pela minha parte, não estou desiludido com os simulacros europeus, porque não tenho ilusões sobre a “Europa social”. Os Estados sociais são nacionais e têm sido erodidos pela integração associada ao mercado único e à moeda única. Os mecanismos são claros e a forma de os reverter passa também por menos integração. A UE é do domínio das relações internacionais assimétricas e quanto menos intrusiva e mais variável melhor para as relações sociais nos espaços da produção e da provisão. Neste contexto, é claro que qualquer passo no reforço dos poderes supranacionais diminui a soberania democrática e aumenta o controlo externo, o que não nunca é neutro em termos de políticas, como se confirmará com novas condicionalidades, à boleia de fundos, sobre o povo deste rectângulo. Nunca ninguém se desenvolveu dependendo desta forma cada vez mais intensa do exterior.

O espaço da luta soberanista não pode ficar vazio em Portugal, aliás a política tem horror ao vazio. Os Estados nacionais estão para ficar, com prejuízo para quem prescindiu de alguns dos seus atributos em matéria de política consequente. Aliás, se é para europeísmo, o extremo-centro chega e sobra em termos de oferta. 


domingo, 9 de maio de 2021

Vivi para contar


Depois do presidente dos EUA, Joe Biden, o Papa Francisco pediu o levantamento de patentes das vacinas contra a COVID-19. No mesmo dia, o conselho europeu reunido no Porto persistiu na mentira de que o problema não são as patentes mas o volume produção nos países desenvolvidos para exportação para os países em desenvolvimento. Se o problema não são as patentes, por que motivo países em desenvolvimento como a Índia pedem o seu levantamento há meses? Serão esses países destituídos de capacidade de avaliar se têm capacidade técnica de produzir as vacinas se propriedade intelectual fosse levantada? Claro que não. É uma mentira gratuita que só pretende mascarar a insustentabilidade e isolamento da posição europeia nesta matéria.

Viverei para contar o dia em que chegámos a um momento em que basta a “extrema-esquerda” (ah ah ah) aguardar pelo Presidente dos Estados Unidos, pela Presidente da Reserva federal americana ou pelo Vaticano para defenderem as suas principais bandeiras em relação à crise de saúde pública (no caso das vacinas) ou de resposta robusta à crise económica (no caso de levar a política monetária ao limite para absorver a crise social).

Isto tudo enquanto a comunicação social e o comentário de serviço tem a cara de pau de dizer que vivemos numa ditadura socialista, apesar de o governo português não se mostrar favorável ao levantamento de patentes e ser o mais austeritario dos governos europeus na resposta à crise, sendo mais conservador do que o Império e o Vaticano.

sexta-feira, 7 de maio de 2021

Reformas estruturais de esquerda: o regresso da aposta na ferrovia

Como assinalou há dias Carlos Cipriano, no Público, Portugal tem hoje «o mesmo número de quilómetros (2.546) [de ferrovia] que tinha em 1893». De facto, no pós-25 de Abril a tendência foi sobretudo de fecho de linhas (-38Km por ano, em média), apesar da construção de outras (como a que passou a permitir a travessia do Tejo, concluída em 1999). Por períodos históricos, a rede ferroviária existente em 1974 (cerca de 4.242Km), foi essencialmente construída durante a Monarquia Constitucional (76% desse total), a República (14%) e o Estado Novo (11% do total).

É bem certo que a contração da rede ferroviária desde 1974 reflete a opção crescente pela rodovia e, nessa medida, a democratização do acesso ao automóvel, indissociável da própria democracia e da melhoria dos níveis de bem-estar. Mas do ponto de vista da aposta num transporte público mais económico, estruturante para a coesão do território e mais amigo do ambiente (sobretudo com a eletrificação), o desinvestimento na rede ferroviária, ao longo das últimas décadas, não deixa de suscitar uma enorme perplexidade.

É por isso que o recentemente anunciado Plano Ferroviário Nacional (cuja elaboração estará concluída em 2022) constitui uma autêntica revolução, como referiu recentemente o ministro Pedro Nuno Santos. Nas suas concretizações a médio-prazo (até 2030), os projetos já definidos vão permitir ganhos importantes nos tempos de ligação entre vários pontos do território, passando-se por exemplo a dispender menos de uma hora de viagem de Lisboa a Coimbra ou do Porto a Leiria, a par de melhorias no acesso à rede ferroviária nacional em territórios do interior.


Passageiro regular da Linha da Beira Alta (que hoje liga já de novo à da Beira Baixa), pude constatar a degradação progressiva da mesma entre 2011 e 2015. Isto é, no tempo da troika e de uma direita para lá da troika, apostada no «empobrecimento competitivo», na redução dos serviços públicos e nas famosas «reformas estruturais», tidas como inevitáveis para superar os nossos bloqueios e atrasos. Ironicamente, eram de facto atrasos, crescentes, que se verificavam nessa altura na chegada das composições a Lisboa ou à Guarda, gerados pela necessidade de reduzir a velocidade nos troços mais degradados da linha, por falta de obras de manutenção. Precisamos de facto de reformas estruturais, como a que está em curso na ferrovia. De esquerda.

quarta-feira, 5 de maio de 2021

A «escola do antigamente é que era»?

«(...) mais uma vez, pude confirmar o que já sabia: o ensino atual é bem mais exigente do que era há umas décadas e exige das crianças bem mais do que boa memória. A excelência do ensino dos nossos pais não passa de um mito. Lembro-me de a minha sogra, para me convencer de que há 60 anos a escola primária era muito exigente, me contar que teve de decorar todas as estações de comboio e todas as minas de Portugal. Em jeito de brincadeira, respondi-lhe que não lhe servia de muito já que as minas e as estações estavam todas fechadas. Confunde-se exigência com dificuldade. Claro que é difícil e chato decorar todas as estações de comboio em Portugal. Mas não tem nada de exigente. Na verdade, é um exercício bastante estúpido.»

Luís Aguiar-Conraria, A degradação do ensino (disponível aqui para leitura na íntegra, que se recomenda).

domingo, 2 de maio de 2021

Memória


«"Descansava de joelhos no chão e com as mãos agarradas aos pulsos deles, para que não mos tirassem", relembrou Albina Fernandes. Julgada no dia 17 de novembro de 1962, na sequência da sua prisão em 15 de dezembro de 1961, levou os dois filhos, Isabel e Rui, de seis e dois anos, e manteve-os junto de si em Caxias, como se vê na sua fotografia de identificação da PIDE. Albina e o companheiro, Octávio Pato, estavam na clandestinidade e também ele foi preso no mesmo dia. A PIDE ameaçou-a com a retirada dos filhos para serem entregues numa instituição, mas Albina conseguiu que as crianças fossem entregues aos avós paternos na sua presença.
Neste Dia da Mãe relembramos e homenageamos todas as mães que resistiram e lutaram, e lutam, pela liberdade dos seus filhos e dos filhos dos outros.
»

Museu do Aljube - Resistência e Liberdade

A produtividade segundo a Pordata

Para assinalar o Dia do Trabalhador, a Pordata, patrocinada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (associada ao Pingo Doce, que continua a realizar neste dia as indignas promoções do 1º de Maio, iniciadas em 2012), publicou um conjunto de infografias com «os números essenciais sobre o trabalho e a economia no país».

Uma dessas infografias é dedicada à produtividade e tem um título que é todo um quadro mental e todo um programa. A fórmula é a habitual: faz-se uma associação direta entre a produtividade e o número de horas de trabalho e, para rematar, apresenta-se a coisa como simples reflexo do «desempenho do trabalhador».

É verdade que se reconhece, nesta publicação, que os portugueses trabalham «muitas horas», contrariando a ideia que muitas vezes se tem, falsa, segundo a qual em Portugal se trabalha menos que na Europa, como o Vicente Ferreira lembrava ontem aqui (assinalando igualmente que «os países da UE em que se trabalha menos horas por semana são os que têm níveis de produtividade mais elevados»). Mas subsiste, de facto, a noção de que a produtividade depende do «desempenho do trabalhador».

Ora como oportunamente assinalou também ontem aqui o Vicente, recuperando a ligação para dois posts do Ricardo Paes Mamede (este e este), são vários, e bem mais relevantes, os fatores que explicam a baixa produtividade em Portugal, entre os quais «a qualidade dos equipamentos e das máquinas utilizadas na produção, as fracas competências dos gestores, os baixos salários, os níveis de educação, o tipo de produtos em que nos especializamos, a falta de investimento em I&D, os elevados custos em setores como a energia».

Aliás, se tivermos em conta que «a produtividade é um conceito que remete para a relação entre factores produtivos e valor acrescentado pela produção» (como bem lembra aqui o Ricardo), percebemos ainda melhor o viés ideológico - e o erro crasso - de associar linearmente a produtividade ao número de horas de trabalho ou ao «desempenho do trabalhador».

sábado, 1 de maio de 2021

Odemira do nosso descontentamento


Há uma certa opinião que gosta de fazer troça da esquerda em relação a alguns dos seus referenciais de análise social.

Em particular, acha sempre que é preconceito ideológico quando a esquerda diz que, no contexto de uma sociedade capitalista, as assimetrias de poder na esfera da produção se tendem a estender muito para lá desse domínio, estando presente em várias instituições que enquadram e sustentam por essas mesmas relações de produção. Isto é, por outras palavras, que o capital reproduz o poder que tem na esfera da produção de valor para outros domínios da sociedade, como a geração de conhecimento, a justiça ou a comunicação social.

Os que duvidam talvez queiram tomar como exemplo de análise o que está acontecer com a cobertura noticiosa da cerca sanitária nas freguesias do concelho de Odemira.

Há vários anos que é sabido que milhares de trabalhadores migrantes do sudeste asiático são "importados" por agrários da nova agricultura intensiva que cobre de estufas o Sudoeste alentejano sem que isso provocasse qualquer escândalo.

Quantos minutos de telejornal foram despendidos a denunciar as situações de abuso laboral nessas explorações e as condições de trabalho e habitação abaixo dos níveis da dignidade? Quantas vezes a Ordem dos Advogados, que vem agora a público vociferar contra a requisição de alojamentos privados para acolher os trabalhadores em isolamento, levantou a voz para denunciar as óbvias violação da lei no âmbito da saúde e segurança no trabalho? Quantas reportagens houve a dar eco à população local, que há muito denuncia que o aumento da população não tem tradução no aumento das infraestruturas e serviços públicos? Quantas vezes se tentou chegar à fala com os migrantes que trabalhavam nessas explorações? Quantas vezes se pôs em causa o modelo ambiental e laboral em que esta agricultura assenta? A resposta é poucas. Poucas ou nenhumas.

Agora comparem com o circo mediático instalado em torno de uma minoria de proprietários privados que acham um atentado que a sua propriedade possa ser mobilizada por um curto espaço de tempo para fazer face a uma emergência de saúde pública e de direitos humanos. Quanto minutos de telejornal já foram gastos a ouvir os advogados dos proprietários? Quantos minutos de reportagem ouvimos de pessoas a lamentar o impacto que isto terá na produção dessas explorações? Muitos, demasiados.

Esta linha editorial não é um acaso. Um país ignorou que dezenas de milhares de trabalhadores viviam em condições sub-humanas num país cujo partido no poder se orgulha de apresentar como de esquerda, porque elas não têm poder. São trabalhadores agrícolas, migrantes, que mal falam português. São o último elo na cadeia da exploração. Aqueles que os proprietários rurais vão buscar quando já não encontram quem cá se submeta ás condições que oferecem.

Pelo contrário, os poucos proprietários de imóveis e donos das propriedades agrícolas fazem parte de uma minoria, com recursos económicos, que se senta à mesa do poder, que conhecem sempre alguém que tem o contacto "daquele jornalista".

Não é acaso. É poder. E é também a vergonhosa prova de que as autoridades e o governo deste país estão dispostos a fechar os olhos a violações de direitos humanos para salvaguardar o interesse privado até que elas ponham em causa a saúde pública dos seus ou os direitos de propriedade.

Lições do presente para o trabalho do futuro


«Reforçou-se a evidência da centralidade do trabalho na definição da qualidade de vida de cada cidadão, confirmou-se uma relação profunda entre o trabalho, o emprego e a proteção social, e entre a quantidade e qualidade do emprego e o progresso da sociedade. O 1.º de Maio é comemoração, afirmação de identidades coletivas e solidariedade, denuncia de injustiças, apresentação de novas reivindicações. Neste 1.º de Maio afirmemos, em primeiro lugar, a solidariedade com todos os que ficaram no desemprego ou nele podem cair a curto prazo, reivindicando não só melhor proteção, mas também políticas e investimentos que dinamizem a economia portuguesa e capacitem o Estado para a prestação dos direitos fundamentais às pessoas»

Manuel Carvalho da Silva, O 1.º de Maio e a Cimeira Social

Trabalha-se pouco em Portugal?


Desconstrução de mitos no 1º de Maio: os países da UE em que se trabalha menos horas por semana são os que têm níveis de produtividade mais elevados. É isso que se verifica quando olhamos para os dados do Eurostat. Ao contrário do que muitas vezes é dito, Portugal é dos países europeus em que se trabalha mais horas por semana: uma média de 39,5 horas semanais, bem mais do que a média da zona euro (36,5 horas) e da União Europeia (37,1 horas) e significativamente acima de países como a Holanda ou a Alemanha.

Apesar disso, nos países em que o horário de trabalho é mais longo, os níveis de produtividade são inferiores à média. A verdade é que há vários fatores que explicam a baixa produtividade em Portugal (que já foram descritos neste blogue - aqui ou aqui), entre os quais a qualidade dos equipamentos e das máquinas utilizadas na produção, as fracas competências dos gestores, os baixos salários, os níveis de educação, o tipo de produtos em que nos especializamos, a falta de investimento em I&D, os elevados custos em setores como a energia, e outros. Trabalhar pouco não é, definitivamente, um deles.

Cada dia mais importante


Gostaria de deixar, como fiz no ano passado, a circular oficial da Federação dos Sindicatos, de Novembro de 1885. Porque, passado mais um ano e até por causa disso, por causa da pandemia, por causa do isolamento em que todos caíram, porque nela se sente uma força social que hoje parece esmorecida apesar do esforço quotidiano dos mais motivados, porque - afinal! - tudo se mantém ainda e cada vez mais actual. Mais importante. Desfilemos, pois!


Camaradas trabalhadores,

Chegámos à época mais importante da história do trabalho. A questão é esta: entregamo-nos a um qualquer azar providencial para fixar a jornada de trabalho de oito horas ou contamos com as nossas forças, preparamo-nos para a luta e arrancaremos a jornada de oito horas àqueles que, por ignorância ou egoísmo, se opõem à sua adopção a 1 de Maio de 1886?

Se os assalariados estiverem unidos neste ponto e se se prepararem com fundos suficientes para aguentar a tempestade durante pelo menos um mês, eles trarão a vitória consigo. O trabalho agindo em unidade, tal como o capital, é todo poderoso. Ele pode impor reivindicações justas por meios pacifícos e legais. Unidade na acção e poupanças suficientes para manter o lobo em respeito durante um período curto, é tudo o que precisamos.

O movimento, para vencer, deverá abraçar todas as classes assalariados, de modo que os produtores não produzam senão quando as reivindicações forem aceites e os seus objectivos conseguidos.

Trabalhadores:

O vosso dever junto de vós próprios, da vossa família, da prosperidade está claramente definido. Poupem uma determinada soma, metam dois dólares por semana, comprem mantimentos até 1 de Maio de 1886 e estarão em posição de ultrapassar a derrota. Eis o dever de cada um.

Mas qual é o dever das corporações e das sociedades? Que cada organização escolha um comité, para preparar os homens no seu ofício especial, envolvendo os sindicalizados e os não sindicalizados, no maior número possível para exigir as 8 horas em Maio de 1886.

Conseguir as vantagens de uma redução de trabalho quer dizer um trabalho mais regular e melhor remunerado, uma mais longa existência para os trabalhadores, façamos alguns sacrifícios. É tempo de agir.

Vinte anos de paz num país como o nosso, sem epidemias, sem exército permanente considerável, sem uma marinha dispendiosa, e sem que o pesado fardo do trabalho tenha sido aligeirado, mesmo quando por todo o lado a máquina poupa-trabalho é introduzida e que as ruas estejam pejadas de trabalhadores sem trabalho.

É aos trabalhadores e às sociedades que incumbe a tarefa de reduzir as horas de trabalho e de equilibrar o fardo da produção social.

Com a unidade na acção e 35 dólares de economia por cada trabalhador, poderemos levantarmo-nos e e vencer o capital. Tentemos a luta.

Preparemo-nos!

Hoje e sempre: celebrar o trabalho, defender direitos