terça-feira, 30 de junho de 2009

O tanque e os manifestos

Paulo Trigo Pereira (PTP) decidiu pronunciar-se sobre o manifesto pelo emprego no esvaziado tanque das ideias do PS: «É surpreendentemente pobre e errática a argumentação». Nada que surpreenda: PTP prefere atrelar-se e atrelar o PS ao manifesto dos 28. Com estes intelectuais orgânicos, não admira que o PS também vá pescar nas águas do Compromisso Portugal. Continua a insistir-se na «taxa de natural de desemprego» de duvidosa fama teórica e empírica. Sim, é verdade que os cálculos dos custos do desemprego tomam, implicitamente, como referência um mundo sem desemprego. E depois? Antes isso do que tomar como referência uma taxa de desemprego arbitrária, natural ou não, que só serve para justificar uma política económica que usa o desemprego como mecanismo para disciplinar o mundo do trabalho. Aqui temos outras prioridades normativas. Os custos de protecção social são, entre outros, os custos com os subsídios de desemprego, o resultado de uma política complacente. Nada que faça perder uma linha a PTP, que parece achar que esta crise se cura a si mesma sem investimento público que deixe lastro. Quem subscreveu o manifesto acha que os custos de confiarmos nas forças de mercado são, no actual contexto, demasiado elevados.

«Outra coisa surpreendente do manifesto dos 51 é uma posição claramente europeísta de algumas pessoas que não são tidas como europeístas». Quem é que não é tido como europeísta? Aqui sempre se defendeu um vigoroso aumento do orçamento comunitário e sempre se criticou a actual arquitectura do desgoverno económico europeu que mais parece tirada de um manual de teoria da escolha pública. O desastre está à vista. De resto, é preciso ser caridoso para considerar a atoarda de Vital Moreira sobre o imposto europeu, logo prontamente desmentida pelo PS, uma proposta. Também já aqui defendemos que ou bem que temos um Estado federal, com algum tipo de imposto europeu e com dívida pública europeia, ou bem que a utopia de uma moeda sem Estado acabará mal. Os europeístas felizes do tanque do PS, que andaram estes anos todos a gabar os génios que nos meteram neste buraco institucional, feito com PEC e BCE, é que têm contas a prestar.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Quando o neo-liberalismo cega

Em editorial do Público (27 de Junho), José Manuel Fernandes (JMF) compara o “manifesto dos 28 economistas” que apelam à reavaliação dos grandes investimentos públicos com o manifesto “O debate deve ser centrado em prioridades” de que alguns dos Ladrões são subscritores (texto aqui). Deixo para outra ocasião um comentário àquele manifesto e fico-me hoje pelo editorial de JMF porque ele ilustra bem como “as dúvidas, pertinentes ou não, acerca de alguns grandes projectos podem ser instrumentalizadas” para a defesa de uma política económica neo-liberal, mesmo contra toda a evidência do seu fracasso.

1) Para valorizar a sua posição argumentativa, JMF não demora muito a recorrer ao ‘argumento de autoridade’: “apesar de, entre os signatários, estarem os mais respeitados economistas portugueses”. Mas respeitados por quem? E a que título? Custa a perceber que JMF, um assumido liberal, mostre tanta reverência perante um grupo de personalidades que, certamente de boa fé mas com um texto de rigor muito duvidoso, entendeu dar um contributo para o debate eleitoral sobre a política de investimento público. Até acredito que alguns deles não se sintam à vontade com o argumento de que quem mais tempo ou mais vezes foi ministro, ou mais vezes foi entrevistado nos telejornais, deve ter mais razão que um economista que escreve num blogue. Será que para JMF as ideias já não valem por si mesmas?

2) Queixa-se de que o “manifesto dos 28 economistas” foi acolhido na blogosfera com comentários a “tentar desvalorizar os seus signatários”, “destruí-los na sua reputação em vez de debater as suas ideias”, afirmando mesmo que ocorreram “múltiplas tentativas de assassinato de carácter”. Paradoxalmente, JMF não resistiu à tentação de (pretender) desvalorizar o manifesto de que discorda: [entre os signatários] “abundam os sociólogos, os politólogos, os geógrafos e há até um psicólogo social e um engenheiro agrónomo.”

De facto, há 16 signatários que não são economistas num total de 52. Pela minha parte, acho que é pouco tendo em conta que, sendo o desenvolvimento do País a sua preocupação comum, está em causa um processo complexo e multidimensional cuja discussão requer forçosamente saberes de diferentes disciplinas, e não apenas teóricos mas também práticos. De resto, é natural que JMF não tenha consciência do reducionismo monodimensional da tão promovida ‘análise custo-benefício’ porque os próprios economistas que reverencia partilham essa mesma inconsciência, tal é a cegueira que a ortodoxia da economia produz mesmo em respeitáveis economistas de orientação social-liberal.

3) Mas JMF não fica por aqui em matéria de desvalorização dos seus adversários. Referindo-se à política económica defendida em “O debate deve ser centrado em prioridades”, afirma que os seus objectivos, “como o “pleno emprego”, só foram alcançados de forma duradoura nos países comunistas mas à custa da pobreza geral.” Assim, em desespero de causa, conclui o editorial com um ataque ideológico que convoca o fantasma do comunismo e, de caminho, tenta desvalorizar intelectual e moralmente aqueles de quem discorda. Bravo!

4) Já quanto ao “manifesto dos 28 economistas” diz JMF: “O argumento central era simples: tais investimentos agravariam a dívida externa e, ao recorrerem ao crédito de forma intensiva, criariam dificuldades às empresas privadas para se financiarem numa época de escassez de crédito”, a que acrescem dúvidas quanto aos resultados futuros da exploração de alguns dos projectos e à respectiva criação de emprego.

Acontece que Vital Moreira garantiu na sua coluna no Público (23 de Junho) que “os referidos investimentos recorrem essencialmente a capitais privados e serão em grande parte suportados com a remuneração pelo uso das infraestruturas durante a sua vida útil.” Por outro lado, é do domínio público que também há financiamento comunitário nestes projectos. Assim, fica-se com a sensação que os grandes projectos não vão custar nada aos cofres do Estado. Como não será bem assim, era de esperar que JMF tivesse feito algum trabalho de casa e, recorrendo aos excelentes jornalistas de economia de que dispõe, nos tivesse apresentado uma posição mais informada.

Agora, vir repetir o argumento da expulsão do investimento privado pelo investimento público só mostra que JMF não é capaz nem de confrontar essa teoria com a realidade nem de ponderar opiniões que caem fora do seu paradigma. Não consegue ver que numa gravíssima recessão há muita poupança que, por receio quanto ao futuro da parte de banqueiros, empresários e famílias, não está a ser investida na “esfera real” da economia. Se o investimento privado já está ultra-deprimido, como é que nestas condições o novo investimento público vai expulsar o investimento privado que ainda se faz? Bem pelo contrário, como diz James K. Galbraith (aqui), “a despesa pública vai atrair, em vez de expulsar, o investimento privado.”

Para os leigos: a expulsão do investimento privado pelo público refere-se a um processo de ajustamento da procura agregada simulado num modelo esquemático que trabalha com o pressuposto de que a capacidade produtiva da economia está próxima do pleno emprego. Infelizmente, mesmo os economistas esquecem com frequência que os seus modelos têm pressupostos e que estes nem sempre correspondem à situação em discussão. Como Paul Krugman bem lembrou há dias (aqui), além de não fazer sentido invocar aquela ideia no actual contexto, a sua popularização nas actuais circunstâncias pode mesmo ter efeitos perniciosos.

Concluindo. Dado que as autoridades têm pudor em intervir a sério nos bancos, as dificuldades de acesso ao crédito persistem por toda a Europa. No geral, a União Europeia continua ‘a dar o seu melhor’ para que vários Estados da Zona Euro (para além de alguns membros da UE fora do euro) cheguem ao fim do ano com gravíssimas dificuldades de financiamento (vulgo ‘bancarrota’) sem que tenham executado programas significativos de estímulo à economia. O que nos levará, noutra oportunidade, a uma discussão sobre o que está realmente em causa neste debate: a insustentabilidade da actual configuração da Zona Euro, algo que os 28 economistas não tiveram a coragem de explicitar como sendo a verdadeira preocupação que a todos congrega mas que está bem presente no europeísmo de um manifesto que, segundo JMF, aponta para o “comunismo”.

PS: “a globalização é um facto da vida – tal como a gravidade é outro facto da vida” (JMF dixit!)

É tempo de manifestos

«Se juntarem dois economistas numa sala, terão sempre duas opiniões, a não ser que um desses economistas seja Keynes; nesse caso terão três opiniões». Vale a pena lembrar esta observação, atribuída a Winston Churchill, que, de forma talvez não intencional, valoriza Keynes. A economia é sempre plural e política. E a economia é demasiado importante para ser deixada apenas aos economistas. Em particular aos que estão habituados a fazer política de direita sem serem desafiados nos seus diagnósticos, prescrições e omissões. A minha crónica pode ser lida no i.

domingo, 28 de junho de 2009

A maior vitória da direita: PS -"Partido do Centro"

Já se disse que a derrota do PS nas europeias foi extraordinária: desde as primeiras europeias, em 1987, que o partido não tinha um resultado tão mau. Só em 1987, exactamente aquando da primeira maioria absoluta do PSD (as eleições foram simultâneas) e em pleno realinhamento do sistema partidário precipitado pelo efeito PRD (aparecido em 1985), o resultado em eleições europeias (22,5%) foi inferior ao que se verificou agora. Mas, mesmo assim, muito acima em termos absolutos (1267529 votos) do que aquele que se verificou agora (946475 votos). Claro que os números absolutos não são comparáveis, por causa da simultaneidade das eleições, mas fica a curiosidade.

No caso da direita, o PSD, com 31,71% (1129243 votos) teve o terceiro pior resultado de sempre em europeias (6 eleições): só foi muito ligeiramente pior em 1999 (31,1%, correspondente a 1077665 votos) e claramente pior em 2004 (26,31%: apliquei uma regra de três simples para distribuir os votos da coligação “Força Portugal”, PSD-CDS, em 2004, tendo em conta o resultado percentual médio de cada parceiro em 1999 e 2009 – cerca de 895581 correspondentes a cerca de 79% de todo o voto na coligação). O CDS-PP, com 8,37% (298057 votos), teve o seu terceiro pior resultado de sempre em eleições europeias: só foi muito ligeiramente em 1999 (282928: 8,2%) e marcamente mais negativo em 2004 (6,96%; cerca de 297024), o annus horribillis da direita portuguesa em europeias.

Todos estes cálculos não servem para desmerecer a vitória da direita nas europeias de 2009, de todo. Tal vitória criou uma nova dinâmica nas hostes da direita e, por isso, um governo PSD-CDS é agora uma possibilidade no horizonte. Segundo, produziu um enorme desânimo entre as hostes do PS. Terceiro, foi uma surpresa: um efeito fundamental em política, sobretudo a esta distância das legislativas. Exactamente, pela sua proximidade com as legislativas, estes três elementos são cruciais para uma nova dinâmica (da direita). Além disso, vieram reabilitar o multipartidarismo e a ideia de coligação, sobretudo por via do resultado do CDS-PP. Por isso, esclareça-se, os meus cálculos não pretendem menosprezar a vitória da direita, tão só relativizá-la.

E à esquerda? O PCP/CDU, com 10,66% (397707 votos), teve o melhor resultado face ao período 1999 a 2004 (8,2%, 357575; 9,1%, 308873; 9,08%, 309421), mas este muito abaixo de 1987 (11,5%: 648962), de 1989 (14,4%: 597404) e de 1994 (11,2%: 3400873). Mixed results, portanto.

A grande novidade que, porém, não tem muito lastro histórico em europeias…, foi claramente o BE. Com 10,73% (382011 votos) ficou claramente acima da sua estreia nas europeias (1999: 1,8% correspondentes 62022 votos), mas também cresceu brutalmente face a 2004 (4,9% correspondentes a 167039 votos).

É muitíssimo arriscado estimar transferências de voto a partir dos dados agregados (e sem inquéritos de painel) mas parece claro que o PS poderá ter perdido votos para todos os lados (abstenção, brancos e nulos, PSD, "esquerda radical"), mas uma fatia muito substancial terá, muito provavelmente, ido para a "esquerda radical", sobretudo o BE.

Esperava-se, por isso, que o PS tentasse (tarefa muito dificil, convenhamos) reconquistar votos à esquerda ou, pelo menos, acenar com a hipótese da regresso da direita e procurar, desse modo, potenciar um eventual efeito de voto útil. Nada disso, a grande aposta parece ser estancar as perdas à direita. Primeiro, foi a escolha de Vitorino (que está sempre em todo o lado na política, excepto quando não está nos negócios, onde passa a maior parte do tempo…), essa guarda avançada da “terceira via” (blairista, etc.), para a feitura do programa.

Agora, é o aconselhamento informal pedido pelo primeiro-ministro (e o seu inner circle do PS) aos homens do Compromisso Portugal (pasme-se!) e a situacionistas que engordam brutalmente através dos seus “negócios privados” com o Estado… Carrapatoso, porém, parece ter mais dignidade e vergonha na cara do que os outros e, por isso, terá recusado (apoio explicito, mas não aconselhamento...).

Parece que, efectivamente, o primeiro ministro e o seu inner circle no PS não perceberam muito bem a derrota nas europeias. As pesssoas que agora votaram no PSD não o fizeram por causa das suas ideias liberais: na melhor das hipóteses, querem pessoas que inspirem maior confiança e seriedade, além de desejarem ver-se livres da arrogância da governação musculada e da defesa (pelo PS) de um Estado sem funcionários… Mas também o terão feito porque, tal como na Europa, terão bastantes dificuldades em diferenciar o PS dos partidos à sua direita e, portanto, se a diferença não é assim tanta, fica mais fácil mudar de campo…

Por tudo isso, a maior vitória da direita é mesmo a conversão do PS numa espécie de “Partido do Centro”, um traço brutal desta legislatura e de que o recente pedido de aconselhamento aos homens do Compromisso Portugal (e a outros neoliberais situacionistas de gema) é só mais um passo nessa longa caminhada… A maior vitória da direita é, pois claro, a forte penetração das ideias neoliberais no âmago da direcção socialista: este episósido com os homens do Compromisso Portugal é bem ilustrativo e vem, mais uma vez, confirmar dados anteriores.

Mas, além de tudo, não parece uma estratégia muito inteligente para capitalizar qualquer tipo de voto útil à esquerda: então se o PS até se aconselha agora com o Compromisso Portugal, fica muito mais dificil às pessoas de esquerda votarem no “Partido do Centro”, não será? Além disso, nestas condições, até os sociais conservadores do PSD podem ser mais soft ou, pelo menos, serão claramente mais previsíveis…

“Pequeno destaque em caixa com fundo...” ou a moral insólita do Público e de José Manuel Fernandes


Um dos pontos cruciais para apreciar a forma como uma sociedade está capacitada para o debate e para o exercício do pluralismo é o modo como faz a recepção do próprio debate, isto é, das controvérsias em que ele se baseia. Para além do fundamento das ideias em diálogo, está em causa saber que “tecnologias” de discussão é que se convocam. Por vezes convocam-se as piores. Entre elas estão a da “credibilidade”: uma ideia é “credível” mas a ideia que se lhe opõe não o é, independentemente dos seus conteúdos ou fundamentos. Outra das más “tecnologias” é a da reserva de legitimidade: mesmo que a questão seja colectiva, só alguns são legítimos intervenientes, em vista de um saber “imperialista” que possam deter. Os outros saberes (e as razões que formulam) são coisas marginais, irrelevantes, fora do assunto. O direito à delimitação do campo da discussão é outra das arrogâncias que mina o debate. Albert Hirschman, um economista exemplar, abordou de forma original questões desta natureza em The Rhetoric of Reaction, um livro de 1991.

Mas há questões mais insidiosas. Uma deles é a do exercício prepotente do poder que se tenha para introduzir a batota no jogo. O que o Público ontem fez é exemplar, neste domínio. Recebeu de forma privilegiada o texto, não recusou esse privilégio, não o publicou ou referenciou mas o Director, em Editorial, atacou-o, assumindo uma resposta a algo que os seus leitores não conhecem. Esta moral é tão amoral que nem precisa de ser qualificada.

Entretanto, hoje, o texto teve uma singela referência no jornal. Ironia das ironias, por baixo do texto, na edição online, vinha uma daqueles frases “técnicas” que, de forma espúria, ficam à disposição dos leitores. Dizia assim: “Pequeno destaque em caixa com fundo que também pode servir de legenda para a fotografia do lado esquerdo”. Se calhar nem tinha a ver com a notícia a que me refiro. Mas a vontade está lá: pequeno destaque...

sábado, 27 de junho de 2009

De cabeça perdida?



«Desde a monumental derrota, um “desinsuflar” equivalente a 1985 mas sem PRD e em eleições europeias, há vários traços na actuação do governo que apontam para uma certa desorientação. Nomeadamente, nos casos do TGV, da PT e do simulacro de acordo sobre carreiras no Ensino Superior (com sindicatos sem presença singificativa na área, e depois de ter negociado com os sindicatos que estão efectivamente no terreno mas que não assinaram: o Snesup e a Fenprof/Superior).

Sendo o Estado um accionista fundamental na PT, custa a crer que, num negócio desta envergadura, a adminstração tivesse avançado sem o agreement (ainda que informal) deste accionista. Mas o governo e a PT dizem que não. Recentemente, no parlamento, o governo disse ainda que não interferia nas decisões empresariais de uma firma privada. Porém, depois de confrontado com as críticas do PSD ao negócio e com as posições do primeiro-ministro quando ainda estava na oposição (contra uma forte presença do Estado, via PT, nos media), decidiu que vai agora vetar as tais “decisões empresariais de uma firma privada”.»

Publicado originalmente no Diário de Notícias, 27/6/2009.

PS: Sobre o simulacro de acordo sobre carreiras no Ensino Superior, um colega que creio ser da direcção do Snesup (do Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Coimbra, mas que me pediu para não ser identificado e que terá obtido estes dados por via de um ex-presidente da direcção do snesup) informou-me ainda que os tais “sindicatos zero”, isto é, “Os seis sindicatos que assinaram com o MCTES representam, no global, cerca de duas dezenas de associados (investigadores, na sua maioria). O SNESUP tem cerca de 4500 sócios e a FENPROF também. Juntos, valem 9.000 sócios de um total de 25.000, de docentes no Superior. (...)"

Um manifesto com prioridades

O debate deve ser centrado em prioridades:
só com emprego se pode reconstruir a economia


Estamos a atravessar uma das mais severas crises económicas globais de sempre. Na sua origem está uma combinação letal de desigualdades, de especulação financeira, de mercados mal regulados e de escassa capacidade política. A contracção da procura é agora geral e o que parece racional para cada agente económico privado – como seja adiar investimentos porque o futuro é incerto, ou dificultar o acesso ao crédito, porque a confiança escasseia – tende a gerar um resultado global desastroso.

É por isso imprescindível definir claramente as prioridades. Em Portugal, como aliás por toda a Europa e por todo o mundo, o combate ao desemprego tem de ser o objectivo central da política económica. Uma taxa de desemprego de 10% é o sinal de uma economia falhada, que custa a Portugal cerca de 21 mil milhões de euros por ano – a capacidade de produção que é desperdiçada, mais a despesa em custos de protecção social. Em cada ano, perde-se assim mais do que o total das despesas previstas para todas as grandes obras públicas nos próximos quinze anos. O desemprego é o problema. Esquecer esta dimensão é obscurecer o essencial e subestimar gravemente os riscos de uma crise social dramática.

A crise global exige responsabilidade a todos os que intervêm na esfera pública. Assim, respondemos a esta ameaça de deflação e de depressão propondo um vigoroso estímulo contracíclico, coordenado à escala europeia e global, que só pode partir dos poderes públicos. Recusamos qualquer política de facilidade ou qualquer repetição dos erros anteriores. É necessária uma nova política económica e financeira.

Nesse sentido, para além da intervenção reguladora no sistema financeiro, a estratégia pública mais eficaz assenta numa política orçamental que assuma o papel positivo da despesa e sobretudo do investimento, única forma de garantir que a procura é dinamizada e que os impactos sociais desfavoráveis da crise são minimizados. Os recursos públicos devem ser prioritariamente canalizados para projectos com impactos favoráveis no emprego, no ambiente e no reforço da coesão territorial e social: reabilitação do parque habitacional, expansão da utilização de energias renováveis, modernização da rede eléctrica, projectos de investimento em infra-estruturas de transporte úteis, com destaque para a rede ferroviária, investimentos na protecção social que combatam a pobreza e que promovam a melhoria dos serviços públicos essenciais como saúde, justiça e educação.

Desta forma, os recursos públicos servirão não só para contrariar a quebra conjuntural da procura privada, mas também abrirão um caminho para o futuro: melhores infra-estruturas e capacidades humanas, um território mais coeso e competitivo, capaz de suportar iniciativas inovadoras na área da produção de bens transaccionáveis.

Dizemo-lo com clareza porque sabemos que as dúvidas, pertinentes ou não, acerca de alguns grandes projectos podem ser instrumentalizadas para defender que o investimento público nunca é mais do que um fardo incomportável que irá recair sobre as gerações vindouras. Trata-se naturalmente de uma opinião contestável e que reflecte uma escolha político-ideológica que ganharia em ser assumida como tal, em vez de se apresentar como uma sobranceira visão definitiva, destinada a impor à sociedade uma noção unilateral e pretensamente científica.

Ao contrário dos que pretendem limitar as opções, e em nome do direito ao debate e à expressão do contraditório, parece-nos claro que as economias não podem sair espontaneamente da crise sem causar devastação económica e sofrimento social evitáveis e um lastro negativo de destruição das capacidades humanas, por via do desemprego e da fragmentação social. Consideramos que é precisamente em nome das gerações vindouras que temos de exigir um esforço internacional para sair da crise e desenvolver uma política de pleno emprego. Uma economia e uma sociedade estagnadas não serão, certamente, fonte de oportunidades futuras.

A pretexto dos desequilíbrios externos da economia portuguesa, dizem-nos que devemos esperar que a retoma venha de fora através de um aumento da procura dirigida às exportações. Propõe-se assim uma atitude passiva que corre o risco de se generalizar entre os governos, prolongando o colapso em curso das relações económicas internacionais, e mantendo em todo o caso a posição periférica da economia portuguesa.

Ora, é preciso não esquecer que as exportações de uns são sempre importações de outros. Por isso, temos de pensar sobre os nossos problemas no quadro europeu e global onde nos inserimos. A competitividade futura da economia portuguesa depende também da adopção, pelo menos à escala europeia, de mecanismos de correcção dos desequilíbrios comerciais sistemáticos de que temos sido vítimas.

Julgamos que não é possível neste momento enfrentar os problemas da economia portuguesa sem dar prioridade à resposta às dinâmicas recessivas de destruição de emprego. Esta intervenção, que passa pelo investimento público económica e socialmente útil, tem de se inscrever num movimento mais vasto de mudança das estruturas económicas que geraram a actual crise. Para isso, é indispensável uma nova abordagem da restrição orçamental europeia que seja contracíclica e que promova a convergência regional.

O governo português deve então exigir uma resposta muito mais coordenada por parte da União Europeia e dar mostras de disponibilidade para participar no esforço colectivo. Isto vale tanto para as políticas destinadas a debelar a crise como para o esforço de regulação dos fluxos económicos que é imprescindível para que ela não se repita. Precisamos de mais Europa e menos passividade no combate à crise.

Por isso, como cidadãos de diversas sensibilidades, apelamos à opinião pública para que seja exigente na escolha de respostas a esta recessão, para evitar que o sofrimento social se prolongue.

Manuel Brandão Alves, Economista, Professor Catedrático, ISEG; Carlos Bastien, Economista, Professor Associado, ISEG; Jorge Bateira, Economista, doutorando, Universidade de Manchester; Manuel Branco, Economista, Professor Associado, Universidade de Évora; João Castro Caldas, Engenheiro Agrónomo, Professor Catedrático, Departamento de Economia Agrária e Sociologia Rural do Instituto Superior de Agronomia; José Castro Caldas, Economista, Investigador, Centro de Estudos Sociais; Luis Francisco Carvalho, Economista, Professor Auxiliar, ISCTE-IUL; João Pinto e Castro, Economista e Gestor; Ana Narciso Costa, Economista, Professora Auxiliar, ISCTE-IUL; Pedro Costa, Economista, Professor Auxiliar, ISCTE-IUL; Artur Cristóvão, Professor Catedrático, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro; Álvaro Domingues, Geógrafo, Professor Associado, Faculdade da Arquitectura da Universidade do Porto; Paulo Areosa Feio, Geógrafo, Dirigente da Administração Pública; Fátima Ferreiro, Professora Auxiliar, Departamento de Economia, ISCTE-IUL; Carlos Figueiredo, Economista; Carlos Fortuna, Sociólogo, Professor Catedrático, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra; André Freire, Politólogo, Professor Auxiliar, ISCTE; João Galamba, Economista, doutorando em filosofia, FCSH-UNL; Jorge Gaspar, Geógrafo, Professor Catedrático, Universidade de Lisboa; Isabel Carvalho Guerra, Socióloga, Professora Catedrática; João Guerreiro, Economista, Professor Catedrático, Universidade do Algarve; José Manuel Henriques, Economista, Professor Auxiliar, ISCTE-IUL; Pedro Hespanha, Sociólogo, Professor Associado, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra; João Leão, Economista, Professor Auxiliar, ISCTE-IUL; António Simões Lopes, Economista, Professor Catedrático, ISEG; Margarida Chagas Lopes, Economista, Professora Auxiliar, ISEG; Raul Lopes, Economista, Professor Associado, ISCTE-IUL; Francisco Louçã, Economista, Professor Catedrático, ISEG; Ricardo Paes Mamede, Economista, Professor Auxiliar, ISCTE-IUL; Tiago Mata, Historiador e Economista, Universidade de Amesterdão; Manuel Belo Moreira, Engenheiro Agrónomo, Professor Catedrático, Departamento de Economia Agrária e Sociologia Rural, Instituto Superior de Agronomia; Mário Murteira, Economista, Professor Emérito, ISCTE- IUL; Vitor Neves, Economista, Professor Auxiliar, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra; José Penedos, Gestor; Tiago Santos Pereira, Investigador, Centro de Estudos Sociais; Adriano Pimpão, Economista, Professor Catedrático, Universidade do Algarve; Alexandre Azevedo Pinto, Economista, Investigador, Faculdade de Economia da Universidade do Porto; Margarida Proença, Economista, Professora Catedrática, Escola de Economia e Gestão, Universidade do Minho; José Reis, Economista, Professor Catedrático, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra; João Rodrigues, Economista, doutorando, Universidade de Manchester; José Manuel Rolo, Economista, Investigador, Instituto de Ciências Sociais; António Romão, Economista, Professor Catedrático, ISEG-UTL; Ana Cordeiro Santos, Economista, Investigadora, Centro de Estudos Sociais; Boaventura de Sousa Santos, Sociólogo, Professor Catedrático, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra; Carlos Santos, Economista, Professor Auxiliar, Universidade Católica Portuguesa; Pedro Nuno Santos, Economista; Mário Rui Silva, Economista, Professor Associado, Faculdade de Economia do Porto; Pedro Adão e Silva, Politólogo, ISCTE; Nuno Teles, Economista, doutorando, School of Oriental and African Studies, Universidade de Londres; João Tolda, Economista, Professor Auxiliar, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra; Jorge Vala, Psicólogo Social, Investigador; Mário Vale, Geógrafo, Professor Associado, Universidade de Lisboa.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Economistas contra a democracia?

Vale a pena ler esta posta de Miguel Portas onde, entre outras coisas, se crítica o estranho embevecimento de Vasco Pulido Valente (VPV) com a «elite incontestável» formada por certos economistas. Embevecimento pouco consistente? Lembram-se da recente posição de VPV sobre a economia?

Enfim, não se suspende a democracia por uns meses. Esvazia-se a democracia e entrega-se a decisão política a «gente séria» dotado de um saber «sério». Por mais uma boas décadas? Este livro de Jacques Sapir, recentemente editado entre nós pela sururu, explora a relação problemática das correntes e das políticas económicas dominantes com a democracia. Quando tiver mais tempo farei uma recensão. Entretanto, e em complemento ao que o José Maria escreveu sobre a incensada análise custo-benefício (ACB), podem ler isto:

«Quer no caso da escolha individual, quer no caso da escolha colectiva, o preço é considerado pela ACB como a medida única de valor, funcionando potencialmente como solvente de todas as dimensões valorativas que possam justificar a escolha (…) apesar de todas as ilusões sobre a possibilidade de 'despolitização' da condução das políticas públicas através da determinação de um critério neutro de avaliação, o conflito intrapessoal e interpessoal, a persuasão ou o estabelecimento de consensos precários, fundados em razões partilhadas, continuarão a ser elementos insuperáveis».

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Simulacro de acordo no ensino superior



O sindicato de docentes do ensino superior no qual estou filiado, o Snesup, está a divulgar a foto ao lado acompanhada da seguinte mensagem:

«"Ensino Superior Acordo - Conhece estes senhores?"

“A Federação Sindical da Administração Pública (FESAP) (em cujo âmbito negociaram a Federação Nacional dos Sindicatos da Educação (FNE), o Sindicato dos Trabalhadores da Administração Pública (SINTAP), o Sindicato Nacional e Democrático dos Professores (SINDEP) e o Sindicato Nacional dos Profissionais da Educação (SINAPE), assim como o Sindicato dos Professores do Ensino Superior (SPES) e o Sindicato Nacional dos Professores Licenciados (SNPL), concluiram pela assinatura de um acordo global com o MCTES.”

Conhece estes senhores ?

Sabe quantos docentes representam ?

Mais uma das questões a que Mariano Gago não respondeu.

SNESup
25-6-2009»

Ou seja, segundo esta mensagem (e esta imagem), da qual não há razões para duvidar, conclui-se que o MCTES (Ministério da Ciência Tecnologia e Ensino Superior) encenou aqui um puro simulacro de acordo na negociação das carreiras dos docentes no ensino superior (universidades e politécnicos).

Porquê?

Primeiro, porque não assinaram as duas maiores organizações representativas do sector (o Snesup e a Fenprof/Ensino Superior).

Segundo, porque as organizações que estão a assinar (na foto) têm, na melhor das hipóteses, uma presença muitíssimo residual no ensino superior e, portanto, trata-se de um acordo com organizações sem constituintes... E daí a pergunta, muitíssimo pertinente:
"Conhece estes senhores?" (do ensino superior, claro)
E a resposta óbvia é: não, ninguém conhece porque eles não têm, na prática, qualquer presença efectiva no ensino superior.

Ou seja, apesar de a nova proposta de ECDU ter vários pontos positivos, e ter até havido uma certa aproximação de posições, a verdade é que há vários pontos muito gravosos e injustos que se mantêm (para ler mais aqui, aqui e aqui).

Mas, sobretudo, o que choca nisto é que o desepero em época pré-eleitoral (ou eleitoral mesmo?!) estar a levar estes senhores a estas encenações/simulacros.

Parece que estão mesmo de cabeça perdida...

Muitíssimo lamentável, e porventura até mais do que a atitude do governo que é de pura gestão eleitoral sem qualquer substância... mas percebe-se, é o facto de certos sindicalistas se prestarem a este repugnante simulacro de acordo... Depois os dos outros é que são "sindicatos correias de transmissão dos partidos"... Deixa-me rir...

A República dos Peritos


Cada vez mais entidades independentes ao comando (leia-se, isentas do sufrágio popular) : primeiro os governadores dos bancos centrais, depois outras entidades reguladoras, por fim comissões de sábios para decidir tudo e mais alguma coisa.

Tudo isto poderia fazer algum sentido se estas entidades “independentes” fossem dotadas de um conhecimento que lhes permitisse chegar a conclusões incontestáveis. Sugere-se muitas vezes que os “peritos” têm efectivamente esse conhecimento. Os economistas, por exemplo, teriam uma espécie de bola de cristal chamada análise custo-benefício que os tornaria infalíveis nas decisões acerca de muita coisa, inclusivamente grandes projectos de investimento público.

Mas quem já participou em exercícios de análise custo-benefício sabe como é fácil transformar desacordos políticos em desacordos metodológicos: a técnica de medição mais apropriada, o parâmetro x, as dimensões a ter em conta… Neste caso, o exercício técnico não é mais do que o prolongamento da política por outros meios. Mas há ainda pior: a manipulação pura e simples do método para obter conclusões encomendadas.

Para compreender as limitações da análise custo-benefício segue um exemplo:
Temos de escolher entre duas campanhas de vacinação. A campanha A custa 500 mil € e permite salvar um milhão de vidas, a campanha B custa 3 milhões e salva dois milhões e meio. Por um lado a campanha A é melhor do que a B (a A é mais barata), por outro lado a B é melhor do que a A (salva mais vidas). É um dilema.
O que significa aplicar a análise custo-benefício à resolução deste dilema: atribuir um valor monetário às vidas, somar parcelas e comparar.
Admitamos que 1 milhão de vidas vale 500 mil euros. Teríamos então:

Campanha A: Custo = 500 mil; Benefício = 500 mil; Benefício Líquido = 0
Campanha B: Custo = 3 milhões: Benefício = 2,5 milhões; Benefício Líquido = - 500 mil
Conclusão: a campanha A deve ser escolhida.

A pergunta agora é: como atribuir um valor monetário à vida humana? Responde o analista: Há vários métodos; de acordo com o Manual de Economia Pública de Stiglitz (2ª ed. P. 263) num deles “estimamos o que o indivíduo teria ganho se tivesse ficado vivo (até até à sua idade “normal” de morte)”.

Mas isto é horrível - oiço dizer: nesse caso a vida de um rico valeria mais do que a de um pobre.
Pois é. A implicação seria que uma campanha de vacinação que “não compensa em África”, pode compensar na Europa.

Comentário final do analista (pela voz do Stiglitz de 1988 que pode não ser o mesmo Stiglitz de 2009): “Por muito controversas que as estimativas do valor da vida possam ser, é provável que continuem a ser úteis na avaliação de projectos que afectam a probabilidade de morte”.
A análise custo-benefício está cheia de problemas. Tenho dificuldade em compreender a sua utilidade, pelo menos em casos em que estão em causa valores que dificilmente têm preço.

Significa isto que estou a sugerir que não se façam contas? De modo nenhum. Devem-se fazer as contas possíveis. Mas não se dê um preço ao que não é uma mercadoria. Significa isto que não se devem ouvir os peritos? De maneira nenhuma. O que não vale é passar para eles as decisões políticas. Quem aceitou que isso acontecesse uma, duas vezes, não se pode admirar que lho venham exigir uma terceira.

Significa isto que se deve decidir no silêncio dos gabinetes? Claro que não. Uma decisão participada só pode ser mais inteligente, mais bem justificada.

Economia do Conhecimento - Notas



Foi interessante assistir à entrevista que o presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática, Nuno Crato, deu esta semana a Mário Crespo no Jornal das 9 da SIC. Não tanto por causa dos exames nacionais (ah!... eis algo que ainda é "nacional", ao contrário do peixe, da carne das batatas, da fruta...), mas mais por causa de uma afirmação lateral. Disse ele, entre outras coisas, que as ciências sociais que são verdadeiramente científicas – como a sociologia, desde que esta queira conhecer os problemas "reais" das pessoas, com estatísticas… - distinguem-se das outras ciências sociais, por serem estas apenas ideologia.

A minha primeira inquietação decorre do facto de, aparentemente, não ter ocorrido a Nuno Crato que esta sua posição de princípio possa ser ela própria considerada pura ideologia e não ter qualquer fundamentação de natureza científica. Ou então ocorreu e não o preocupou. Mas não haverá nisso grande problema, pois a matemática é apenas a linguagem da ciência – está para esta como uma película de filme está para o Couraçado de Potemkin. A emergência do sentido, enquanto estrutura dissipativa, não é apenas uma “camada” que se sobrepõe a um qualquer hardware – seja humano, animal ou cibernético. É preciso explicar aos herdeiros da Santa Aliança neo-positivista que o holismo não é uma xaropada new age que necessita ser desmascarada, mas sim um princípio epistemológico devidamente calibrado teoricamente e utilizado com grande proveito nalgumas áreas das Ciências Sociais e das Humanidades. Estas produzem saberes tão importantes como o das outras ciências. É errado não o reconhecer.

A minha segunda inquietação decorre do princípio de que a ciência é sempre filha do seu tempo. No momento actual, com a genética, as biotecnologias e toda a panóplia de armamentos de nova geração, de medicamentos e produtos alimentares, vive-se uma autêntica mutação antropológica (Dufour) que resumiria numa expressão: tendemos a existir alienados da nossa própria humanidade – condenados ao circo do espectáculo com a omnipresente indústria de entretenimento e desinibição (Sloterdijk), a violência banalizada nos ecrãs que crepitam em cada lar, por toda a parte, nos transportes públicos, nos cafés, nos concertos, na indústria, nos serviços, no sector financeiro… consolas com números – oh sim, muitos, muitos números... Mas quando se tenta separar a ciência do mundo dos que a praticam, produzem, transmitem e consomem, então, temos uma vez mais pura ideologia, promovendo a separação do que é “pura abstracção formal”, “verdade”, “bem” – que é também a separação da elite, pela descontextualização (Polanyi, Giddens) dos saberes, pela destruição criativa reformadora e fermentadora de inovação, promotora de flexibilidade, de fluidez... Graças ao dogma da imaculada escassez, nada deverá obstar aos fluxos que suportam o sistema-mundo e alimentam a bolha da especulação, da ficção mercantil generalizada, com a chocante desigualdade, a guerra e a fome... E a tecnociência está aí, ao serviço de quem pague mais e estimule a competitividade. Os mesmos a quem convém uma concepção dogmática, positivista e fechada da ciência. Até o nuclear está de regresso, com novos argumentos, velhos defensores e recém-convertidos - que se pretendem sem tabus e sem ideologia.

Se tudo o que acabo de escrever nesta nota não for estatisticamente razoável, então, é melhor que outros se preocupem e passem a tomar mais atenção aos modos de que se reveste hoje o policiamento epistemológico ostensiva e arrogantemente exibido pelo positivismo dogmático neste início de século conturbado. Em plena crise global.

terça-feira, 23 de junho de 2009

Para quê?

«Há vários meses que na faculdade onde dou aulas está pintado numa parede uma inscrição que pergunta, “estes economistas, para quê?” Quando li o manifesto dos 28 foi essa a questão que me veio à cabeça». E veio bem. Pedro Adão e Silva (PAS) ou por que é que esta pertinente questão deve agora vir a mais cabeças.

PAS refere uma posta de Pedro Lains onde se afirma que o actual estádio da integração europeia obriga a pensar Portugal como uma mera região pobre e periférica. Às vezes, vale a pena exagerar para sublinhar um ponto importante. Eu acrescentaria: uma região pobre e periférica num espaço disfuncional onde a polarização tende a aumentar.

É como se estivéssemos no meio de uma corrente. Ou avançamos para a margem de um Estado federal digno desse nome, com orçamento e dívida, ou temos de voltar atrás e recuperar instrumentos de política económica e comercial para os Estados. Na realidade, há mais combinações possíveis. Muita «indisciplina» e heterodoxia, de preferência coordenadas, podem ajudar a descobrir uma combinação razoável. Sobre estes temas, os economistas-problema não têm nada a dizer.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Leituras II

«De resto, os pruridos dos governos em intervir de forma mais robusta no sistema financeiro parecem até impacientar o FMI que, num relatório, divulgado há duas semanas, chega ao ponto de pedir aos países da zona euro uma maior celeridade nas nacionalizações dos bancos em dificuldades - 'se necessário, através de uma revisão do enquadramento legal existente'».

Não percam o informativo artigo «caça bancos-fantasma» de Manuel Esteves no Económico.

Leituras

«Os 28 falam do plano de investimentos do governo como se Portugal só tivesse um problema de contas públicas e endividamento externo. Tudo o resto - os baixíssimos níveis de investimento público, o desemprego, o output gap, a aparente falta de vontade dos privados em investir - é desvalorizado ou marginalizado, como se fossem problemas sem qualquer relação com o investimento público» (João Galamba).

«A subida [da dívida pública] ocorre após o início da crise internacional, e ocorreria sempre, com qualquer governo: são os tais estabilizadores automáticos. A quebra na produção, falências e desemprego geram menor colecta fiscal e aumentam as transferências sociais. O défice tinha que se agravar e com isso a dívida pública tinha que crescer. Isto, sem entrar em conta com qualquer política pró activa de combate à crise de tipo keynesiano. Obviamente que o combate à crise agrava o endividamento a curto prazo. A alternativa é simplesmente esperar que as coisas se componham por si. Com risco de deflação as dinâmicas económicas são em sentido descendente e não de autocorrecção. Por isso, eu defendo que a única forma de o défice reduzir (sem motim social!) será procurando acelerar a saída da crise. E isso exige além dos estabilizadores automáticos, medidas de políticas pró-activas: designadamente os tais estímulos que eu leio como investimento público» (Carlos Santos).

«Pensando bem, a única pessoa que destoa no quadro geral é Silva Lopes, o qual assim contribuiu para emprestar ao manifesto da nova brigada do reumático uma aparência de seriedade que, de outra forma, nunca teria conseguido. Sem ele, o manifesto não teria metade do impacto que teve. Lendo as declarações que fez aos media nos últimos dias a propósito do tema, muito pouco sintonizadas com o que se lê no documento, ainda mais estranho me parece que ele tenha subscrito algo que, pelo menos no espírito, tão manifestamente contraria o que tem defendido a vida toda» (João Pinto e Castro).

A armadilha social portuguesa

Estamos fartos de saber que vivemos num dos países com maior desigualdade de rendimentos do mundo desenvolvido. Sabemos que somos um dos países europeus onde as pessoas menos confiam umas nas outras. A confiança na capacidade das instituições também não parece ser propriamente elevada. E se isto estiver tudo ligado? E se Portugal tiver caído numa armadilha social, ou seja, numa situação em que somos incapazes de alcançar soluções cooperativas com benefícios sociais evidentes devido à ausência de confiança? A minha crónica pode ser lida no i.

domingo, 21 de junho de 2009

É Política Pura, mais nada

Para a Drª Manuela Ferreira Leite há os economistas credíveis e ... os outros. Não tenho de dizer quem são os credíveis, pois não?

Para mim o mais significativo do manifesto dos economistas “credíveis” é virem, precisamente agora, contra o investimento público que está programado. Como não nos dizem agora qual seria o bom investimento público e não disseram antes que estavam contra este investimento público, o que se pode inferir é que são contra o investimento público por ser agora (este ou outro): é tudo despesismo e como estamos pobres temos de ser poupadinhos. O conselho é bom para ser dado lá em casa, mas francamente não vejo em que lógica económica se fundamenta enquanto recomendação para o Estado. Sobretudo agora. Ou melhor, vejo, mas o tipo de lógica em que se fundamente parece-me ser exactamente a que nos trouxe ao ponto onde nos encontramos.

Significativa é a afirmação de que este investimento não cria emprego para portugueses. Investimento na construção que crie emprego para portugueses, se calhar só em Espanha, que é onde os portugueses trabalhavam na construção. Mas quem sabe os economistas "credíveis" espanhóis acham esse mau porque não cria empregos espanhóis. A nacionalidade para os economistas "credíveis" é muito importante quando se trata de emprego, embora, como se saiba, não tenha qualquer importância no caso dos capitais. Ideologia em estado puro.

Os autores dizem falar como economistas. O que querem dizer com isso? A sua opinião política vale mais por isso? A sua opinião não é opinião, mas antes conclusão científica irrefutável? Nem científica, nem irrefutável! É política pura, tão boa ou tão má como qualquer política.

Afinal a Economia é assim: sempre política. Mas por favor não puxem pelos galões de economistas, professores e ex-ministros da economia ou das finanças, para dar opiniões políticas, porque depois de termos visto o que já vimos, a Economia pouco humilde (a palavra está de maré, não é) perdeu… credibilidade.

sábado, 20 de junho de 2009

Os economistas-restrição [ou os economistas-problema]

Está o manifesto contra os grandes investimento públicos, proclamando a necessidade de travar os que possam ser parados. As razões para tal programa estão num conjunto dramático de restrições que, segundo os signatários, manietam a economia. É facto notável que no meio de tantas certezas não tenha havido olhos para fazer uma lista ampla de problemas sérios da nossa economia, não se apontem oportunidades, não se ambicione mais do que travar, não haja espírito para criar soluções. Estes são os economistas-problema...

terça-feira, 16 de junho de 2009

Sobre a governabilidade do País

Nos últimos dias não têm faltado comentadores a chamar a atenção para os riscos da ingovernabilidade do País após as próximas eleições legislativas. Uma ideia central nesse argumento é a seguinte: tudo o que está à esquerda do Partido Socialista é contra a “economia de mercado”. Só não o dizem abertamente por mera táctica política. Assim, não se pode contar com esta gente para viabilizar no parlamento uma solução de governo.

Pelo meu lado, acho que o assunto é importante e requer uma abordagem clara. Nos nossos dias a clivagem central entre esquerda e direita já não tem lugar para a antiga oposição entre partidos revolucionários, anti-capitalistas, versus partidos do sistema capitalista (da “economia de mercado” como alguns gostam de dizer) com diferentes opções quanto a uma intervenção mais ou menos reguladora e redistribuidora por parte do Estado.

Hoje, um projecto político à esquerda do actual PS tem futuro se defender sem ambiguidades uma progressiva e progressista transformação do capitalismo tendo em vista a subordinação dos mercados ao interesse público democraticamente deliberado. É uma nova esquerda que não pretende gerir o capitalismo, mas também não pretende destruí-lo pela revolução socialista. As lições do chamado “socialismo real” foram aprendidas. Nem revolução nem gestão, antes transformação. O que implica não apenas a assumpção do jogo democrático formal mas também o compromisso com a melhoria da sua representatividade através da multiplicação de espaços de democracia participativa, incluindo o interior das empresas.

Mais ainda, sabendo que os mercados foram criados ao longo da história através de uma intervenção activa do poder político central, esta esquerda tem consciência de que as transformações progressistas por que luta, designadamente no que toca à relação dos mercados com o trabalho, a moeda e a natureza, implicam mudanças de âmbito legislativo que, para serem duradouras, necessitam de um alargado apoio social que se cristalize em normativos sociais extra-legais. Por isso, uma esquerda transformadora é uma esquerda que organiza a convergência entre a luta parlamentar e a luta no espaço público (comunicação social, debates públicos, internet, manifestações, …).

Assim sendo, a questão da governabilidade transforma-se numa questão de identidade.

Sob a pressão de uma crise para que activamente contribuíram, o PS e os partidos da chamada social-democracia europeia estão hoje confrontados com uma escolha vital: permanecerem como gestores e reguladores de um capitalismo em crise, com a “consciência social” que o sistema lhes permitir ou, pelo contrário, romperem com a deriva centrista das últimas décadas a fim de participarem da afirmação de uma nova esquerda, de uma esquerda transformadora. Porque é desta esquerda que muita gente está à espera.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Os activos de um balanço desequilibrado

Do Diário Económico pediram-me há dias uma resposta rápida a algumas interrogações sobre a crise. Como o texto não está disponível em acesso digital, aqui fica. Foi publicado em 9 de Junho.

Os activos de um balanço desequilibrado
Poucas coisas se afiguram positivas para encararmos o futuro com optimismo. O quadro político ensombrou-se, a governabilidade aparenta ser difícil, a reconstrução de um modelo sócio-económico ameaçado carece de consensos que não estão sequer formulados. Para agravar as coisas, só falta que os vencidos de domingo considerem, como narcisos, que a sua verdade é indiscutível porque a vêem nítida nos seus espelhos e que os vencedores se tomem por iluminados que prescindam do debate entre alternativas. Pior que tudo isto, é a sabedoria dos que proclamam que não há margem para nada – para o debate colectivo, para a inovação política, para a invenção social que fundou os melhores períodos que conhecemos da história.
Parece-me que há três planos da economia e da sociedade portuguesas que merecem a nossa atenção como activos de um balanço desequilibrado: o trabalho, o Estado e a Europa.
O trabalho porque somos uma das sociedades europeias em que a predisposição (ou a necessidade) para trabalhar é maior: mais de ¾ dos que estão em idade activa estão no mercado de trabalho, coisa rara lá por fora; o Estado, porque a estrutura administrativa – a que gera serviços públicos, a que lança novas bases – não é coisa de somenos nem “monstro” perverso, como alguns afiançam: a Europa, porque me parece que o mundo vai precisar mais de espaços de entendimento mútuo. E, dirão outros, as exportações? As PME? O investimento estrangeiro? E o conhecimento? Para isto é necessária a capacidade institucional e colectiva para agir e inovar. Os mecanismos parecem-me claros: qualificação do trabalho e pacto social baseado em valores de igualdade; estratégia política e pública para concertar a acção; uma União com audácia e capacidade para estruturar e governar em concreto um espaço de integração activo, em vez de um espaço sem rumo fascinado por modelos alheios e envelhecidos.

Parabéns à Marisa!



Muitos parabéns à Marisa, ilustre socióloga, co-autora deste blogue e hoje uma das novas eurodeputadas portuguesas!

(Parabéns que aliás estendo à restante equipa do BE, a qual, além do extraordinário resultado em termos de números absolutos e relativos de votos, acaba de eleger hoje, oficialmente, o terceiro eurodeputado (Rui Tavares), um resultado que estava pendente há dias...)

Grandes responsabilidades vos esperam.

Ode à acumulação

Sobe e desce: a subir

“O dinheiro atrai dinheiro, como se sabe. Senão veja-se o investimento de Américo Amorim e dos seus sócios angolanos (…) na Galp e o retorno que está a ter com ele. Em quatro anos, já receberam 330 milhões de dividendos e a posição que têm na empresa já vale mais mil milhões do que o preço de compra”
Público de hoje

As coisas que o público premeia.

A autodestruição da social-democracia

O PS não está só. As eleições para o Parlamento Europeu foram marcadas pela acentuada erosão eleitoral da social -democracia europeia. A crise poderia ser uma oportunidade para a reforma igualitária das instituições do capitalismo em que este movimento político se havia especializado há algumas décadas atrás, mas em vez disso é acompanhada pelo seu esgotamento político numa União dominada pelas direitas e pela apatia política. A minha crónica pode ser lida no i.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Irão: teocracia e capitalismo


O Irão continua a ser um país de que se fala muito, mas que é pouco conhecido. Trinta anos depois da proclamação da República Islâmica, proliferam muitos estereótipos e amálgamas, num processo que a inclusão no célebre «eixo do mal» apenas veio acentuar.
Ainda que a União Europeia e os Estados Unidos tendam a olhar para a esta eleição, cuja primeira volta ocorre a 12 de Junho, do ponto de vista do dossiê nuclear, entre os eleitores iranianos vai ser decisiva a análise que fazem da situação económica e social interna. Se nas eleições de 2005 a descrença na capacidade dos candidatos «reformistas» para resolverem esses problemas deu a vitória a Mahmud Ahmadinejad, agora é o balanço do mandato do presidente que vai ser avaliado.
Muito se diz sobre a vertente teocrática do regime iraniano, mas analisa-se pouco o quanto ele assenta num quadro económico dominado pelas regras e mecanismos do capitalismo. Que país existe hoje?
Num artigo publicado no número de Junho do Le Monde diplomatique – edição portuguesa («O Irão dominado pelo dinheiro»), o economista Ramine Motamed-Nejad faz o retrato de um país dominado pelo valor do dinheiro, pela ostentação da riqueza e pela corrida ao lucro. Um país profundamente endividado (especulação, bolha imobiliária, crise do sector bancário…), mergulhado na falta de transparência e na corrupção. Um país atingido pelo desemprego, pela quebra persistente dos salários, pelas privatizações de sectores estratégicos da economia…
O autor fala de um «capitalismo de monopólios». Vale a pena ler, para fugir aos preconceitos – diabilizadores ou quaisquer outros – e compreender a complexidade do Irão de hoje.

terça-feira, 9 de junho de 2009

A economia política e moral do cavaquismo

A "roubalheira" no Banco Português de Negócios, para usar a controversa expressão de Vital Moreira, tem servido para relembrar a experiência neoliberal portuguesa na sua origem, ou seja, a economia política e moral do cavaquismo. Isto é tanto mais útil quanto muitos dos problemas do país resultam das profundas transformações económicas promovidas pelos governos cavaquistas e das normas sociais que as legitimaram. O resto da minha crónica de ontem no i pode ser lido aqui.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Interpretar o refluxo

Ao contrário de alguns governos na Europa, como o alemão e o francês, o do PS foi fortemente penalizado. E numa escala muito maior do que as sondagens previam.

Mas há também a ultrapassagem de uma barreira psicológica crucial que veio criar uma dinâmica de refluxo: a lista do PSD fica cerca de 5 por cento à frente da do PS, e fá-lo sem esvaziar o CDS através do voto útil, como previam as sondagens, bem pelo contrário.

Finalmente, há um claro reforço dos partidos à esquerda do PS, sobretudo do BE, área em relação à qual, nesta legislatura, os socialistas só têm aprofundado distâncias… Estas eleições são, por isso, também um sinal de forte descontentamento da ala esquerda do eleitorado socialista.

Saberão os socialistas interpretar estes resultados de forma a corrigir a dinâmica de refluxo? Não será com certeza queixando-se do eleitorado, como fez Vital Moreira. Na sua declaração de ontem, na TV, realçou três elementos nos resultados eleitorais que considerou negativos: abstenção –mas houve mais cerca de 150 mil votantes do que em 2004-, declínio do bipartidarismo e reforço da esquerda radical.

Originalmente publicado no Diário de Notícias de 8/6/2009

domingo, 7 de junho de 2009

Quo vadis Europa?

Há quem vislumbre sinais do (princípio do) fim da crise em que temos vivido. Pelo contrário, eu só vejo razões para dizer que a crise está para durar. Já nem falo do enorme potencial de instabilidade que representa a profunda ligação financeira entre EUA e China. Concentro-me apenas na Europa.

No início de Maio, Wolfgang Münchau chamava a atenção para a dimensão dos prejuízos não assumidos pelos bancos alemães que, segundo estimativas do regulador financeiro (Bafin) seriam de “cerca de um terço do produto interno bruto da Alemanha.” Recordava também que, após uma década de políticas falhadas, o Japão só conseguiu travar a crise quando obrigou os bancos a assumir os seus prejuízos e a aceitar a entrada de capitais públicos.

Entretanto, através de auditorias aos principais bancos, e exercícios de simulação da evolução das suas contas em cenários desfavoráveis (ao que parece, não muito), os EUA conseguiram ter uma ideia aproximada do estado do seu sistema financeiro. Vários economistas de renome discordam da solução encontrada. Porém, uma coisa é certa: a administração Obama enfrenta o problema, ainda que com as limitações ideológicas que conhecemos.

Pelo contrário, do lado de cá do Atlântico onde o crédito bancário tem mais peso no financiamento das empresas, vemos que: a economia da UE continua a degradar-se, com destaque para a Alemanha e para o Reino Unido, este porventura a ter de recorrer ao FMI daqui a uns meses; continuada degradação da situação económica e financeira no Leste da Europa com ramificações à banca da Zona Euro; tomada de posição da chanceler Angela Merkel contra a participação menos ortodoxa do Banco Central Europeu no combate à crise; complacência das autoridades nacionais e europeias face à situação do sistema financeiro no que toca aos ‘activos tóxicos’. Quanto a este último ponto, no início de Junho alguns economistas franceses e alemães assinaram no Financial Times um artigo em que apelavam a uma intervenção rápida e enérgica das autoridades para sanear o sistema bancário europeu cuja situação global qualificam de “disfuncional”.

Ora acontece que Angela Merkel tem boas perspectivas de se manter no poder por mais uns anos. Segundo o ex-ministro dos negócios estrangeiros Joschka Fischer, “a UE é cada vez mais vista [pelos Alemães] como enquadramento e condição de partida para a afirmação dos interesses nacionais, e não como uma finalidade em si mesma.” Embora o ex-ministro argumente que esse caminho é errado e não serve os genuínos interesses da Alemanha, o certo é que a maioria dos seus concidadãos parecem estar convencidos do contrário.

Num contexto de grande recessão que parece ter abrandado mas tem todas as condições para voltar a acelerar, a manutenção no (ou ascensão ao) poder em vários países da UE de forças políticas conservadoras, e o crescimento eleitoral de partidos de extrema direita, significa para mim que há nuvens muito negras no horizonte. Mesmo com legitimidade eleitoral, não me parece que as famílias políticas que geraram esta crise estejam em condições intelectuais e morais para lhe pôr cobro.

Não menos importante, essas nuvens negras também significam que as forças políticas de esquerda não têm sido capazes de oferecer uma alternativa credível, uma alternativa que dê um horizonte de sentido e esperança às sociedades europeias assustadas com o desemprego e a crise financeira, dos seus bancos e dos seus estados. Para o futuro da Europa é decisivo que estas forças políticas procurem empenhadamente perceber onde estão a falhar e se disponham a fazer as indispensáveis (ainda que dolorosas) rupturas. É que o futuro da Europa também depende da forma como as esquerdas lerem os seus resultados eleitorais.

Numa grande crise, o futuro está mais aberto do que nunca, para o melhor e também para o pior.

sábado, 6 de junho de 2009

O rapto da Europa?


A construção da União Europeia foi um dos mais fascinantes processos pluri-nacionais contemporâneos. A transformação de um clube de poucos ricos – que, no ano fundador de 1957, ainda há pouco eram beligerantes entre si – numa realidade larga e comum, embora heterogénea, através de uma lógica de inclusão confere-lhe a condição de facto colectivo incontornável. A matriz originária proporcionou, contudo, tantos resultados quantos desafios. Conhecem-se os activos e conhecem-se os défices. O frequente predomínio dos princípios e da política da concorrência e da lógica regulatória liberal dá ao mercado um papel desequilibrador face à esfera pública e colectiva. Por isso, o regresso à centralidade dos princípios da coesão, a defesa de maior capacidade comunitária (“federal”) em matéria orçamental – para executar políticas estruturais que valham mais do que os actuais 1% do PIB da União) – deveriam certamente ter-se contado entre as grandes questões da campanha. Mas tal não aconteceu. Para uma parte da esquerda que pensa sobre a União, basta e está bem uma União com o ‘entorse’ liberal que a Agenda de Lisboa lhe trouxe. Para a outra parte, uma União com audácia e capacidade para estruturar e governar em concreto um espaço de integração activo é ainda matéria difícil de digerir.
O que parece em causa pode ser apenas saber se é ou não preciso fazer da União um actor político essencial de modos de vida e de economia que redefinam o capitalismo que a crise revelou cruamente. Quer dizer, modos de vida e de economia em que os processos regionais de integração, considerados à escala mundial, contem mais do que os processos estritamente globais.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Passam-se coisas notáveis no mundo...


Uma delas foi, seguramente, o discurso de Obama, hoje, no Cairo.

As protecções do capital

O capital gosta de abrigos, de protecção. E são vários os que lhe têm sido proporcionados na economia portuguesa.

A “protecção” que acho mais estrutural e mais incontornável é a que lhe é dada pelo trabalho. Refiro-me, em concreto, ao “conforto” que resulta de sermos a economia periférica europeia com uma das maiores taxas de participação no mercado do trabalho. Mais de ¾ das pessoas com idade entre os 15 e os 64 anos está inserida em relações laborais. Esta ampla disponibilidade de recursos humanos – e o uso que as empresas lhe dão – contrasta claramente com o que se passa nos outros países da Europa do Sul (da Espanha à Grécia, passando pela Itália e pela França, o valor é sistematicamente inferior a 70%). Os casos semelhantes são os dos países escandinavos. Mas é desnecessário apontar as diferenças radicais dos sistemas de emprego.

Se a proporção fosse semelhante à da Grécia, isso significaria que mais 700 mil pessoas em idade activa estariam fora de uma relação com o mercado de trabalho. Não será difícil deduzir os impactos que daí resultariam para as empresas, para as políticas sociais, para o processo imigratório. E mesmo que a comparação fosse com a Irlanda chegaríamos a um valor superior a 300 mil. Em anos recentes estes diferenciais eram ainda mais elevados. Por isso, os mecanismos ditos “assistenciais”, que tanto perturbam a direita, teriam forçosamente de ser reforçados.

Num país de salários baixos e de tantos défices organizacionais empresariais, que agora conhece níveis de desemprego crescentes, este assunto deve ou não ser trazido para o debate? Em economias que têm que reconstruir os seus modos de funcionamento, reclamar um lugar central para o trabalho é uma exigência de justiça mas também uma condição de uma economia mais capaz.

Ainda um espaço de solidariedade?

A Europa é tradicionalmente um espaço de solidariedade. Recordemos os programas para reduzir as disparidades socioeconómicas entre países e regiões da UE, para (re)qualificar a mão-de-obra, para as redes de transportes transeuropeias, etc.

Nas últimas décadas, a Europa poderia ter sido um instrumento de afirmação do modelo social europeu. Com a perda de poder dos Estados, a defesa de tal modelo teria de passar por entidades com poder para domesticar as forças do mercado à escala planetária: a UE é um gigante comercial e poderia jogar o seu peso na Organização Mundial do Comércio, etc., no sentido de impor mínimos sociais, ambientais e políticos nas transacções comerciais. A proposta de Paulo Rangel, para se adoptarem “taxas nas transações comerciais com países que não cumpram as regras ambientais e sociais dos 27”, poderia ser um passo nesse sentido, entre outros (alguma harmonização social e fiscal na UE, um orçamento comunitário mais substancial para corrigir assimetrias, etc.).

Porém, na senda dos ventos neoliberais, a Europa tem-se tornado uma espécie de Cavalo de Tróia da globalização neoliberal. E tem sido cada vez menos um espaço de solidariedade. Lembremos a tentativa falhada de pressionar para baixo as condições sociais: a directiva Bolkenstein. Ou a entrada de 10 novos estados, cujo rendimento per capita era metade da UE 15, acompanhada de uma contracção do orçamento comunitário. Privados da solidariedade que teve a Europa do Sul, para se afirmarem estes países tiveram de competir através da protecção social e da fiscalidade...

E a Turquia? Com um rendimento per capita que é cerca de metade dos novos 10, e com a UE sem fundos capazes de compensar tais desiquilibrios (o país tem 70-80 milhões de habitantes), só mesmo se for para aprofundar a lógica do Cavalo de Tróia…

Publicado originalmente no Diário de Notícias de 3/6/2009

terça-feira, 2 de junho de 2009

Valorizar o papel dos eurodeputados

Os eurodeputados portugueses estão entre os mais assíduos do PE. E, nesta legislatura, vários se distinguiram. Ana Gomes, do PS, teve um desempenho bastante apreciado e recebeu um prémio. No PSD, Carlos Coelho teve uma prestação notável, nomeadamente na Comissão sobre os voos da CIA, e isso foi reconhecido por várias bancadas. Poderia apontar outros, mas refiro apenas três nomes cuja prestação foi também relevante: Ribeiro e Castro, do CDS; Miguel Portas, do BE; Ilda Figueiredo do PCP.

Mas será que os partidos valorizaram os seus eurodeputados? No PS, a resposta não parece clara. É certo que a eurodeputada com melhor performance, Ana Gomes, aparece em lugar elegível, mas é uma posição recuada (7º lugar). Além disso, ela e outra das eurocandidatas (Elisa Ferreira) estão também a concorrer à Presidência de Câmaras (Sintra e Porto, respectivamente), o que não valoriza a candidatura ao PE. Carlos Coelho (2º lugar), Miguel Portas e Ilda Figueiredo (ambos em 1º) viram o seu trabalho reconhecido. Mas o mesmo não se pode dizer de Ribeiro e Castro, que sai da lista do CDS.

E podem os eleitores valorizar os (euro)deputados? Não: quando votamos podemos apenas colocar uma cruzinha num partido, mas nada podemos dizer quanto aos candidatos. Em muitos países não é assim: através do “voto preferencial” pode-se escolher não só o partido, mas também os deputados mais apreciados nessa lista, ou até em diferentes listas. E há uma proposta da Comissão de Assuntos Constitutionais do PE para generalizar o uso do voto preferencial a todos os Estados nas europeias de 2013. Se fosse aprovada, permitiria aos portugueses valorizar efectivamente os seus eurodeputados. Pena é que a proposta que fiz nesse sentido para a Assembleia da República tenha recebido tanta indiferença…

Publicado originalmente no Diário de Notícias, 31/5/2009

“Remédios” para aumentar a participação




A abstenção nas europeias tem múltiplas causas. Porém, tendo em conta que é excepcionalmente elevada na generalidade dos países, há alguns factores comuns que poderão explicar tal fenómeno e, se devidamente enfrentados, passíveis de contribuir para a elevação dos níveis de participação. Proponho dois remédios.

Nos vários países, as eleições parlamentares permitem representar as várias tendências da opinião e determinam a formação dos governos. No caso do PE não: as eleições permitirão representar as familias partidárias mas a relação com a formação do executivo é menos clara. Tal diminui a importância do que está em jogo, logo a participação. Por isso, seria desejável existir uma Câmara Alta, popularmente eleita e onde cada Estado tivesse o mesmo número de senadores. Depois a Comissão seria eleita pelos membros da duas câmaras (o Senado, representando os Estados, e o PE, representando os cidadãos), os quais teriam necessariamente de formar coligações. Democratizava-se a UE e estimulava-se a participação.

Seja para passar legislação no PE, seja para a formação e tomada de decisão ao nível da Comissão, um segundo remédio seria acabar com as “grandes coligações” (“Bloco central”). Este tipo de soluções obscurece as alternativas e, se a sua prática for reiterada (como é na UE), os eleitores ficam com a ideia de que, votem em quem votem, a divisão do poder produzirá sempre os mesmos resultados… Isto desicentiva a participação. Uma solução seriam coligações alternantes, ora lideradas pelo PSE (e incluído vários partidos, desde os liberais até às forças mais à esquerda), or lideradas pelo PPE (e incluíndo vários partidos da ala direita, etc.). Aumentaria a clareza das alternativas e os eleitores saberiam que poderiam impulsionar diferentes políticas: um forte estímulo à participação.

Publicado originalmente no Diário de Notícias, 26/5/2009.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

O paradoxo europeu

Um por cento. Esta é a melhor medida do esgotamento da União Europeia depois de duas décadas de engenharia neoliberal. O orçamento da UE anda perto de um por cento do seu PIB. O somatório dos estímulos orçamentais nacionais para fazer face à crise não chegará, em 2009, a este valor. Entretanto, o desemprego não pára de crescer. A fraqueza da resposta política à crise e a força da desregulamentação do mercado de trabalho, que as instituições europeias não se cansaram de promover, garantem o desastre. O resto pode ser lido no i.