Cada vez mais entidades independentes ao comando (leia-se, isentas do sufrágio popular) : primeiro os governadores dos bancos centrais, depois outras entidades reguladoras, por fim comissões de sábios para decidir tudo e mais alguma coisa.
Tudo isto poderia fazer algum sentido se estas entidades “independentes” fossem dotadas de um conhecimento que lhes permitisse chegar a conclusões incontestáveis. Sugere-se muitas vezes que os “peritos” têm efectivamente esse conhecimento. Os economistas, por exemplo, teriam uma espécie de bola de cristal chamada análise custo-benefício que os tornaria infalíveis nas decisões acerca de muita coisa, inclusivamente grandes projectos de investimento público.
Mas quem já participou em exercícios de análise custo-benefício sabe como é fácil transformar desacordos políticos em desacordos metodológicos: a técnica de medição mais apropriada, o parâmetro x, as dimensões a ter em conta… Neste caso, o exercício técnico não é mais do que o prolongamento da política por outros meios. Mas há ainda pior: a manipulação pura e simples do método para obter conclusões encomendadas.
Para compreender as limitações da análise custo-benefício segue um exemplo:
Temos de escolher entre duas campanhas de vacinação. A campanha A custa 500 mil € e permite salvar um milhão de vidas, a campanha B custa 3 milhões e salva dois milhões e meio. Por um lado a campanha A é melhor do que a B (a A é mais barata), por outro lado a B é melhor do que a A (salva mais vidas). É um dilema.
O que significa aplicar a análise custo-benefício à resolução deste dilema: atribuir um valor monetário às vidas, somar parcelas e comparar.
Admitamos que 1 milhão de vidas vale 500 mil euros. Teríamos então:
Campanha A: Custo = 500 mil; Benefício = 500 mil; Benefício Líquido = 0
Campanha B: Custo = 3 milhões: Benefício = 2,5 milhões; Benefício Líquido = - 500 mil
Conclusão: a campanha A deve ser escolhida.
A pergunta agora é: como atribuir um valor monetário à vida humana? Responde o analista: Há vários métodos; de acordo com o Manual de Economia Pública de Stiglitz (2ª ed. P. 263) num deles “estimamos o que o indivíduo teria ganho se tivesse ficado vivo (até até à sua idade “normal” de morte)”.
Mas isto é horrível - oiço dizer: nesse caso a vida de um rico valeria mais do que a de um pobre.
Pois é. A implicação seria que uma campanha de vacinação que “não compensa em África”, pode compensar na Europa.
Comentário final do analista (pela voz do Stiglitz de 1988 que pode não ser o mesmo Stiglitz de 2009): “Por muito controversas que as estimativas do valor da vida possam ser, é provável que continuem a ser úteis na avaliação de projectos que afectam a probabilidade de morte”.
A análise custo-benefício está cheia de problemas. Tenho dificuldade em compreender a sua utilidade, pelo menos em casos em que estão em causa valores que dificilmente têm preço.
Significa isto que estou a sugerir que não se façam contas? De modo nenhum. Devem-se fazer as contas possíveis. Mas não se dê um preço ao que não é uma mercadoria. Significa isto que não se devem ouvir os peritos? De maneira nenhuma. O que não vale é passar para eles as decisões políticas. Quem aceitou que isso acontecesse uma, duas vezes, não se pode admirar que lho venham exigir uma terceira.
Significa isto que se deve decidir no silêncio dos gabinetes? Claro que não. Uma decisão participada só pode ser mais inteligente, mais bem justificada.
12 comentários:
Bom artigo e uma temática interessante para iniciar uma discussão.
E vou começar fazendo-lhe uma questão caro José. Vamos supor que ao invés da campanha B custar 3 milhões de euros custava 300 milhões de euros. Continuava sem saber qual campanha escolher? E se sim, suponha que a campanha custava 300 biliões de euros.
A questão de princípio que está a discutir é a de sabermos se devemos atribuir um valor infinito à vida humana. E implicitamente, nenhum de nós atribui esse valor. Aliás é inconcebível atribuir um valor infinito à vida humana. Basta ver que muitos de nós fumam, conduzem automóvel, alimentam-se de ensopados, etc. tudo comportamentos que aumentam a probabilidade de morrer e que seriam facilmente prevenidas.
Não nos esqueçamos que o dinheiro não é apenas papel. É sim uma medida de valor. Valor esse que se traduz em recursos que são acumulados por todos nós enquanto sociedade pelo nosso próprio trabalho, muitas vezes desagradável. Ou seja, no fundo dinheiro é equivalente ao um pedaço de esforço humano. Vida precisamente.
Ignorar esta questão, e considerar uma vida como um valor infinito, é considerar uma hipótese em que, por exemplo, conseguimos aplicar certas políticas que conseguem prevenir um individuo de uma população de morrer, atirando todos os outros para a miséria.
E daí a visão pragmática do Stiglitz na utilização de métodos para avaliar o preço de uma vida (e existem bem mais métodos do que aquele que descreveu). Mas precisamente por estes métodos serem altamente imperfeitos, mais interessante é deixar cada individuo avaliar qual o valor da sua própria vida. E claro que decisões centralizadas e planificadas do tipo "este projecto serve para todos" impede essa avaliação mais adequada. Logo o melhor será deixar para os indivíduos, na medida do possível, decisões que afectem a sua vida.
O Stiglitz continua a usar este tipo de método. No "The trillion dollar war" penso que proxy usada para calcular a vida humana é o valor dos seguros de vida.
Já agora uma pequena achega ao comentário do Tiago. A questão não está no valor que de ser atribuído à vida humana (infinito ou não), mas sim se devemos atribuir um valor. Penso que a intenção do José Castro Caldas era sobretudo mostrar que este tipo de decisões não é técnica, mas sim política. Quais as prioridades e afectação de recursos devemos decidir fazer enquanto comunidade política.
Lembro-me de um exemplo real que mostra bem o quão arbitrário é este tipo de exercício. Aquando da construção do Metro do Porto encomendou-se um estudo de análise custo-benefício que projectava que o metro estaria pago em vinte anos. Uma das formas de chegar a este número foi através da atribuição de um valor monetário a cada minuto poupado em transportes pelos habitantes do Grande Porto. Este valor era calculado através da divisão do PIB per capita pelo numero de minutos médio de trabalho. Ou seja, o mesmo projecto, com os meus custos e os mesmos benefícios numa cidade como Londres seria "pago" mais rapidamente já que o rendimento é aí mais elevado. Não faz muito sentido, pois não?
Não podia estar mais de acordo consigo Nuno Teles.
Na realidade penso que é impossível analisarmos inteligentemente políticas económicas sem um mínimo de literacia económica. No entanto, e para dar um exemplo, a ciência económica nada tem a dizer sobre a a taxa de desconto apropriada a que devemos actualizar os benefícios e custos futuros. Existem argumentos filosóficos que defendem que as taxas de desconto deve ser 0 (o mais famoso argumento foi defendido pelo pupilo do Keynes, o influente Frank Ramsey); e outros que defendem que a taxa deve ser infinita já que não haverá qualquer reciprocidade do bem-estar de gerações futuras nas gerações presentes.
Ou seja, a ciência económica nada nos diz sobre como devemos valorizar o que quer que seja e isto está patente nas análises custo-benefício que incluem sempre intenções subjectivas. Lembremos-nos do que nos ensinou Robbins na sua definição: "Economics is a science which studies human behavior as a relationship between ends and scarce means which have alternative uses". E este bem frisou ao longo do seu ensaio que os economistas nada podem dizer quanto aos "ends". A máxima que refere que os economistas sabem determinar o preço mas não o valore das coisas encaixa bem nesta definição.
Como tal a discussão dos objectivos assume-se como essencialmente política e disso não haja dúvidas nenhumas. Claro que hoje em dia já se convencionaram alguns objectivos. E são sobre estes que os economistas trabalham quando determinam os melhores mecanismos para dispor os "meios". Por exemplo nas análises de custo-benefício convencionou-se (bem ou mal) que uma taxa de desconto apropriada é uma de mercado. Mas isto não passa de uma convenção.
No entanto continuo a achar que cada pessoa tem as suas próprias valorações das coisas (incluindo da vida humana) e, como tal, devemos tentar usar ao máximo essa heterogeneidade de "fins". E na minha opinião, a subsidiaridade da decisão política é a que mais pode contribuir para isso mesmo.
excelente post.
bom artigo ...
gostei de ler
hoje em dia a coisa corre mais no seguinte sentido:
existe a vacina A e não existe a B ou C; a A não foi testada pq a doença era demasiado recente e não havia tempo a perder; os peritos da farmaceutica dizem q é "suficientemente eficiente" e só eles estão autorizados a fazer testes de eficacia à sua propria vacina; como os peritos são americanos o (nosso) governo acredita implicitamente na sua integridade; como supostamente há uma "epidemia" (apesar da mesma doença mais comum matar muito mais pessoas por ano) nós desatamos a comprar grandes quantidades de medicamento potencialmente ineficaz, até pq temos de nos preparar para o proximo surto.
resumo: a farmaceutica faz milhões mundialmente e os peritos são bem pagos.
R.
Aproveito para relembrar um excelente livro sobre o tema "Priceles"
Há algo que me escapa...
Campanha A: Custo = 500 mil; Benefício = 1 milhão;
Benefício Líquido = 500 mil
Salvo melhor opinião se 1 milhão de vidas vale 500000€ o benefício líquido em A é nulo.
João Mendes
O mecanismo que permite determinar o valor daquilo que não é mercadoria está inventado há muito tempo: chama-se democracia.
Obrigado João Mendes. Já corrigi as contas.
Mais uma achega:
Campanha B: Custo = 3 milhões; Benefício = 2.5 milhões de vidas;
Se 1 milhão de vidas vale 500000€,então 2.5 milhões de vidas valem 1250000€ donde o benefício líquido de B é:
1250000€-3000000€=-1750000€
João Mendes
Exactament José Luiz Sarmento...daí que esteja errado que os tais peritos da análise custo beneficio estejam desligados do poder democrático e da vontade da sociedade...
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