quinta-feira, 31 de maio de 2018

Entre o medo de um palpite e a responsabilidade da liberdade



«O que cada um e cada uma de nós tem hoje que decidir é se se deixa tolher pelo medo ou se assume a responsabilidade de adotar uma lei que, de maneira equilibrada, razoável, prudente, respeite a decisão de cada pessoa. O que cada um e cada uma de nós tem hoje que decidir é se escolhe a prepotência de impor a todos um modelo de fim de vida que é uma violência insuportável para muitos ou a tolerância de não obrigar seja quem for e permitir ajudar a antecipar a morte àqueles para quem a continuação da vida em agonia se torna uma tortura. O que faremos hoje é portanto, cada um e cada uma de nós, uma escolha sobre a liberdade de todos.
(...) Como aconteceu em tantos outros momentos de alargamento dos direitos, há quem nos queira agora desviar de uma decisão ponderada, ameaçando com o risco de um desvario social, traduzido em outras leis que - dizem-nos - hão-de vir. Mas o que esses arautos do medo e esses cultores da desconfiança não dizem é que os projetos que hoje votamos qualificam como crime todos os cenários de desvario que eles próprios, e só eles, antevêem. O que eles não dizem é que os mecanismos de controlo que o projeto do Bloco de Esquerda e os demais projetos consagram, têm em vista precisamente impedir qualquer possibilidade de legitimar a antecipação da morte para situações diferentes das que a lei acolherá. Por outras palavras, não é sobre estas propostas que se pronunciam esses arautos do medo. Pronunciam-se sobre outras, que adivinham que virão. Palpita-lhes que essas propostas, que adivinham e que virão, serão perversas. E querem-nos amarrar ao seu palpite e fazer do seu palpite o fundamento de uma estratégia criminal. Cabe a cada um e a cada uma de nós escolher entre o medo de um palpite e a responsabilidade da liberdade. Esses que, em nome de um atávico medo da liberdade da decisão de cada um, nos querem tornar prisioneiros de uma vida biológica, que espezinha a nossa vida biográfica, são muitas vezes os mesmos que criticam o projeto do Bloco de Esquerda e os demais projetos, por supostamente não respeitarem a autonomia das pessoas e darem poder demais aos médicos. Estranha e terrível ironia esta, de quem, para manter o imperativo da sua visão particular do fim da vida no Código Penal, tanto repudia o acolhimento da autonomia de decisão como repudia a regulação da expressão dessa mesma autonomia.
(...) Este é o momento de darmos prevalência à liberdade sobre o medo. Este é o momento de darmos prevalência à tolerância sobre a prepotência. Fizemos escolhas assim, no passado. E aos que então quiseram amedrontar o país, com a sombra de supostos retrocessos civilizacionais, nós sempre respondemos com a demonstração prática de que não foram retrocessos mas avanços. Aos que nos quiseram travar com o anúncio de rampas deslizantes da indignidade, nós sempre respondemos com a demonstração de que a rampa da afirmação dos direitos e da dignidade é sempre ascendente. Este é o desafio que cada um de nós tem hoje diante de si. Saibamos dar-lhe a melhor resposta. E essa só pode ser a do respeito por todos, na tolerância sobre a escolha de cada um.»

Da intervenção de José Manuel Pureza, a ver na íntegra, no debate sobre a morte medicamente assistida.

quarta-feira, 30 de maio de 2018

Mentira, chantagem e medo


Quando o espectro da crise regressa, multiplicam-se as declarações reveladoras dos guardiães de uma ordem europeia pós-democrática, que só pode ser compreendida cruzando questões geopolíticas, associadas à hegemonia alemã, e questões de classe, associadas à hegemonia de certas fracções do capital, sobretudo as mais financeirizadas e extrovertidas.

Depois de Vítor Constâncio ter falado com toda a arrogância de regras (ver nota anterior), o Comissário alemão Günther Oettinger veio no fundo explicitar a visão ordoliberal sobre a acção política das forças do mercado, operando num quadro político-institucional manejado pela elite protegida da refrega democrática, sinalizando a expectativa de que os eleitores italianos se verguem às suas pressões quando forem votar. As eleições são um incómodo que só se atenua através da submissão do povo à ideia de que não há alternativa. É para isto que serve o que os economistas neoliberais italianos apodam de “vínculo externo”.

Neste contexto, não surpreende que o governador do Banco de Itália se tenha juntado às pressões externas, ao falar do risco de perda de confiança do capital financeiro. Nesta ordem monetária, os banqueiros centrais não estão ao serviço dos Estados, sublinhe-se, uma vez mais. Se nós temos um banco que não é de Portugal, os italianos têm um banco que não é de Itália. Ambos são sucursais de Frankfurt.

Entretanto, Donald Tusk já veio apelar aos outros guardiães europeus para que respeitem os eleitores italianos, ou seja, já veio apelar à mentira, seguindo a velha injunção de Juncker: “quando as coisas apertam, é preciso mentir”. Será que ainda há mentira que oculte a natureza de uma ordem económica e monetária europeia, logo de uma ordem política, baseada na chantagem e no medo?

terça-feira, 29 de maio de 2018

Democracia e pós-democracia


Vítor Constâncio, um guardião em fim de carreira desta prisão monetária supranacional de tantas democracias nacionais, declarou: “A Itália sabe as regras. Talvez tenham de as ler de novo”. E o que dirá Centeno?

Enfim, os guardiães, e o capital financeiro que está por detrás deles, definem as regras, mas também, e sobretudo, as suas excepções, como é inegável. Entretanto, talvez a Itália não seja a Grécia.

Não tenho simpatia política pela variante italiana dos populismos, que floresceram nas ruínas da chamada esquerda europeísta, mas devo dizer que tenho ainda menos por ordens supranacionais pós-democráticas, conformes à expansão das forças de mercado, e pelos seus intérpretes internos. Estas ordens destinam-se a bloquear a manifestação da vontade democrática do povo.

E, em última instância, mais vale um eventual erro do povo de um Estado do que a melhor decisão tomada pelos guardiães em Frankfurt ou em Bruxelas, até porque nós sabemos quais são os interesses e os valores que as suas melhores decisões servem.

Às escondidas, como um criminoso



«Caros juízes, autoridades políticas e religiosas. O que é para vocês a dignidade? Seja qual for a resposta das vossas consciências, saibam que para mim isto não é viver dignamente. Eu queria, ao menos, morrer dignamente. Hoje, cansado da preguiça institucional, vejo-me obrigado a fazê-lo às escondidas, como um criminoso. Saibam que o processo que conduzirá à minha morte foi cuidadosamente dividido em pequenas ações, que não constituem um delito em si mesmas e que foram executadas por diferentes mãos amigas. Apesar disso, se o Estado insistir em punir os meus ajudantes, eu aconselho que lhes sejam cortadas as mãos, porque foi essa a sua única contribuição. A cabeça, quer dizer, a consciência, foi proveniente de mim. Como podem ver, ao meu lado tenho um copo de água, que contém uma dose de cianeto de potássio. Quando o beber deixarei de existir, renunciando ao meu bem mais precioso, o meu corpo. Considero que viver é um direito, não uma obrigação, como foi no meu caso. Forçado a suportar esta penosa situação durante 28 anos, 4 meses e alguns dias. Passado este tempo, faço um balanço do caminho percorrido e não me dei conta de ter havido felicidade. Só o tempo que passou, contra a minha vontade, durante a maior parte da minha vida, será agora o meu aliado. Só o tempo, e a evolução das consciências, decidirão algum dia se o meu pedido era razoável ou não.»

Mar Adentro (2004), de Alejandro Amenábar

segunda-feira, 28 de maio de 2018

Apertem os cintos: a crise do euro está de volta


É difícil distinguir informação de propaganda. Dito isto, se as palavras de Di Maio, líder do Movimento 5 estrelas, forem verdadeiras, quem manda em Itália decidiu que é proibido ter um ministro da Economia que tenha reservas sobre o euro. Como diz Di Maio, se esta é a questão, então temos um problema.

Tudo indica que o governo "técnico" (como é óbvio, mais político era difícil) agora indigitado pelo presidente italiano não será aprovado no parlamento, o que significa que haverá novas eleições depois de Agosto. Os pouco recomendáveis Movimento 5 estrelas e Liga, que juntos já tiveram mais de 50% dos votos nas recentes eleições, passarão os próximos três meses a vitimizar-se, afirmando que deixou de ser possível determinar quem governa Itália através de eleições. Como de costume, os comissários europeus Bruxelas têm dificuldade em guardar as suas opiniões para si próprios, ajudando à festa. As taxas de juro italianas estão com se vê abaixo. Já vimos um filme parecido. Veremos como este acaba.


Economix: Economia a sério em banda desenhada

"Economix", de Michael Goodwin e Dan Burr, acaba de ser publicado em Portugal pela Arte de Autor. Quando o li fiquei convencido que há livros que conseguem falar a brincar sobre coisas sérias e abrem o apetite para sabermos mais. Fica aqui o texto de apresentação que preparei sobre esta banda desenhada que explica a ciência económica como muitos livros sérios não conseguem fazer.


"Em Economia não há leis, há múltiplas tendências, muitas delas contraditórias. Em cada circunstância, essas tendências podem ser mais ou menos evidentes, mais ou menos dominantes, dependendo do contexto histórico e do lugar em questão. As ideias económicas vão evoluindo, influenciadas pelos eventos e pelas polémicas que marcam o debate político e académico em cada contexto. Influenciadas também pelas ideias económicas que as antecederam e pelas tendências que, por uma razão ou por outra, foram enfatizadas por cada autor ou escola de pensamento. Influenciadas, sem dúvida, pelos valores, convicções e interesses de quem as produz e difunde.

Por isto é tão importante que o ensino da Economia se faça conhecendo o contexto em que as ideias surgiram e conhecendo os interesses e valores dos seus autores. E deixando claro a cada passo que a forma como se ensina Economia é ela própria influenciada pelos valores e convicções de quem o faz.

Pode parecer estranho que se adopte um tom tão sério para falar de um livro de banda desenhada, como este que tem nas mãos. Mas Economix é isto mesmo: um livro que leva a sério a discussão sobre os conceitos e ideias fundamentais da Economia, colocando-os no seu contexto histórico e doutrinário, de uma forma acessível à generalidade dos leitores, deixando bem claro que a história aqui contada reflecte as convicções do seu autor (com a qual não temos de concordar para saber apreciar).

Tem, porém, uma vantagem ainda maior face à generalidade dos livros de introdução à Economia: é tremendamente divertido. E é também um livro actual, ajudando-nos a perceber como as teorias do passado lançam luz sobre alguns dos grandes debates do presente (a globalização, o desemprego, as desigualdades, as crises financeiras, as alterações climáticas, o papel do Estado, etc.).

Nunca até aqui imaginei recomendar um livro de banda desenhada a quem quer aprender um pouco sobre esta ciência que alguém um dia apelidou de “sombria”. Michael Goodwin faz-nos o favor de nos ajudar a tirar a Economia das sombras. E nós agradecemos.

Cantar de galo


Terminou o congresso do PS. Retive estas duas frases do discurso final de António Costa (ler aqui)
Hoje podemos dizer a quem duvidava há 2 anos e meio, que era impossível virar a página da austeridade sem sair do euro. Nós provamos que era possível sair da austeridade sem sair do euro.
Se há algo que nos devemos orgulhar nestes dois anos e meio é que acabámos com o mito de que em Portugal é a direita que sabe governar a economia e as finanças públicas.
António Costa tem razão. Provou que “era possível sair da austeridade sem sair do euro”. Porém, é importante lembrar que, para que assim tenha sido, recebeu uma preciosa ajuda da UE já que a conjuntura em que começou a governar era de crise política, ascensão dos partidos da extrema-direita e infração nos défices por parte da França, Itália e Espanha. Após a carnificina a que foi sujeita a Grécia, Angela Merkel e a Comissão Europeia perceberam (a custo) que não era sustentável acirrar ainda mais os ânimos contra a política ordoliberal dos Tratados. Já tinham tirado o pé do acelerador da austeridade para permitir a Passos Coelho deixar derrapar o défice, aliviando o garrote à economia, para apresentar algum crescimento e tentar ganhar as eleições. A solução “geringonça” – envolvendo a esquerda que está banida dos governos da UE –, tendo sido mal recebida, acabou por ser tolerada porque também não havia clima para mais “austeridade expansionista”. Sabendo muito bem do que a casa gasta, António Costa também teve a inteligência de escolher um economista neoliberal e, dessa forma, deu garantias de que o essencial seria salvaguardado em diálogo cooperante com quem manda. Uma inteligência submissa.

Sim, António Costa seguiu um caminho social-liberal para lidar com as exigências dos Tratados e a sua alternativa teve condições para ser bem sucedida. Mas só o foi porque ainda fumegava a terra queimada na Grécia e porque, com toda a frieza da ‘realpolitik’, nunca reprovou a prepotência da UE, primeiro, no derrube do governo italiano através do BCE em 2011, depois, no derrube do governo grego também pelo BCE em 2015. Agora não nos venha falar de política socialista porque isso está proibido na UE e António Costa bem o sabe.

Aliás, António Costa também podia ter-nos poupado à fanfarronice de que governa tão bem como a direita no que toca à economia e finanças. Orgulhar-se de défices, dentro em breve de excedentes, numa economia longe do pleno emprego e com serviços e equipamentos públicos em erosão, é orgulhar-se de cumprir regras absurdas que nenhuma teoria económica sustenta e, pior ainda, é mostrar sem qualquer pudor a inculturação neoliberal do “socialismo-terceira-via” que o PS julga não praticar. Tenho cá para mim que os economistas dignos desse nome que rodeiam António Costa ficaram constrangidos ao ouvir tal afirmação. É o preço que têm de pagar enquanto permanecem agarrados à fé numa futura, mas inverosímil, viragem do PS à esquerda. Tenho pena que, no final do Congresso, nenhum representante dos partidos da esquerda ali presentes tenha comentado esta afirmação. Sinais dos tempos.

domingo, 27 de maio de 2018

Björk - Pagan poetry



Tenho-me lembrado deste livro


A investigação jornalística sobre a acção do Advogado de Negócios e Ministro Adjunto Pedro Siza Vieira, conduzida por João Ramos de Almeida para o Ladrões de Bicicletas, ilustra bem uma forma de economia política também feita de entrecruzamentos entre política e negócios nas sociedades de advogados.

Esta forma, por superar, não é defeito, mas sim feitio de privatizações maciças de sectores estratégicos, de parcerias público-privadas e de tantas outras engenharias neoliberais, numa economia marcada pelos velhos e novos nexos entre finança e construção, ou seja, pela financeirização.

Não se aprendeu nada, até porque não há instrumentos, nem vontade de os recuperar, para mudar de forma de economia política. Veja-se o caso da banca, entre tantos outros. Sim, a integração europeia, o nome da globalização mais intensa em parte do continente, deu e dá um contributo decisivo para a corrosão deste velho Estado. Estes feitios estão mesmo ligados.

sábado, 26 de maio de 2018

A cultura é um incómodo?


[A] sequência de cortes em verbas que constavam de contratos assinados pelo Estado com os agentes culturais, aos quais se juntaram reduções nos concursos mais pequenos que foram abrindo e o facto de vários concursos previstos na Lei não terem chegado abrir, explica o que aconteceu: entre 2009 e 2016, o somatório dos principais apoios públicos às artes passou de 21 milhões de euros para menos de 13 milhões de euros (...) Entre as palavras de ordem que profissionais do sector e público que se sente defraudado quiseram gritar ouviu-se “” Isto não acaba aqui” e “Um por cento, já neste orçamento”. Veremos, da parte do governo e da maioria parlamentar que o viabiliza, até onde estão dispostos a ir para serem coerentes com os princípios que enunciam. 

Excerto do artigo de Pedro Rodrigues – “Os apoios públicos às artes” – publicado na edição de Maio do Le Monde diplomatique – edição portuguesa e que pode servir para enquadrar um debate cuja questão relembra uma reveladora declaração de desprezo pela cultura...

A vida, e a dignidade, dos outros (II)



«Defendo a dignidade da vida como bem essencial e não tenho sobre os meus concidadãos a arrogância de achar que sei mais sobre a dignidade da sua vida do que os próprios sabem sobre o que de mais precioso têm. O direito à vida não passa, para mim, pela imposição autoritária e sem critério de uma obrigação de viver em qualquer circunstância. Não me vejo, por ser deputado, como dono da consciência dos outros. (...) O que se pretende despenalizar é a morte assistida sempre que haja a combinação de quatro coisas: um diagnóstico de doença incurável e fatal ou lesão definitiva; um prognóstico de que essa doença é incurável e fatal; um estado clínico de sofrimento duradouro e insuportável; um estado de consciência que demonstre a plena lucidez e capacidade da pessoa entender o alcance do pedido. É sobre isto, e apenas sobre isto, que serei, como os outros deputados, chamado a votar.»

José Soeiro, A minha morte e a dos outros

«O que acontece quando alguém tem a consciência clara de que a perda de autoestima, de dignidade e de independência, assim como o sofrimento físico e psicológico que o esperam, se irão acentuar nas semanas, meses ou até anos de vida de que possa vir ainda a usufruir? (...) Se, para uns, a resposta óbvia são os cuidados paliativos, para outros, o desejo e a possibilidade de pôr fim rapidamente a esse sofrimento são também muito claros. (...) E é perfeitamente concebível que para muitos (em que eu me incluo) não é só a dor física que é intolerável. É também a ideia de que a quantidade de vida adicional não compensa a qualidade de vida perdida. E suspeito que quanto mais rica tiver sido essa qualidade de vida de alguém, menos disposta estará a valorizar semanas ou meses de vida adicionais.»

Alexandre Quintanilha, Porque a quantidade de vida adicional não compensa a qualidade de vida perdida

«Estou à espera do momento em que os partidos que defendem a "inviolabilidade absoluta da vida humana" sejam consequentes e se cheguem à frente para acabar com o consentimento informado. Pelos seus pressupostos filosóficos e éticos, um paciente não tem o direito de optar pela suspensão de um tratamento que o salva mas que lhe retira a qualidade de vida que ele considera nível mínimo para valer a pena viver e um médico que respeite a sua vontade estará, portando, a incorrer em má praxis. (...) Suspender tratamentos sem os quais alguém morrerá é também eutanásia e é legal. No caso acima é eutanásia passiva voluntária mas não é a única legal, há milhares de casos de eutanásia passiva involuntária que são sinal de boa prática clínica, o encarniçamento terapêutico [*] é falha deontológica grave.»

Maria João Pires (facebook)

sexta-feira, 25 de maio de 2018

Para lá do inofensivo

Anteontem, o primeiro-ministro foi acossado no Parlamento (minuto 22) com perguntas sobre a actividade do seu ministro adjunto Pedro Siza Vieira.

As questões ficaram-se pela ética. Ou seja, sobre a sua exclusividade obrigatória enquanto membro do governo, quando também era gerente de uma sociedade, criada dois dias antes de entrar para o Governo; ou sobre o facto de o ministro ter reunido com a sociedade China Three Gorges que tem como advogados a sociedade de advogados Linklakers de onde veio o ministro adjunto.

Tudo pareceu uma tempestade num copo de água por parte do PSD. Mas talvez fosse necessário ir mais fundo sobre a sua actividade junto do primeiro-ministro.

Pedro Siza Vieira não é um advogado qualquer. Veja-se com atenção o seu curriculum oficial e aquele que aparece na Wikipedia, ao que parece baseado num artigo do Expresso.

Já na passada sexta-feira, o advogado esteve no centro de um artigo do Público onde se suscitava uma questão grave: a de o Governo ter decidido alterar uma lei para facilitar uma operação da qual beneficiariam os sócios chineses da EDP, a China Three Gorges. Ou seja, ao contrário do que seria suposto, secundarizava-se o princípio geral que uma lei deve ter, para atender a um caso concreto. E estranhamente o PSD não levantou essa questão...

Depois, o gabinete de Siza Vieira assumiu a sua paternidade na criação das SIMFE, sociedades de investimento mobiliário para fomento da economia: "O Sr. Ministro-Adjunto era vogal da EMCM, estrutura essa que propôs, nomeadamente, a constituição das SIMFE e dos certificados de curto prazo". Ora, as SIMFE - a julgar pelo preâmbulo da lei - são uma forma de financiar as pequenas e médias empresas que não conseguem financiamento no desconfiado mercado bancário. Ou seja, um mercado de segunda que o sistema financeiro desdenhou e com menores exigências.

E foi também por isso que a Associação de Fundos de Investimento, Pensões e Património (APFIPP) decidiu atribuir,  há dias, precisamente a Pedro Siza Vieira, o prémio de figura do ano. Porquê?   
“Pelo trabalho ímpar que desenvolveu na Estrutura de Missão para a Capitalização das Empresas e na implementação do Programa Capitalizar, procurando criar o enquadramento jurídico necessário para que a indústria de Gestão de Activos e de Fundos de Pensões desempenhe um papel mais significativo no financiamento da chamada economia real por parte dos investidores institucionais”. Ou ainda: "É para nós evidente a importância que teve o trabalho desenvolvido pela Estrutura de Missão para a Capitalização das Empresas, ao tentar abrir caminho para o renascimento de um mercado de Capitais em Portugal", justificou Veiga Sarmento, presidente da APFIPP. 

Mas como funcionará esse mercado de segunda? E porquê tanto apoio dos fundos de investimento? E por que será que o PSD nada diz sobre isso também?

Amanhã, em Faro: Apresentação da revista Manifesto


Tendo como tema «O Povo», o primeiro número da segunda série da revista Manifesto é apresentado por Alberto Melo e Nuno Serra, a partir das 17h00 no Café Aliança. Estão todos convidados, apareçam.

quinta-feira, 24 de maio de 2018

Voluntariado laboral, uma das melhores práticas pós-modernas de exploração laboral


O Sainsbury's é um conhecido supermercado inglês. Lá, como cá, recorre-se com frequência a prácticas predatórias de gestão que só podem fazer inchar de orgulho o maior avaro esclavagista.

Introduzem-se manuais de normas instrutoras (as célebres guidelines que retiram discernimento e iniciativa fundamentais em qualquer posto de trabalho), achatam-se as hierarquias e estabelecem-se regimes intensos de estágios profissionais não remunerados para reduzir os custos com o trabalho, para não haver haver a responsabilidade ética de gerir carreiras e valorizar a experiência e a antiguidade, enquanto se multiplica o fosso remuneratório entre os de baixo e a adminsitração. Atribuem-se nome pomposos e longos para revalorizar socialmente funções que são depauperadas económico-financeiramente. Introduzem-se "contratos zero" em que apenas se é remunerado se se trabalhar. Porém, tem que se ter total disponibilidade para o momento em que se for chamado. Esta disponibilidade permanente não tem enquadramento legal, portanto não é remunerada.

Outra das prácticas predatórias preferidas, lá e cá, são os regimes de voluntariado - veja-se os pedidos da APEL para a feira do livro, os chorudos Websummit e Rock in Rio, ou mesmo a empresa de iogurtes em Castelo Branco que pagava com iogurtes, etc..

O voluntariado humanitário tem o mérito do altruismo. Porém, com a banalização das IPSS e das ONG, instituições sem fins lucrativos, tradicionalmente parcas de fundos e frequentemente imbuídas de caracter humanitário, foi um tirinho até essa coisa hedionda que é o voluntariado laboral.

Refira-se que precursor deste estado de coisas foi também a cedência feita pelo estado, o guardião da força de trabalho, à pressão para uma crescente desvalorização da importância de relações laborais estáveis, permitindo sem contravenção uma gritante precarização das relações laborais. A naturalização do problema da precarização laboral é tão grande que se vê com frequência as suas vítimas, os jovens millénials, a acusarem quem não aceita tamanha injustica de serem preguiçosos, "não querem trabalhar" costuma ser o epíteto.

Voltando ao Sainsbury's, este, usando as suas melhores competências e a mais apelativa e inclusiva rectórica, tentou resolver o seu problema: a renovação da sua cantina em Camdem a título gratuíto, como se de uma associação humanitária se tratasse. Um eloquente grupo de artistas, cansado da naturalização destas prácticas predatórias, respondeu à letra divulgando um anúncio em que solicita à melhor boa vontade dos supermercados, entre eles o Sainsbury, para gratuitamente lhes encher a despensa.

Resta saber se quem de direito - estado e empresas - se enxerga sobre a ilegitimidade desta, e outras, práticas de gestão. É que, quem faz voluntariado, não deixa de ser alimentado, vestido, transportado, protegido da intempérie, etc., apesar das empresas tratarem o assunto como se os seus voluntários vivessem do ar. A despesa com alimentação, habitação, transporte, vestuário, cultura e educação sai do bolso de alguém, pelo que estes métodos representa um subsídio ilegítimo a qualquer empresa que sistemáticamente a eles recorra. Se o voluntariado humanitário se pode em algumas circunstâncias justificar, a sua banalização representa uma forma de exploração desonesta.

Poderá a criatividade pôr a ganância e a desonestidade no devido lugar? E quebrar o estado de negação em que vivem os próprios explorados, felizes por, "pelo menos terem trabalho"?

Hoje, no Porto

«Este livro é sobre o Portugal de hoje. Em vez da ansiedade que marca o debate corrente ou da busca de uma sentença singela, propõe-se uma atitude detida em que se juntem as várias dimensões de um problema complexo. Assenta em ideias simples: uma economia deve ser encarada como um sistema de produção e provisão capaz de criar riqueza, de a repartir de modo justo e de satisfazer as necessidades coletivas; a valorização do trabalho constitui o mais sólido mecanismo de inclusão social; a evolução resulta de deliberações explícitas ou implícitas, isto é, de formas de economia política.
Percorrem-se as caraterísticas estruturais da economia portuguesa, desde que nos anos sessenta se industrializou sem considerar o trabalho, coagindo a emigrar, passando pela democracia, que pela primeira vez criou massivamente emprego, e pela integração europeia, chegando à UEM e à financeirização que ela representa. É nestas últimas que se encontra a chave para compreender os problemas dos nossos dias.
»

Sessão sobre A Economia Portuguesa - Formas de economia política numa periferia persistente (1960-2017), com a presença do autor, José Reis, e apresentação por Carlos Pimenta (professor na FEUP). É na UNICEPE (Praça Carlos Alberto, 128-A), a partir das 18h15. A entrada é livre, apareçam.

quarta-feira, 23 de maio de 2018

Memória (XXVII)


Como muito oportunamente recorda o «Uma Página Numa Rede Social», foi esta a «fundamentação da direita, em 1979, para votar contra a criação do Serviço Nacional de Saúde (...), criticando a sua "filosofia colectivista"» e alegando que um «SNS universal e tendencialmente gratuito seria um atentado contra a liberdade». Na mesma linha, como é também oportunamente lembrado, PSD e CDS pretendiam, há poucos anos, «proceder a uma revisão constitucional, para retirar a expressão "tendencialmente gratuito" do artigo 64.º, que garante o direito à protecção da saúde». Talvez por isso, sem surpresa - e apenas eventualmente com um pouco mais de subtileza - os sinais que chegam do atual PSD apontam no mesmo caminho, como demonstra a proposta de criação de uma espécie de «cheque-saúde camuflado», indispensável para a expansão das lógicas de mercado.

terça-feira, 22 de maio de 2018

«A Economia Portuguesa» no Banco de Portugal


No âmbito das sugestivas «Conversas na Biblioteca», José Reis estará amanhã em Lisboa, no Espaço Multiusos do Edifício Portugal (Av. Almirante Reis, 71), para falar do seu mais recente livro, A Economia Portuguesa - Formas de economia política numa periferia persistente (1960-2017). Trata-se, como refere a nota do BdP, de uma «análise da evolução da economia portuguesa, desde os anos 60 até aos dias de hoje», a partir de «uma abordagem holística, que abrange as diferentes dimensões da economia». A conversa tem início às 17h00, podendo os registos de inscrição ser feitos aqui. Estão todos convidados, apareçam.

segunda-feira, 21 de maio de 2018

António Arnaut


«De facto, para quem nasceu há setenta e oito anos numa pobre aldeia do concelho de Penela, chamada Cumieira pela sua localização no cimo de um pequeno monte, que nunca aspirou a ser montanha, estava longe de sonhar com este agora que me acontece. Naquele tempo, as pessoas comiam o pão duro dos dias sem sol, viviam à míngua e morriam, em regra, sem assistência médica. Foi essa paisagem humana de sofrimento e resignação que, sem metáfora nem retórica, despertou em mim o inconformismo activo perante as injustiças evitáveis e me fez um cidadão comprometido com o Povo e a Pátria. Anos mais tarde escrevi num livro meu: "Não me conformo com as pequenas injustiças. Aceito as grandes, porque são inevitáveis, como as catástrofes, e atestam a impotência dos deuses. Aquela criança, descalça, apenas precisava de uns sapatos. Se tivesse nascido sem pés, não era tão grande a minha revolta". Creio que foi esta rebeldia, e também a minha intervenção cívico-social, para ajudar, embora modestamente, a construir uma sociedade mais livre, justa e solidária, que justificaram a alta distinção que me vai ser conferida. A criação do Serviço Nacional de Saúde, trave-mestra do Estado Social, iniciada no segundo governo de Mário Soares e concluída com a publicação da Lei 56/79, de 15 de Setembro, deve ter pesado nessa magnânima decisão. Sendo assim, é meu dever recordar intimamente todos os que ajudaram a concretizar essa grande reforma de Abril e os que têm lutado para não deixar apagar a luz de esperança que então se acendeu e que ainda bruxuleia no horizonte nublado de Portugal.»

Da alocução de António Arnaut (1936-2018) na sessão do seu Doutoramento Honoris Causa, pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, a 29 de maio de 2014.

Estão por todo o lado


Abre-se o Negócios em papel de hoje e pode ler-se o presidente da BP Portugal a afiançar que existem “tiques de populismo no gás de garrafa” ou Fernando Sobral a garantir que “Bruno de Carvalho está a criar o primeiro movimento populista em Portugal”. Enfim, do gás de garrafa ao futebol, o populismo está por todo o lado e logo parece não estar em lado nenhum. O termo é hoje convencionalmente usado e abusado para descrever qualquer fenómeno, real ou imaginário, de que o seu utilizador não goste.

Obviamente, existem lógicas populistas que podem ser descritas e avaliadas com o rigor possível nestas coisas da política e da economia política, onde factos e valores estão sempre entrelaçados. Pela minha parte, tenho defendido que populismos há muitos, dos bons e dos maus. Fi-lo uma vez mais no primeiro número da nova edição da revista Manifesto. Não sou original, naturalmente.

Por exemplo, na economia convencional Dani Rodrik, que aí refiro, tem ensaiado uma rara economia dos populismos ligada às crises geradas pela globalização. Numa crónica já com alguns meses, mas de que só tomei conhecimento agora, questiona-se sobre os contornos de um “verdadeiro populismo” e chega à conclusão já relativamente batida, mas que vale a pena lembrar, de que o New Deal foi o culminar histórico, nos EUA, de uma tradição populista na economia a resgatar, tratando-se do “bom populismo que contém o mau”.

O espectro do populismo, que pode assustar verdadeiramente certas elites, procurando exorcizá-lo preventivamente, através de associações espúrias, é precisamente o que pode operar mudanças na economia política, de modo a transferir recursos em sentido contrário ao que tem sido dominante: em vez de fluírem de baixo para cima, fluíriam de cima para baixo. Para isso, o medo tem mesmo de ser transferido de baixo para cima. 

Neoliberalismo: História, Teoria, Economia


Empregue com alguma frequência no âmbito do combate político, o termo ‘Neoliberalismo’ presta-se a vários equívocos. Desde logo, o seu uso comum aponta tanto à descrição de um determinado estado de coisas – fazendo-o funcionar enquanto ferramenta de periodização histórica – como à identificação de um posicionamento favorável à concorrência e à iniciativa privada – reduzindo-o a uma mera apologia da desigualdade. No entanto, diversas investigações no âmbito das ciências sociais têm sustentado a necessidade de estudar o Neoliberalismo enquanto um objecto historicamente situável, dando conta da complexidade e variedade de ideias, propostas e discursos que lhe deram forma. Este seminário abordará o Neoliberalismo de uma perspectiva transdisciplinar, reunindo investigadores/as que se têm dedicado ao estudo de problemas relacionados com as oscilações ao nível do pensamento económico, o funcionamento do Banco de Portugal, os debates sobre a história do capitalismo ou a desindustrialização. Cada apresentação terá a duração aproximada de trinta minutos, seguida por um comentário breve por parte de outra/o investigador/a. A frequência desta sessão de trabalho é aberta a todas e todos os/as interessados/as.

Programa

10h00 | Era uma vez em Setúbal: notas críticas sobre o conceito de «desindustrialização» — João Santos (IHC – NOVA FCSH) Comentário de Luís Trindade (IHC – NOVA FCSH)

11h30 | O Banco de Portugal, a disseminação de ideias económicas e o neoliberalismo — Ana Costa (DINÂMIA’CET-IUL) Comentário de Paulo Coimbra (CES – Universidade de Coimbra)

14H30 | O Neoliberalismo e os Historiadores — Ricardo Noronha (IHC – NOVA FCSH) Comentário de Paula Borges Santos (IHC – NOVA FCSH)
 
16H00 | Nova Economia, Economia Neoliberal? — João Rodrigues (CES – Universidade de Coimbra) Comentário de Luís Aguiar Santos (GHES-CSG, ISEG-ULisboa)

Consulte aqui outros detalhes do evento.

sábado, 19 de maio de 2018

Leituras: Revista Crítica - Económica e Social (n.º 15)


A segunda edição de 2018 da revista Crítica é temática. Inicia com um ensaio de Boaventura de Sousa Santos sobre os debates entre as esquerdas em cinco países (Brasil, Colômbia, México, Portugal e Espanha), a que se junta um contributo de Joana Mortágua sobre questões e escolhas políticas na experiência portuguesa. Gonçalo Brás discute o impacto das diferenças na derrama municipal quanto à concorrência fiscal no país e João Ramos de Almeida analisa o espírito corporativo que preside à concertação social. Por último, Eugénio Rosa procede a um balanço detalhado sobre a situação no Montepio Geral. O número 15 da revista Crítica está disponível aqui, para download gratuito. Boas leituras.

sexta-feira, 18 de maio de 2018

Economia política no seu melhor


Ruínas


Aprende-se realmente muito entre ruínas estrangeiras, incluindo sobre nós próprios, sobre os nossos erros e acertos políticos. As ruínas da esquerda italiana e grega são particularmente instrutivas, até porque estão ligadas. O europeísmo foi um dos mecanismos da (auto)destruição. Só variou o horizonte temporal.

No caso italiano, no meio das ruínas surgiu o movimento cinco estrelas e, aproveitando-se da ruína, uma liga, agora nacional. As classes subalternas reconstroem sempre um espaço nacional, graças à esquerda ou apesar dela ou mesmo contra ela. A lição é brutalmente clara: a esquerda paga um preço elevado quando são outros a tentar construir o espaço da imaginação nacional-popular numa economia estagnada, graças sobretudo ao Euro, numa sociedade causticada, graças à neoliberalização indissociável desta moeda.

Talvez valha a repescar o insuspeito Wolfgang Munchau no Financial Times (oportunamente traduzido pelo DN): “Seria ingénuo pensar na eleição de dois partidos antissistema na terceira maior economia da zona euro como irrelevante. A Itália afinal não é a Grécia. E a Liga e o Cinco Estrelas constituem um desafio muito maior para o consenso da UE do que o Syriza.”

O Syriza faz hoje penosamente parte do consenso da UE assente na mentira. Por falar de pós-verdade com origem europeia, vejam o que escreve o insuportavelmente europeísta The Guardian, uma ruína jornalistica: “O maior medo da Europa, em especial da Zona Euro, é que a Itália mergulhe no tipo de colapso económico que, em 2015, esteve perto de catapultar a Grécia – na altura, liderada por um governo radical apostado em superar as regras da Zona Euro – para fora da moeda única.” É isto que passa por imprensa de referência e até progressista.

Na verdade, a depressão grega foi induzida pelo Euro e pelas regras austeritárias que são indissociáveis do seu funcionamento; regras aceites pela esquerda grega, que finge agora gerir uma semi-colónia. Enquanto o governo grego resistiu, o BCE, por exemplo, contribuiu deliberadamente para o sabotar, por via de um sistema bancária em crise induzida, algo jamais visto.

Não sei o que é que o eventual governo liderado pelas direitas italianas fará, nem dele espero nada de bom, mas sei que se desafiar o consenso de Bruxelas-Frankfurt, o mais provável é que as forças de mercado e da integração que as suporta mergulhem ainda mais a Itália no caos. A Zona Euro mantém-se também pelo medo.

Medo e mentira. Até quando?

Desequilíbrios regionais e ensino superior

Uma andorinha não traz, evidentemente, a primavera. Mas a decisão do MCTES, relativa ao corte de 1.100 vagas em Lisboa e Porto, no próximo concurso nacional de acesso ao ensino superior, é um bom exemplo da natureza e significado que as medidas de redução dos desequilíbrios regionais e de combate à desertificação do interior do país devem assumir.

Para que se tenha uma noção do desequilíbrio que atualmente se verifica na oferta de ensino superior, em termos de alunos matriculados, veja-se o gráfico seguinte: em 2017, no ensino superior público, 44% dos alunos estão concentrados nas cidades de Lisboa e Porto; 53% nas áreas metropolitanas e 90% no litoral do país. Ou seja, o interior conta apenas com 10% dos alunos.


Quando fazemos o mesmo exercício para a distribuição dos alunos do ensino superior privado, o desequilíbrio é ainda maior: cerca de 2/3 dos alunos (68%) deste subsistema estão concentrados nas cidades de Lisboa e Porto; 90% nas áreas metropolitanas e 99% no litoral. Ou seja, apenas 1% dos alunos matriculados no ensino superior privado se encontram a estudar no interior do país.

A evolução recente da distribuição de alunos traduz de resto uma aproximação gradual à configuração existente em 1990. Isto é, antes de a rede de institutos politécnicos ter permitido uma melhoria dos equilíbrio territoriais, para a qual o surgimento de instituições privadas também contribuiu, ainda que em menor escala. Com efeito, inicia-se a partir de 2001 uma inversão desse equilíbrio relativo, particularmente expressiva no desequilíbrio entre litoral e interior, tanto no ensino superior público (com apenas 3 pontos percentuais de diferença, em 2017, face à distribuição de 1990) como no ensino superior privado (em que a percentagem de alunos matriculados em instituições de ensino superior do litoral, em 2017, supera já a registada em 1990).

Por último, as diferenças entre a rede pública de ensino superior - apesar de tudo menos «litoralizada» que a privada - evidenciam o papel que o Estado pode e deve ter no seu ordenamento, já que os privados - naturalmente - tendem a acompanhar a concentração da procura, acentuando os desequilíbrios regionais existentes.

quinta-feira, 17 de maio de 2018

Que desculpas esfarrapadas, Augusto!

Augusto Santos Silva, Ministro dos Negócios Estrangeiros e número dois na hierarquia do governo, optou por utilizar argumentos muito pouco sustentáveis para justificar a decisão de autorizar o furo para pesquisa de petróleo por parte do consórcio ENI/GALP ao largo de Aljezur, dispensando qualquer estudo de impacto ambiental.

Diz o ministro que “a confirmarem-se reservas de petróleo ao largo de Aljezur, servirão para diminuir a dependência de Portugal das importações do combustível fóssil”. Diz ainda que o Governo "tem interesse em conhecer os recursos petrolíferos na costa portuguesa".

Acontece que o contrato assinado com a ENI/GALP nada diz sobre o destino a dar a eventuais descobertas de petróleo. Como faria qualquer empresa privada, caso descubra petróleo, o consórcio vendê-lo-á nos mercados internacionais a quem pagar mais, guardando para si os lucros e pagando uma miséria ao Estado português (ver mais sobre isto aqui).

Vale a pena também ter presente que o contrato não visa a simples prospecção (para ver se há ou não petróleo no fundo do mar), antes assegura ao consórcio o direito de explorar eventuais descobertas, pagando uma miséria ao Estado português e deixando para este mesmo Estado os custos de eventuais acidentes ambientais de grandes de dimensões (que são raros, mas acontecem).

Não sei se o governo fez tudo o que estava ao seu alcance para cancelar estes contratos lesivos para o interesse público. Se o fez e não foi bem sucedido bastava dizer que os compromissos assumidos têm de ser respeitados. Não precisávamos do resto.

terça-feira, 15 de maio de 2018

Notas soltas ainda a propósito do artigo de Centeno III

Para finalizar esta curta série de notas a propósito do artigo de opinião que Centeno publicou no jornal Público no passado dia 9 de Abril, comecemos por recordar, para nos situarmos, da sua afirmação: “Podemos tomar como exemplo a experiência da Bélgica que reduziu o rácio da dívida pública de 130,5% em 1995, um valor próximo do registado em Portugal em 2016, para 94,7% em 2005”. Ou seja, um recuo da dívida pública em 35,8 pontos percentuais concretizado num período de 10 anos.

A partir daqui, deixo um par de observações a propósito das implicações para o resto da economia belga desta trajetória do seu défice público.

Comecemos por referir que a evolução da poupança e do investimento está estreitamente relacionada com a interação de uma economia com o resto do mundo. De acordo com a aritmética da contabilidade nacional, a diferença entre poupança bruta interna e investimento total do sector público e do sector privado é igual à capacidade/necessidade de financiamento de um país relativamente ao resto do mundo, ou seja, é igual ao saldo do sector externo.

Assim, de forma abreviada, pode dizer-se que isto acontece porque, se numa economia a despesa de uns é necessariamente a receita de outros, então, em termos agregados, a despesa total é igual à receita total.

Usando uma linguagem mais próxima da análise dos saldos financeiros sectoriais, pode dizer-se que, se um sector melhora o seu saldo financeiro, ou seja, se aumenta a poupança líquida (saldo entre total do rendimento e total da despesa ou saldo entre poupança bruta e investimento), um ou mais sectores têm de a diminuir no mesmo montante, ou seja, não podem todos poupar simultaneamente, dado que a poupança de uns é a despesa de outros. A lógica impõe que o contrário também seja verdadeiro.

À luz deste quadro conceptual, vejamos então o que aconteceu na Bélgica no período 1995-2005, o intervalo de tempo que Centeno oferece como referência.


Vejamos mais de perto, agora com números do gráfico acima. O que podemos observar?


Em 1995, o défice público era de 4,4% e, no período subsequente (1996-2005), em média anual, desceu para 1,2%; ou seja, o Estado Belga poupou e melhorou a sua posição orçamental em 3,2%. De onde surgiu esta poupança? Como a balança de pagamentos contribuiu com apenas 0,1%, o sector privado viu-se forçado a diminuir a sua poupança nos restantes 3,1%, passando de um saldo anual, em 1995, de 8,8% para um saldo anual médio de 5,7%.

Conclusão: a redução do défice do sector público fez-se à custa do sector privado; dado que a posição do sector externo se manteve praticamente inalterada, o aumento da poupança líquida do sector público resultou quase inteiramente da diminuição da poupança líquida do sector privado. Adicionalmente, esta diminuição da poupança líquida do sector privado não por acaso coincidiu com um aumento do endividamento deste sector em cerca de 29,2 pontos percentuais (91,5% do PIB em 1995 e 120,7 em 2005) o que compara, recorde-se, com recuo da dívida pública em 35,8 pontos percentuais.

Chegados aqui, pergunto-me: É isto que Centeno quer para Portugal? Parece que sim. Por um lado, não pode ser por acaso que a Bélgica é oferecida como exemplo. Por outro, os números apresentados no Programa de Estabilidade 2018-2022 (PEC) apontam para uma forma de comprimir o défice público que, se descontarmos a ainda maior intensidade do esforço exigido è economia portuguesa, se assemelha muitíssimo ao que foi feito no país dado como referência. Senão vejamos:


Repitamos o processo e vejamos mais de perto, agora com números do gráfico acima. O que podemos observar?


Em 2017, tivemos um défice público de 3% e, para o período subsequente (2018-2022), em média anual, projeta-se um superávite de 0,5%; ou seja, o Estado português planeia poupar e melhorar a sua posição orçamental em 3,5%. De onde surgirá esta poupança? Como a balança de pagamentos contribuirá com apenas 0,3%, o sector privado ver-se-á forçado a diminuir a sua poupança nos restantes 3,2%, passando de um saldo anual, em 2017, de 4,4% para um saldo anual médio de 1,2%.

Conclusão: se tudo correr como Centeno planeia, a transformação do défice do sector público em superávite far-se-á à custa do sector privado; dado que se prevê que a posição do sector externo se mantenha praticamente inalterada, o aumento da poupança líquida do sector público resultará quase inteiramente da diminuição da poupança líquida do sector privado.

Resumindo, para um governo diminuir o défice rumo a um orçamento equilibrado ou superavitário, tem de cobrar mais dinheiro em impostos do que aquele que devolve na forma de despesa ou investimento públicos. Onde vai o sector privado obter esse dinheiro dado que está legalmente impedido de o imprimir?

Teoricamente, de um de três modos: ou esse dinheiro resulta de uma economia que cresce apesar de dispor de menos dinheiro, e/ou obtêm-no, sobretudo, a partir de mais exportações líquidas de importações, e/ou pede-o emprestado à banca.

A primeira opção é improvável dado que a velocidade de circulação do dinheiro, embora volátil, tende a decrescer com o tempo.

A segunda opção não se materializou na economia belga no período analisado e é também descartada por Centeno: o PEC prevê uma ligeira deterioração da balança comercial ao longo do horizonte de projeção e, por isso, uma igualmente marginal melhoria da balança de pagamentos que, prevê-se, resultará da manutenção dos magros saldos positivos da balança corrente e de capital; como vimos acima, a previsão é que o sector externo compense a drenagem de recursos financeiros que a redução em 3,5% do défice público representará para a economia com apenas 0,3%. Coloca-se a questão de saber se mesmo assim não há aqui algum optimismo: os sinais que começamos a ter não são animadores.

Esta segunda opção é difícil, entre outras razões, porque pressupõe investimento continuado na mudança estrutural da economia e se materializa apenas no médio e longo prazo. No caso de Portugal a dificuldade é acentuada pelo facto do investimento ter estado em queda mais ou menos pronunciada durante todo o período 1999-2013 e da inversão registada a partir de 2014 ser muito incipiente; acresce que também não ajuda, muitíssimo pelo contrário, que a zona euro no seu conjunto, e a Alemanha em particular (desconte-se a apologia dos gastos militares e atente-se na análise do centrista Wolfgang Münchau), procure resolver o lastro de endividamento deixado pela Grande Crise Financeira de 2007/8 e pelos subsequentes desenvolvimentos europeus através de estratégias de simultânea contenção da procura interna porque, lá está, dado que a despesa de uns é a receita de outros, as exportações de uns têm de ser as importações de outros.

Chegados aqui, resta-nos a terceira opção. Tal como aconteceu na Bélgica, em Portugal, o sector privado, confrontado com uma redução da sua poupança líquida, para manter níveis de consumo e investimento compatíveis com o crescimento da economia vai ter de aumentar o seu endividamento.

É isto que uma parte daqueles que no debate público clamam por menos défice público têm em mente?

Será esta estratégia de ‘consolidação’ orçamental uma boa ideia quando o endividamento privado ainda representa 171,4% do PIB e o crédito malparado 13,3% do total do crédito concedido?

“O problema”, como diz Steve Keen, “em depender de níveis sempre crescentes de endividamento privado devia ser óbvio: esta dependência não pode acontecer porque a dada altura o sector privado se recusará a aceitar mais dívida. É o que em grande medida aconteceu em 2008 e originou a crise económica em resultado da contração da quantidade de dinheiro na economia e da própria economia”.

A impunidade cria o monstro

«Israel é uma sociedade cada vez menos critica, pluralista e aberta ao diálogo e à diferença. O cerco que fez aos palestinianos acabou por cercar os israelitas. Foram Hannah Arendt, Albert Einstein e Sidney Hook que em 1948 escreveram que o partido que deu origem ao Likud era próximo, “na sua organização, métodos, filosofia política e apelo social, dos partidos nazis e fascistas”. E foi o Likud e forças ainda mais extremistas que acabaram por determinar o que Israel é hoje. O Estado de Israel nasceu com o apoio das forças mais progressistas no mundo, dirigido por homens e mulheres que sonharam viver numa pátria de liberdade e segurança. O sonho era legitimo e o nascimento do Estado não o discuto. Nenhum teve o direito natural a nascer e todos eles se afirmaram com guerras, crimes e ocupações. O problema é que o objetivo de expulsar os palestinianos da sua terra passou a ser constitutivo da identidade do país. O sonho de liberdade acabou num estado xenófobo, militarista e profundamente corrupto. “Os nossos corações endureceram e os nossos olhos enublaram-se”, escreveu o jornalista israelita Gideon Levy. Israel morreu. Foram os seus muros, os seus guetos e as suas purgas que o mataram. Com todas as suas contradições, o sionismo era um projeto emancipador. Hoje é uma tenebrosa prisão em que a vitima envelhecida repete muito do que aprendeu com o seu carrasco, na juventude. Israel era a esperança da humanidade. É a tragédia que nos lembra que qualquer pessoa, povo ou Estado cometerá os piores crimes se nada fizermos para o impedir. Que a impunidade cria o monstro. Israel é uma das maiores decepções da humanidade.»

Daniel Oliveira, Israel morreu

Mérito e escolhas colectivas


Mesmo o mais empedernido liberal reconhece que existe algo de fundamental que distingue bens e serviços como a saúde e a educação da generalidade dos bens de consumo. É essa natureza distinta que fundamenta a provisão pública. Richard Musgrave, um dos fundadores do estudo das finanças públicas, chamou-lhes bens de mérito, e os exemplos que deu, escrevendo em 1959, incluíam os cuidados de saúde, a educação, os almoços escolares e a habitação a baixo custo.

Note-se que não estamos a falar de bens públicos, como a justiça, a segurança pública ou os faróis ao longo da costa, que têm como características a não-rivalidade (o meu benefício pela existência de um farol não reduz o do próximo) e a não-exclusão (a partir do momento em que a sociedade beneficia da existência de segurança pública, ninguém pode ser excluído desse benefício). Este outro tipo de bens, reconhecido pelo menos desde Adam Smith, também justifica a provisão pública, pois o mercado não assegura devidamente a sua provisão. Mas os bens de mérito não são meros bens públicos: o consumo de almoços escolares e da maioria dos cuidados de saúde é rival e perfeitamente passível de exclusão, mas não é por isso que Musgrave – e a maioria de nós – deixa de lhes reconhecer mérito particular.

Os bens de mérito vêm assim criar um desafio à teoria económica. Não se tratando de bens públicos (que são uma chamada ‘imperfeição’ de mercado), como entender então esta natureza fundamentalmente distinta de alguns bens e serviços, reconhecida intuitivamente pela maioria de nós?

A resposta da economia dominante foi apelar a dois outros tipos de ‘imperfeições de mercado’: as externalidades e as falhas de informação. A educação seria um bem de mérito porque o seu ‘consumo’ beneficia não apenas o próprio como também o conjunto da sociedade (a chamada ‘externalidade’ positiva) e porque as vantagens futuras que advêm da decisão de, por exemplo, estudar mais alguns anos não podem ser perfeitamente calculadas e antecipadas (a falha de informação). Estes dois efeitos seriam aquilo que faz com que as decisões ‘de mercado’ de consumidores e produtores se afastem do nível óptimo para a sociedade, justificando a intervenção pública.

Mas existe outra forma de entender os bens de mérito. Trata-se daqueles bens e serviços que, colectivamente, consideramos responderem a necessidades essenciais e serem fundamentais para a dignidade de cada um. A provisão de cuidados de saúde tem um mérito particular que justifica a provisão pública não porque a saúde seja um bem público no sentido económico, não por causa das suas externalidades positivas ou da incerteza dos seus benefícios, mas porque a sociedade como um todo considera que ninguém, independentemente do seu rendimento, deve dela ser excluído. A garantia da satisfação universal dessas necessidades é algo que, colectivamente, esperamos de uma sociedade decente.

Esta abordagem rompe com o pressuposto da soberania das preferências individuais que caracteriza a economia dominante e abraça explicitamente a política. Passamos da soberania do consumidor para a dignidade do cidadão; do individualismo metodológico para a deliberação política. É uma abordagem mais fiel ao espírito original de Musgrave e à percepção intuitiva da maioria de nós: exigimos que o ensino primário seja universal e gratuito por causa do modelo de sociedade em que queremos viver, e não apenas subsidiado a fim de compensar as suas eventuais externalidades positivas e a incerteza dos seus benefícios individuais.

A partir do momento em que reconhecemos que existe uma esfera de necessidades essenciais cuja satisfação universal deve ser assegurada pela sociedade por via não mercantil, a verdadeira discussão política é sobre onde traçar a fronteira dos bens de mérito. Porque é que o ensino superior deve ser encarado, e co-financiado, de forma distinta do ensino básico e secundário? Porque é que a participação do Estado na provisão de habitação, que é uma necessidade absolutamente básica, é tão residual?

A propósito de questões como as taxas moderadoras na saúde, o pagamento de propinas ou a política pública de habitação, devemos pensar nestas questões em termos dos princípios fundamentais que queremos que norteiem a nossa sociedade. Pedindo conselho, mais do que aos economistas, aos poetas que nos falam da paz, do pão, da habitação, da saúde e da educação.

(publicado no Expresso online a 03/05)
 

segunda-feira, 14 de maio de 2018

Injustiça laboral, injustiça social

No Expresso Curto, Pedro Santos Guerreiro (PSG) cruza oportunamente duas notícias: “Lemos nas edições de hoje do DN e do JN que a diferença dos salários médios dos administradores das empresas cotadas é 46 vezes superior aos dos seus trabalhadores, pensamos de novo em justiça - em justiça social. Como revelava o Expresso no sábado, três quartos dos quase 530 mil empregos criados em Portugal desde 2013 pagam menos de 900 euros por mês.”

Gosto de ver PSG pensar em justiça social. Agora só falta defender as instituições que podem ajudar a remover alguma das injustiças sociais no capitalismo e isto ainda antes dos necessários impostos progressivos e serviços públicos universais: sindicatos fortes e contratação colectiva tão centralizada quanto possível, por exemplo.

A verdade é que continuamos numa sociedade desigual e sem pressão salarial, fruto de uma economia política medíocre, brutalmente aprofundada no tempo da troika, através da redistribuição regressiva de direitos e obrigações entre patrões e trabalhadores. Foram criados incentivos para nos transformamos ainda mais na Florida da Europa e, tal como do outro lado do Atlântico, o resultado não é famoso para quem trabalha.

O “retrocesso evitável” do tempo da troika e do seu governo, para usar uma expressão de um livro que detalha todas as suas malvadezas anti-laborais e as formas de as superar, foi infelizmente aceite pelo governo do PS no essencial, correndo-se assim o risco de estarmos perante um compasso de espera nesta área. Os enviesamentos políticos de classe da integração europeia são conhecidos. E o retrocesso até foi saudado por demasiados jornalistas económicos no momento da sua instituição, bastando lembrar as narrativas dominantes durante a crise e os seus protagonistas.   

domingo, 13 de maio de 2018

Aprender com a China?


Aparentemente, o Estado chinês poderá vir a garantir o controlo total da EDP, confirmando-se assim, e duplamente, que a única forma de garantir o controlo nacional de sectores estratégicos é através da propriedade pública dos mesmos. O mínimo de soberania económica exige uma luta sem quartel também contra uma elite local compradora, enfeudada a interesses estrangeiros, variando apenas a nacionalidade na rede de dependências que vai tecendo e da qual vai beneficiando. Esta é uma história que o Estado chinês conheceu bem, tão bem que agora a reinventa sob novas formas, tendo tido a capacidade de se colocar do outro lado da relação assimétrica de dependência. Enfim, é preciso entretanto continuar a atirar barro à muralha, relembrando, por exemplo, o seguinte:

Quando Xi Xiping vai a Davos defender a globalização, é possível assinalar que a China se insere estrategicamente neste processo. Assim, escolhe os fluxos a que se abre e a forma como o faz, de resto como qualquer país em ascensão ao longo da história contemporânea. Basta pensar que a China controla os fluxos de capital financeiro, molda os fluxos de investimento produtivo, no quadro de uma estratégia de convergência tecnológica, que de resto foi até há pouco relaxada em relação a direitos de propriedade intelectual, e maximiza os fluxos comerciais em função de vantagens competitivas que vai construindo, graças à mobilização de todos os instrumentos de política de desenvolvimento, incluindo cambial. Num tempo marcado pela financeirização do capitalismo global e pelas suas crises recorrentes, não deixa de ser sintomático que um dos polos de crescimento do sistema mundial tenha evitado até agora estas crises precisamente porque recusou essa forma de globalização, mantendo no essencial um sistema assente naquilo que os economistas neoliberais designam por repressão financeira.

E quem um dia haveria de dizer que por cá uma parte nada irrelevante dos sectores estratégicos nacionais e das elites nacionais que os gerem teriam de responder perante o Partido Comunista Chinês? Por exemplo, é este que, em última instância, controla a electricidade no nosso país, no contexto de uma estratégia de investimento internacional que não está desligada de considerações políticas. Entretanto, é preciso não esquecer que na China a eletricidade e a sua rede são propriedade pública, bem como a ultramoderna ferrovia sempre em expansão (uma rede de alta velocidade superior à do resto do mundo combinada), mais de três quartos da banca ou, já agora, a totalidade da terra, entregue por muito tempo a quem a trabalha ou a quem nela constrói.

sábado, 12 de maio de 2018

Capas e contracapas (IV)

É curiosa a forma como o «i» decidiu recentemente «titular» a notícia da redução do número de alunos por turma no próximo ano letivo, uma medida aprovada pela maioria de esquerda no parlamento e cuja segunda fase de concretização foi anunciada há cerca de uma semana pelo Governo.

Para o «i» - e ao contrário dos títulos que surgiram no Público, Jornal de Notícias, Expresso ou Correio da Manhã, por exemplo - o facto relevante não foi a generalização da redução do número de alunos por turma em todos os inícios de ciclo do ensino básico (1º, 5º e 7º ano), mas sim a circunstância de o ensino secundário ficar «fora» do processo. Ou seja, em vez de noticiar o que aconteceu (como se espera que um jornal faça), prefere-se dar informações sobre o que não aconteceu.

A opção do jornal é duplamente estranha. Por um lado, porque está em causa a reversão com o impacto mais amplo face à decisão de Nuno Crato nesta matéria, de aumento do número de alunos por turma (sim, aumento, e não «alargamento», como sugere a notícia do «i», pois o número de alunos por turma «aumenta» ou «diminui», não «alarga» nem «encolhe», como a roupa). Por outro lado, porque a reposição dos valores relativos ao número de alunos por turma, para os valores que vigoravam antes da maioria de direita, foi sempre anunciada como sendo um processo gradual, que teve início nas escolas TEIP, no presente ano letivo (isto é, nas escolas localizadas em Territórios Educativos de Intervenção Prioritária).

Perante esta opção do jornal, fica uma dúvida: que fará o «i» quando o Ministério da Educação aplicar a redução do número de alunos por turma ao ensino secundário? Dirá também, nesse momento, que o ensino superior ficou «fora do processo»?

sexta-feira, 11 de maio de 2018

A indignidade atinge-nos a todos


Para dar credibilidade ao país nos mercados de capitais - não temos soberania monetária e o Estado está nas mãos dos especuladores financeiros – parece inevitável sacrificar as condições de vida dos mais pobres. Que seja um governo "socialista" a executar esta política, não é uma novidade histórica. Mas é a negação dos valores do socialismo e essa é a razão pela qual os partidos que se reclamavam do socialismo estão em perda por toda a Europa.

Obrigar "os de baixo" a pagar a factura da credibilidade que beneficia "os de cima" é intolerável. Não me calo, até porque me tenho confrontado com situações indignas do mesmo tipo das que abaixo são descritas. Mais tarde ou mais cedo, este estado de coisas vai tornar-se insuportável e, nessa altura, veremos quem terá a credibilidade política exigida para liderar a mudança. Não tivesse o nosso país entregado a soberania monetária, estaria hoje em condições de financiar um serviço nacional de saúde e prestações sociais que evitariam a indignidade em que muitos portugueses hoje se encontram. Aliás, em que nos encontramos todos. Sim, quando há gente a viver nesta condições, a indignidade atinge todos os que vivem bem. Pergunta-nos a todos, "o que fizeste do teu irmão?"

Caso 1:
...não podemos ser festa e glamour, não podemos ser cumpridores face à Europa e as suas regras, e depois descartar esta informação concreta sobre a forma como as pessoas vivem. Pessoas para quem o rendimento de inserção social chega? Não chega? Encaixam nos critérios, não encaixam? Com esta realidade bem viva na minha cabeça, fui hoje à farmácia e assisti a uma cena de partir o coração. Um casal já com alguma idade não tem como pagar a medicação toda e a senhora, vestida de forma muito modesta, diz: "Não faz mal, este mês tomas tu, para o próximo mês tomo eu". Saíram dali com a dignidade de quem enfrenta todos os dias um limiar de indignidade. Podia escrever mais vinte linhas sobre isto, mas não adianta. Este mês, a saúde do marido é a que vale. No próximo mês é a dela. (ler aqui)

Caso 2:
Tenho uma neta de 4 anos com uma cárie dentária que foi sujeita a um primeiro tratamento num consultório privado. Tudo correu bem e agendou-se uma segunda sessão para terminar aquele tratamento. Pela segunda vez no consultório, não se consegue que ela deixe tratar a cárie. Marcou-se outra sessão. O resultado foi o mesmo. Voltou-se a marcar outra sessão e o resultado foi o mesmo. Decidiu-se fazer os procedimentos necessários para que fosse tratada na Escola de Medicina Dentária. A anestesista entendeu que o melhor sítio seria no Hospital Pediátrico de Coimbra, uma vez que em caso de acidente maior, não esperado mas sempre possível, não teriam ali os meios de resposta em termos de reanimação. Desencadearam-se procedimentos para que fosse tratada no Pediátrico, no bloco operatório. Um mês depois, recebo um telefonema em que marcavam uma consulta para um mês depois. A consulta deu-se para confirmar o diagnóstico, o que se confirmou, claro. Dali a semanas iria receber uma carta para que a miúda se apresentasse no Hospital para fazer análises para o anestesista e depois, se após seis meses não houvesse nenhuma convocatória para a intervenção cirúrgica no Pediátrico, receberia em casa um vale-saúde para ir a um hospital privado. Perguntou-se ao médico como é que se poderia fazer se a criança tem dores, se dorme mal, se dá ela própria, coitada, mau dormir às pessoas em casa e a resposta é lapidar, o tratamento clássico, - Bruffen ou Ben-u-ron. Estamos a falar de uma criança de 4 anos! Acrescenta o médico que o Hospital tem outras prioridades, a menos que voltasse a ter um abcesso. Mas com os diabos, o abcesso está lá! Se tal acontecesse, então entrava na lista e na fila dos prioritários e, já agora, não sei qual seria aí a demora porque se trata também de uma lista de espera. Esta noite, de 1 para 2 de Maio, a minha neta não dormiu nada com dor de dentes e, com isso, a família também não. Será que terei de ir a uma clínica privada? Orçamento: 1990€, inclui 2 horas de bloco. (relato de um amigo)


quarta-feira, 9 de maio de 2018

Manifesto: «O Povo»

Hoje em Lisboa, apresentação da nova série da revista Manifesto, a partir das 18h30 na Livraria Linha de Sombra. Tendo como tema «O Povo», o primeiro número será apresentado por Isabel Moreira (deputada do PS) e José Neves (historiador), participando igualmente na sessão Ana Drago (Fórum Manifesto) e Frederico Pinheiro (diretor da revista).


Entrevista: Noam Chomsky «O Povo está zangado» Atualidade: «Era bom que trocássemos umas ideias sobre o próximo Governo» (Ricardo Paes Mamede) ● «Chamam-lhe “falha de mercado”: habitação» (Ana Drago) ● «A réplica italiana» (Daniel Oliveira) ● «Os precários do ar. História de uma reportagem censurada» (Ana Margarida de Carvalho) ● «O caminho até 2015: o Governo de esquerdas em Portugal» (Nelson Santos) ● «Macron, presidente ao serviço dos mais ricos» (Frédérique Lemaire) ● Dossier: «A classe trabalhadora já não é o que nunca foi» (José Soeiro) ● «Quem é o povo de que se fala?» (Isabel do Carmo) ● «Em defesa de um populismo» (João Rodrigues) ● «A educação como espaço público comum» (António Sampaio da Nóvoa) ● «“O populismo é uma dimensão necessária da democracia”» (entrevista a Chantal Mouffe) ● «“À procura do povo europeu”» (Álvaro Vasconcelos) ● «“A produção do espaço como expressão das relações de poder”» (Daniel de Jesus) ● «“O declínio do sindicalismo e a vaga populista”» (Pedro Mendonça) ● «“Mito e Paisagem - transfigurações do Povo no caso do cinema”» (Pedro Florêncio) ● Portfólio: «“Anda por aí um arquivo”» (Gualberto Freitas) ● Conto: «“Os homens que caminhavam a dois ritmos”» (João Guilhoto) ● Recensões: «“A revalorização do político no legado de Gramsci”» (Henrique de Sousa) ● «“Enfrentar verdades históricas”» (António Loja Neves)