terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Os «bodes expiatórios» também deixam pegadas

Rejeitando o seu contributo para a escalada dos preços das casas nos principais centros urbanos desde 2013, diversos representantes e agentes do setor queixam-se recorrentemente, por vezes com surreal dramatismo, que o Alojamento Local está a ser usado como «bode expiatório» da crise habitacional que o país atravessa.


Apesar do crescimento vertiginoso que foi registando (com o número de unidades a passar de cerca de 6 mil para 96 mil em todo o país entre 2011 e 2021), e da sua concentração nas áreas metropolitanas e no Algarve (que perfazem 75% da oferta total), o Alojamento Local não é, certamente, o único responsável pelo aumento dos preços da habitação nas principais cidades do país. Haveria que considerar, com efeito, o impacto de outras novas formas de procura, em muitos casos especulativas, tanto nacionais como (e sobretudo) estrangeiras. O que não se pode sugerir, contudo, é que o Alojamento Local não tem nada que ver com isto.

Considerando o caso de Lisboa, importa desde logo assinalar que o número de unidades de AL passou de cerca de 200 para 19 mil entre 2011 e 2021. Quando, no mesmo período, a capital perde - de forma inédita - cerca de 6 mil casas. E é de facto em freguesias onde a redução de população e de famílias residentes foi mais pronunciada, que o número de habitações mais decresce. O caso de Santa Maria Maior e da Misericórdia são, a este respeito, lapidares: perdem, no seu conjunto, cerca de 4,7 mil casas, ao mesmo tempo que o Alojamento Local aumenta em cerca de 8 mil novas unidades.

Sim, os «bodes expiatórios» também deixam pegadas.

A injustiça social tem classe


Operária contraiu silicose ao serviço da multinacional Roca e pode ter de se sujeitar a transplante pulmonar. Mas empresa recusou indemnizá-la e tribunais deram-lhe razão (...) Maria optou por não prestar declarações sobre o assunto, alegando encontrar-se fragilizada. É possível que nem tente que o Supremo Tribunal de Justiça reanalise o caso, por falta de dinheiro para pagar as custas judiciais. Tudo somado, a sua pensão não chega aos 200 euros mensais. Confrontado com o teor das decisões da Justiça neste caso, o sindicalista Luís Almeida dispara certeiro a sua indignação: “Se os juízes tivessem de trabalhar um dia ou dois nestas fábricas mudavam logo de opinião.”
Ana Henriques

“Por uma questão de bem-estar mental”, deixou de conseguir partilhar casa e, no ano passado, acabou por arrendar aquilo que o salário de 920 euros líquidos por mês lhe permitia. “Uma única divisão minúscula. O meu quarto é também a minha cozinha. A humidade é imensa, a minha roupa fica com bolor e já tive infecções respiratórias”, conta sobre o seu T0 de 400 euros, mais 70 de despesas, no Porto (...) Em São Bartolomeu de Messines, a 20 quilómetros do sítio onde trabalha como administrativa, em Albufeira, o T1 renovado onde vive está “em bom estado”, mas sobrelotado. “É uma casa mesmo muito pequena. Seria o ideal para uma pessoa, mas vivem três”, conta Teresa, que, aos 32 anos, vive com a sua filha de cinco anos e com o namorado, com quem se juntou não porque queria, mas porque, a receber o salário mínimo, com uma renda de 400 euros e os custos com o combustível para chegar ao trabalho, não tinha alternativa.
Rafaela Burd Relvas

O bom jornalismo ajuda a revelar uma certa forma de economia política e a fazer as ligações: de um sistema judicial com brutais enviesamentos de classe à questão da habitação de norte a sul do país, estamos sempre a falar de uma certa forma de capitalismo, no mínimo, sem “poderes compensatórios” relevantes. Os custos sociais, tão crescentes quanto multidimensionais, são assim cada vez mais transferidos para as classes trabalhadoras.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

O neoliberalismo é um tigre de papel?

 
Terça-feira, dia 28 de Fevereiro, às 18h30m, vou estar a conversar com o historiador Ricardo Noronha sobre um livro que saiu no ano passado. A conversa é na livraria Tigre de Papel (rua de Arroios, 25, em Lisboa). Estão convidados.


Quem?


Os dados são do Banco de Portugal. E revelam que o diagnóstico oficial, à margem do senso comum já apreendido por todos, está um pouco ao lado. Até o mercado imobiliário o assume.

De 2021 para 2022, num ano apenas, o crédito bancário concedido aumentou de 12,5 mil milhões de euros para 13,8 mil milhões. Deste aumento de 1273,4 milhões de euros, cerca de 57% deveu-se a crédito concedido a clientes estrangeiros (mais 726,6 milhões, de 1,513 para 2,2 mil milhões e euros), apesar de este universo de clientes ter representado apenas 7,8% do total de 154,9 mil clientes em 2021 e 10,5% de 152,9 mil em 2022. 

Esta subida está associada tanto a uma subida do número de clientes de mais de 33% (de 12.108 para 16.106), como do valor médio do crédito concedido, de mais 11,3% (de 125 mil para 139 mil euros). Já o segmento dos clientes portugueses registou uma descida do número de clientes de 4,2% (de 142.785 para 136.788) e uma subida do valor médio de crédito de 9,6% (abaixo do verificado para o segmento de clientes estrangeiros). 

É notório para todos que o mercado imobiliário está a ser pressionado sobretudo pela procura externa, da qual as aquisições através da concessão de crédito são apenas uma parcela. Mas o Governo parece não ter coragem de enfrentar esta realidade e o sector financeiro que, a julgar pelos números, parece estar a gostar bastante desta situação... 

 

A mesma política

Fonte: Marktest, https://www.marktest.com/wap/a/p/id~112.aspx#

Os resultados da sondagem referida no post do Jorge Bateira mostram sempre a mesma ilusão. 

A maioria dos eleitores (cada vez menos) vota no PS ou no PSD, como representantes da principal clivagem no pensamento político que, na verdade, não são. E a ascensão da extrema-direita surge apoiada - até mediaticamente - como a alternativa necessária a essa clivagem que, na verdade, não é. 

Primeiro. A clivagem entre PS e PSD vem do pós 25 de Abril de 1974. Face a uma direita conservadora e uma esquerda que queria construir o socialismo, o PS apresentou-se à social-democracia europeia e à administração norte-americana como o “fiel da balança" entre esses dois lados, o lado kerentskiano da revolução que, desta vez, sairia vencedor (Veja-se no link do artigo de Tiago Moreira de Sá a referência à conversa entre Henry Kissinger, Costa Gomes e Mário Soares em Outubro de 1974). Esse recuo nos seus objectivos políticos originais passou, primeiro, pela adesão à cartilha do FMI (imposta pela social-democracia europeia) e, desde a década a 80/90, pela cedência em toda a linha à deriva neoliberal na União Europeia, que se materializou crescentemente através da harmonização informal das políticas na UE, regida por instituições não sufragadas, em que é pouco claro quem efectivamente manda. 

Há diferenças entre as políticas do PS e PSD (nomeadamente na social). Mas no essencial, os objectivos e princípios subjacentes, são os mesmos – a política europeia (neoliberal). No Governo, o PS aplica - com maior ou menor relutância – essa política importada (a laboral, monetária, de salvaguarda do sector financeiro respaldado no banco central, e orçamental de implicações transversais). E, quando o descontentamento cresce (na Saúde, Educação, Habitação, distribuição de rendimentos) e se dá a "mudança", o PSD aplica convictamente "reformas estruturais" que agravam ainda mais a situação. No ciclo seguinte, o PS não reverte essas "reformas estruturais" e até defende a "estabilidade legislativa". Tem sido assim nas três últimas décadas.

Não se sabe se os militantes ou votantes do PS têm essa consciência. Mas este é o "sistema": fazer o povo escolher entre dois cavalos cinzentos, com mais ou menos manchas "sociais", que aplicarão a mesma política, independentemente das eleições. 

domingo, 26 de fevereiro de 2023

Condenados a votar no "mal" para evitar o "péssimo"?


Há dias foi publicada uma sondagem (Público, 22 Fev) que mostra uma queda substancial da intenção de voto no PS. No conjunto, a direita até poderia ultrapassar a esquerda. Bem sei que as legislativas são apenas em 2026, mas recuso-me a meter a cabeça debaixo da areia como se nada estivesse a acontecer. 

Há boas razões para reflectir sobre esta dinâmica. Como disse David Pontes no editorial do Público (25 Fev), "se este [o sistema] não consegue acomodar estes protestos e estabelecer soluções através dos seus canais, então o resultado pode ser simplesmente o crescimento da frustração de quem protesta e não alcança. E a seguir pode ser o sistema a ser posto em causa."

Todos sabemos que o protesto e a raiva contra este sistema capitalista neoliberal tem sido a principal fonte do voto na extrema-direita, na Europa, nos EUA, no RU, no Brasil. Na Europa, esta dinâmica eleitoral conduziu à erosão dos partidos social-liberais que usavam o nome de "socialista" e aplicavam as políticas do neoliberalismo exigidas pela UE. Lembremo-nos de que já quase não existe o partido socialista de François Mitterrand.

As sondagens mostram-nos o destino do PS, caso persista em manter-se "bom aluno" de Bruxelas. E também mostram que os partidos da esquerda não serão a alternativa à coligação que a Direita irá formar para chegar ao poder. Hoje, a Suécia é governada por uma coligação entre um partido da direita tradicional e um partido da extrema-direita. A Itália é governada pela extrema-direita. Na Alemanha, a extrema-direita AfD aparece nas sondagens a ultrapassar os Verdes, ou muito próxima destes.

Chegados a 2026, resta-nos votar no "mal" para evitar o "péssimo"? Não tem que ser assim, mas para isso todos os que ainda têm alguma energia e sentido de missão têm de se juntar para criarmos uma alternativa eficaz. O essencial está escrito no meu post do Facebook de 8 de Dezembro passado:

"nas próximas eleições, em 2026, as esquerdas superam a sua incomunicabilidade histórica através de uma coligação eleitoral. Esta incluiria uma terceira força política, criada a partir da iniciativa de cidadãos de esquerda, não alinhados partidariamente, o que permitiria estabelecer pontes entre aqueles dois partidos e formar um elo congregador das esquerdas."

À semelhança de Lula da Silva, que construiu uma frente ampla de democratas e derrotou a extrema-direita liderada por Jair Bolsonaro, entendo que devemos construir uma frente ampla anti-sistema neoliberal capaz de criar uma nova correlação de forças a favor do campo progressista.

As manifestações pela Vida Justa e pelo direito à Habitação podem constituir o início desse processo de convergência das esquerdas. Uma recusa sectária desse movimento unitário e plural, em direcção a uma candidatura que polarize o voto contra a Direita ultra-liberal, seria o suicídio político das esquerdas e uma desgraça para o país.

Não podemos aceitar a globalização neoliberal



Chama-se arbitragem laboral à forma como os capitalistas, num contexto de fronteiras abertas a todos os fluxos pela liberalização, atiram os trabalhadores de diferentes países uns contra os outros, numa corrida laboral para o fundo. Este contexto nunca pode ser perdido de vista, nem naturalizado.

Simplificando, há duas formas de organizar a corrida laboral para o fundo: deslocalizar ou ameaçar deslocalizar o capital para os países onde os trabalhadores são mais pobres, ou trazer os trabalhadores mais pobres para onde o capital precisa deles, tendencialmente com as condições de trabalho dos países de origem. Deslocalizam-se os capitais ou deslocalizam-se os trabalhadores.

Num contexto de globalização neoliberal, a situação laboral piora muito nos países com condições de trabalho mais favoráveis e não melhora nos países mais pobres. Por outras palavras, a convergência nunca se faz por cima.

No caso português, reforçou-se desde a troika uma economia de baixa pressão salarial, demasiado concentrada em sectores como a construção, o agronegócio ou o turismo, onde os patrões exigem uma força de trabalho barata e abundante.

Surge, por isso, o discurso de origem patronal, medíocre e reacionário: “não há quem queira trabalhar”, “os portugueses não querem fazer certos trabalhos” (mal pagos), “estamos em pleno emprego”, entre outras fraudes nada inocentes. Claro, o problema são as remunerações e as ultrajantes condições de trabalho oferecidas por esse mesmo patronato, mas disso quase não se fala. Ou, quando se fala, pelo conhecimento público de uma situação de exploração mais flagrante, não se faz a ligação àquele discurso e à prática correspondente.

Para uma certa procura, seria mesmo bom que não houvesse oferta, de modo a obrigar quem precisa de força de trabalho a garantir salários e condições de trabalho decentes, incentivando, no processo, investimentos geradores de aumentos de produtividade. Caso contrário, estamos a perpetuar a selvajaria laboral, trancados num modelo económico medíocre.

Isto requer regras laborais exigentes para os patrões, que são quem tem mais poder, rigorosamente cumpridas. Mas também exige regulação dos fluxos migratórios por uma dupla razão: para defender quem cá está e quem quer vir para cá trabalhar, de modo que ninguém fique vulnerável perante o patronato. A dignidade do trabalho é para todos. 

Do ponto de vista social e político, os que estão em profissões com barreiras à entrada, da língua à regulação – e que, por isso, atenuam a concorrência internacional de todos contra todos –, por exemplo, professores universitários, advogados, médicos, jornalistas, gestores, deveriam estar mais atentos aos que estão mais expostos às consequências da abertura irrestrita de fronteiras a todos os níveis.

Sem fronteira económica, não há responsabilização política, nem democracia ou Estado social para todos. Por isso, os neoliberais sempre quiseram tornar a fronteira política economicamente irrelevante.

A fórmula de Dani Rodrik, um economista político social-democrata, é justa neste contexto: os países subdesenvolvidos devem poder copiar as práticas desenvolvimentistas dos países hoje ricos, incluindo o protecionismo; os países desenvolvidos devem poder evitar a erosão dos seus padrões laborais ou ambientais, bloqueando formas de concorrência e de chantagem do capital consideradas ilegítimas. 

E, sim, claro: um certo discurso pretensamente cosmopolita, mas complacente com a globalização neoliberal, também alimenta a extrema-direita.

Crónica publicada na passada sexta-feira no setenta e quatro.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Propriedades...


O recente debate sobre as políticas relativas à habitação fez-me lembrar o que escreveu John Locke sobre a propriedade no capítulo V do seu Segundo Tratado do Governo. 

Para Locke, "Deus concedeu a terra em comum a todos os Homens," mas acrescenta "também lhes deu a razão, para se guiarem por ela e a usarem da forma mais vantajosa e mais conveniente para as suas vidas".

A isto, Locke junta a noção de propriedade, mas limitando-a a cada pessoa. Cada um é proprietário de si próprio e, por extensão, do seu trabalho. Então, segundo Locke, é através do trabalho que um indivíduo se apropria daquilo que antes era comum. 

Ao mesmo tempo, o trabalho e o usufruto estipulam os limites da apropriação. Explica Locke:

A mesma lei da natureza que nos concede a propriedade define igualmente os seus limites. (…) Através do trabalho, uma pessoa poderá fixar a sua propriedade em tudo aquilo de que puder retirar proveito, antes de se deteriorar. Tudo o que for para além disso, constituirá mais do que a sua parte, e pertence aos outros. 

Se ficássemos por aqui era bastante óbvio que as polémicas propostas do Governo se enquadravam facilmente numa leitura liberal. Continua Locke mais à frente:

caso deixasse que se estragassem, na sua posse, sem serem devidamente utilizados, caso os frutos apodrecessem ou o veado se putrefizesse antes de consumidos, então aquele que deles se tivesse apoderado teria cometido uma ofensa contra a lei comum da natureza, susceptível de ser castigada. Agir assim mais não é do que invadir o quinhão do vizinho, já que ninguém possui o direito de tomar para si mais do que pode usar com vista à obtenção das comodidades da vida. 

Mas a narrativa Lockeana não fica por aqui. É que, entretanto, tal como hoje, entra o dinheiro. Toda a passagem é fenomenal:

não estaria a prejudicar quem quer que fosse, caso conseguisse trocar as suas ameixas, que se estragariam numa semana, por nozes que poderia guardar para ir comendo durante um ano inteiro. A partir do momento em que não permitisse que se estragassem nas suas mãos, não estaria a dilapidar o património comum, nem a destruir qualquer parcela dos bens dos outros. Além disso, se trocasse as suas nozes por um pedaço de metal, encantado com a sua cor, ou as suas ovelhas por conchas, lã por pedra brilhante ou diamante, e os guardasse durante toda a sua vida, de modo algum estaria a invadir o direito dos demais. Nada o impedia de acumular a quantidade que entendesse destes objectos imperecíveis, porquanto não é por obter amplas propriedades que alguém ultrapassa os limites da propriedade legítima, mas por permitir que se estraguem inutilmente em seu poder. 

E assim se introduziu o uso do dinheiro, enquanto elemento duradouro que os homens podiam guardar sem que se estragasse, e que, por consentimento mútuo, podiam trocar por aqueles bens verdadeiramente úteis, se bem que perecíveis, necessários para o seu sustento. 

Ora, graus diferentes de engenho e de esforço humano produzem níveis igualmente diferentes de possessões. De igual modo, a invenção do dinheiro forneceu ao homem a oportunidade de continuar a aumentar aquelas que podia legitimamente adquirir sem risco de se estragarem no seu domínio. 

Os interesses de Locke ficam expostos, então:

é inquestionável que os homens chegaram a acordo relativamente a uma apropriação desigual e desproporcionada da terra, o que foi possível a partir do momento em que, por um consentimento tácito e voluntário entre todos, se encontrou uma via através da qual um homem pode legitimamente possuir mais terras do que aquelas cujo produto pode utilizar. A partir desse momento, a capacidade de apropriação e de produção deixaram de conhecer limites, uma vez que qualquer um podia trocar os seus excedentes por ouro e prata, os quais, sendo metais que não se estragam nem apodrecem, podem ser amealhados sem prejuízo de ninguém. Foi assim que os homens viabilizaram uma repartição desigual de possessões particulares através da atribuição de um valor ao ouro e à prata, chegando tacitamente a acordo sobre a utilização do dinheiro, ainda antes de se unirem em sociedade e sem que tivessem celebrado qualquer contrato social entre si. 

Toda esta argumentação foi extremamente útil na apropriação dos bens comuns (a questão dos enclosures) ou na apropriação das terras dos nativos americanos. Com uma ideia aparentemente benévola de que todo o valor e toda a propriedade apenas advém, legitimamente, do trabalho. Daí, adquiria-se o direito à terra, supostamente através do trabalho dos "homens industriosos e racionais" (hoje diria empreendedores), e depois à acumulação através do dinheiro. Com o dinheiro esta apropriação pode tornar-se infinita e isso, para Locke, é uma coisa boa e para a classe capitalista nascente também. Desta feita, Locke constrói todo um edifício teórico de justificação das desigualdades do sistema capitalista.

Tal como hoje, o dinheiro surge para sobrepor a propriedade aos direitos (naturais) e ao trabalho. Mas a narrativa de Locke sobre a origem do dinheiro esbarra completamente no conhecimento que temos sobre esta instituição. O dinheiro surge depois dos Estados, é criado por Estados e, portanto, a propriedade e a acumulação infinita são uma escolha política (tanta vez marcada pela violência) e não resultado de um qualquer acordo tácito impossível de comprovar.

Se assim é, talvez possamos voltar a pensar em como o direito da propriedade é uma construção política e motivada por interesses e talvez possamos começar a discutir a ilegitimidade de certas acumulações de propriedade, que ao apropriarem-se daquilo que é comum prejudicam diretamente o direito dos outros à propriedade mais básica segundo o próprio Locke: a propriedade de si próprios. 

Dá para discutir isto tudo, só em cima do pensamento de Locke, mas isso foi o que já fizeram tantos. Podia ser a Locke que respondiam Marx e Engels quando escreveram, magistralmente, no Manifesto Comunista:

Horrorizais-vos por querermos suprimir a propriedade privada. Mas na vossa sociedade existente, a propriedade privada está suprimida para nove décimos dos seus membros; ela existe precisamente pelo facto de não existir para nove décimos. Censurais-nos, portanto, por querermos suprimir uma propriedade que pressupõe como condição necessária que a imensa maioria da sociedade não possua propriedade.

Numa palavra, censurais-nos por querermos suprimir a vossa propriedade. Certamente, é isso mesmo que queremos.

Comam mais brioches

No ano em que assistimos ao maior recuo do século no peso da retribuição do trabalho no PIB, os salários nominais cresceram apenas 3,4% enquanto as novas rendas da habitação subiram 20,6% no conjunto do país e 28,3% no distrito de Lisboa. 


Isto, como escrevi há um par de dias, ao mesmo tempo que de 2015 a 2022, o preço do m2 da habitação em Portugal cresceu 5,5 vezes mais do que o salário nominal médio auferido no país (e 7,2 vezes mais no distrito de Lisboa).

Ao resultado deste, mais ou menos explícito, mas permanente, conflito redistributivo, os economistas chamam distribuição funcional do rendimento: o que não vai para salários, vai necessariamente para lucros, rendas e juros.

A vida não pode ser esta rematada injustiça.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

Como é que se diz PREC em finlandês?


Helsínquia: rendas controladas e iniciativa pública fazem a diferença: “quase um quinto das habitações pertence ao município, que as disponibiliza em regime de arrendamento de longa duração com o objetivo de assegurar a o direito à habitação e a diversidade social no seu território.”

A vida tem de ser justa

 

Todos os dias os preços sobem, os despejos de casas aumentam e os salários dão para menos dias do mês. As pessoas estão a escolher se vão aquecer as suas casas ou comer.

Manifesto

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Pelo pluralismo no debate


Criando para o efeito um dossier, designado «Série Habitação em Portugal», o Público tem vindo a divulgar, por capítulos, os resultados de um estudo promovido pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), sobre «O mercado imobiliário em Portugal».

Nada contra, muito pelo contrário, a divulgação jornalística de trabalhos desta natureza. É, aliás, serviço público. Contudo, das duas uma: se é para ficar por aqui, pela divulgação do trabalho da FFMS, talvez fosse mais apropriado atribuir ao dossier a designação do próprio estudo (assumindo-se assim ser esse o objetivo). De outro modo, a «Série Habitação em Portugal» deverá prosseguir com a divulgação de outras investigações, por forma a que os leitores tenham acesso a perspetivas diversas sobre o tema.

Entre outros - e portanto referido apenas a título de exemplo (mesmo que não desinteressado, uma vez que envolve vários autores deste blogue) - sugerimos que o Público divulgue também, nos mesmos moldes, o estudo «A nova Questão da Habitação em Portugal», coordenado por Ana Cordeiro Santos (e que foi, aliás, objeto de um artigo de Luisa Pinto no jornal, em 2019).

É que, para além de estarem em causa «escolas» de pensamento distintas, e portanto com interpretações e propostas em muitos casos antagónicas sobre a questão da habitação, é assim que se evitam «campanhas públicas» monolíticas, como a que o João Rodrigues aqui assinalou.

Como é que se diz PREC em dinamarquês?

 
 
Na Dinamarca, por exemplo, a lei impõe que os proprietários de imóveis residenciais que não ocupem a própria casa sejam obrigados a ocupá-la de outra forma. Assim, quando uma casa fica vazia por mais de seis meses, o município onde essa casa se localiza tem o poder de forçar os proprietários a colocar o imóvel no mercado de arrendamento, com um inquilino apontado pelo município, evitando-se, desta forma, fenómenos duradouros de falta de oferta.
 

Rentismo e crise da habitação em Portugal


O modelo económico que insiste na promoção do rentismo imobiliário é contraditório com o objectivo da política de habitação de «garantir que todos os agregados têm acesso a uma habitação digna e adequada aos seus rendimentos e à sua dimensão». Por isso, a resolução do problema da habitação não será alcançada sem a necessária mudança do actual modelo económico, que vem operando uma transferência da propriedade do património imobiliário para o exterior e do rendimento do trabalho para o capital, com os rentistas imobiliários a assumirem um papel cada vez mais relevante neste processo.

Excerto de um artigo, publicado em Dezembro no Le Monde diplomatique - edição portuguesa, e agora disponível na íntegra no site do jornal.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Comam brioches

De 2015 a 2022, o preço do m2 da habitação em Portugal cresceu 5,5 vezes mais do que o salário nominal médio auferido no país.

De 2015 a 2022, o preço do m2 da habitação no distrito de Lisboa cresceu 7,2 vezes mais do que o salário nominal médio auferido no país.


Parece-vos sexy?

A direita não quer mudanças, pois claro, que surpresa. O povo nem sempre aprecia que o mandem comer brioches.

* Segunda parte, aqui.

O enquadramento conta

A questão nas formas de economia política realmente existentes nunca é se o Estado intervém ou não, mas que interesses são protegidos e que interesses são desconsiderados por uma acção pública inevitável e nunca neutra em termos de valores.

Infelizmente, enquadra-se muitas vezes a questão da habitação pelo prisma ideológico liberal, como neste título: “Governo responde à crise habitacional com intervenção no mercado privado”.  

O mercado erradamente dito privado não existiria sem intervenção do Estado, sendo aliás parte da esfera pública, até porque é sempre uma construção política, passível de múltiplas configurações, com benefícios e custos sociais diferenciados. E isto por mais tentativas que os liberais façam para naturalizar um certo arranjo, reduzindo o Estado a um artifício que intervém a posteriori, no que são ajudados pela economia que ainda se ensina por aí. Os liberais, simplesmente, querem sempre mais direitos e menos deveres para os proprietários. Foi aliás esta tendência que nos levou à presente crise habitacional.

Num sistema de provisão como a habitação é tudo uma questão de distribuição e redistribuição de direitos e de deveres, de liberdades e de exposições a essas liberdades, de poder e de vulnerabilidade. 

Estas breves considerações de economia política institucionalista podem ajudar a reenquadrar o debate e o conflito inevitáveis sobre habitação, tanto mais que os interesses são profundamente divergentes e os valores também, da habitação como um activo financeiro à habitação como uma necessidade social. 

À boleia da linguagem falsamente neutra dos incentivos, e é também para isto que serve a economia convencional, para ofuscar ideologicamente, o governo opta por aumentar os ineficazes direitos fiscais dos especuladores e dos senhorios, por socializar parte dos riscos destes últimos e o mesmo faz com os riscos dos credores. A sempre tão poderosa banca não pode ser esquecida.  

Na crucial relação senhorios-inquilinos mantém um distribuição de direitos e de deveres muito favorável aos primeiros, até porque parece que os actuais mecanismos de definição da renda só são alvo de pequenos ajustamentos. Na questão das casas devolutas, ainda estamos para ver como, e se, as obrigações dos proprietários vão concretamente aumentar. 

Mas só a hipótese de um aumento das obrigações dos proprietários, correlativa de um aumento das liberdades de quem quer arrendar a um preço comportável, coloca as bem financiadas iniciativas liberais até dizer chega a querer vir para a rua, em defesa dos direitos dos proprietários, sempre definidos, protegidos e garantidos pela intervenção do Estado. Desculpem, devemos dizer direitos dos “portugueses”. Talvez sejam estes os portugueses de bem, de que falam os que estão no verso fascista desta má moeda...


segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

As empresas não criam riqueza no vazio

"É comum ouvir-se dizer que são as empresas quem cria valor. Não é bem assim. As empresas são, de facto, o lugar onde se articulam recursos e competências para criar valor de mercado. Mais: no sistema capitalista, são um motor essencial de inovação. A luta pela sobrevivência obriga-as a desenvolver novos produtos e modelos de negócio, a adoptar novos métodos de produção, a experimentar novas formas de organização e a procurar novos mercados. Este potencial transformador da competição entre empresas foi enfatizado tanto nas análises do revolucionário Marx como nas do conservador Schumpeter.

O que falta dizer é que as empresas não criam valor nem inovam no vazio. Nunca se viu uma empresa altamente produtiva nascer e crescer no deserto. O sucesso de cada empresa depende do contexto em que está inserida. 

A sua sobrevivência, o sucesso comercial, as competências produtivas ou a capacidade de inovação, tudo isto depende das ligações que mantêm com o mundo à sua volta. É através delas que identificam os riscos e as oportunidades de negócio, estabelecem relações estratégicas com fornecedores e clientes, diversificam fontes de financiamento, resolvem problemas tecnológicos ou legais, recrutam trabalhadores e gestores com os perfis adequados. O valor e a inovação gerados pelas empresas não seriam os mesmos sem as relações que estabelecem com o mundo à sua volta. Neste sentido, quem cria valor e inova é a rede de relações sociais de que as empresas fazem parte – e não as empresas por si."

O resto do meu texto pode ser lido no Público.

 

Habitação e Estado refém do mercado


Ao contrário do que se alega, o que as medidas anunciadas pelo Governo para resolver a crise habitacional revelam é um Estado refém do mercado. Como é sabido, o sistema de provisão habitacional nacional é caracterizado por um parque público diminuto e, portanto, pela circunstância de termos um bem essencial totalmente dependente de um mercado financeirizado e rentista. 

Esta situação é resultado de escolhas políticas que sempre privilegiaram, ao longo de décadas, a intervenção através do mercado. Escolhas essas reforçadas, nos últimos anos, com a intervenção da troika e a sua influência austeritária posterior, gerando uma contração do investimento público e promovendo ativamente a especulação imobiliária, em sua substituição.

A venda a fundos abutres de bens imobiliários a preço de saldo, no rescaldo da crise financeira, a liberalização do mercado de arrendamento, que acelerou a cessação dos contratos, e a aposta desproporcionada no turismo contribuíram, no seu conjunto, para a retirada de imóveis do mercado de arrendamento. Esta situação foi ainda potenciada pela promoção de um mercado imobiliário, concorrencial ao setor da habitação, virado para uma procura externa, cujo poder de compra é muito superior ao dos salários desvalorizados de quem trabalha no país. A crise inflacionária foi apenas a gota de água de uma situação que já se sabia, há muito, ser insustentável.

Neste sentido, a parte mais significativa das medidas incide no mercado de arrendamento e visa trazer de volta os alojamentos que irresponsavelmente, por ação e omissão, se permitiu que fossem canalizados para outros usos. Porém, ao invés de atuar sobre as verdadeiras causas do problema, as medidas anunciadas procuram tornar ainda mais atrativo um mercado de arrendamento sobreaquecido, com rendas que a generalidade da população não consegue suportar.

O resto do artigo do pode ser lido no Público.

Os salários não podem acompanhar a inflação... exceto para os gestores

 

Os dados divulgados pelo INE confirmam o que se foi observando sobre a evolução dos salários em Portugal em 2022: no fim do ano, sem quaisquer sinais que indiquem o risco de uma espiral inflacionista, o salário médio caiu 5% face ao mesmo período do ano anterior, em termos reais (isto é, tendo em conta a evolução do nível geral de preços na economia).

Se se comparar a evolução nominal do salário médio com a dos preços dos principais produtos nos setores dos bens alimentares e da energia, percebe-se facilmente a dimensão da perda de poder de compra para a maioria das pessoas. O crescimento nominal do salário médio (3%) ficou bastante abaixo da subida dos preços do pão, cereais (14%), leite, ovos (14,1%) ou carne (15,5%), bem como do aumento dos preços registado nos combustíveis (20,7%), eletricidade (22,2%) e gás (32,9%).

O único grupo profissional que obteve aumentos salariais acima da inflação em 2022 foi o dos gestores executivos e diretores. Todas as outras categorias profissionais – trabalhadores da indústria e dos serviços, técnicos intermédios, pessoal administrativo, professores, enfermeiros, médicos, etc. – tiveram aumentos médios que ficam longe de compensar a subida dos preços. Ou seja, os únicos que não perderam poder de compra no ano passado foram precisamente aqueles que já possuíam rendimentos mais elevados.

É uma tendência que já vem de trás. Entre 2010 e 2017, os gestores de topo viram o seu rendimento aumentar 49,7%, ao mesmo tempo que o rendimento médio dos trabalhadores diminuiu 6,2%, o que fez aumentar o rácio médio entre o salário dos gestores e dos trabalhadores. A pandemia não alterou este cenário: em 2021, os presidentes executivos das principais empresas cotadas em bolsa receberam, em média, 32 vezes mais do que os trabalhadores. A Jerónimo Martins, dona do Pingo Doce, é a campeã da desigualdade: o seu CEO auferiu 3 milhões de euros nesse ano, um valor 262,6 vezes superior à média dos salários de quem trabalha na empresa.

A economia convencional diz-nos que a concorrência do mercado leva a que cada um receba a remuneração adequada ao seu contributo – por outras palavras, assume-se que os salários são o reflexo da produtividade. Mas é muito difícil justificar a enorme desigualdade com o "mérito" dos gestores, até porque ela também existe em empresas com resultados negativos, o que sugere que tem pouco a ver com a qualidade da gestão.

Além de não ter nenhuma relação convincente com a produtividade, há cada vez mais evidências de que a desigualdade é um obstáculo ao desenvolvimento económico dos países. O aumento da desigualdade comprime o consumo da maioria das pessoas ao mesmo tempo que promove a especulação financeira por parte dos mais ricos, com efeitos perversos para o conjunto da economia.

No atual contexto de subida dos preços, com a taxa de sindicalização em mínimos históricos, a maioria dos trabalhadores não consegue negociar aumentos salariais para manter o seu poder de compra. Só quem tem mais poder dentro das empresas é que o garante. Ao recusar aumentos salariais pelo menos em linha com a inflação e medidas de combate às desigualdades (como o reforço da progressividade fiscal ou a definição leques salariais máximos para as empresas), a política económica do governo está a acentuar esta tendência.

Artigo publicado inicialmente no Setenta e Quatro.

domingo, 19 de fevereiro de 2023

sábado, 18 de fevereiro de 2023

Habitação e delírio neoliberal


Imagine que é um proprietário. Tem uma casa devoluta. A casa está devoluta porque: 1) não quer saber, tem tanto património que não lhe faz diferença; 2) está conscientemente a especular, esperando que os preços subam; 3) tem restrições de capital e liquidez e não a pode recuperar.

Segundo as intenções anunciadas pelo Governo, o Estado toma o usufruto do imóvel, recupera-o e coloca-o a arrendar em regime acessível, pagando a renda diretamente ao proprietário. Isto é, o Estado adianta o capital para valorizar um ativo de um privado e ainda lhe oferece uma renda sem risco.

A direita e os proprietários falam de PREC. Montenegro chama a António Costa comunista. Está tudo louco! O debate público português ensandeceu. Na verdade, esta é uma medida bastante neoliberal. Contempla a transferência de risco do privado para o público enquanto garante o direito de propriedade deste último e ainda valoriza um ativo privado com investimento público. É uma PPP sem risco para os proprietários. Há mais neoliberal do que isto? Mas são tão alienados que ainda contestam.

No que respeita à tomada de ação do Estado, preferia uma medida que favorecesse a venda compulsiva dos imóveis e a sua integração no exíguo parque habitacional público. Se o Estado assume o risco, deve poder utilizar esse investimento para aumentar o patrimóno público que lhe garanta hoje e no futuro o cumprimento do seu mandato constitucional.

O grande problema da tomada de ação do Governo não é essa medida, que só peca por ser politicamente muito recuada e lesiva dos interesses do Estado. O principal problema é as medidas previstas não afetarem nada do que poderia mudar a situação de emergência a curto-prazo: 1) limitar as compras de habitação a estrangeiros; 2) Reverter boa parte do Alojamento Local; 3) Limitar rendas muito abaixo dos níveis atuais.

Sem a tomada desta medidas, a parte que não tem património imobiliário continuará à mercê de um modelo de desenvolvimento construído para ampliar sem fim a acumulação de rendimento e propriedade de uma minoria à custa de um direito constitucional que deveria ser de todos.

Das previsões da Moody's à incerteza da realidade

Segundo a Moody's, «o mercado imobiliário português corre o risco de sofrer uma forte correção nos preços», em virtude de «os três fatores que sustentaram o encarecimento da habitação na última década - procura da parte de investidores, baixas taxas de juro, e crescimento económico - estão a desaparecer». Ao que acresce, ainda segundo a agência de notação financeira, o facto de os preços do imobiliário em Portugal ultrapassarem o «valor intrínseco dos ativos», ou seja, encontram-se «sobrevalorizados e em risco de queda».

Sendo certo que o aumento vertiginoso dos preços das casas nos últimos anos não é um exclusivo de Portugal, tendo-se observado um pouco por toda a Europa, sobretudo desde 2013 - indiciando precisamente uma procura, nacional e internacional, na lógica da constituição de ativos financeiros, a par de dinâmicas associadas ao turismo - o nosso país continua a ser um dos que apresenta valores de compra comparativamente mais atrativos, à escala da União Europeia. O que pode ajudar a explicar por que razão Portugal não é um dos países em que já se regista uma descida de preços.


Por outro lado, sendo verdade que Lisboa surge ligeiramente acima da média quando se trata de comparar os preços de venda de imóveis à escala das capitais europeias (UE25), também é certo que as capitais que ficam abaixo dessa média são, na maior parte dos casos, capitais do leste europeu, as quais, por diversas razões, podem não ser tão atrativas para um certo perfil de preferência da procura internacional (nomeadamente na vertente das segundas habitações).

Não é por isso assim tão líquido que, como prevê a Moody's, estejamos em vias de assistir a «uma forte correção nos preços» no mercado imobiliário português. Tudo dependerá, na verdade, de a habitação continuar, ou não, a ser atrativa em termos de aplicação de investimentos financeiros, incluindo os de natureza meramente especulativa. E, se assim for, diversos de fatores - como o clima, a segurança, o custo de vida, a gastronomia, o acesso à saúde, etc. - podem continuar a tornar o nosso país muito atrativo para este tipo de investimentos. Tudo coisas que, bem o sabemos, tendem a ser ignoradas nas folhas de cálculo das agências de notação financeira.

Campanha pública


A campanha ideológica a favor da inflação dos direitos associados à propriedade privada e da deflação dos seus deveres vai de vento em popa na comunicação social, mesmo que só perante uma declaração de intenções sobre a colocação de casas devolutas no mercado. 

No Público dá-se todo o espaço a juristas neoliberais da direita intransigente, de Paulo Otero a Menezes Leitão, passando pelo antigo provedor do trabalho temporário, Vitalino Canas, esse do extremo-centro: “A requisição de casas para arrendamento levanta dúvidas de constitucionalidade, defendem juristas”. 

A jornalista tirou a conclusão que queria, já que só pediu opinião a um certo tipo de jurista, material e ideologicamente muito colado a uma absolutização de classe de um certo tipo direitos que a nossa Constituição, de resto, não parece autorizar. 

Espero que o provedor do leitor se manifeste contra mais esta falta de pluralismo e de isenção, como o já o fez, por exemplo, na defesa do Estado laico, numa peça monopolizada também pelas opiniões de Paulo Otero, um jurista sempre pronto a sacrificar a democracia.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Não se pode tocar


Retirado de um artigo sobre rentismo e crise da habitação, da autoria de Ana Cordeiro Santos, publicado no Le Monde diplomatique - edição portuguesa de Dezembro de 2022.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

A questão da habitação em Portugal


Em artigo, hoje no Público, António Costa queixa-se, muito justamente, que herdou um parque público de habitação residual face à média europeia, tanto em termos absolutos como relativos (2% do total de alojamentos). Sete anos depois, avança com o volume de nova promoção pública já concluída: 1200 habitações. É um défice estrutural que leva tempo a superar, mas que a este ritmo nunca será superado, sendo também certo que, no contexto actual, não chega para regular preços. 

Juntou, portanto, a isto, a velha receita de incentivos fiscais aos proprietários, de eficácia duvidosa e de manifesta injustiça social face a quem vive dos rendimentos do seu trabalho, num aprofundamento do “proprietarismo”, para usar a fórmula de Piketty, também fiscal. E tem, portanto, a lata, ao não incluir verdadeiras medidas de regulação dos investimentos especulativos, de chamar a isto os “alicerces da habitação como pilar do Estado social”. Julga que engana quem? 

Hoje, o governo anunciou o aprofundamento do Estado fiscal de classe, ao serviço dos proprietários e dos seus rendimentos, com mais umas iniciativas liberais na construção privada em solos públicos, como se o problema fosse sobretudo de falta de habitações e não de falta de acesso às habitações existentes. Neste último campo, verdade seja dita, o governo avança em relação às casas devolutas, propondo a sua obrigatória colocação no mercado. Mas vamos ver se a medida tem pernas, e que pernas, para andar. 

Entretanto, eliminam-se os vistos gold, mas no regime fiscal dos residentes não habituais não se toca. E o alojamento local é protegido até à próxima década, mesmo para quem já muito lucrou com esta medida ao serviço do turismo e prejudicial, quando em excesso, para a habitação. E sim, avançou-se, mesmo que timidamente, no princípio do controlo das rendas, atenuando um pouco a distância do país em relação a práticas para que já se avançou na Europa. 

Tudo somado, não creio, porém, que tenhamos saído do paradigma social-liberal que é o do PS de Costa. Isto ainda não é o Estado social na habitação.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Jacobina


Há razões para ler os editorais de Manuel Carvalho: observar a decadência da linha liberal do Público, a da defesa das iniciativas liberais que há décadas causticam o país, as das privatizações e das liberalizações sem fim, cujo argumento desmemoriado restante é o de que na realidade nunca existiram; confirmar que as ideias aí dominantes são, perante redações precárias, cada vez mais as ideias dominantes dos proprietários. 

Daí o seu ódio a todo o partido, movimento ou liderança que constate que os direitos associados à propriedade privada têm de ser fortemente contrabalançados por obrigações, que o rentismo e a especulação têm de ser contrariados ou que a propriedade pública de setores estruturalmente estratégicos também é um meio de impedir que a democracia se transforme numa oligarquia, no domínio de poucos, dos Azevedos, Amorins, Soares dos Santos, Mellos e quejandos. 

Jacobina, clama agora Carvalho, uma vez mais convocando os espectros que devem assustar esta gente. Foi a mesma pessoa que apodou de aprendizes de Lénine jovens militantes ecologistas, lembremo-lo. As suas tentativas de insulto são na realidade um bom elogio, um indicador de que algo se está a fazer bem, insisto. 

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Círculo vicioso


Na semana passada, o Financial Times (FT) noticiava que as seis principais empresas petrolíferas ocidentais obtiveram um lucro recorde conjunto de 200 mil milhões de dólares. E mostrava preocupação com o entrincheiramento do capitalismo fóssil, que neste contexto está a reduzir os seus já ténues compromissos com a descarbonização. 

O próprio FT reconhecia, na mesma análise, que os mercados parecem ser incapazes de fazer a transição energética, confirmando que as alterações climáticas são o seu maior fracasso. Não vai correr tudo bem, sem uma mão visível, com capacidade de planeamento. Mas isto exige desafiar politicamente mastodontes empresariais com grande poder. 

Entretanto, ontem ficámos a saber que a Galp, que tem a família Amorim como um dos seus acionistas de referência, graças a uma privatização ruinosa para o país, duplicou os seus lucros: 881 milhões, o maior valor de sempre. Amorim pode investir ainda mais no porno-riquismo, no consumo conspícuo na época das desigualdades pornográficas. 

Estão a ver o círculo vicioso do capitalismo realmente existente?

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

De quanta exploração se faz um empreendedor?


Acabei de ler o perfil de um grande empreendedor da nossa praça. A dado ponto refere que "é sócio de empresas focadas na produção de framboesas e mirtilos". Isto é, de empresas que detêm aquelas grandes estufas que alastram costa alentejana abaixo. Pensei logo de quanta exploração, suor e costas vergadas de migrantes é feito o seu "génio e talento". E duvido da firmeza moral de quem imediatamente não se questiona acerca do mesmo.

O muito moderado Almeida Garrett questionou, celebremente, ainda no segundo quartel do século XIX, "de quantos pobres se faz um rico?". Podemos hoje perguntar de quanta exploração se faz um empreendedor.

O artifício, esse, em nada se distingue do utilizado no século XIX. Glorificar e atribuir qualidades sobre-humanas aos que mobilizam capital, ocultando o trabalho subterrâneo de que se alimenta o seu sucesso, é parte essencial da legitimação do capitalismo.

Afinal, de que outra forma seria tolerável um sistema em que uma ampla maioria trabalha, por necessidade, para a acumulação ilimitada de recursos de uma estreita minoria?

O culto do empreendedorismo é só mais uma das muitas faces das narrativas de justificação do capitalismo.

(foto de Nuno Ferreira Santos)

O que o INE ainda não nos diz sobre a habitação


O INE apresentou recentemente um documento síntese com os principais dados dos Censos 2021 sobre habitação. Trata-se, no essencial, como referido pelo instituto, de uma caraterização do parque habitacional nas suas diferentes dimensões, «nomeadamente ao nível das características dos edifícios e dos alojamentos, das necessidades de reparação dos edifícios, da forma de ocupação e regime de propriedade dos alojamentos familiares clássicos e dos encargos com a habitação».

Sendo interessante esta divulgação - por temas - dos principais resultados dos censos, e em linha - no caso da habitação - com o esforço que o INE tem desenvolvido nos últimos anos para suprir o manifesto défice de informação (só desde o final de 2019, por exemplo, são publicados dados trimestrais do valor das vendas, e só em 2020 os valores das rendas), verifica-se ainda, em certos casos, uma desagregação de dados insuficiente, que dificulta a compreensão das atuais dinâmicas da habitação em Portugal.

No caso dos censos, é hoje fundamental perceber, com o devido detalhe, a questão da propriedade dos fogos. O parque habitacional público, por exemplo, continua a não desagregar os alojamentos de propriedade pública dos que pertencem a «instituições sem fins lucrativos» (o que ajudará a explicar que o parque público tenha um peso relativo de 3% nos censos e de 2% num inquérito do INE de 2015, que apenas considerou os fogos de propriedade pública).

Mas mais importante ainda, neste âmbito, seria perceber com detalhe que tipo concreto de proprietários integra as categorias de «particulares e empresas privadas» e de «ocupantes proprietários», e cruzar esses dados com a forma e regime de ocupação, entre outras variáveis. Para que fosse possível saber, por exemplo, quantos fogos pertencem a fundos imobiliários ou a residentes não habituais (e quantos deles se encontram ocupados ou devolutos).

Por outro lado, para lá dos censos e no atual contexto de forte investimento de natureza especulativa no setor imobiliário (aqui e na Europa), era fundamental dispor de dados oficiais, com regularidade pelo menos trimestral, sobre a oferta e a procura de alojamentos. Quantas pessoas e famílias procuram habitação para comprar e arrendar? Quantos deles são jovens e quantos deles são estrangeiros, por exemplo? Qual o rendimento disponível desses agregados? E que volume de oferta existe em cada momento? Com que escalões de preço?

Sem este tipo de dados e de informação, e num contexto de crescente internacionalização das dinâmicas da habitação, torna-se de facto difícil fazer um debate político verdadeiramente informado, necessário à tomada de decisão no setor.

domingo, 12 de fevereiro de 2023

Uma grande lição


Os professores deram ontem mais uma grande lição de acção colectiva. Haja esperança.

Estratégias com escassa energia


Estamos naquela altura do ano em que, nos dias de sol, pode estar mais frio em casa do que na rua. O desconforto térmico é um problema social estrutural, mas tantas vezes naturalizado em Portugal. Os baixos rendimentos, o fraco desempenho energético das habitações (a que se soma a degradação do parque habitacional) e os preços elevados da energia tornam os invernos portugueses, amenos quando comparados com o centro e norte da Europa, bastante frios para os milhões de pessoas que enfrentam a pobreza energética.

É importante sublinhar que este fenómeno ultrapassa o universo da pobreza monetária ou económica, afetando, igualmente, quem é forçado a restringir o uso de energia, ao ponto de prejudicar a sua saúde e qualidade de vida, na tentativa de conter a subida da fatura da eletricidade e/ou do gás. O que está em causa é a salvaguarda do direito universal a serviços energéticos adequados, entre os quais se inclui o aquecimento no inverno.

O resto da crónica pode ser lido no setenta e quatro.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Ai de nós trabalhadores, pensionistas e pobres

Acho que [sobre o problema da Habitação] precisávamos de um par de cérebros, dois ou três que percebem muito do assunto e vinte que não percebem nada, para pôr cá fora uma intenção credível. Geralmente, nós tendemos a sentar à mesa, neste tipo de situações, pessoas que percebem muito do assunto. E nós precisamos de pessoas que não percebem nada. Porque vão ser aquelas pessoas que vão mandar aqueles bitaites mais parvos, que surgem sempre com ideias muito interessantes. (citação de Inês Franco Alexandre, recém-empossada como "assessora para a Inovação" da ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho, na entrevista dada à Antena 3 (49'30'')]
Sobre a forma de resolver os problemas há dois tipos de dirigentes.

Uma, é a daqueles dirigentes que, mesmo não sabendo nada do problema, juntam as pessoas da "estrutura interna" que o conhecem e, em conjunto, procuram identificar as causas, fazer um diagnóstico preciso e propor medidas concretas. Outra, é a daqueles dirigentes que não sabendo nada do problema, não o conseguem identificar devidamente, mas acham que se existe, isso se deve às pessoas conhecedoras do sistema e que, por isso, acham melhor contratar pessoas "de fora" que nada sabem porque, assim, dirigente e contratado até podem trocar ideias.

Estas duas visões têm duas implicações orgânicas. No primeiro caso, robustece-se a "estrutura interna", valorizam-se os seus quadros e torna-se a "máquina" mais autónoma. Na segunda, o dirigente desconfia da "máquina interna" e, por isso, reforça o seu gabinete com pessoal "externo", duplicando serviços e colocando a "máquina interna" numa situação de subordinação permanente, inferiorizada, desmotivada, desmobilizada, e potencialmente vingativa ou até tendente a "desertar".

Vem isto a propósito da recente contratação para o gabinete de Ana Mendes Godinho de uma "assessora para a Inovação" cuja função vai ser - disse ela em entrevista - "como é que se inova um Ministério destes" com 24 organizações. Inês Franco Alexandre, algarvia, diz ter nascido "dentro de um sindicato", não se deu bem na escola, diz-se activista do "empreendorismo social", ("há empreendedores puramente capitalistas apesar de estarem a resolver um problema social e há activistas que têm um papel de apenas ter voz, o que não significa que não estejam a empreender nas suas carreiras e nas suas vidas"); usa muitos conceitos em inglês, está cheia de vontade de fazer coisas. Aceitou a proposta da ministra porque:

Da privataria


Análise legal sustenta que Neeleman garantiu 61% da TAP com dinheiro cedido pela Airbus a troco da compra de aviões e pago posteriormente pela própria companhia. Ministério Público abriu inquérito.

Não percam esta notícia do Eco, em contraponto à ideologia ali veiculada. Só me vem à cabeça a combinação entre privatização e pirataria forjada no Brasil: privataria, neologismo popularizado entre nós por Jorge Costa e Mariana Mortágua.

Razão tiveram os comunistas portugueses em defender que a comissão de inquérito à TAP fosse alargada às malfeitorias do governo da troika. Se não agora, quando?

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Ignorando o essencial 2



Para sublinhar a análise do Jorge Bateira, junta-se o mapa-resumo que a Marktest costuma divulgar sobre a evolução das diversas sondagens realizadas.

Sim, as sondagens podem ser exercícios de manipulação política (a série Sim, senhor PMexemplos disso.) Mas mesmo aceitando que o são, acabam por ser sintomáticas, seja do que possa estar realmente a acontecer, seja do que alguém gostaria que pensássemos que está a acontecer. De qualquer das formas, é igualmente sintomático do que está em curso.

O que se nota das sondagens é que a governação do PS tem levado a um "esvaziamento" da votação no próprio PS, sem que o PSD - ao contrário do passado - capitalize a maior parte desse descontentamento. Quem parece estar a ganhar com isso é a extrema-direita, seja a extrema-direita política (CH), seja a extrema-direita económica (IL). Apenas parte desse descontentamento está a ir para as forças à esquerda do PS.

Ora, se isso for real, toda a imagem de descontentamento ao Governo - que não se desmarque desta tendência - alimenta esta tendência. Ou melhor: devidamente manipulada pode ser usada para esse fim.

Por isso, é interessante notar que os principais canais de televisão privados - SIC e CNN - estejam em verdadeira campanha laboral: nunca se viu nestes canais tanta informação sobre as lutas de trabalhadores. Há horas, a CNN Portugal abriu o noticiário a dizer: "Um dia de indignação vai percorrer o país", envolvendo empresas privadas e serviços públicos, na sequência da convocação pela CGTP de um dia de protesto. Jornalistas foram mandados para a rua para fazer directos televisivos diante das tarjas da frente das manifestações."Protesto da CGTP está a ter enorme impacto", diz a pivot da Sic Notícias. Não chocaria, pois, que a manifestação da CGTP de hoje à tarde em Lisboa, do Largo Camões até S.Bento fosse coberta em directo por todas as televisões...!

Era bom que esta nova preocupação jornalística resultasse de que as direcções de informação destes órgãos de comunicação social tivessem passado a achar que os sindicatos fazem falta ou que a injustiça social é algo que se deve combater. Ou que a política económico-laboral-orçamental seguida está errada. Era bom que essas direcções de informação entendessem que o descontentamente social é o corolário e a outra moeda do que diariamente transmitiram nos seus canais (como escreve o Tiago Santos), sobre a inevitabilidade de manter a despesa pública apertada (porque é necessário fazer o que os mercados querem), de reduzir o investimento público (que supostamente prejudicaria o privado), de reduzir a escola e a saúde públicas (porque os privados fazem melhor), de não se aumentar os salários (porque isso provocaria uma espiral inflacionista).

Mas na verdade, não é isso que se passa. Ninguém mudou de opinião. Apenas se pressente que o poder governamental está enfraquecido. E estão a apostar na nova maioria, com a extrema-direita.

Então, um programa político ainda mais gravoso - contemplando a destruição do Estado Social - será levado a cabo. E nessa altura, os mesmos canais de informação estarão lá para o apoiar. Como aconteceu em 2011.

Luta de classes

Luta de classes não é prescrição, é descrição. Os trabalhadores não precisam de ser ensinados sobre a situação de exploração que lhes é criada pelo sistema capitalista, mas antes, vivem-na diariamente.

Por isso é mais que óbvia a reação dos trabalhadores perante essa exploração. Essa reação pode ser mitigada pelo medo ou pelos custos pessoais, por exemplo no caso da greve, mas a luta é apenas o estado normal das coisas.

Essa luta pode ser adormecida e pode acalmar se os trabalhadores virem uma melhoria na justiça social e nas suas condições de vida, mas ressurge, de forma absolutamente natural, quando acontece o contrário.

Ora, portanto, perante a atual tremenda perda de rendimentos reais não sei que outra coisa era esperada senão isto: