sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Costa na Europa: façam o que eu digo, não façam o que eu faço


As negociações do próximo Quadro Financeiro Plurianual (QFP) da União Europeia, para o período de 2021-2027, chegaram a um impasse. Depois de uma proposta inicial da Comissão Europeia que previa cortes significativos face ao orçamento anterior, pedindo a cada Estado que contribuísse com 1,11% do Rendimento Nacional Bruto (a proposta do Parlamento, que mantém o atual nível de financiamento, exigia transferências de 1,3% do RNB), o que o Conselho propõe prevê cortes ainda maiores: 12% nos fundos de coesão e 14% nos destinados à agricultura. No plano elaborado por Charles Michel, os Estados passariam a contribuir com 1,074% da riqueza nacional.

As posições nesta negociação são um espelho das divisões vincadas na UE. De um lado, os países mais ricos, nos quais se incluem a Alemanha e os chamados “quatro frugais” (Áustria, Dinamarca, Holanda e Suécia), que querem cortes no orçamento e consideram que até a proposta do Conselho é demasiado exigente; de outro, os “amigos da coesão”, de que fazem parte Portugal, Espanha, Itália, Grécia e vários países do leste europeu, que defendem os fundos de coesão e agricultura e se alinham com a posição do Parlamento. O impasse levou mesmo a que se marcasse uma reunião extraordinária do Conselho na semana passada, que terminou sem acordo.

António Costa tem-se destacado neste debate - o Politico chamou-lhe “campeão da coesão” e destacou o seu papel como líder dos chefes de Estado que se opõem aos cortes nos fundos comunitários. Costa disse recentemente que “a defesa da política de coesão não é do interesse exclusivo de Portugal, é o que é melhor para a Europa”, elogiando a posição construtiva do Parlamento e da Comissão e lembrando que mesmo no Conselho “temos uma esmagadora maioria de países que defendem que não pode haver cortes nas políticas de coesão e agrícola comum, ao mesmo tempo que dizem que temos de ter capacidade para investir nas novas ambições” da União Europeia. O primeiro-ministro deixou ainda a garantia: “estamos aqui para nos bater pelo que acreditamos”. Não há dúvida de que a mensagem é forte, mas a história tem sido outra.

O resto do artigo, de acesso livre, pode ser lido aqui.

Empatia


«Tu, que compras vinte e oito pacotes de massa. Tu, que procuras desinfetante no mercado negro. Tu, que andas de máscara. Tu, que planeias a fuga do teu filho de uma região onde há dez casos positivos de coronavírus. Não desprezes nunca mais aqueles que fogem da guerra e da fome.»

Tweet de Mangino Brioches (via Alexandre Abreu, no Expresso).

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Dia 7 de março, no ISEG: evocação de Manuela Silva

O ISEG promove, no próximo dia 7 de março, uma sessão evocativa de Manuela Silva, a «notabilíssima economista política e moral», a «economista cidadã de planos ousados e rigorosos», que encarnou sempre «a opção pelos mais pobres», como oportunamente sublinhou aqui o João Rodrigues, no passado mês de outubro.

Realçando dimensões essenciais do seu exemplo de cidadania e do seu percurso de académica comprometida com o mundo, a homenagem a Manuela Silva integra três sessões temáticas (economia e desenvolvimento, ensino da Economia e compromisso social da Igreja) e uma mesa redonda (clicar na imagem para ampliar).

Participam nesta sessão evocativa, entre outros, Américo Ramos dos Santos, Ana Cardoso, António Espinho Romão, Carlos Farinha Rodrigues, Graça Leão Fernandes, Guilherme de Oliveira Martins, Isabel Roque de Oliveira, Isabel Rufino, João Cravinho, José António Pereirinha, José Leitão, José Reis, Luísa Ribeiro Ferreira, Manuel Brandão Alves, Marcelo Rebelo de Sousa, Margarida Chagas Lopes, Miguel Caetano, Rosário Carneiro, Sara Falcão Casaca e Viriato Soromenho Marques.

O encontro tem lugar no Auditório CGD, no ISEG (Rua do Quelhas, nº6, em Lisboa), com início às 10h00. A entrada é gratuita mas sujeita a inscrição, até ao dia 2 de março, através de envio de email para depeco@iseg.ulisboa.pt.

Os leitores não são idiotas


Desculpem lá, mas se tenho a certeza que Manuel Carvalho não é idiota, então também pergunto: porque é que trata os leitores do jornal que dirige como se o fossem? No editorial de hoje, Manuel Carvalho acaba a apelar aos bancos para que se concentrem “um pouco menos” nos lucros de curto prazo e para que não abusem nas comissões, já que a “soberba da banca dá um brinde aos deputados”.

No entanto, para chegar a uma conclusão vulgar, típica do extremo-centro hoje em dia, é capaz de escrever coisas destas: “Sim, numa economia de mercado aberta, o Governo não se deve meter em questões comezinhas como as taxas dos bancos”. E consegue voltar a repetir numa mesma frase “mercado livre e aberto” e “bancos”.

O “mercado livre” é sempre uma ficção, já que a inevitável questão regulatória numa transacção económica institucionalizada, como é uma de mercado, é sempre a de saber quem é que tem liberdade e quem é que não a tem, quem é que pode ficar vulnerável. Na banca, é uma ficção especialmente monstruosa.

Desculpem lá, mas já toda a gente tem a obrigação de saber, todos os leitores no fundo sabem, muitos mil milhões de euros de recursos públicos depois (19 084 milhões, entre 2008 e 2018 de custo líquido, para ser mais preciso), muitas e variadas operações dos bancos centrais depois, que a banca dita privada é especificamente política do princípio ao fim. A economia é aliás política, porque está sempre saturada de relações de poder.

Repito o que escrevi no Público há uns anos atrás sobre as especificidades da banca e dos seus poderes exorbitantes:

Em primeiro lugar, o poder de criar e de destruir moeda através do crédito, um verdadeiro bem público numa economia monetária de produção orientada para o investimento, mas um bem que pode transformar-se num mal em mãos tão gananciosas quanto pouco escrupulosas.

Em segundo lugar, o poder de lidar com o futuro, ou seja, com a incerteza, concentrando muita da melhor informação disponível sobre a actividade económica geral, cujo andamento passa pelas decisões tomadas nos bancos.

Em terceiro lugar, o poder de não poder verdadeiramente falir, dado o caos que tal gera num sector que lida com a confiança, porque lida com a moeda e com o futuro.

Juntos, estes poderes fazem com que a sacrossanta concorrência de mercado seja na banca uma fonte de falhas ou de ficções constantes.

A concorrência gerada pelas estruturas neoliberais criadas nas últimas três décadas é indissociável do aumento do número e da violência das crises bancárias à escala internacional, cujos custos são e serão sempre socializados, dada a natureza do sector. Esta situação contrasta com o período entre a Segunda Guerra Mundial e os anos oitenta, quando as crises bancárias eram bem menos frequentes, devido à chamada repressão financeira: banca pública com lógica pública, controlos de capitais e regulamentação precisamente desconfiada da concorrência.

A concorrência é uma fonte de ficções, porque as crises evidenciam as especificidades deste sector, mostrando que é em última instância o poder público, e não os mercados, que tem de o gerir, a começar pelo banco dos bancos, ou seja, pelo banco central, que lhes cede a liquidez de que depende a sua sobrevivência. A questão é então se o poder público gere o sector para beneficio público ou de privados.

Sublinho agora: o mercado dito livre é mesmo uma ficção. Quando os bancos têm mais liberdade, por decisão política, nós ficamos mais vulneráveis. E vice-versa. As comissões são só a ponta do iceberg.

Dizem nos editoriais do Público que gostam de factos…

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Facebook não gosta que se fale de falhas do mercado

Resposta do Facebook quando se tenta partilhar o link referido na mensagem

Tentei partilhar no Facebook este post do Paulo Coimbra, mas veio "devolvido", com a mensagem que se pode ler na foto em cima.

Devo ter feito algum gesto mal malfeito ou que vá contra o algoritmo. Mas que tem muita piada, tem.

Teria muita piada se não fosse um assunto demasiado sério. As falhas do mercado são demasiado graves para serem deixadas ao seu critério: desigualdades agravadas, desregulação financeira, desarticulação do Estado como instrumento regulador e equilibrador na repartição do rendimento e na provisão universal de direitos, empobrecimento geral, alterações climáticas com risco de colocar em perigo o próprio planeta. Porque se trata, na verdade, de falhas do sistema

Foram demasiados anos de desvario.

Diria a seguir uma palavra, se ela não fosse o nome do verdadeiro contrasenso nacional, já que representa a ponta de lança moderna dos interesses mais desbragados do neoliberalismo, como forma de manter esses interesses no centro do poder.

Antes que seja tarde demais


domingo, 23 de fevereiro de 2020

Das falhas do mercado


Em outubro de 2008, escassos dias depois do colapso do banco Lehman Brothers, Alan Greenspan, na qualidade de antigo governador (agosto de 1987 a janeiro de 2006) da Reserva Federal Americana, foi convocado pela Câmara dos Representantes dos Estados Unidos da América para depor na Comissão para Supervisão e Reforma do Governo e se pronunciar sobre o papel dos reguladores federais na crise financeira.

Alan Greenspan, depois de quarenta anos a defender que “mercados livres e competitivos são de longe o melhor, e sem rival à altura, modo de organizar economias”, lá descobriu uma “falha no modelo”. Afinal, aparentemente, para seu choque, o mundo não funciona de acordo com a sua ideologia.

Abaixo, um pequeno excerto, que traduzi, das suas eloquentes declarações.

"Henry Waxman: Deixe-me interrompê-lo, porque temos limitação de tempo, mas você disse na sua declaração que apresentou que todo o edifício intelectual da gestão moderna de risco colapsou. Você também disse “aqueles de nós que contaram com o interesse próprio das instituições de crédito para proteger o capital dos investidores, eu em especial, estamos em estado de choque, descrença.” Ora, isto soa-me a que você está a dizer que aqueles que confiaram que o mercado se autorregulasse, você incluído, cometeram um erro sério.

Alan Greenspan: Bem, eu penso que isso é verdade para certos produtos, mas não para todos. Penso que essa é a razão por que é importante distinguir a dimensão deste problema e a sua natureza. O que eu queria relevar é que – excluindo os credit default swaps, os mercados de derivativos estão a funcionar bem.

Henry Waxman: Bem, então onde é que você cometeu um erro?

Alan Greenspan: Eu cometi um erro ao assumir que o interesse próprio das organizações, especificamente bancos e outras, era tal que elas seriam as mais capazes de proteger os seus próprios acionistas e os seus capitais nas empresas. E tem sido minha experiência, tendo trabalhado como regulador por 18 anos e por tempo semelhante no sector privado, especificamente 10 anos num dos grandes bancos internacionais, que os trabalhadores com funções creditícias dessas instituições sabiam muito mais sobre os riscos inerentes, e sobre as pessoas a quem emprestavam dinheiro, do que os nossos melhores reguladores do Fed. Por isso o problema aqui é que algo que parecia ser um edifício muito sólido e, de facto, um pilar vital da competição de mercado e do mercado livre, se desmoronou. E eu penso que, como já disse, isto me chocou. Eu ainda não percebi inteiramente como isto aconteceu e, obviamente, na medida em que eu perceber onde aconteceu e porquê, eu mudarei as minhas opiniões. Se os factos mudam, eu mudarei. (...)

Henry Waxman: A questão que eu tenho para si, você tinha uma crença que livres, competitivos – e isto são as suas declarações – “Eu tenho uma ideologia. O meu julgamento é que mercados livres e competitivos são de longe o melhor, e sem rival à altura, modo de organizar economias. Nós tentámos a regulação. Nenhuma funcionou de forma significativa.” Estou a citá-lo. Você tinha a autoridade para impedir práticas de crédito irresponsável que originaram a crise hipotecária do subprime. Você foi aconselhado a fazê-lo por muitos outros. Agora, o conjunto da nossa economia está a pagar o preço. Você sente que a sua ideologia o levou a tomar decisões que preferia não ter tomado?

Alan Greenspan: Bem, lembre-se, embora, se é ou não ideologia, é um quadro conceptual com o qual as pessoas lidam com a realidade. Todos têm um. Temos que ter. Para existir, você precisa de uma ideologia. A questão é se existe se é certa ou não. O que estou a dizer-lhe é que, sim, encontrei uma falha. Não sei quão significativa ou permanente ela é, mas tenho estado muito perturbado com esse facto. Mas se posso, posso finalizar uma resposta à questão...

Henry Waxman: Encontrou uma falha?!

Alan Greenspan: Eu encontrei uma falha no modelo que eu percebia [como] sendo a estrutura crítica de funcionamento que define como funciona o mundo, por assim dizer.

Henry Waxman: Por outras palavras, você concluiu que a sua visão do mundo, a sua ideologia, não estava certa, não estava a funcionar?

Alan Greenspan: Precisamente! Essa é precisamente a razão por que fiquei chocado, porque tinha, durante 40 anos ou mais, evidência muito considerável que ela estava a funcionar excepcionalmente bem (...)."

A hipótese da democracia na América


Depois da vitória retumbante do socialista Bernie Sanders nas primárias do Nevada, confirmando que as bases democratas estão a emancipar-se da tutela dos democratas de Wall Street, talvez seja útil chamar a atenção para a entrevista que Lloyd Blankfein deu ao Financial Times (FT) esta sexta-feira.

Blankfein foi o responsável máximo da Goldman Sachs, entre 2006 e 2018. Carlos Moedas, agora tão incensado, e Durão Barroso devem ter privado com ele. São o nosso orgulho. Em 2007, pôde receber 54 milhões de dólares; um ano antes deste banco ter sido salvo pelo Estado com uma injecção de pelo menos dez mil milhões. Na prática da crise, a teoria neoliberal é mesmo outra.

A Goldman Sachs, vá lá perceber-se porquê, já foi descrita como “uma grande lula vampiro com os tentáculos enrolados na cara da humanidade, sugando implacavelmente o seu sangue, em busca de qualquer coisa que cheire a dinheiro”.

Pois bem, este democrata de Wall Street, antigo apoiante de Hillary Clinton, ou não tivesse a presidência do marido concluído o trabalho de desmantelamento das estruturas de regulação financeira herdadas do New Deal, afirmou ao FT o seguinte: “pode ser mais difícil para mim votar em Sanders do que em Trump”.

Trump, de resto tal como Obama, tem sido um fiel amigo de Wall Street, como o Vicente Ferreira já aqui indicou. Com um património avaliado em mil milhões de dólares, Blankfein diz ao FT que não se considera rico. Como pode Blankfein considerar-se rico? Afinal de contas, Bloomberg, a grande esperança do extremo-centro para derrotar Sanders, tem pelo menos sessenta vezes mais.

A conhecida oposição de Blankfein a uma maior progressividade fiscal, que caiu de forma radical nos EUA nas últimas décadas, está em linha com a meticulosa investigação empírica sobre “preferências políticas” nos EUA: os ricos são mais activos politicamente e mais favoráveis a causas económicas neoliberais, da fiscalidade à segurança social, do que o norte-americano dito médio. Que surpresa, já que a política de classe não é suposto existir, muito menos nos EUA...

Quem se lembra de uma taxa marginal de imposto sobre o rendimento de mais de 90% no período de maior dinamismo económico e de menor desigualdade nos EUA do pós-guerra, quando existiam freios e contrapesos, por exemplo sindicais, ao poder das várias fracções do capital?

Isso foi antes da institucionalização da brutalmente desigual economia política neoliberal. Esta é agora associada às “mortes por desespero” nas classes trabalhadoras, à redução em três anos consecutivos da esperança média de vida nesse país, um tema de investigação digno de um premiado com o dito Nobel da Economia chamado Angus Deaton (prometo voltar a este tema crucial e à responsabilidade de uma ciência em larga medida corrompida...).

Será que a democracia, que só pôde começar a florescer numa economia mista, com elementos socializantes fortes, tem alguma hipótese contra as várias formas, “republicanas” e “democratas”, de plutocracia?


sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Se o Estado cobrasse menos impostos e reduzisse a despesa teríamos piores serviços públicos

Se o Estado cobrasse menos impostos e reduzisse a despesa teríamos piores serviços públicos.

Se o Estado cobrasse menos impostos e reduzisse a despesa teríamos piores serviços públicos.

Se o Estado cobrasse menos impostos e reduzisse a despesa teríamos piores serviços públicos.

Talvez repetindo muitas vezes a coisa funcione. É que não batem certo os resultados da sondagem ICS/ISCTE de Julho passado e a sondagem agora publicada.

A primeira diz-nos que a maioria dos portugueses prefere pagar impostos mais altos para ter melhores serviços públicos. A segunda diz-nos que metade dos inquiridos acha que se deve reduzir os impostos e a despesa pública.

Pelo que me deixem repetir: se pagarmos menos impostos e cortarmos na despesa do Estado vamos ter piores serviços públicos.


Das falhas do Estado


«A questão do "Estado que falha" é uma questão interessante. Quando eu digo que o Estado falha é versus o mercado que falha. E como sabem eu sou socialista e não sou liberal, e por isso é que estou no PS. Há quem ache que o mercado resolve tudo, mas de vez em quando há umas falhazitas e o Estado tem que lá ir. Eu tenho uma perspetiva diferente. Porque para mim o Estado é um instrumento da comunidade, é um instrumento coletivo. Não é nenhum monstro, como o é para a direita portuguesa, ou pelo menos para parte da direita portuguesa. Ok, para o PSD o Estado não é um monstro, é só um monstrinho. O Estado é um instrumento da comunidade e deve dar resposta aos problemas da comunidade. E por isso quando digo que o Estado falha, por exemplo a propósito da ferrovia, não estou a dizer que a solução não está no Estado. Estou a querer dizer que nós, enquanto representantes do povo português, não demos resposta às necessidades, coletivas, do povo português. Eu acho que o mercado não dava a resposta. Como não deu e como continua a não dar, numa série de problemas, aos quais os senhores continuam a achar que é o mercado que vai responder.»

Da intervenção de Pedro Nuno Santos, na recente Audição da Comissão de Economia, Inovação, Obras Públicas e Habitação.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Este país não pode ser racista


Augusto Santos Silva tem sido aqui frequentemente criticado. Esta semana, quero elogiá-lo pela posição que assumiu, enquanto Ministro dos Negócios Estrangeiros, a propósito do caso Marega. Santos Silva criticou o atentado à dignidade humana, como não podia deixar de ser, mas sublinhou, de forma complementar, como “as manifestações de racismo prejudicam a imagem internacional de Portugal”.

Lembro que o anti-racismo foi inscrito no sistema internacional graças sobretudo à libertação nacional dos povos colonizados, à emergência de países cuja maioria da população foi durante séculos vítima do racismo, filho ideológico do imperialismo colonial. Houve e há um nacionalismo com efeitos anti-racistas. Qualquer política externa de um antigo país colonial tem de ter um dos maiores progressos históricos de sempre em consideração. Qualquer boa política externa começa, aliás, por uma decente política interna. Todas as formas de racismo são contrárias aos interesses nacionais, qualquer forma de racismo é anti-patriótica, até por isto:

“Portugal é um país justamente reconhecido e justamente respeitado. Não por não ter racismo, porque, infelizmente, esse mal existe por muito lado, mas por o racismo não ter uma expressão social significativa, não ter expressão política (...) nem ocupar o espaço público.”

Mais do que ser verdade, e eu creio de facto que dela não anda muito afastada, esta hipótese de Santos Silva exprime uma certa ideia de comunidade que quer que isto seja verdade: Portugal não é um país racista, não pode e não deve ser.

No fundo, creio que são contraproducentes, para um popular combate anti-racista, dois hábitos políticos prevalecentes entre certos sectores e que consistem em dizer que os portugueses são racistas ou maioritariamente racistas, e que o nacionalismo, assim no singular, conduz ao racismo. O racismo combate-se onde existe em concreto e é preciso fazer também esse combate, mas não só, claro, em nome dos valores e interesses de todos os que fazem este país. Ou seja, em nome de uma primeira pessoa do plural inclusiva.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Rumo e estratégia

Fonte: INE
Ana Catarina Mendes, líder da bancada parlamentar socialista, que estava ontem no Parlamento muito optimista, durante o debate quinzenal com o Governo, disse:

"Os números e os resultados da economia portuguesa desmentem a tese dita e repetida de que tudo está mal". Os dados do INE "revelam uma economia em convergência, resiliente e sustentável.""Portugal começou a crescer mais do que a Europa pela 1ª vez de que aderimos ao euro e o que era parecia improvável tornou-se agora habitual." O ano de "2019 foi já o 3º ano consecutivo de convergência". "Enquanto o crescimento na Europa tem desacelerado, o crescimento em Portugal não só resistiu como também acelerou". "Crescimento sustentado porque apoiado em investimento e exportações". A economia portuguesa "é hoje a campeã do crescimento europeu e os resultados divulgados pelo INE não são um acaso ou um milagre." "É um resultado de um país com rumo e com estratégia."

Depois desta intervenção, retomada pelo primeiro-ministro (lá iremos noutro post), gostava de deixar a imagem acima.

A "taxa de subtilização" - sofisma para designar taxa de desemprego em sentido lato (como antes se designava) - mede a proporção na população activa daqueles que ou estão desempregados; ou, sendo trabalhadores, gostariam de trabalhar mais horas (subemprego); dos inactivos que procuraram emprego, embora estivessem indisponíveis na semana do inquérito ao emprego; ou ainda os inactivos que, embora disponíveis, não procuraram emprego na semana em que se realizou o inquérito.

O que se pode ler no gráfico?

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Uma geração chega?


O dado mais relevante da análise da votação no Chega, no âmbito da última sondagem do ICS/ISCTE para o Expresso/SIC (e na qual esta formação política atinge os 6%) é porventura o da distribuição etária das intenções de voto, em que «o partido quase não existe» na faixa entre os 18 e os 24 anos, registando-se em contrapartida um «apoio desproporcional» entre os 25 e 44 anos.

Como refere Pedro Magalhães, o eleitor do Chega parece de facto, nesta sondagem, desviar-se do «retrato-robô» do eleitor da extrema-direita por essa Europa fora. Isto é, do perfil de um eleitor do sexo masculino, com baixa instrução, desempregado, oriundo do operariado ou do pequeno empresariado e pequeno comércio (as «vítimas da globalização»). Nas habilitações, por exemplo, os dados apontam para um perfil em linha com o peso relativo do ensino superior (20%) e acima da média no secundário (cerca de 1/3 dos inquiridos que manifestam intenção de voto no Chega, contra os 23% registados). E apontam, ainda, para um eleitorado essencialmente urbano (a Grande Lisboa reúne 40% das intenções de voto no partido de Ventura) e mais politizado que o eleitorado do PSD e CDS-PP.

A explicação para este «desvio», face ao «retrato-robô», poderá portanto estar, no caso português, na «geração da precariedade». Isto é, em segmentos de população jovem portuguesa (25 a 44 anos) com elevados níveis de qualificação mas com empregos precários e mal-remunerados. Uma geração que sentiu na pele, como talvez nenhuma outra, a desregulação e flexibilização das relações laborais e a compressão e estagnação salarial, políticas amplamente incentivadas pela Comissão Europeia (entrando por aqui, se quisermos, parte do fator «globalização»). Uma geração suficientemente politizada, no sentido em que acompanha a vida do país, com razões para aderir a discursos de senso comum sobre corrupção e incompetência da classe política, entre outros, e que confronta o regabofe da banca e da salvação da banca com a frustração das suas expetativas e a ausência de condições para construir um projeto de vida.

Claro que uma geração, esta geração, não chega para explicar os resultados da sondagem relativos ao crescimento do Chega. À sua relevância deve acrescentar-se o contributo de segmentos da população e do eleitorado tradicionalmente mais propensos a aderir a propostas populistas, o tal eleitorado mais próximo, em termos de perfil, do «retrato-robô». Mas é porventura esta geração que está hoje, em grande medida, a fazer a diferença, de voto e das intenções de voto, num partido de extrema-direita como o Chega.

Fogo e contrafogo


Na última sondagem do Expresso, o Chega já está nos 6% das intenções de voto. Temo que possa crescer ainda mais. Deixo aqui mais uns excertos, com referências omitidas, do artigo sobre o Chega, que publiquei no Le Monde diplomatique - edição portuguesa de Janeiro:

Foi sobretudo graças às intervenções no Expresso e na SIC Notícias de Daniel Oliveira, um raro jornalista de combate ideológico, que, entretanto, o Chega viu o seu programa finalmente escrutinado, obrigando este partido a um recuo. Se a luta ideológica não chega, sem esta, a verdade sobre a extrema-direita dificilmente emergirá, já que factos e valores estão sempre irremediavelmente entrelaçados. O escrutínio requer sempre um quadro de análise. Os factos nunca falam por si. (...)

Partindo de uma detalhada análise do programa socioeconómico do Chega em defesa do desmantelamento do Estado social – dos direitos laborais que ainda subsistem ao fim do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e da escola pública, passando pela complementar defesa do fim da progressividade fiscal –, Daniel Oliveira resume acertadamente a sua verdadeira lógica: «ao Estado cabe defender o dinheiro dos ricos e ter o cassetete pronto para os pobres». Na economia política crítica, há muito que está estabelecida a ligação entre os processos de neoliberalização e o reforço de um certo tipo de Estado repressivo, com um óbvio e cada vez mais acentuado viés de classe. (...)

Trata-se no fundo de procurar enraizar o autoritarismo neoliberal, através de um estilo populista dito triádico. Este alimenta uma clivagem, sobretudo cultural, entre povo e certa elite, sendo que esta última é acusada de proteger um terceiro grupo, minoritário, que serve então de bode expiatório para problemas reais. A imigração em crescimento, num país causticado pela desigualdade e pela austeridade, vem mesmo a calhar. (...)

Com a flexível desfaçatez que o caracteriza, André Ventura criticou, na Assembleia da República, a falta de investimento do governo no SNS. Com corrosiva ironia, o primeiro-ministro António Costa saudou a anunciada mudança de posição. (...) A intervenção de António Costa, em defesa do SNS, assinala um dos elementos que pode travar o autoritarismo neoliberal: a Segurança Social gerada por serviços públicos robustos, porque de acesso universal, parte de um sistema mais vasto a que chamamos Estado social, sem o qual não há democracia que possa sobreviver às compulsões capitalistas. Este sistema é mais vasto, porque tem de incluir políticas económicas orientadas para o objectivo do pleno emprego, no quadro de relações laborais reguladas para garantir acção sindical dos trabalhadores. O sindicalismo unitário de classe, enraizado em todas as áreas, é de resto um freio à popularização da extrema-direita. O enfraquecimento e a pulverização sindicais podem criar oportunidades para a cultura da extrema-direita em áreas sensíveis da soberania, como é o caso, em Portugal, da segurança pública.

O Estado social é simultaneamente uma encarnação e um dique de protecção da democracia, pressupondo instrumentos de política económica na escala nacional, onde estiveram e ainda sobrevivem, aqui e ali, as instituições democráticas realmente existentes. Uma das razões para a perigosa resiliência do neoliberalismo é o regime austeritário europeu, indissociável do euro e das liberdades do mercado único, incluindo a liberdade de circulação de capitais, desenhado para destruir o dique da democracia nacional robusta. Apesar da retórica crítica do globalismo, estes pilares da globalização mais intensa no continente são defendidos no programa do Chega: da «sã política de rigor orçamental no que respeita aos países integrantes do EURO [sic]» à «manutenção das quatro liberdades (livre circulação de bens, serviços, pessoas e capitais)». A extrema-direita periférica, tal como o resto da direita, conhece as estruturas da integração europeia que a favorecem de várias formas. Infelizmente, o mesmo não sucede com grande parte da esquerda, sobretudo com uma social-democracia desorientada e esvaziada pelo euro-liberalismo puro e duro.

Não há retórica parlamentar que oculte a realidade material da erosão europeia do Estado social à escala nacional, criadora de um círculo político absolutamente vicioso: corrupção, indissociável da continuada entrada do dinheiro em esferas que lhe deveriam estar vedadas, desigualdades, com declinação social e territorial, insegurança sociolaboral, impotência democrática, traduzida na incapacidade de dar resposta a problema reais por falta de instrumentos de política decentes, irrupção de uma extrema-direita que procura monopolizar o tema da segurança e da fronteira nacional, dando-lhes um conteúdo repressivo e etnocultural racializado.

Neste contexto, a esquerda não se pode esquecer que a política popular passou sempre pela disputa ideológica das formas de fronteira nacional e de segurança a garantir às classes populares. Sem algum grau de fronteira económica, sem controlo político democrático sobre os capitais e sobre os fluxos comerciais ao nível dos Estados, não há autoridade e responsabilidade políticas democráticas; nem forma de segurança defensável, a social, a que é garantida pela provisão pública de recursos essenciais e pelo manejo de um plêiade de instrumentos de política económica hoje anulados ou furtados pela integração europeia. Sem a imaginação nacional e popular a funcionar para democratizar a economia, e sem os instrumentos que lhe dão tradução material, o campo fica livre para a viciosa imaginação da extrema-direita.

No fundo, o melhor contrafogo ao populismo triádico pode bem ser hoje um projecto, apodado de populismo diádico, que exponha politicamente uma clivagem material, bem real, entre povo e elite, resultado de décadas de regras neoliberais que transferem recursos de baixo para cima e medo de cima para baixo, decisivamente favorecidas pela globalização. Não há que ter medo das clivagens sociais, nem da desglobalização económica. Há é que ter medo dos hábitos de pensamento que dificultam a tomada de consciência de tarefas intelectuais e políticas inadiáveis.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

A falsa liberdade de todos e o PS

É importante que se esvazie a ideia de que a liberdade começa onde o Estado acaba.

Na verdade, a defesa da liberdade num mundo desigual, colocando o Estado como alvo, é o mesmo que defender o mundo desigual. E que nada mude no funcionamento social que faz os mais desfavorecidos, a população em geral, pagar - em liberdade - o mundo dos mais ricos, dos mais poderosos.

A defesa da liberdade económica é, pois, um instrumento de manutenção do poder económico que já se detém.

Por isso, quando alguém no Partido Socialista (PS) aparece a frisar esse aspecto perverso da filosofia da liberdade, é sempre bem-vindo.

Já no Parlamento, o ministro Pedro Nuno Santos, teve esse desassombro ideólogico de questionar um mundo ideológico construído desde os anos 70, passo a passo, quando discutiu com o deputado da Iniciativa Liberal. Parece que os apoiantes desse partido não entendem o que está em causa e lastimam que o ministro não respondeu as perguntas feitas.

Haja, pois, alguém no PS que ponha em causa mais de 40 anos de doutrina PS.

Foi assim com a aplicação sem titubear por Mário Soares das receitas do FMI (em 1979 e em 1983-85), com a iniciativa de Vítor Constâncio da revisão constitucional de 1989 (que abriu as portas à desregulação), com adesão ao Acto Único, ao Tratado de Maastricht em 1992, com a adesão à ideia idiota de Portugal se juntar ao primeiro pelotão da moeda única por António Guterres; com a alegria de Sousa Franco e Teixeira dos Santos em 1999 na fixação das taxas de conversão do escudo em euros (que colocou o escudo como se fosse uma moeda fortíssima) e com o Pacto de Estabilidade e Crescimento que se lhe seguiu; com a ratificação parlamentar do Tratado Orçamental por António José Seguro; com a adesão ao Tratado de Lisboa por José Sócrates, ao Semestre Europeu, ao grosso da política laboral da troica que ainda está em vigor por António Costa, Mário Centeno e Siza Vieira, ... e sabe lá Deus que mais virá ainda.

Na verdade, para se afastar ideologicamente do socialismo real, alicerçado no poderoso papel do Estado, o PS agarrou-se à ideia Socialismo em liberdade (política), a qual redundou no afastamento rápido (em 1979) do socialismo, mas na manutenção da liberdade (económica) proveitosa para alguns.

Senão veja-se.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Das leis de mercado


«Quem manda é o povo. As leis do mercado não são uma força exterior em relação às quais não podemos meter mão, as leis de mercado não são a mesma coisa que uma tempestade. As leis de mercado têm de respeitar regras que são definidas pela comunidade organizada através da Assembleia da República. As leis de mercado não são leis da natureza, têm de cumprir regras do Estado de Direito. (...) Quando nos tentam explicar que é o mercado e que, por isso, nós temos de nos pôr ao fresco para viver não sei onde já que em alguns sítios isso não dá, eu digo que temos nas nossas mãos a capacidade de fazer diferente. Os problemas da habitação em Lisboa e no Porto não se resolvem rapidamente, mas está nas nossas mãos dizermos com que regras nos queremos relacionar. É assim que temos de fazer num partido que a seguir à palavra partido tem a palavra socialista.» (Pedro Nuno Santos).

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Uma reveladora economia política


Desde pelo menos José Sócrates que as entrevistas ou declarações mais reveladoras, em termos de economia política, de um Primeiro-Ministro desta periferia são dadas à comunicação social da finança internacional.

António Costa não é diferente, revelando à Bloomberg, fundada por um fulano com esse apelido e que agora quer comprar a presidência dos EUA, a já famosa resiliência do consenso neoliberal. Afinal de contas, afiança Costa, é sempre “necessário dar maior confiança aos proprietários e aos mercados”.

António Costa não quer nada com as experiências da capital alemã, apoiadas pela social-democracia, em matéria de controlo político da especulação imobiliária. Lisboa pode ser mais cara do que Berlim para arrendar uma casa, mas da Alemanha António Costa só importa mesmo o fetiche anti-keynesiano do equilíbrio orçamental. Por cá, nem investimento público, nem controlo da especulação, nem nada.

António Costa até responsabiliza as taxas de juro baixas pela situação no imobiliário, esquecendo-se que o problema não está numa pequena parte de qualquer solução, mas sim numa finança internacional sem controlos nacionais, seja no sistema bancário, seja na forma como condiciona sistemas de provisão vitais para a vida.

O último refúgio de um neoliberal nacional em matéria de habitação é, claro, o eterno mito das rendas congeladas, já aqui tantas vezes desmontado. Também aí, António Costa não é diferente.

 É como vos digo: revelador, tristemente revelador.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

A visão anti-lavagem de Bruxelas


Mantra

Para todos os jornalistas que gostam de se dar com os milionários e elogiar o seu espírito empreendedor (ver aqui).

Repita comigo: "Ninguém faz mil milhões de euros: alguém tira mil milhões de euros".

Agora repita outra vez.

Verá que à terceira percebe melhor uma série de coisas, nomeadamente todas as políticas económicas adoptadas desde os anos 80.

Parasitas, de cima e de baixo

«São eles, os pobres, os desempregados, os desapossados, os “parasitas”, na figura da família que nos é apresentada nas cenas iniciais. Vivem numa cave atravancada, com uma janelinha ao nível da rua aonde os bêbedos vêm urinar, e dedicam-se àquele “parasitismo” comum dos tempos modernos que consiste em tentar aproveitar o wi-fi dos vizinhos. (...) Os parasitas parasitam, mas não há lugar para todos parasitarem ao mesmo tempo e por isso têm que se eliminar uns aos outros. (...) O alto e o baixo, a luz e os subterrâneos, a vida à superfície (os privilegiados) e a vida nas profundezas, numa espécie de invisibilidade (os “parasitas”) são elementos que pontuam o filme, visualmente, num extravasar de significados que não chegam a ser “metafóricos”. O domínio do sensível impera — não há apontamento mais cruel, nem mais humilhante, do que aquele em que o pai da família rica se queixa de que o motorista (que é o pai da família “parasita”) cheira a “rabanete velho”, que é o cheiro que se sente “nas pessoas que andam de metro”. Todos os complexos de classe (para cima ou para baixo) se resumem nessa frase e nessa ideia, a de um cheiro que “cruza a linha” (como diz o pai rico). (...) Não há verdadeiramente vilões, a família abastada é feita de gente simpática e de comportamentos ou preocupações apenas levemente caricaturais. Se a violência os toca, é quase como um ricochete: são os pobres, os parasitas, que se matam uns aos outros por um lugar na cave dos ricos.»

Da crítica de Luís Miguel Oliveira, O cheiro a rabanete velho, ao Parasitas.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

A “Europa” deles

O que têm em comum, entre outros, Rui Tavares, Luís Represas, António José Seguro, Carlos Moedas, Leonor Beleza ou Marques Mendes? A fazer fé no Público, parece que são “políticos, académicos e artistas unidos pela Nossa Europa”.

Alegrai-vos ignorantes deste país, porque finalmente “nasceu uma plataforma cívica para pôr fim ao desconhecimento da UE em Portugal”.

Vá lá, digam todos bem alto, mais de um quarto de século depois de Maastricht: é agora, agora é que é, UE, UE, UE!

Afinal de contas, a austeridade permanente, a globalização neoliberal, a soberania esvaziada, o furto de instrumentos de política, a dependência externa, a arrogância imperial ou a impotência democrática dos povos dos Estados ainda não são suficientemente conhecidas por cá...

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Começar por proteger


As marcas do frio nas casas e nos corpos de 19,4% da população portuguesa dizem mais sobre as encruzilhadas da social-democracia e do ecologismo meramente comportamental, à escala nacional e da União Europeia, do que pode parecer à primeira vista. Começar por proteger do frio todos os cidadãos é só uma primeira urgência, a seguir tem de se cuidar de toda a casa.
Sandra Monteiro, As marcas do frio, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Fevereiro.

Aos olhos da ala centrista do Partido Democrata, principalmente incarnada por Joe Biden, substituir o presidente sem dizer muito sobre as condições que lhe permitiram triunfar tem, apesar de tudo, um interesse evidente: o de inocentar os que não souberam combatê-lo quando dispunham dos meios para o fazer, isto é, Hillary Clinton, Barack Obama… e o seu antigo vice-presidente durante oito anos.
Serge Halimi, O que Donald Trump permite, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Fevereiro.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Sob o manto diáfono do populismo

«Nos últimos anos, várias pessoas na redacção do Notícias ao Minuto levantaram grandes dúvidas sobre a pertinência das notícias sobre André Ventura, uma figura que recebia um nível de atenção extraordinariamente superior ao papel que desempenhava na política portuguesa. (...) Mesmo antes de ser deputado, Ventura já contava com a insistente atenção de Patrícia Martins Carvalho, a jornalista que, segundo as contas da equipa da página Os truques da imprensa portuguesa, publicou mais de 100 notícias relacionadas com o líder do Chega. (...) O percurso de Patrícia Martins Carvalho é especialmente interessante devido ao facto de que ela alternou entre as funções exercidas no grupo do Correio da Manhã (que serviu de incubadora a André Ventura) e no Notícias ao Minuto. (...) Podemos até dar o benefício da dúvida e acreditar que isto é apenas uma mera coincidência, mas, dado o facto de que a jornalista passou directamente para os quadros do Chega, isso parece francamente ingénuo. Recordamos que André Ventura declara frequentemente que entrou para a política para combater a corrupção e os "tachos", alega que é "anti-sistema" e que enfrenta "os poderes instalados"» (Uma Página Numa Rede Social).

Em entrevista recente, Paulo Pena sublinhava os mecanismos associados à ascensão de notoriedade de figuras que, de outro modo, não se destacariam no espaço público. Para lá das situações de «infiltração» nas redações (que sugerem por vezes a conivência ou mesmo intencionalidade das respetivas direções), há todo o universo das redes sociais, onde pequenos grupos conseguem disseminar desinformação com grande eficácia, num negócio digitalmente vantajoso e associado, em vários casos, a projetos políticos. Como refere Paulo Pena, «não é uma coincidência tenebrosa a forma como foram eleitos Donald Trump, Bolsonaro, Boris Johnson, Duterte ou o presidente da Índia», nem o crescimento, em simultâneo, de vários partidos de extrema-direita na Europa.

Se tudo isto é muito certo (e mais ainda a dificuldade de encontrar formas de lidar com estes processos de mediação), a verdade é que importa não esquecer o mal-estar social que alimenta a adesão aos populismos e aos discursos do ódio. Ou seja, o papel das políticas e do quadro de orientações políticas que, desde logo à escala europeia, permitam esvaziar a insatisfação e a revolta, invertendo a trajetória de degradação generalizada das condições de vida, com perda de rendimentos do trabalho, agravamento das desigualdades e aumento da pobreza e do risco de pobreza.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Como os ricos se tornaram mais ricos


Um documentário esclarecedor sobre alguns dos efeitos negativos do longo período de taxas de juro baixas que atravessamos, que potencia bolhas especulativas no setor imobiliário ou nos mercados de ações e obrigações, inflacionando o valor dos ativos detidos pelos mais ricos.

Embora seja preciso ter em conta que a expansão monetária permitiu a ligeira recuperação das economias desenvolvidas após a crise financeira de 2007-08, além de ter reduzido os encargos com juros da dívida a vários países, não deixa de ser importante perceber os efeitos perversos desta política (sobretudo ao nível da desigualdade) e a necessidade de a complementar com outras medidas, como a aposta na expansão orçamental ou o reforço da regulação financeira. Em qualquer caso, vale a pena ver o documentário.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

O duplo défice da promoção pública direta de habitação em Portugal

É sabido que Portugal tem, à escala europeia, uma das mais baixas taxas de promoção pública direta de alojamentos. De acordo com o último censo (2011), o sector público representava apenas 3,1% do parque habitacional, valor que se estima tenha caído para 2,0% em 2015. A habitação é há muito o parente pobre do Estado Social português, com a promoção direta a responder apenas, durante décadas, às carências mais gritantes de alojamento.

A este défice estrutural da promoção junta-se contudo um segundo défice, de gestão do stock: muitos dos fogos promovidos pelo setor público (Estado central, autarquias, empresas e institutos públicos) são alienados ou nem chegam a integrar o parque habitacional público (como sucede nos casos de promoção indireta, financiada pelo Estado mas concretizada pelo privado, visando colocar no mercado casas a preços controlados). Ou seja, o Estado não só tem construído pouco como não tem cuidado de manter na esfera pública toda a habitação que promove com fins sociais.

É isso que se constata ao comparar a evolução do número de alojamentos sociais existentes (censos) com o volume de fogos promovidos pelo Estado nas últimas décadas. Se em 1981 existiam cerca de 122 mil fogos de habitação social, em 2011 esse valor é praticamente o mesmo (123 mil), apesar de se terem construído entretanto mais 56 mil fogos. Ou seja, caso se tivesse mantido toda a promoção pública como propriedade pública, o parque de habitação social teria em 2011 cerca de 178 mil fogos, permitindo falar de um peso do setor público de 3,7% (superior aos 3,1% registados).


Curiosamente, o défice entre fogos construídos e existentes chega mesmo, no caso do setor público, a ser superior ao do setor privado e cooperativo, onde as mudanças de uso (da habitação para comércio ou serviços, por exemplo) são mais expectáveis que a perda de capacidade de resposta do Estado, decorrente da alienação de fogos sociais, às carências de habitação. De facto, em nenhum momento censitário, entre 1981 e 2011, se assiste à redução do parque privado e cooperativo (ao contrário do que sucede com o público), representando os fogos existentes em 2011 cerca de 85% do total de fogos construídos desde 1981 (rácio que é de apenas 69% no caso do parque habitacional público).


A existência de um setor público de alojamento relevante constitui um instrumento incontornável das políticas de habitação social e de regulação do mercado habitacional. No caso português, não só a promoção estatal direta foi sempre deficitária como se descuidou a que existiu, permitindo-se a alienação de um volume significativo de fogos de habitação social. Para que se perceba a dimensão deste segundo défice, bastará dizer que a diferença entre o número de alojamentos promovidos (entre 1981 e 2011) e o número de alojamentos existentes (em 2011), é da ordem dos -56 mil fogos. Ou seja, mais do dobro do necessário para colmatar as mais prementes carências habitacionais recentemente identificadas (cerca de 26 mil famílias a necessitar de habitação ou de acesso a uma habitação digna).

É por isso que fazem todo o sentido, e apenas pecam por tardias, as medidas que integram a Nova Geração de Políticas de Habitação orientadas para o relançamento da promoção pública direta de alojamentos, o reforço do setor público de habitação e a reabilitação e preservação, em quantidade e qualidade, do parque habitacional público existente.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Marketing

Quando a política é feita de medidas pequeninas como o gesto da ministra indicia.

Gosto sobretudo da formulação contraditória do "pode garantir" e do sentido equívoco dos "até 4800 euros".

Espero que essas pessoas - poucas está de ver - arranjem por lá trabalho que não seja abaixo do salário mínimo, sem contratação colectiva, sem sindicatos, desprotegido, em que o Estado - como qualquer bom Estado neoliberal - concede uns dinheiros para que o trabalhador se vire no mundo. E se não se virar, foi porque não merecia sobreviver. E deve ser engolido.

Ou então que arranje uma leira de terra que lhes dê umas batatas de umas couves. Porque rapidamente o apoio se esgotará, na enxurrada para o oceano e é provável que os apoiados regressem enrolados nessa lama, de novo, ao ponto de origem.

Mas a ministra está feliz com o seu papel. Vende falsas soluções com o marketing de quem esteve no Turismo.