quarta-feira, 30 de abril de 2014

Estagnação

1- Saíram hoje os números para a inflação na zona euro: 0,7%. Ou seja, a zona euro continua com níveis de inflação bastante abaixo daquele que é o objectivo do BCE (quase 2%). O risco de deflação empurrará o BCE para nova descida da taxa de juro e a introdução de medidas ditas heterodoxas (compra de títulos de dívida no mercado secundário), o que facilitará a “saída limpa” de Portugal. Por outro lado, num país em efectiva deflação como Portugal, esta notícia mostra que não estará para breve um crescimento robusto da procura vinda da zona euro. Para não falar no efeito de crescimento real da dívida que uma taxa de inflação negativa produz.

2- Os dados de crescimento económico nos EUA, anunciados também hoje, ficaram muito abaixo do esperado. A economia norte-americana mal se mexeu no primeiro trimestre (0,1%). O dinamismo procura de fora da zona euro não parece, pois também, ser fonte de crescimento nacional no futuro próximo.

3- Os cenários negativos usados para avaliar a robustez em curso da banca europeia (stress tests) afinal não são assim tão negativos (mesmo quando comparados com os mesmos testes nos EUA). Este receio de encontrar problemas nos balanços da banca europeia só mostra que, de facto, existem ainda muitos problemas na banca europeia… Continuamos com bancos zombie que servem de lastro à economia europeia. Aliada à deflação, esta situação parece uma repetição do Japão nos anos noventa.

4- O DEO a ser hoje apresentado, embora inscrevendo o que era corte temporário como permanente, aparentemente não irá aprofundar os cortes muito mais do que o já foi feito (as intenções de cortes no funcionamento de serviços normalmente não passam disso mesmo). A estabilização em curso da economia nacional poderá assim continuar no futuro. Uma economia estabilizada, com um enorme serviço de dívida anual, 16% de desemprego, serviços públicos degradados e aumento da pobreza e desigualdades. Novo normal.

Hoje: Miguel Portas, Estado Social e Jantar de Abril


O Prémio Miguel Portas 2013, que pretende «dar visibilidade a reflexões e práticas sociais e culturais em torno das questões europeias e, em particular, do mundo mediterrâneo e de Portugal» é entregue esta quarta-feira. A esta primeira edição concorreram cerca de 60 projectos.


«As análises que se apresentam ao longo deste livro revelam um dado muito claro: considerando as comparações internacionais, verificamos que os sistemas, serviços e funções sociais do Estado não podem ser vistos como gorduras ou excedentes que devem ser simplesmente cortados ou alienados. Esta conclusão torna-se ainda mais evidente se tomarmos em linha de conta a história do atraso português e a forma como em pouco mais de três décadas se consolidaram as instituições fundamentais do Estado social.»


Jantar comemorativo dos 40 anos do 25 de Abril (inscrições aqui), com intervenções de Mário Simões Teles (militar de Abril), Sofia Roque (investigadora e bolseira) e Eduardo Paz Ferreira (professor universitário).

terça-feira, 29 de abril de 2014

Todo um modelo


1. Portugal é o sexto país com maior aumento da população prisional. A ascensão do Estado penal é o outro lado do atrofiamento do Estado social, para usar a útil distinção do sociólogo Loic Wacquant que aqui temos por várias vezes referido. De resto, sabemos que os países desenvolvidos economicamente mais desiguais têm, entre outros problemas sociais, uma maior percentagem de pessoas presas e uma maior percentagem da força de trabalho empregue em actividades de vigilância e de controlo. Todo um modelo.

2. Setor financeiro gasta 120 milhões de euros em lóbi na União Europeia. O consenso de Bruxelas também se constrói assim: a maior distância em relação aos espaços onde está a democracia é a maior proximidade em relação aos espaços de certas fracções do capital. Se a integração europeia realmente existente não existisse, teria de ser inventada pelo capital financeiro. Todo um modelo.

Os jogos do poder (II)


«Vale a pena dar um salto no tempo, para o mesmo local [sede do Banco de Portugal], e ouvir o que tem, hoje, a dizer sobre o "problema" [a "República", em contraste com a "parte sã", os bancos] um actual conselheiro de Carlos Costa, o ex-ministro das Finanças Vítor Gaspar:
"Excesso de crescimento do crédito e da dívida privada; a persistência no défice orçamental excessivo; a exagerada transferência de recursos para sectores de bens não transaccionáveis; a diminuição da concorrência; a procura de rendas em sectores regulados e protegidos."
Nesta perspectiva, temos, então, cinco causas para o problema. Mas apena uma delas, a segunda, o défice orçamental, pode ser atribuída directamente à República.
E as outras? O crescimento do crédito e da dívida privada; a aposta quase exclusiva dos "recursos", crédito e dinheiro, no imobiliário; a procura de rendas nas auto-estradas, na energia e na saúde?
Gaspar não o diz, mas, como veremos, todas essas causas do problema nascem, precisamente, da "parte sã", como Carlos Costa apelidou os bancos.»

Da introdução do livro do Paulo Pena, cujo lançamento terá hoje lugar na Fnac Chiado, em Lisboa, a partir das 18h30. Entre outras dimensões que qualificam esta obra como verdadeiro serviço público (e a que o João Rodrigues já fez referência neste post), sublinhe-se a viagem que a mesma nos permite fazer - de uma forma particularmente cativante, séria e esclarecedora - a um universo por natureza opaco, complexo e dificilmente penetrável, como o é o das imbricações entre o sistema bancário e as estruturas de poder político, na era da financeirização da economia.
Aliás, no momento em que se discute o «fim da troika» - esse truque de ilusionismo que sucede ao passe de mágica da transmutação da «crise financeira» em «crise das dívidas soberanas» (com todas as implicações de economia política que daí decorrem) - este livro torna-se ainda mais importante e incontornável: ele evidencia, ao recolocar as verdadeiras causas e factores geradores da crise no centro da mesa do debate - para lá das cortinas de fumo sabiamente criadas - o quanto, na verdade, essas causas e factores se encontram inalterados.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

É lamentável, mas é verdade


“É lamentável ter de o dizer, mas a principal ameaça que hoje existe à independência de Portugal é a União Europeia.” Diz que é com esta frase que João Ferreira do Amaral começa o seu último livro, disponível esta semana nas livrarias. Começa bem. Num ambiente intelectual demasiado marcado pelo horror à ideia de soberania, condição necessária para tudo o que alcançámos e que ainda temos para defender, João Ferreira do Amaral é uma voz, apesar de tudo, cada vez menos isolada. Pudera.

Neste contexto, aproveito para disponibilizar uma versão de um capítulo de livro que eu e o Ricardo Paes Mamede escrevemos - Os custos de um projecto utópico: O contributo de João Ferreira do Amaral - para uma obra em sua homenagem que foi lançada no ano passado. Uma homenagem bem merecida também por isto (escrito em 1995 na revista Política Internacional):

“O Tratado da União Europeia constituiu, no domínio económico, um verdadeiro golpe de Estado, ao impor concepções e instituições ultra-liberais aos cidadãos europeus apanhados desprevenidos. E, nem o facto deste golpe ter sido depois legitimado pelas ratificações parlamentares e por alguns referendos, pode esconder a realidade do erro histórico que se cometeu, só possível devido ao défice democrático na Europa. A parte económica do Tratado constituirá uma amarga experiência para os europeus que constatarão mais uma vez, à sua custa, que subordinar a concertação de interesses nacionais às abstracções ideológicas é a via mais rápida para o desastre.”

domingo, 27 de abril de 2014

Os jogos do poder


No dia 4 de Abril de 2011, pelas 10.30 da manhã, Carlos Costa, que fora chefe de gabinete de João de Deus Pinheiro, em Bruxelas, e director do Millenium BCP, aconselha os banqueiros: ‘Vocês não podem continuar a financiar [as emissões de dívida pública portuguesa]. O risco é afundarem-se os bancos, parte sã, e a República, que é parte que criou o problema.’ 

Excerto do livro de Paulo Pena sobre a “bancocracia”, regime político dominado pelo sistema financeiro, onde o poder do crédito privatizado tudo subverte: o problema é a República e os bancos são a parte sã, reparem. A função de um jornalista é dizer a verdade e denunciar esta e outras mentiras do poder. Paulo Pena faz isso e por isso deve ser saudado. Fá-lo num relato jornalístico detalhado, competente e, mais extraordinário de tudo, dado que é de finanças que estamos a falar, envolvente e empolgante.

Aviso-vos, no entanto: a verdade que Pena expõe sobre estes anos de chumbo não é para estômagos frágeis. Afinal de contas, estamos a falar de Doutores Honoris Causa como Ricardo Salgado, Eduardo Catroga ou António Mexia e de outra gente, também muito respeitável e a quem muito devemos, como João Rendeiro, Duarte Lima, Oliveira e Costa, Paulo Teixeira Pinto, Jardim Gonçalves ou Cavaco Silva. A parte sã, no fundo. A verdade não é para estômagos frágeis porque estamos também falar de “refúgios fiscais” (a boa tradução para haven, e não heaven, como assinala Pena), de uma opacidade metodicamente cultivada pela finança cuja trela foi solta pelos governos, os que organizaram a sua, a nossa, submissão à banca, os que tornaram o Estado num agente sem soberania monetária. Pena mostra bem o que é o mercado e a inovação na finança: especulação financeira e fundiária, sopas de letras para gerar lucros à custa da dissimulação e do engano, destruição de um bem público como o crédito em crises financeiras sem fim.

Não julguem, no entanto, que Pena cai no moralismo que reduz a bancocracia ao carácter mais ou menos cúpido dos personagens. Pena deixa bem claro que o problema está na imoralidade das estruturas: “a crise foi e é motivada por uma cultura, uma visão política e um modelo económico que permanecem inalterados”. No caso nacional, isto foi preparada pelo cavaquismo, pela liberalização financeira e pela privatização dos bancos, sobredeterminadas externamente, como temos insistido, pela integração europeia de cunho neoliberal. O caso nacional não está isolado. Da Islândia à Hungria, Pena indica-nos como uma crise financeira pode ter diferentes saídas políticas. As estruturas não são destino.

Os valores de Abril passados quarenta anos exigem conhecer a fundo a finança, diz-nos implicitamente um jornalista comprometido com esse conhecimento. Não sendo essa a conclusão de Pena, devo dizer que saí deste livro a pensar, com mais razões, que se queremos democracia, desenvolvimento e descolonização, esta última agora entendida como a efectiva libertação nacional da tutela externa por via financeira e monetária, então temos mesmo de apostar no controlo público do sector financeiro, recuperando o espírito de um decreto-lei (estão a ver, sempre a autoridade política...) que ainda hoje deve fazer suar os banqueiros deste país: estou a falar de um decreto-lei de Março de 1975.

Em suma, um bom livro para ler em Abril ou em Maio.

sábado, 26 de abril de 2014

Pensar nas rupturas futuras

A promoção do fluxo internacional irrestrito de capitais, mercadorias e, em menor medida, de pessoas é uma das características centrais do regime neoliberal. A sua hipótese central é a de que a afectação eficiente de recursos, coordenada pelo mercado, produziria espontaneamente prosperidade para todos, à escala global. 

Nesta apresentação procurar-se-á mostrar o carácter hierárquico e imperial desta nova configuração do capitalismo internacional, através da sua face dominante - a financeirização da economia. Dois países distintos - a África do Sul e Portugal - serão utilizados como ilustração das variadas configurações que o poder estrutural da finança produz hoje. No primeiro caso, será discutida a forma como a liberalização financeira se tornou um poderoso mecanismo de instabilidade e dependência externa, favorável ao seu complexo minério-energético e ao capital financeiro. No segundo caso, indicar-se-á a lógica de uma financeirização semiperiférica, que combinou acesso ilimitado a capital a baixo custo com um desfavorável quadro de integração económica na zona euro. A análise da integração económica destes dois países nos mercados internacionais de capitais e de mercadorias permitirá assim a identificação das assimétricas formas de relação de poder presentes entre centro, semiperiferia e periferia, bem como dos limites ao desenvolvimento das duas últimas. 

Neste quadro da economia política, serão identificadas algumas pistas de uma política económica autónoma, produto da deliberação democrática soberana. Esta passa por uma política cambial ajustada, por controlos de capitais, pelo proteccionismo selectivo ou pela política industrial. Só assim é possível construir um “espaço de desenvolvimento” que, alicerçado numa aliança popular, soberana e democrática, produza uma ruptura nas cadeias de poder da finança internacional.

Nuno Teles, Periferias e semiperiferias no capitalismo financeirizado

Resumo da intervenção que o Nuno Teles fará hoje, pelas 15h, no auditório 3 da Gulbenkian, em Lisboa. Trata-se de uma sessão no âmbito do Próximo Futuro intitulada Da Teoria da Dependência ao Direito de Fuga. O outro orador, estou certo que com uma perspectiva bastante contrastante, será o sociólogo italiano Sandro Mezzadra. O antropólogo José Mapril comentará.

Espelho

A lição principal que o verdadeiro liberal deve tirar do sucesso dos socialistas é que foi a coragem de serem utópicos que lhes granjeou o apoio dos intelectuais e lhes deu uma consequente influência sobre a opinião pública que, diariamente, torna possível o que há pouco tempo parecia muito distante. Aqueles que se têm dedicado unicamente ao que parecia praticável perante o estado actual da opinião descobrem constantemente que até isso se tornou politicamente inviável devido às mudanças numa opinião pública que eles abdicaram de orientar. A não ser que a ideia dos alicerces filosóficos de uma sociedade livre se torne de novo uma questão intelectualmente viva e a sua implementação uma tarefa que desafia a criatividade e a imaginação dos espíritos mais vivos, as perspectivas da liberdade são sombrias. Mas se conseguirmos redescobrir aquela crença no poder das ideias que foi a marca do liberalismo no seu melhor, a batalha ainda não está perdida. O renascimento intelectual do liberalismo já está em vias de acontecer em muitas partes do mundo. Chegará a tempo?

Por que é que O Espelho decidiu traduzir e publicar os dois parágrafos finais de um artigo de Friedrich Hayek (1899-1992) intitulado “Os intelectuais e o socialismo”, publicado na University of Chicago Law Review na Primavera de 1949? Realmente, pode parecer estranho assinalar os quarenta anos do 25 de Abril dando espaço ao principal responsável intelectual no século XX pela emergência do neoliberalismo.

O resto do artigo pode ser lido num “jornal de papel, de parede, de boca em boca ou de mão em mão, o que for preciso.” Tratou-se de ir a um das fontes intelectuais dos que estão a destruir a economia política e moral de Abril, ameaçando a democracia. O Espelho foi ontem distribuído pela praça e avenida, pelo Carmo e Liberdade. Poderá ser lido aqui.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

O dia inicial inteiro e limpo


Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

Sophia de Mello Breyner Andresen

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Podes ser a gota de água


«Na noite de 24 de Abril saltam rios de vários pontos da cidade. Vários rios de gente que quer estar na rua neste dia – em vez de estar sozinha em sua casa – e que, com panelas, instrumentos, pancartas, vozes e vontades, desaguam no Largo do Carmo.
Não é por acaso que queremos regressar a este sítio. Não só porque faz 40 anos que este largo se encheu de gente que não obedeceu às indicações de ficar em casa do Movimento das Forças Armadas, mas também porque queremos viver e reclamar o espaço público.
Para estes rios existirem, terão de ser criadas nascentes. Pega em ti e nos teus amigos, no teu grupo musical, no teu colectivo ou na tua equipa de atletismo, fala com outras pessoas, pensa num ponto de encontro, organiza o teu percurso.»

«O polícia que tratou do FMI como deve ser»

«No aeroporto, o polícia olhou para o passaporte, olhou para o gordo com cara de bem não transacionável e disse-lhe: "Quer uma entrada limpa?" O gordo não percebeu. O polícia: "É que se há saídas limpas, sem favores, também há entradas limpas. Quer entrar em Portugal limpamente?" O gordo disse que sim. O polícia olhou mais dez vezes para o passaporte e disse: "Estou a fazer a minha 11.ª avaliação... Nome, Subir Lall... Chefe de missão do FMI... É, o senhor tem visto." O gordo, já com soberba: "Claro que tenho!" O polícia, como quem fala da subida do salário mínimo: "Mas é prematuro especular sobre o tema... Que dia é hoje?" O gordo, julgando que números é com ele: "20!" O polícia: "Justamente, o visto de entrada é para o dia 21." Pegou numa calculadora, que dedilhou: "21 menos 20... É, falta um dia para entrar." O gordo: "Por amor de Deus, só por um dia..." O polícia: "Deixe-me citá-lo, sr. Subir Lall: este não é tempo para complacências." O gordo: "Mas que mal faz? Não entro amanhã, entro hoje, vá lá..." O polícia: "Aí já não o cito, você gosta da redução dos custos de trabalho mas eu não gosto da redução do tempo de entrada." O gordo, insistindo numa medida de ajustamento. "Vá lá..." O nosso polícia, firme: "O senhor pode gostar de facilitar despedimentos, mas eu não me despeço de si sem o visto em ordem." E durava esta conversa 40 minutos quando, por telefone, chegou o programa de assistência ao gordo. E o gordo lá entrou.»

Ferreira Fernandes, (no DN de ontem)

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Dívida e pequenos aforradores


Alguns defensores de uma reestruturação da dívida pública que apenas altere maturidades e taxas de juro – a que chamam de renegociação – usam argumentos, que sem perceberem, põem em causa os seus próprios objectivos. Afirmam que uma reestruturação com “haircut” no capital implicaria perdas para os portugueses. Esta afirmação comporta dois erros grosseiros que exigem clarificação: primeiro, alterar taxas de juro e maturidades da dívida detida por residentes também implica perdas a esses residentes, por exemplo, uma extensão das maturidades em 40 anos representaria uma corte (haircut) de 74% para o credor. Imagine-se o que seria para um pequeno aforrador que investiu parte das suas poupanças em Certificados de Aforro e de Tesouro receber o capital investido 10, 20 ou 40 anos depois da data inicialmente prevista? Ou passar a ser remunerado por uma taxa de juro mais baixa do que aquela que remunera depósitos a prazo? É óbvio que para um pequeno aforrador um “haircut” na taxa de juro ou um alargamento das maturidades é tão ou mais penalizador que um “haircut no capital investido; segundo, aquela afirmação confunde banca comercial portuguesa com os portugueses em geral. Quem defende uma reestruturação “a sério” exclui sempre os pequenos aforradores e a Segurança Social dessa mesma reestruturação, envolva ela taxas de juro, maturidades ou capital.

Segundo o boletim estatístico do Banco de Portugal, publicado ontem, os Certificados de Aforro e de Tesouro totalizam 8732 milhões de euros e, segundo o orçamento rectificativo para 2014, os activos da Segurança Social em títulos de dívida pública de curto e longo prazo representam 18 460 milhões de euros, o que perante uma dívida pública de 220 mil milhões de euros (segundo o conceito de Maastricht) significa cerca de 12% do total da dívida pública portuguesa. Podemos bem conseguir uma reestruturação ambiciosa sem atingir de maneira nenhuma os pequenos aforradores e a Segurança Social. O que não podemos, se não quisermos fazer de conta, é evitar uma reestruturação que envolva os credores oficiais e os restantes credores privados.


(crónica publicada às quartas-feiras no jornal i)

Escutar e debater

No âmbito do Curso Livre de Economia Heterodoxa organizado pelo Colectivo Economia Sem Muros, o José Neves estará hoje às 18h30 na Faculdade de Economia da Nova para falar sobre "Crítica e Usos Marxistas do Nacionalismo Económico". Será no Campus de Campolide, Sala 241.

Quem acompanha de mais perto e há mais tempo os Ladrões de Bicicletas, sabe que alguns dos autores deste blogue têm mantido acesos debates com o Zé Neves em torno desta matéria. De forma muito simplificada, de que o próprio discordará talvez, o pomo da discórdia tem passado por saber se o estado-nação, enquanto espaço de acção política e referencial identitário, é essencial e intrinsecamente reaccionário (como entendo ser a posição do Zé Neves), ou se em certas condições político-económicas, como aquelas com que nos confrontamos actualmente, pode e deve ser mobilizado na prossecução de uma política progressista e emancipatória (como defendemos pela nossa parte). A quem esteja por Lisboa ou arredores e possa ir, aconselho vivamente que não perca esta ocasião para escutar, e debater, as ideias sempre interessantes e inteligentes deste especialista dos estudos dos nacionalismos e dos comunismos e autor de obras como "Comunismo e Nacionalismo em Portugal - Política, Cultura e História no Século XX".

Aproveito ainda para saudar mais esta iniciativa do Colectivo Economia sem Muros da FEUNL, que organiza este curso livre e organizou já os dois ciclos "Pensar os Pensadores da Economia", mostrando mais uma vez como o pensamento crítico tende, sobretudo nas faculdades de economia, a estar mais vivo entre os alunos do que entre o quadro docente.

Link para o evento no facebook: https://www.facebook.com/events/610254225726889/

terça-feira, 22 de abril de 2014

Fraude e escândalo

Rompuy diz que vão ser os governos a escolher sucessor de Barroso. Claro que vão. Como já aqui defendi, a ideia de que haverá uma qualquer eleição para Presidente da Comissão Europeia não passa de uma fraude. Entretanto, o chefe dos socialistas no Parlamento Europeu mostrou-se escandalizado com a declaração de Rompuy. Escandolosa é a cumplicidade e as ilusões que tantos socialistas ainda alimentam em relação a um processo de integração feito para destruir a social-democracia ali onde esta pôde florescer. Uma pista: não foi nos corredores de Bruxelas.

Mandados?

A Humanidade constitui o primado mas não nos retira dum território, não silencia a língua, nem os laços institucionais e políticos que nos fizeram portugueses, não apaga os sentimentos e as emoções que nos prendem a esta montanha, ao rio da minha aldeia, a este mar, a esta cidade alta banhada pela luz do rio. O quinhentista português Franscico de Almeida (...) definia pátria ou grei como 'a congregação dos nossos parentes, amigos, compatriotas, a que chamamos república , que celebra nosso nome de geração em geração até ao fim do mundo onde a memória de todas as coisas acaba' (...) Mas como sair desta armadilha? É deixando-nos conduzir pela arreata destes cegos que nos arrastam para o precipício? Os mandados têm que assumir o mando.

António Borges Coelho, Portugal, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Abril de 2014.

Entre a noite e a madrugada


É inaugurada esta terça-feira, 22 de Abril, pelas 18h00, a Exposição audio-vídeo «Tenho a cabeça espetada entre a noite e a madrugada», da autoria de Artmini e com exposição sonora de Margarida Guia. Integrada nas iniciativas de evocação dos 40 anos do 25 de Abril, organizadas pelo Centro de Documentação 25 de Abril em parceria com o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, esta instalação estará aberta ao público até 31 de Maio, no Colégio de São Bento (ex-Departamento de Antropologia), em Coimbra.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Duas fraudes sempre convenientes


1. Os economistas pré-keynesianos ganharam politicamente em toda a linha. O refúgio na retórica vaga da “gordura do Estado” é uma fuga à ética da responsabilidade. É evidente que nenhum espírito isento discordará do combate ao desperdício, aos grupos económicos que parasitam o Estado e fogem às suas responsabilidades fiscais ou ao cancro da economia informal. No entanto, as politicas de austeridade exigidas pelos “mercados” e pelas “estúpidas” regras dos pactos europeus implicam em todo o lado fazer cortes abruptos, injustos socialmente e contraproducentes economicamente. Escrevi isto em 2011, nas vésperas da troika, em debate com um Álvaro Santos Pereira apostada na fraude das gorduras. Esta fraude está integrada na fraude maior de uma política orçamental condicionada por regras cada vez mais estúpidas e só pode gerar discursos e comportamentos fraudulentos, sob pano de fundo de um moralismo atroz. É como diz Rui Peres num artigo a não perder e que confirma este ponto: números errados, ideias erradas de um Passos condenado a mentir neste e noutros campos. De resto, as gorduras são funcionários públicos, salários e pensões; a melhor carne dos serviços públicos é para ir oferecendo ao capital. Fraude conveniente.

2. A fraude ideológica da rigidez e da flexibilidade laborais, já aqui tantas vezes denunciada, promovida incessantemente pelo FMI, pela CE, pelo BCE e pelo seu governo, serve apenas para puxar o debate politico de tal modo para um terreno neoliberal que os representantes de alguns patrões podem parecer razoáveis e ponderados: “hoje a lei laboral não constrange a economia”, diz António Saraiva da CIP em entrevista ao Público. Os patrões organizados sabem bem que a divisão dos direitos e das obrigações, que determinam quem se apropria do quê e porquê, lhes é cada vez mais favorável. Os patrões sabem bem que a lei laboral nunca constrangeu a “economia”. O que constrange a acumulação de capital é, em primeiríssimo lugar, a falta de procura e num distante segundo lugar o acesso ao crédito. A flexibilidade para os patrões, que é rigidez para os trabalhadores, gera um dos maiores e reais constrangimentos da economia: a desigualdade na repartição do rendimento e da riqueza. Fraude conveniente.

Leituras

«Há qualquer coisa em Passos Coelho que faz com que as pessoas lhe tolerem com alguma bonomia todas as suas mentiras. Ou que pelo menos não se indignem como se indignavam com Sócrates ou com Durão Barroso ou como se continuam a indignar com Portas. (...) Querem o melhor exemplo? O espaço de opinião de José Sócrates, transformado numa "entrevista confrontacional", foi aplaudido pela maioria dos jornalistas. A entrevista de José Gomes Ferreira a Pedro Passos Coelho, transformada num espaço de opinião partilhada (à semelhança do encontro amigável de Passos Coelho com uns cidadãos, na RTP), não provocou grande incómodo nos intrépidos defensores do jornalismo corajoso e independente. Na realidade, a entrevista foi tão fácil que Passos Coelho acreditou que os país era composto por milhões de gomes ferreiras. E desembestou num chorrilho de mentiras sem pensar que havia um dia seguinte.»

Daniel Oliveira, As contradições de Passos Coelho em entrevistas não "confrontacionais"

«No diálogo televisivo de terça-feira, o primeiro-ministro falou dum alargamentozinho no corte de salários face ao do anterior Governo. Segundo o primeiro-ministro, fazer cortes de 3,5% nos salários a partir de 1500 euros não é muito diferente de cortar 2,5% a partir dos 675. Também, segundo ele, não existirá grande diferença entre o tal corte de 3,5% nos salários de 1500 euros e o atual de 8,5%. Mais do dobro. (...) Infelicidade verbal, pois então. Mas existiram mais aspectos que houve quem achasse claros. Houve tempo para libertar (...) uma não verdade, quando disse que os cortes nas despesas de funcionamento do Estado tinham sido de 1600 milhões de euros: não foram, foram de metade desse valor como provou o Jornal de Negócios dois dias depois. Infelicidade verbal, sem dúvida. Também não faltaram, no alegre convívio, momentos de puro entretenimento: o desonerar (...) das pensões e salários em 2016. Se der, eventualmente, às tantas. Tão certo como "termos cumprido as metas". Não houve tempo para explicar como é que não se tendo cumprido uma única meta original se diz exatamente o contrário. Infelicidade verbal, claro.»

Pedro Marques Lopes, "Infelicidades verbais várias"

«"Nós temos um sistema de pensões que não é sustentável". (...) Como incentivo à fuga contributiva, dificilmente se conceberia melhor declaração. Depois, os vários estudos de instituições internacionais mostram que, depois de 2006, o sistema de pensões português é dos que apresentam menores riscos. (...) O problema da segurança social hoje é a combinação entre quebra contributiva (por força da quebra do emprego) e aumento de despesa (efeito do desemprego). Entre 2010 e 2012, a diminuição das contribuições foi de 400 milhões de euros, enquanto a despesa com subsídio de desemprego aumentou 480 milhões. (...) "Os portugueses escolheram um governo para governar nas circunstâncias mais difíceis de que há memória nos 40 anos sobre a revolução". (...) As frases citadas foram proferidas por Passos Coelho na conversa televisiva desta semana. Esta última distingue-se por ser verdadeira e merece um comentário adicional: foi uma tragédia, num momento como o que vivemos, termos alguém tão impreparado a chefiar o governo.»

Pedro Adão e Silva, Um primeiro-ministro

«Nunca saberemos ao certo se o primeiro-ministro cedeu a tentações eleitorais em 2011 ou se pura e simplesmente desconhecia o plano de ajustamento da troika e as limitações da poupança com as "gorduras no Estado". Vê-lo voltar a essa história de fadas de grandes reduções de défice com base em ganhos de "eficiência", menos "consultoria" e muitas "fusões" causa inevitavelmente calafrios - especialmente se considerarmos que três anos depois parece ainda não dominar o assunto em que depositou tanta esperança. Se desta vez, o primeiro-ministro errar, já não terá desculpa. Pois como disse, e bem, "às vezes criam-se ideias que não são correctas".»

Rui Peres Jorge, Números errados, ideias erradas

«Debaixo deste discurso muito pouco transparente, há no entanto uma ideia clara e um objectivo definido. A ideia clara é que a austeridade é para continuar. (...) O objectuvo definido é que, para conseguir aqueles equilíbrios, o governo aposta tudo no esmagamento da procura interna. E isso exige que salários e pensões não só nunca mais voltem aos patamares de antes da crise como se mantenha a brutal carga fiscal sobre os rendimentos. Em síntese, este ajustamento exige e assenta no esmagamento da classe média. E é isso que a troika e o governo têm prosseguido com afinco, enquanto nos fazem sentir a culpa de "termos vivido acima das nossas possibilidades", seja isso o que for, uma viagem às Maldivas ou jantar fora demasiadas vezes...»

Nicolau Santos, Quantos pobres fazem o ajustamento?

sábado, 19 de abril de 2014

De todos para todos

«Imaginemos o que teria sido o país nestes últimos 40 anos, sem o desenvolvimento e o aprofundamento dos sistemas e das funções sociais do Estado. Viveríamos ainda hoje num país subdesenvolvido. Não teríamos com toda a certeza atingido os níveis de desenvolvimento humano que colocam Portugal entre os países mais ricos e detentores de níveis elevados de bem-estar social.
As progressões extraordinárias verificadas no aumento da esperança média de vida, na diminuição drástica da taxa de mortalidade infantil, no incremento da taxa de escolarização, são exemplos bem representativos do avanço civilizacional que o país conheceu nestas últimas quatro décadas.
A construção do Estado social e a decorrente universalização dos sistemas de proteção atenuaram drasticamente a exposição dos indivíduos a um conjunto de riscos sociais e ambientais. Neste sentido, o Estado social tornou-se um elemento insubstituível na organização da vida em comunidade dos indivíduos.
(...) Os portugueses sabem quanto perderiam sem o Estado social para todos, ou mesmo se ficassem limitados a um Estado social de amparo. Sabem sobretudo porque conhecem bem as maneiras como a população em geral dele beneficiou nas últimas décadas. E sabem também que pouca democracia lhes sobrará se não lhes valer este Estado social. A continuidade do Estado social implica a própria continuidade do regime de Portugal.
»

Depois de «A Crise, a Troika e as Alternativas Urgentes», o Congresso Democrático das Alternativas publica o livro «Estado Social: De todos para todos», igualmente editado pela Tinta da China e cuja génese remonta à Conferência «Vencer a Crise com o Estado Social e com a Democracia», organizada pelo CDA e que se realizou em Maio do ano passado no Fórum Lisboa, tendo contado com a participação de mais de meio milhar de pessoas inscritas, além de organizações políticas, sociais e sindicais. Lançamento a 30 de Abril.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

A euforia, as bolhas, a periferia europeia e o BCE


«"Bolha nas obrigações da Europa" é o título de um artigo da revista britânica "The Economist" na sua edição impressa de sábado, muito crítico sobre a atual euforia em torno das obrigações soberanas dos periféricos da zona euro. "As economias do sul da Europa estão em pior forma do que sugere a queda das yields das obrigações", refere a revista num artigo que já se encontra disponível no site para registados.
"Os investidores têm desenvolvido um entusiasmo notável em relação à dívida europeia que antes evitavam", refere a revista. Um dos casos emblemáticos recentes foi a operação de colocação sindicada de dívida obrigacionista na Grécia. Outros sinais são os mínimos históricos, ou a sua proximidade, que se verificam nas yields de obrigações irlandesas e italianas, bem como as descidas muito significativas nos casos das obrigações portuguesas e espanholas. "É tentador dizer que isso é prova de que a crise do euro acabou: que os anos de reforma difícil valeram a pena e que as yields mais baixas dos títulos em breve deverão conduzir a um maior investimento e a um crescimento mais rápido. Tentador, mas em grande parte errado. A perspetiva é muito menos rósea do que a queda nas yields dos títulos sugere", sublinha a revista.
O "The Economist" alega que há duas razões a toldar uma análise otimista: "Em primeiro lugar, há a aritmética cruel de deflação. Com a queda dos preços em várias das economias periféricas, o fardo real das suas dívidas está a aumentar. Em segundo lugar, grande parte da queda das yields das obrigações reflete a esperança dos investidores de que o Banco Central Europeu (BCE) vai começar a imprimir dinheiro, uma esperança que pode vir a ser frustrada". A revista britânica refere que a retórica de muitos responsáveis do BCE no sentido do uso eventual de medidas de política monetária não convencionais mais agressivas ainda este ano, pode não ser mais do que isso mesmo: "Estão dispostos a falar sobre medidas ousadas, na esperança de que falar por si só convence os mercados. Mas não há nenhuma evidência de um compromisso de [que o BCE] irá agir de forma decisiva".»

Jorge Nascimento Rodrigues, Bolha na dívida dos periféricos diz "The Economist" (o gráfico colige as séries de dados da Bloomberg relativos à Grécia, Portugal, Espanha e Itália, demonstrando de forma clara que a evolução recente das taxas de juro dos países periféricos nada tem que ver com o proclamado «sucesso» das políticas de austeridade, adoptadas em diferentes graus, por estes países).

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Sete anos - III


Sete anos - II


Pensões: resistir ao afundamento


Está em curso uma lavagem ao cérebro dos portugueses para que interiorizem o discurso neoliberal sobre as pensões. O objectivo é quebrar a resistência ao afundamento, por etapas, do sistema de segurança social que construímos após o 25 de Abril, com o pretexto de que já não é sustentável. Na verdade, esse discurso é uma verdadeira fraude intelectual, que já perdeu todos os debates travados no plano académico (ver Peter Orzag e Joseph Stiglitz, "Rethinking Pension Reform: Ten Myths about Social Security Systems", 1999). Mas sobrevive porque serve os interesses do sistema financeiro e porque os fanáticos do neoliberalismo são imunes à argumentação e à evidência histórica.

Primeiro, importa lembrar que o sistema de repartição, de base salarial, instituído no pós-Guerra na Europa, é um contrato entre gerações garantido pelo Estado. Os pensionistas recebem transferências dos seus contemporâneos que fazem contribuições. A legitimidade deste direito social - não é um direito de propriedade sobre as contribuições do próprio - foi constituída através das pensões que o actual pensionista ajudou a pagar à geração anterior quando trabalhou. É este princípio de solidariedade entre gerações sucessivas que motiva a guerra neoliberal às pensões. Ele representa um modelo de sociedade que se opõe ao modelo das organizações internacionais: "Cada um por si, e uma pensão básica para os pobres."

Em segundo lugar, a legitimidade das pensões contributivas não se afere pelo seu impacto na redução da pobreza, embora também possam contribuir para esse objectivo. Para isso há outras políticas sociais. Quem insiste nessa ideia, esquecendo que o objectivo das pensões é manter o nível de vida, é porque já desistiu de prevenir a pobreza, bem como as desigualdades, no terreno adequado: política económica de pleno emprego, contratação colectiva forte, impostos fortemente progressivos, combate à evasão fiscal através do sistema financeiro.

Em terceiro lugar, é uma manipulação grosseira dizer que o nosso modelo de segurança social é insustentável. Aliás, se em 2012 ocorreu um défice no sistema da segurança social, ele foi induzido pela desastrada e desastrosa política de austeridade. Pelo contrário, o sistema tem acumulado excedentes num fundo de estabilização que nunca foi usado para o fim previsto. É portanto falso que a segurança social estava a caminhar para o abismo e que em 2011 não havia dinheiro para pagar as pensões. Como também é falso que o envelhecimento da população põe em causa a sustentabilidade do nosso sistema de segurança social. De facto, a pressão do envelhecimento leva tempo a fazer-se sentir e a sua intensidade não só pode vir a ser bem menor do que se pensa - depende das políticas económicas e sociais que forem adoptadas - como tem sido mais que contrabalançada pelo crescimento da produtividade na economia. A retórica do envelhecimento, estimulada por Bruxelas, lança uma cortina de fumo sobre as consequências nefastas da política económica imposta à periferia da UE, o desemprego em massa e a consequente degradação das contas da segurança social.

O governo actual não fará mais do que aprofundar e tornar mais consistente o caminho aberto pelo PS com a reforma de 2007. Desde então, abandonou o objectivo da manutenção do nível de vida do trabalhador (ligação da pensão aos últimos salários) e, em linha com a orientação neoliberal da UE, ligou as pensões à evolução da esperança de vida. Agora trata-se de ir mais longe e mais fundo: amarrar as pensões a uma economia em austeridade perpétua.

Para vencer esta guerra ideológica e política, a esquerda deve lembrar os avanços sociais do pós-25 de Abril e dizer, com a convicção de quem sabe do que fala, o que infelizmente nem sempre acontece, que os cortes nas pensões serão anulados porque o sistema é viável e central no processo de desenvolvimento do país. Mais, para ser consequente e credível, deve propor-se recuperar a soberania sobre a política económica que nos permitirá aproximar do pleno emprego, um pilar do Estado social frequentemente esquecido.

(O meu artigo no jornal i)

Sete anos


Os dilemas trágicos que os indivíduos têm de enfrentar em resultado da falta de recursos e de poder tornam-se visíveis num belo filme italiano a que este blogue roubou o nome. Não somos cineastas, mas economistas. Acreditamos que a economia, como o cinema, pode ser um «desporto de combate». Temos partidos e ideologias diferentes e divergentes, mas convergimos no que hoje importa. Pleno-emprego, serviços públicos, redistribuição da riqueza e do rendimento, controlo democrático da economia fazem parte do caminho que queremos percorrer. Recusamos e combatemos as «evidências» e mitos que alimentam o actual consenso neoliberal. Acreditamos que o mercado sem fim é a ideologia transponível do nosso tempo. Mas uma coisa reconhecemos aos nossos adversários e a F. Hayek, o seu grande ideólogo: «nada é inevitável na existência social e só o pensamento faz que as coisas sejam o que são». Este blogue é portanto um espaço de opinião de esquerda, socialista e que pretende desafiar o actual domínio da direita na luta das ideias. Pedalemos então!

O ladrões de bicicletas começou com esta mensagem. Faz hoje sete anos. Mais de dois milhões de visitas depois, mais de vinte mil comentários a mais de quatro mil posts depois, continuamos a pedalar. Mais por causa das derrotas do que apesar das derrotas. Não se desiste. Obrigado por nos lerem.

O elefante da dívida no meio da sala


José Gomes Ferreira entrevistou ontem, na SIC, Pedro Passos Coelho. Dialogaram, durante sessenta minutos, sobre a perenidade dos cortes nos salários e nas pensões; o equilíbrio orçamental e os objectivos do défice; as receitas, as despesas e os custos intermédios; a reforma do Estado e a «libertação» de funcionários públicos; o aumento da pobreza e o aperto do cinto à classe média; o crescimento, o desemprego e a competitividade; o passado e o presente; os calendários eleitorais e a putativa «desoneração» de salários e pensões, no eterno futuro. A cumplicidade entre entrevistador e entrevistado era umbilical: podia discutir-se tudo, desde que o debate não transbordasse o perímetro de se saber quanto mais de austeridade é necessário, pois esse é o caminho e está a resultar. E sobretudo nem uma só, blasfema palavra, sobre a dívida: vamos fazer de conta que ela não existe, vamos fingir que a questão da sua sustentabilidade não é assunto que se leve para aquela sala, por mais que por lá esteja a pairar, tão esmagadora como um enorme, mas deliberadamente ignorado, elefante.

Depois da divulgação pública do Manifesto dos 74Preparar a reestruturação da dívida para crescer sustentadamente»), promovido por um conjunto de personalidades representativas de um vasto espectro político e ideológico; depois da petição a que esse manifesto deu origem, subscrita numa semana por mais de 34 mil cidadãos e já entregue na Assembleia da República; depois de 74 economistas estrangeiros, de diferentes nacionalidades, terem dado o seu apoio ao documento; depois de demonstrado o irrealismo delirante e irresponsável das contas feitas por Cavaco Silva e por Pedro Passos Coelho (ver a excelente síntese e resposta produzida pelo Observatório sobre as Crises e as Alternativas), que tanto um como o outro nunca contestaram (nem muito menos Durão Barroso, o presidente da Comissão Europeia que se reduz, em nome de interesses próprios, ao papel de crente oportunista de convicções alheias); depois de tudo isto, dizíamos, José Gomes Ferreira não tem uma única palavra, uma única questão a colocar, nesta matéria, ao primeiro ministro. Vivemos de facto tempos estranhos. Tempos estranhos e muito perigosos.

Para lá da propaganda


UE completa maior projecto de integração desde a criação do euro. Pura propaganda europeia sob a forma de notícia. Será assim até às eleições europeias. Tudo por causa de transferências de poder para o pós-democrático BCE na supervisão de alguns bancos, de alguma uniformização regulatória e de um fundo de resolução liliputiano, que representará 1% dos depósitos garantidos na Zona Euro, para dar uma aparência de ordem à ilusória imposição da disciplina de mercado aos bancos por via da reestruturação ou da falência.

Trata-se de um sistema opaco e favorável ao reforço do controlo do grande capital financeiro, até porque parece basear-se na crença absurda de que o BCE será menos imune a pressões. Na realidade, os grandes bancos do centro acentuarão o conluio com o BCE, em detrimento dos interesses da periferia. A pressão para a constituição de bancos maiores aumentará.

Estamos longe da ilusória “União Bancária”. Esta teria de ter, por exemplo, um fundo comum de garantias de depósitos. É evidente que os alemães não querem assumir grandes responsabilidades pelos outros.

Trata-se, com ou sem união, de manter no essencial as estruturas regulatórias neoliberais, favoráveis à expansão dos mercados financeiros e da acção dos bancos à escala europeia e global. Nem outra coisa seria de esperar de um processo de integração que, desde a década de oitenta, foi o principal mecanismo de modificação da paisagem bancária europeia, através da liberalização, da abolição dos controlos directos sobre a banca e sobre os capitais e de construção de quadros de regulação conformes à expansão das forças de mercado.

Quanto mais reforçarmos o quadro supranacional, mais o viés neoliberal sairá reforçado. Querem evitar crises e dirigir o crédito? Então temos de fragmentar e nacionalizar o sistema bancário, ligando esse processo à recuperação da soberania monetária. Quanto mais tempo demorarmos mais custos continuaremos a pagar. Se a própria Elisa Ferreira, no meio do entusiasmo, reconhece que esta coisa não está preparada para “crises gigantescas”. E não é só questão de preparação, mas de favorecimento...

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Discutir pensões

Discutir política económica

Dívida: um debate moral



Os adversários da reestruturação da dívida pública têm travado o seu combate no plano económico e moral, mas é sobretudo neste último que têm tido mais sucesso. No plano económico, os partidários da reestruturação/renegociação da dívida ganharam de forma inequívoca; mas no plano moral, grande parte deles acabou por se colocar à defesa - ou porque aceitam as premissas da direita, ou porque desistiram de as confrontar.

1. A direita alimenta a ideia da culpa - "a dívida é consequência dos portugueses terem vivido acima das suas possibilidades e do despesismo" - e a esquerda desistiu de explicar as consequências assimétricas do processo de integração europeia, desde a adesão ao euro, até ao alargamento a leste e à liberalização do comércio com a China.

2. A direita defende que, ao contrário deles, a esquerda não quer pagar o que deve; já a esquerda refere poucas vezes que não se trata de nos dividirmos entre os que querem pagar e os que não querem, trata-se sim de fazer uma escolha. E o governo já a fez - para não falhar um único cêntimo com os credores internacionais, decidiu "não pagar" parte dos salários e das pensões aos trabalhadores do sector público e aos pensionistas.

3. A direita fala dos credores como beneméritos, aos quais não é justo imputar perdas; a esquerda não tem explicado que os nossos credores não nos "emprestaram dinheiro", fizeram um investimento financeiro em títulos de dívida pública e que, como qualquer outro investimento com risco, pode correr mal, não porque o povo português seja desonesto, mas porque o país enfrentou uma crise profunda, com consequências incontornáveis na sua capacidade de pagar. Em qualquer investimento que corre mal há perdas para o devedor e para o credor, porque haveria de ser diferente no investimento em títulos de dívida pública?

Como disse o arcebispo Silvano Tomasi, Observador Permanente da Santa Sé junto das Nações Unidas, ainda em 2012: "A dívida externa é só um sintoma da falta de justiça no fluxo de capitais mundiais" e "A riqueza e a dívida devem servir o bem comum. Quando se viola a justiça, a riqueza e a dívida tornam-se instrumentos de exploração".

(crónica publicada às quartas-feiras no jornal i)

Falar disto


Nem gosto de falar disto. Sinto uma revolta tão grande. Na fábrica vejo colegas a passar fome. Para almoçar, temos uma mesa e cada uma leva de casa. Lá mais para o final do mês, algumas saem da fábrica à hora de almoço para esconder que nem para a sopa tiveram. Aquelas, por exemplo, que os maridos ficaram desempregados e que começaram a ter discutimentos em casa. É que se a gente ao menos pudesse socorre-las… mas também não pode (…) Quem não trabalhar de graça ao sábado de manhã é logo encostado à parede. Começaram agora a ‘meter’ mais gente, mas continuam a exigir os sábados de manhã de graça, são quatro horas e meia. Se alguém reclama, respondem que quem não estiver bem é livre de ir para tribunal. E ninguém vai, claro. Sabe o que eu queria, menina? Outro 25 de Abril (…) Eles já assim nos fazem a vida negra. Humilham. A gente olha para a cara umas das outras e vê tudo desanimado, triste, e eles sempre na maior, sempre com um sorriso. Quem trabalha hoje, tornou-se lixo, gente que está ali para ‘dar’ a produção que eles pedem. Então, se for para tirar ainda mais, prefiro que não me aumentem o salário. Se não tiver bife, como sopa. Mas dêem-me paz. 

Deolinda Araújo, operária têxtil

Há que lembrar que sob o regime fascista vigorava o Estatuto do Trabalho Nacional que expressamente declarava o predomínio dos interesses do capital sobre os trabalhadores. E acontecia, em consequência, o que acontece também hoje: na repartição funcional do rendimento, 60 e tal por cento ia para o capital e 40% para os trabalhadores. Portugal era, antes do 25 de Abril, um país onde os trabalhadores em particular viviam muito mal. Durante alguns largos anos aquela proporção inverteu-se. Mas hoje estamos de novo numa situação em que 60 e tal por cento do rendimento vai para o capital e uns 40 por cento para os trabalhadores (…) O salário mínimo nacional teve um grande impacto na economia. Durante muitos anos, se fosse ao acaso pelo país e perguntasse aos trabalhadores como é que tinham sentido o salário mínimo, uma larga percentagem diria: “Pela primeira vez, pude fazer muita coisa”. Era muito frequente, no Norte, por exemplo, as pessoas referirem que esse foi o tempo em que finalmente compraram a primeira mobília. Porque visitar uma casa de um operário têxtil, do calçado ou da construção civil, era visitar uma casa ou um abrigo quase completamente desguarnecido, não equipado. E era evidente que os casais tiveram pela primeira vez a oportunidade de melhorar a sua vida (…) [E]stou convencido, olhando agora para trás, que o salário mínimo nacional foi importante para evitar que os portugueses sofressem os efeitos de uma crise económica internacional que se registou entre 1973 e 1975 e que, cá, as pessoas praticamente não sentiram. 

Avelino Gonçalves, Ministro do Trabalho no I Governo provisório

Excertos de dois notáveis trabalhos, uma reportagem e uma entrevista, de Natália Faria no Público de Domingo: dar voz aos que raramente têm voz. O salário mínimo foi uma conquista de Abril, parte de um processo mais vasto de dignificação do trabalho e de aumento do seu poder, e ainda hoje os que estão na base da relação salarial não conseguiram reconquistar o poder de compra alcançado na altura. A sua desvalorização foi uma conquista do capitalismo mais medíocre, o que quer viver numa economia cada vez mais desigual e geradora de pobreza, onde vigora o despotismo em demasiados locais de trabalho, sem freios e contrapesos, sem pressão salarial; uma economia que desrespeita acordos entre patrões e sindicatos, como o que foi assinado em 2006, e que previa que o salário mínimo atingisse os 500 euros em 2011, recuperando o terreno perdido; uma economia baseada na lógica do trabalho como batata, bem explorada, por exemplo, pelo Alexandre Abreu.

Os argumentos para a existência de um salário mínimo e para a actualização do seu poder de compra são mais do que muitos, e neste blogue temo-los mobilizado, e estão no lado da oferta - motivação dos trabalhadores, bloqueamento de estratégias empresariais assentes na transferência de custos para os trabalhadores -, no lado da procura - promoção do poder de compra dos grupos com maior propensão a consumir -, e entre a oferta e a procura - redução da pobreza laboral e das desigualdades, bloqueamento dos círculos viciosos da pobreza. É claro que para quem tem um entendimento da economia magistralmente resumido por John Kenneth Galbraith - “Os pobres não trabalham porque têm demasiados rendimentos; os ricos não trabalham porque não têm rendimentos suficientes. Expande-se e revitaliza-se a economia dando menos aos pobres e mais aos ricos.” - nada disto vale.

terça-feira, 15 de abril de 2014

Nem «democratização da economia» nem «ética social na austeridade»

Na mensagem de Natal de 2011, Passos Coelho anunciou que o ano vindouro seria marcado por um processo de «democratização da economia», argumentando que as estruturas de organização económica e social existentes não permitiam aos portugueses «realizar todo o seu potencial», em virtude de reprimirem «as suas oportunidades» e de favorecerem «núcleos de privilégio injustificado», responsáveis pela perpetuação de «injustiças e iniquidades». Por isso, o primeiro ministro iria tratar de colocar «as pessoas comuns com as suas actividades, com os seus projectos, com os seus sonhos, no centro da transformação do país».

Esta prometida democratização no acesso à vida económica seria alcançada, já se sabe, pelo combate sem tréguas ao «peso asfixiante do Estado na economia», pela «remoção das suas imorais gorduras» e pela libertação fervilhante das «energias do empreendedorismo», esse veio milagroso e espontâneo que a omnipresença do «monstro» estatal, na economia e no social, estava a sufocar. Chegara pois, de acordo com o primeiro ministro, o tempo do reforço da participação, na economia, da aclamada «sociedade civil», das empresas e dos cidadãos, que assim passariam a ocupar o espaço entretanto varrido da presença do Estado e das suas malévolas políticas económicas e serviços sociais públicos.

Dois anos depois, a promessa de «democratização económica» redunda contudo num colossal logro, como demonstra, por um lado, a diminuição da população activa entre 2011 e 2013 (decorrente do recrudescimento da emigração para níveis observados na década de sessenta e pelo aumento do número de desempregados que desistiram de procurar trabalho) e, por outro lado, a destruição massiva de emprego, que extinguiu cerca de 330 mil postos de trabalho desde Junho de 2011, data em que o actual governo entra em funções. Ou seja, a exclusão de milhares de pessoas do mercado de trabalho revela afinal, ao contrário do que prometera Passos Coelho, o ímpeto trágico de um processo de «desdemocratização da economia» e não a sua «democratização».


Mas para lá da restrição do acesso ao mercado de trabalho, o mais importante mecanismo de inserção económica e de inclusão social, importa ainda assinalar o fracasso de uma segunda promessa do governo, enunciada desta vez pelo ministro Mota Soares em Outubro de 2011: a de que haveria «ética social na austeridade» durante o programa de «ajustamento». Isto é, a garantia de que «mesmo numa altura em que é preciso tomar medidas de austeridade», se iria «conseguir sempre ter um tratamento excepcional para aqueles que são os mais excluídos e carenciados», apostando «muito na inclusão e capacitação das pessoas».

O resultado de tão cristãs intenções está hoje à vista de todos: quando confrontado com o aumento do desemprego e da pobreza (exponenciados pelas doses reforçadas de austeridade e pela contracção deliberada dos serviços e das políticas sociais públicas), o governo responde restringindo o acesso às prestações de desemprego e a apoios subsequentes, com particular destaque para o RSI. O que leva a que o número de desempregados sem acesso a qualquer prestação de desemprego passe de cerca de 387 mil (no primeiro semestre de 2011) para cerca de 523 mil (no final de 2012), ao mesmo tempo que o RSI se torna cada vez mais insignificante para responder ao aumento de situações de pobreza: a medida, que abrangia cerca de 320 mil beneficiários em 2011 passa a responder a apenas 288 mil no último semestre de 2012 (com quebras muito significativas no valor das prestações), período em que a redução continuada do número de pessoas em risco de pobreza conhece o pico máximo da inversão que se começa a verificar a partir do final de 2009.


Ou seja, nem economia nem solidariedade: as promessas de «democratização económica» e de «ética social na austeridade» não passam de duas fraudes bem urdidas, que visam mascarar o processo de desmantelamento das funções económicas e sociais do Estado e aprofundar o crescente desnivelamento social e o empobrecimento deliberado do país.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Um final necessariamente infeliz

Não há melhor exemplo da euforia irracional que se apoderou dos mercados da dívida do que ver um país que, quer em termos de PIB, quer em termos de desemprego, quer em termos de investimento está numa depressão económica, que tem um rácio da dívida pública em percentagem do PIB próximo dos 180% e que está em deflação fazer uma emissão de dívida pública no mercado primário com juros inferiores ao que tinha antes do início da chamada crise das dívidas soberanas e com uma procura quase sete vezes superior à oferta. Falo, como é evidente, da Grécia, que celebrou este estrondoso sucesso no mesmo dia em que via uma bomba explodir nas ruas da sua capital. Nem Fellini se lembraria de tamanha farsa.

A Grécia é um excelente exemplo de como o que se tem passado nos mercados da dívida pública é uma típica bolha especulativa que não tem qualquer relação com os chamados fundamentais da realidade económica do país e que, mais cedo ou mais tarde, vai rebentar, porque é insustentável. A Grécia, para todos os efeitos, é um país falido, com uma economia devastada, com um tecido social à beira da rutura (se é que não passou já desse ponto) e que nunca poderá pagar o que deve sem uma radical inversão de política. Se é assim, como explicar a queda vertiginosa dos juros da sua dívida pública?

Os juros descem na Grécia, descem em Portugal, descem em Espanha e descem em todos os periféricos. E descem tanto mais quanto mais altos estavam antes de toda esta euforia começar. Como mostrou o economista Paul de Grauwe, depois da garantia de Draghi de que o BCE faria tudo o que fosse necessário para evitar o desmembramento do euro, o que melhor explica a descida dos juros é o nível inicial desses mesmos juros: quanto mais alto era o nível, maior é a queda. E descem porque, fruto das políticas expansionistas dos bancos centrais, há um excesso de liquidez nos mercados, que, por não haver oportunidades de investimento real, tem forçosamente de ser investido no que resta, que são os ativos financeiros. Se juntarmos a isto a saída de capitais dos mercados emergentes, as baixíssimas taxas de rentabilidade disponíveis, torna-se mais fácil entender por que razão há tanta procura pela dívida pública dos países da chamada periferia: é o que permite garantir alguma rentabilidade num mundo financeiro que não pode existir sem essa rentabilidade. Num certo sentido, e independentemente da sua sustentabilidade, o investimento na dívida de todos estes países é feito por necessidade, não por escolha.

Esta situação é o resultado inevitável da estratégia que consistiu em mobilizar todos os recursos públicos para inflacionar o preço dos ativos financeiros sem cuidar de reabilitar a realidade económica que lhe subjaz. Inundar o sector financeiro de liquidez ao mesmo tempo que se destrói a economia e a procura com políticas de austeridade tinha de resultar na criação de dois mundos, um mundo financeiro cheio de dinheiro para aplicar, outro com uma economia onde não vale a pena investir. Perante isto, o setor financeiro vê-se forçado a investir em si próprio e nos ativos que estão disponíveis. A bolha é, pois, o resultado racional de uma estratégia que é, em si mesma, irracional e que, mais cedo ou mais tarde, vai rebentar. Podemos adiar o confronto com a realidade, mas ele, em algum momento, terá de chegar: países com mais dívida e menos capacidade de a pagar não podem garantir um final feliz para esta história.

(artigo publicado no Económico desta semana)

Celebrar (II)


domingo, 13 de abril de 2014

Jogos


Alexis Tsipras afirmou que preferia ver o jogo do Atlético de Madrid contra o Barcelona a assistir ao debate entre Jean-Claude Juncker e Martin Schulz porque no jogo de futebol sempre há competição. Acho a preferência compreensível, mas por razões que vão para lá da previsível convergência política do bloco central europeu. Na realidade, quando assistimos a um jogo de futebol sabemos o que estamos a ver: um jogo de futebol. No debate entre os dois putativos “candidatos” a suceder a Barroso assistimos a uma farsa montada para tentar legitimar o que está a acontecer na União Europeia. Trata-se de comprometer o maior número de partidos com a armadilha europeia, ou seja, com o processo de integração assimétrica realmente existente, que mais não seja para proporem o equivalente programático dos desejos de paz nos concursos de beleza. Repito o que já escrevemos noutro contexto:

Esta eleição é uma farsa porque, na realidade, o futuro Presidente da Comissão continuará a ser escolhido pelo Conselho Europeu e ainda bem que assim é. Se o Presidente fosse escolhido pelo Parlamento Europeu, os interesses dos pequenos países seriam ainda menos ouvidos, dado, entre outros factores, o peso eleitoral dos grandes países.

No jogo entre o Atlético e o Barcelona o vencedor foi inesperado. Desta disputa política artificial só podemos esperar mais do mesmo, com eventuais mudanças para deixar tudo na mesma. Estas eleições são então para eleger deputados ao Parlamento Europeu (PE) e eu espero que um maior número desses deputados acabe por se comprometer com coisas simples: usar o PE como tribuna para a promoção da desobediência nacional e internacional aos ditames europeus e para a defesa dos interesses de quem os elegeu por aqui sempre que alguma coisa de marginalmente relevante por lá passar, o que também implica denunciar federalismos furtivos que reduzem a soberania democrática a um simulacro, fazendo tudo para devolver poderes para a escala onde está a democracia que há quarenta anos temos boas razões para defender e lutando pelo desmantelamento de uma arquitectura monetária e financeira que está a matar a cooperação possível e desejável entre Estados a nível europeu. Não tenho grandes ilusões sobre o PE, nem sobre a democracia com escala supranacional, mas uma tribuna é uma tribuna e estas eleições europeias são além do mais uma oportunidade para enviar um sinal de rejeição às correias de transmissão governamentais de Bruxelas e de Frankfurt.

CDA: «Reestruturar ou empobrecer - Não há saídas limpas» (II)



«O indicador que mais sobressai e que mais lastro deixará para o futuro é sem dúvida o desemprego. (...) Só este indicador mostra um dos grandes falhanços da execução deste programa. De qualquer forma, a taxa de desemprego não é um bom indicador para avaliar as condições do mercado de trabalho e a evolução nos últimos três anos. (...) Por dois motivos: por um lado, porque obviamente as pessoas que emigraram não estão nas estatísticas. Sabemos que oficialmente emigraram pelo menos 220 mil pessoas em 2011 e 2012. (...) Ao mesmo tempo há um indicador muito interessante que é quase sempre esquecido nas estatísticas: (...) os inactivos disponíveis mas que abandonaram a procura de emprego. (...) Podemos somar a taxa de desemprego oficial com os desencorajados. E aí a taxa de desemprego já não está nos 15,3%, que é o valor oficial do último trimestre do ano passado (e sem contar com os emigrantes), a taxa de desemprego que podemos considerar real está ainda acima dos 20%. (...) De qualquer forma, (...) é a evolução do emprego que melhor representa o que aconteceu nos últimos três anos. (...) A partir do primeiro trimestre de 2011 (...) vemos que existe uma redução de 320, 330 mil empregos nestes dois anos.
(...) A taxa de risco de pobreza subiu muito significativamente em 2012. (...) Foi um ano em que o desemprego sofreu um aumento muito severo (...) e vemos que o risco de pobreza sobe de 17,9 para 18,7%. E isto mesmo apesar de o rendimento mediano ter sofrido uma redução - o que é importante pois as pessoas consideradas em risco de pobreza são as pessoas que têm um rendimento de menos de 60% do rendimento mediano. (...) Imaginando que o rendimento mediano não se tinha alterado desde 2009, e os preços não se tinham alterado até hoje, isto permite ter uma imagem mais fiel do que aconteceu. E então vemos que, a preços de 2009, a taxa de pobreza seria hoje de 24,7 e não de 18,7%.
(...) Houve alguma transformação do perfil de crescimento da economia portuguesa? Ou simplesmente houve um empobrecimento e o seu efeito na balança comercial? Ou seja, reduzimos importações conjunturalmente, em dois, três anos (e isso levou a um alinhamento entre importações e exportações)? Mas o que é que vai acontecer a seguir? Curiosamente, as últimas projecções do Banco de Portugal, para 2014-2016, mostram que o padrão de crescimento se mantém idêntico ao que se registou entre 2000 e 2007 (...). Se podemos falar da primeira década do século e registar aqui um padrão, vemos que o PIB cresceu a 1,5% (o Banco de Portugal estima que são 1,4% nos próximos três anos) e o contributo da procura interna e da procura externa líquida é praticamente idêntico. (...) Apreendendo os últimos sinais do ano de 2013 relativamente ao crescimento português, o cenário que nos apresentam não é muito diferente do cenário que marcou a primeira década do século.»

Da intervenção de Hugo Mendes (na conferência promovida, a 2 de Abril, pelo Congresso Democrático das Alternativas), sobre o fracasso do «ajustamento» face aos seus próprios objectivos e os impactos devastadores do programa na economia e na sociedade portuguesa (a ver na íntegra).

sábado, 12 de abril de 2014

Por outras palavras

 

«Só não vê quem não quer: a converseta de que não podemos voltar à vida do passado é usada de forma selectiva e tem claros objectivos políticos. Só isso explica que, ao mesmo tempo que se regurgita a narrativa do vivemos acima das possibilidades, os salários têm de ser cortados e o Estado Social é insustentável, se pense em reabilitar uma classe de activos e um tipo de prática que todos associam (correctamente) à crise financeira que nos trouxe até aqui.»

Do João Galamba (facebook), no seguimento do post anterior do Nuno Teles sobre esta notícia do Financial Times.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Ensandecer

Lembram-se da titularização de dívida, onde esta era dividida em diferentes tranches de risco e depois revendida em mercado? Sim, aqueles títulos tóxicos que quase fizeram a economia implodir em 2008. Pois bem, o BCE e Banco de Inglaterra querem aligeirar a regulação de forma a reactivar este mercado na Europa.

40 anos de Abril: Jantar comemorativo


«Dizem-nos que não há alternativa. Que a austeridade é perpétua. Que é preciso empobrecer. Que a desigualdade é natural. Que é preciso comer e calar. Que quem não quiser, vá embora. Que é proibido assustar os mercados. Que se suspenda o futuro, a cidadania e, se preciso for, a democracia.
40 anos depois do 25 de Abril, este é o discurso de um poder determinado em proceder ao ajuste de contas com esse «dia inicial inteiro e limpo» de que nos fala Sophia. 40 anos depois, é preciso «incendiar de astros e canções as pedras do mar, o mundo e os corações», como no canto do poeta José Gomes Ferreira. Erguer a voz. Sempre e sempre resistir. Não desistir. Juntar forças, soltar amarras, construir pontes. E assim erguer as alternativas que cumpram a estrada da democracia que Abril abriu.»

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quinta-feira, 10 de abril de 2014

Com Passos ninguém treme


Passos Coelho, no último debate quinzenal, e noutras intervenções posteriores, ensaiou a ideia de que a redução das taxas de juros e o alargamento das maturidades dos empréstimos da troika foram obtidos através de intensas negociações lideradas pelo governo português. Já todos sabemos que o primeiro-ministro português tem uma relação muito precária com a verdade mas há mentiras que chocam de tal forma com a realidade que revoltam o ouvinte mais tolerante e pacífico. Desde 2011 que foram sendo alteradas algumas condições dos empréstimos aos países intervencionados mas nenhuma se deveu à iniciativa ou reivindicação do governo português. A extensão das maturidades dos empréstimos para Portugal e para a Irlanda, por exemplo, resulta, em primeiro lugar, das condições dadas à Grécia na sequência do processo negocial para o seu segundo programa de ajustamento.

A concessão destas condições a Portugal e à Irlanda não foi automática, foi antecedida de negociações e, como é público, o governo português não liderou coisa nenhuma, antes foi um obstáculo à obtenção de resultados melhores que os conseguidos no fim. É importante recordar que depois do ministro das Finanças irlandês ter afirmado que a extensão de maturidades seria de 15 anos, Vítor Gaspar, comportando-se como o quarto membro da troika, veio dizer que isso seria "inconcebível" - o resultado final acabou por ficar nos 7 anos.

O governo português não liderou, prejudicou; não conseguiu nada por sua iniciativa, antes beneficiou do que os outros conseguiram. Nem podia ser diferente quando o governo é liderado por um primeiro-ministro que em Junho de 2011 disse que ia "surpreender e que ia mais além do acordo" com a troika, onde pontuou um ministro das Finanças que acabou contratado pelo FMI ou onde um secretário de Estado dos Assuntos Europeus é apresentado pela imprensa grega como "o alemão" quando na Grécia recusou uma frente de países do Sul. De Passos Coelho ninguém esperaria que fizesse "tremer as pernas dos alemães", nem ninguém lhe pede tanto, pede-se apenas alguma coragem e algum patriotismo.

(crónica publicada às quartas-feiras no jornal i)

Novo normal grego?

O Estado grego conseguiu ontem “regressar aos mercados” com uma emissão de obrigações a cinco anos abaixo de 5%. Se o caso português era estranho, o grego parece digno da “twilight zone”. Um país, com uma dívida pública de 180% de um PIB que tem estado em contracção ano após ano e com uma taxa de desemprego quase nos 30%, consegue endividar-se nos mercados internacionais a baixo custo. A explicação para este sucesso reside em vários factores, alguns deles também se aplicando a Portugal.

O primeiro é a actual abundância de liquidez nos mercados financeiros em boa parte devida ao juro baixo e às injecções de liquidez que a compra de títulos por parte de bancos centrais induz nos mercados. O resultado é que os títulos dívida cobram um juro baixo, introduzindo incentivos ao investimento noutras paragens com juros mais altos e pressões deflacionárias. Investir em dívida grega será uma das alternativas, sendo outra a compra de acções cujos mercados dão preocupantes sinais de bolha especulativa.

O segundo factor, ainda de ordem externa, encontra-se no enquadramento legal britânico, e não grego, desta emissão de obrigações. Os credores ficam assim protegidos ao abrigo da lei britânica, dificultando assim qualquer futura reestruturação destas obrigações. Seria interessante perceber o que se passa no caso português.

O terceiro factor encontra-se no “sucesso” grego. A economia e o povo grego podem estar de rastos, mas o Estado grego conseguiu um saldo primário (saldo orçamental sem as despesas de serviço da dívida) positivo e um saldo externo equilibrado. Se tais feitos têm pouco ou nenhum reflexo na vida dos gregos, a margem de negociação com os credores oficiais aumenta. Assim, se neste momento o Estado grego já beneficia de taxas de juro baixas e prazos alongados de amortização dos seus empréstimos com a troika, é bem provável que num futuro próximo as condições de pagamento sejam novamente aligeiradas. Aparentemente num novo prolongamento do prazo para 50 anos, um congelamento da taxa de juro e uma extensão do período de carência de juros estão já em cima da mesa.

Conclusão: é possível que para a Grécia, como para Portugal, um período de estabilização da economia comece agora. A dívida continuará a ser um lastro sobre a economia e a austeridade regra política durante muitos anos. Qualquer recuperação económica robusta que diminua significativamente o desemprego estará arredada. Só uma alteração do panorama político, mais provável ainda assim na Grécia do que em Portugal, poderá desencadear uma mudança profunda da economia e sociedade grega. No entanto, o futuro não parece risonho também neste campo. Definitivamente, não basta fazer apelos vagos a uma outra Europa e esperar capitalizar com o descontentamento.