quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Notícias feitas à pressa?

Recorrendo a dados do Eurostat, o JN destacou na capa da edição do passado domingo que «os contratos precários aumentaram 1,8 pontos percentuais entre 2008 e 2017» em Portugal, sendo que à escala europeia «só a Croácia apresenta um valor superior», com «um aumento de 3,6 pontos percentuais», no mesmo período.

Reproduzida por outros jornais (por exemplo aqui, aqui, aqui ou aqui) e nos noticiários do dia, a peça do JN tem contudo dois problemas. Por um lado, porque mesmo fazendo referência a esse facto, não retira as devidas ilações da quebra de série estatística verificada em 2011, que inviabiliza a interpretação dos dados feita pelo periódico. Por outro lado, porque não sendo essa quebra de série nada irrelevante (os valores para Portugal mais que triplicam de um ano para o outro), é dispensada na notícia a referência à redução do peso relativo do trabalho precário - e não o seu aumento - entre 2011 e 2017. Ou seja, uma diminuição em cerca de -0,7 pp nos anos que compõem a série estatística mais recente.


De facto, a aproximação dos critérios utilizados pelo INE aos critérios utilizados a nível europeu, a partir de 2011, mostra que este indicador da precariedade laboral estava subavaliado até essa data, em termos comparativos (passando Portugal a posicionar-se acima da UE, ao contrário do que sucedia até 2010). Mas mostra também que, desde então, essa forma de precariedade tem vindo a diminuir (e a aproximar-se da média europeia, que se mantém em torno dos 2,3% entre 2011 e 2017), passando de 3,6 para 2,9%. O que permite uma leitura bem distinta (e distante) dos títulos que povoaram os jornais no início da semana, a apresentar Portugal como um «dos países europeus onde o trabalho precário mais subiu», ou como um país onde os «contratos precários aumentam 1,8 pontos percentuais entre 2008 e 2017».

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Hás-de ser de direita, quer queiras ou não

Filme: "Este país não é para velhos"
A ideia de Marcelo Rebelo de Sousa parece justa. Pois se há duas visões da Saúde, dever-se-ia tentar conciliar as duas para que não haja alteração, de cada vez que o PS ou o PSD estejam no poder.

Mas este raciocínio - já transformado em ultimato, ameaçando vetar a reforma se feita à esquerda - encobre uma ideia que Marcelo não assume: conciliar duas ideias distintas ou inconciliáveis é abortar umas delas, sobretudo aquela que promete ser uma ruptura face a práticas de décadas - levadas a cabo pela direita - que têm subfinanciado, asfixiado e desarticulado o Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Na realidade, significa favorecer aquele lado que nada quer mudar no status quo, que tem favorecido um sector privado em expansão, com o apoio do Estado - repita-se: com o apoio do Estado - em detrimento de um sector público que se desvanece e encolhe, sem capacidade de manter os seus quadros.

Politicamente, a ideia de Marcelo significa dizer que há um partido - aquele partido de que Marcelo foi presidente - que, apesar de ter apenas 27% das intenções de voto, em novembro passado (ao nível do Governo Passos Coelho em 2012) consegue ter um lugar à mesa da decisão, apenas porque o Presidente espera que um dia o PSD venha a crescer. Ou seja, é o mesmo que dizer que "todos os partidos são iguais, mas há partidos mais iguais do que outros", mesmo que à esquerda as intenções de voto se situem próximas de 55%. Na prática, significa ainda dizer que de nada vale votar nem apresentar programas eleitorais distintos porque, no final, basta um acordo entre duas pessoas: os primeiros nomes do PS e do PSD.

Para perceber a dificuldade, leia-se o 1º parágrafo da Explicação de Motivos dos projectos para perceber os distintos cenário de base e diagnósticos da situação.

O projecto do Governo fala do SNS e o projecto do PSD do Sistema Nacional de Saúde, onde - claro está! - o SNS é apenas um dos componentes...

O projecto do governo faz, nessa Explicação de Motivos, uma avaliação crítica da Lei de Bases de 1990 (Cavaco Silva): "Nos últimos anos tem-se assistido a um forte crescimento do setor privado da saúde, quase sempre acompanhado por efeitos negativos no SNS, sobretudo ao nível da competição por profissionais de saúde e da desnatação da procura". O projecto do PSD nem menciona esse facto, dando por adquirida essa realidade, assumindo-a orgulhosamente como se não houvesse alternativa: "Nestes mais de 40 anos de democracia, a realidade nacional evoluiu significativamente – e num sentido bem positivo – designadamente em termos de acesso à proteção da saúde".

Por urgência deste comentário, e para não me alongar mais, deixem-me ficar por aqui. Mas voltarei em breve ao mesmo assunto. E sobre a verdadeira intenção de Marcelo Rebelo de Sousa: a de tudo manter como está, mantendo em vigor a Lei de Bases de 1990, ou uma sua sucedânea.

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

O fascismo aqui

Uma sociedade é como um organismo vive que tem um sistema imunológico. Quando se fragiliza essas defesas, tudo o que ataca o corpo quebra o ténue equilíbrio social que aí reina. E o corpo morre.

Quando se vê aquelas imagens de Portugal no tempo do Estado Novo e do Marcelismo, a preto e branco, confunde a quem nunca os viveu como foi possível aquilo durante 48 anos.

E esquecemo-nos que um sistema é um conjunto articulado de comportamentos conducente a um dado fim, tanto ou mais musculado quando esse conjunto de comportamentos se encontra espaldado por uma armadura judicial, um corpo policial e uma classe assim apoiada, que dele beneficia, e que - por isso - o acarinha e alimenta. As prisões eram apenas a outra face dessa força social institucionalizada, arrogantemente defendida.

Passaram-se 44 anos sobre o 25 de Abril, e no entanto, há comportamentos que perduram, que mostram que pouco aprenderam, que renascem, revivem, porque se tem vindo a desarticular - uma atrás das outras - as estacas socio-político-judiciais que permitiam um contrapeso. Sem elas, as velhas formas de estar e de viver em sociedade voltarão a medrar, instalar-se-ão de novo, com a facilidade de quem sabe que não haverá a força do Estado para os impedir. Fazem o que querem, em impunidade. E assim ficarão durante muitos anos, novamente, ainda por cima ajudados por uma conjuntura internacional que os justifica.

(sobre esta falha de Estado, nunca ouvi falar nem o Presidente da República, nem os nossos representantes da direita no Parlamento. Muito pelo contrário: defendem essa desarticulação o mais rapidamente possível... mas enchem a boca de democracia. O Estado é o nosso sistema imunológico que impede os vírus e bactérias de nos matar).

Porque o fascismo não é um vírus que vem do Oriente. Foi - e é - algo muito intrínseco a certas camadas populacionais em Portugal, habituadas a esquivar-se das regras, das leis, da Justiça, a viver acima das possibilidades de um dado país. Foi - e é - uma das muitas faces das desigualdades sociais. É uma das manifestações da arrogância de quem se acha superior ao comum dos pobres de espírito, a quem não reconhecem capacidade para usufruir da liberdade.

E, no entanto, o cínico paradoxo maior é que o fascismo - e os fascistas não assumidos - entram em força, galvanizando a impaciência de quem não vê futuro, apesar de 44 anos de democracia, arrastando com eles, desbaratados, os democratas baralhados, que mal percebem que não ter um pensamento próprio que não seja as directivas desiguais vindas de fora, é a melhor forma de alimentar esse monstro.

Tudo isto a propósito de um artigo do Manuel Carvalho da Silva. A ler aqui.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

RBI: a armadilha de uma promessa simples


Philippe Van Parijs, professor na Universidade de Lovaina e destacado defensor do rendimento básico incondicional (RBI), esteve na semana passada em Braga num debate onde discutiu esta proposta, acompanhado pelo ministro Vieira da Silva. A ideia não é nova e já foi tema de outros textos neste blog (aqui, aqui ou aqui). No entanto, porque parece continuar a captar a curiosidade e a simpatia de alguns setores da esquerda, talvez valha a pena recuperar os seus principais aspetos e problemas.

O RBI surge no debate público como proposta de resposta às mudanças tecnológicas no mundo do trabalho e à ameaça de substituição de grande parte dos empregos por máquinas. Na entrevista que concedeu ao Público, Van Parijs sugere que "o RBI é um remédio para a armadilha do desemprego criada pelo Estado social." Assim, à inevitável eliminação de grande parte dos postos de trabalho, Van Parijs propõe que devemos responder com a atribuição, por parte do Estado, de uma quantia fixa a cada cidadão, independentemente da sua condição financeira, profissional ou pessoal.

No entanto, a simplicidade da ideia esconde vários problemas associados. Por um lado, a solução afasta a ideia de que o desemprego é um problema social que afeta não apenas o rendimento disponível, mas também a vida familiar e pessoal dos indivíduos, como nos mostram os estudos sobre a relação entre o desemprego e a diminuição das redes de contactos da pessoa desempregada, pela exclusão gradual dos espaços de socialização (o local de trabalho, os cafés, restaurantes, etc.). A solução proposta pelos defensores do RBI implica a eliminação do pleno emprego como objetivo central de uma sociedade democrática, desvalorizando também a importância das políticas públicas neste objetivo (aspeto discutido aqui).

As contas, recordemos, já foram feitas e não enganam: em Portugal, um rendimento mensal de 750€ para todos os cidadãos significa um montante total de 105 mil milhões de euros, mais de 60% do PIB. Esta despesa não constitui um combate eficaz à pobreza pelo duplo motivo de ser direcionada para todos, e não apenas para os pobres, e por não atribuir o rendimento necessário para uma vida digna. Além disso, como exposto por Francisco Louçã, apenas seria concretizável se o Estado abdicasse de todos os outros serviços públicos e duplicasse os impostos.

Não é, por isso, surpreendente que o RBI seja defendido por autores neoliberais como parte de uma estratégia de desmantelamento do Estado social e dos serviços públicos de provisão de saúde, educação, proteção social, segurança, entre outros. Sob a promessa da "defesa da liberdade individual", o que os seus defensores propõe é uma reconfiguração profunda do papel do Estado, que passa a atribuir um cheque às pessoas como contrapartida da mercadorização dos serviços essenciais ao funcionamento da sociedade. Além disso, o RBI contraria princípios constitutivos do Estado social como a universalidade e equidade no acesso a condições dignas de vida (que passam a depender da oferta privada) ou a lógica da reciprocidade organizada e inclusiva (bem visível, por exemplo, no caso do sistema de pensões).

Por outro lado, a inevitabilidade do fim do emprego é uma ameaça que assenta numa ideia errada sobre as tendências de fundo do capitalismo. A história mostra-nos que as sucessivas revoluções industriais e o avanço tecnológico não eliminaram o trabalho necessário. A alterações profundas no modo de produção estão associadas mudanças na organização do trabalhado e nas qualificações necessárias, mas não a inevitabilidade do desemprego permanente. Em vez de insistir numa ideia errada, o que devemos discutir é a distribuição dos ganhos gerados pela tecnologia e o papel das políticas públicas na redistribuição da riqueza através do emprego e dos seus direitos coletivos. Uma sociedade democrática e inclusiva constrói-se com serviços públicos abrangentes, com direitos laborais robustos e com uma organização sustentável da produção (através, por exemplo, da diminuição do tempo de trabalho e da aposta na reconversão ambiental das economias).

O RBI constitui, por isso, uma ideia perigosa que não contribui para enfrentar os desafios que as sociedades enfrentam. E uma ideia perigosa repetida muitas vezes não deixa de o ser. Que seja promovida pelos que pretendem aprofundar a captura de todos os espaços da vida social pelo mercado, não surpreende. Que continue a ser defendida por alguns setores da esquerda é sinal dos tempos estranhos que vivemos.

Debater economia política


O programa, as sessões paralelas e a Escola de Inverno podem ser encontrados no sítio da Associação Portuguesa de Economia Política.

Aproveitando e de alguma antecipando o 2º Encontro, Mauricio de Souza Sabadini, Presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política, realiza amanhã, pelas 14h30m, uma conferência - Economia política e políticas públicas: o mercado de trabalho no Brasil - na sala Keynes da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC).

Aprender economia política

Já estão abertas as inscrições para o Doutoramento Interdisciplinar em Economia Política, que resulta de uma iniciativa conjunta do ISCTE, da FEUC e do ISEG:  

“O capitalismo é um sistema socioeconómico e de poder; um sistema diversificado ao longo e em cada momento da sua história; um sistema em transformação nos seus quadros institucionais e nas suas escalas.

Estudar criticamente o capitalismo é o principal objetivo do doutoramento interdisciplinar em Economia Política, em linha com uma relevante tendência internacional nas ciências sociais.

Este programa valoriza particularmente a criação de conhecimento sobre o capitalismo em Portugal e sua evolução, inserindo-o nos contextos europeu e global que moldaram e moldam as suas trajetórias de convergência e de divergência.

O doutoramento em Economia Política tomou forma a partir de projetos de investigação, de publicações relevantes, de experiência de formação avançada e de um longo percurso de trabalho conjunto desenvolvido em diversos planos.”

domingo, 27 de janeiro de 2019

Ler economia política


A verdade é que, notava Galbraith [nos anos cinquenta], neste quadro de patente «imperfeição» do mercado, a economia norte-americana não apenas se movia sem atrito manifesto, como dava sinais de grande pujança. Para isso, muito teria contribuído, segundo ele, a institucionalização de um processo de balanceamento e compensação do poder de monopólio e dos efeitos perversos da concentração empresarial protagonizado por um vasto conjunto de novos agentes económicos: sindicatos (capazes de impor ao patronato e aos dirigentes empresariais melhorias dos níveis de remuneração e das condições de trabalho dos assalariados); cooperativas de produtores agrícolas (determinadas a contrariar a tendência de deterioração relativa dos preços das matérias-primas e dos bens alimentares); associações de consumidores, armazenistas e retalhistas (focadas na criação de relações mais igualitárias nos circuitos de distribuição), etc.

José Madureira Pinto coloca uma questão interessante no sítio do Le Monde diplomatique - edição portuguesa: Vale a pena (re)ler John Kenneth Galbraith? A resposta é inequivocamente afirmativa. Vale mesmo a pena ler a análise que a justifica.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Não esquecer a história


«Como escreveu António Arnaut no livro "Salvar o SNS", e passo a citar, "a lei 48/90 visou essecialmente a descaraterização constitucional do SNS e reduzi-lo ao objetivo de um serviço público de índole caritativa para os mais pobres. Ora, num momento em que o SNS está prestes a completar quarenta anos, e deu já tantas provas de fazer parte da nossa identidade como país, importa corrigir aquela descaraterização e aquele reducionismo".
Não tenho dúvidas que esta casa conhece bem o texto da Lei de Bases da Saúde atualmente em vigor. Mas saberão os portugueses, lá em casa, que nela se escreve que "é apoiado o desenvolvimento do setor privado da saúde, em concorrência com o setor público"? E que a política de recursos humanos para a saúde visa "facilitar a mobilidade de profissionais entre o setor público e o setor privado"?
(...) Importa não esquecer a história. Não para remexer nas feridas ou para colher louros, mas para evitar erros. Com a oposição do PSD, CDS e deputados independentes social-democratas, que então declararam lamentar "esta doença infantil da nossa democracia", foram os votos do PS e do PCP que permitiram aprovar, na Assembleia da República, a lei do SNS. Com a oposição do PS e do PCP, foram o PSD e o CDS que, em 1990, aprovaram uma Lei de Bases que o então ministro da Saúde, Dr. Arlindo de Carvalho, apresentou, referindo como tendo o intuito específico de "revogar esse verdadeiro subproduto de um falso romantismo iluminado, que é a lei de Dr. Arnaut". Estou certa, senhores deputados e senhoras deputadas, que esta câmara saberá, agora, colocar-se do lado certo da história.
»

Marta Temido, ministra da Saúde, na discussão das propostas de revisão da Lei de Bases do setor.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Racismo, violência policial e o programa do Goucha


Acha que a ida do Mário Machado ao Você na TV é grave? Eu também. Mas considero que há outros convites com efeitos perversos mais devastadores que têm merecido menos atenção.

Esta senhora, comentadora residente no Você na TV, consegue condensar no seu discurso a maioria dos elementos de um discurso neo-fascista: a condenação da crítica ao Estado, a condenação da crítica às instituições que, como a polícia, corporizam esse mesmo Estado, a exaltação da nação, o apelo à revolta contra aqueles que, na sua perspetiva, pretendem atacar a unidade nacional e o instigar do ódio contra os políticos, pagos pelo “dinheiro de todos nós”. É uma campanha gratuita de ódio contra o Mamadou Ba, um ativista que dedica a sua vida ao essencial combate ao racismo.

A presença destas figuras em espaços mediáticos como os programas da manhã é duplamente perigosa. Em primeiro lugar, porque falam sempre investidas de um argumento de autoridade. São sempre o “senhor doutor” ou a “senhora doutora” especialista na sua área. Este elemento, aliado a um espírito mais acrítico do público-alvo destes programas, conduz que as suas palavras sejam tomadas como legítimas e tidas como produto de um raciocínio meramente técnico. Em segundo lugar, são introduzidas por alguém da maior confiança dos espetadores – é a este propósito bom lembrar que muitos espetadores, muitos deles idosos e sugestionáveis, têm uma relação com os apresentadores dos programas da manhã, como Manuel Luís Goucha ou Cristina Ferreira, de grande carinho e proximidade. Por mais exótico que seja a personalidade que escutam, o facto de estar no “programa do Goucha” é percecionado como sendo alguém que merece a confiança do apresentador e, por conseguinte, a sua.

Isto significa que a TVI e o Manuel Luís Goucha querem promover o fascismo? Não creio. Deve-se até notar que Manuel Luís Goucha tem um percurso marcado por posições globalmente progressistas. Significa apenas que o apelo aos piores instintos do ser humano, entre os quais o medo e o ódio à diferença, são muito rentáveis, porque proporcionam muitas audiências. E que os responsáveis televisivos não olham a meios para atingir fins. O perigo é óbvio, mas esses responsáveis ignoram-no de modo negligente – o espetáculo vem primeiro. O fascismo e o racismo que nunca abandonaram as profundezas do senso comum do cidadão português sentem-se legitimados a expressam-se livremente, suscitando um mecanismo que se auto-alimenta e dá audiências a programas que dependem de opiniões polémicas, de dar soluções fáceis a problemas complexos e de ir ao encontro dos instintos mais primários dos seus espetadores. E é por este meio que, pé ante pé, um discurso propenso a soluções autoritárias se consolida: o racista que não gosta de pretos mas tem receio de o dizer sente a sua posição normalizada e começa a assumi-lo abertamente, alavancando a expressão desassombrada de outros como ele; o cidadão comum, que acha que todos os problemas do país se resolveriam se os políticos ganhassem menos e não fossem corruptos, vê a sua perceção reconhecida; as pessoas começam a sentir que o único obstáculo à implementação das soluções simples que resolveriam os seus problemas são os seus representantes democráticos. Afinal, se eles e os “senhores doutores da televisão” estão de acordo, é porque é verdade – a democracia é só uma força de bloqueio que deve ser afastada. Daqui até ao apelo à vinda de uma figura autoritária e redentora que restaure “glorioso destino da pátria” é apenas um sopro.

Sabemos que os tempos são perigosos quando temos de reafirmar os valores mais óbvios e que há muito pensávamos acima de qualquer discussão na sociedade.

Por isso, sejamos claros: o racismo é um problema enraizado na sociedade portuguesa. A PSP, como parte dessa sociedade, é permeável à criação de bolsas racistas no seu seio e tem registo histórico desses processos. O caminho não passa por fingirmos que não é assim. Claro que a maioria dos polícias não são racistas: sabemos isso. Na sua maioria, são trabalhadores assalariados que desempenham uma tarefa imprescindível para a sociedade em condições salariais e materiais muitas vezes difíceis. Mas este reconhecimento não nos pode manietar a crítica àqueles que abusam do poder de autoridade que o Estado lhes confere para abusar de minorias raciais. Não reconhecer o racismo como um problema sistémico das forças de segurança que deve ser combatido é um erro. É imperioso ter uma estratégia de política pública para o combater. Os polícias dignos que se solidarizam com os seus colegas abusadores por instinto de defesa corporativa fazem um péssimo serviço à sua profissão e à imagem da polícia. Deveriam ser os primeiros a condenar aqueles atos e dizer que são atos não representativos da instituição a que pertencem. Infelizmente, poucos seguem este caminho.

Não nos equivoquemos: é sempre possível existirem abusos por parte de qualquer grupo social. Mas a questão do poder é determinante. A obrigação do poder público é colocar-se ao lado do agente que tem a posição mais fraca na relação de forças. É por isso que o código de trabalho se deve colocar do lado do trabalhador contra o abuso do patrão – não significa que o trabalhador não possa incumprir nos seus direitos. Significa somente que tendo o patrão mais poder, a probabilidade de exercer abusivamente a sua ação é maior. O mesmo raciocínio se pode estender aqui: sendo a polícia o agente a quem a autoridade do Estado é conferida,a probabilidade de cometer abusos é maior e o Estado deve agir com mão férrea sobre os que abusam das suas funções. Porquê? Porque nos representam a todos nós. Num momento em que está tão na moda dizer que o “Estado falhou”, este é o melhor exemplo de um falhanço do Estado. Quando um polícia abusa da força contra um cidadão, fá-lo em nome de todos nós. E nós, como democratas, não podemos tolerar isso.

Não é por acaso que os abusos policiais tendem a a acontecer em bairros onde as pessoas são mais pobres e as minorias étnicas são mais numerosas: é que, sendo mais marginalizadas pela sociedade, têm menos visibilidade e capacidade de queixa e isso potencia o abuso. Ou alguém acha que as consequências disciplinares de abusar da força contra o filho de um branco de classe média são iguais às de violentar a filha de um empregada de limpeza negra num bairro periférico?

Nestes momentos, é também importante colocar-nos ao lado dos justos. Daqueles que dedicaram o seu percurso a prevenir o abuso e a trazer os de baixo ao de cima. A trazê-los à condição de cidadãos de plenos direitos. É por isso que quero expressar a minha admiração pública pelo Mamadou Ba, que dedica há muitos anos o melhor do seu esforço a defender os que menos têm voz na sociedade, os excluídos dos excluídos. A ação do Mamadou e do SOS Racismo tem sido inexcedível nesse combate. Poder-se-á ter excedido nas suas declarações? Porventura. Nenhuma generalização a partir de um grupo é boa. Mas esse desabafo mais imponderado não nos pode impedir de cerrarmos fileiras a seu lado na defesa de um país para todos, onde nenhum tipo de racismo, nem o explícito nem o latente, são tolerados.

Vivemos tempos estranhos. Estejamos atentos.

O euro é uma moeda estrangeira


Um país sem banco central é um país refém dos mercados financeiros e dos interesses que aí operam. Após a crise de 2008, para salvar o euro, o BCE passou a intervir nos mercados secundários. Mas compra a dívida de um país apenas se este se comportar nos termos que a sua administração entende adequados, segundo a sua interpretação dos Tratados. Ou seja, um poder que não está sujeito ao controlo democrático tutela os governos e parlamentos dos Estados-membros da zona euro. E ainda dizem que vivemos em democracia.

A "revolução dos robôs" significa o fim do trabalho?


Muito se tem escrito sobre o período de transição que vivemos no mundo do trabalho. A “revolução dos robôs” e a rápida evolução da tecnologia, tanto para uso pessoal como para aplicação em diferentes processos produtivos, têm ocupado o centro do debate público e aberto caminho para discursos alarmistas sobre a inevitável eliminação permanente de vários postos de trabalho. Alguns estudos apontam para uma redução significativa do emprego nos próximos anos: Carl Frey e Michael Osborne, investigadores da Universidade de Oxford, estimaram em 2013 que a tecnologia poderia eliminar 47% dos empregos nos EUA nas próximas duas décadas, sobretudo no setor dos serviços; mais otimista, um estudo de 2017 da McKinsey Global Institute diz-nos que a redução é de “apenas” um terço dos postos de trabalho. Será suficiente para respirar de alívio?

A preocupação com o fim iminente do trabalho e a generalização do desemprego associados ao avanço da tecnologia parece ser confirmada pelo estudo apresentado na semana passada pela CIP, no qual aponta para a possível eliminação de 1,1 milhões de postos de trabalho em Portugal até 2030 nas áreas da indústria transformadora e comércio, podendo ser “compensada pela criação de 600 mil a 1,1 milhões de novos empregos em setores como a saúde, assistência social, ciência, profissões técnicas e construção”.

Mas será que estamos perante o fim iminente do trabalho? A história do capitalismo conta-nos algo diferente – as sucessivas revoluções tecnológicas, e as consequentes mudanças profundas nas formas de produção e distribuição dos recursos, não acabaram com o trabalho necessário. Na verdade, cada mudança estrutural do modo de produzir bens ou serviços costuma ser seguida de períodos longos de expansão das economias desenvolvidas, com elevadas taxas de crescimento e níveis de emprego, como discutido no livro As Time Goes By, de Chris Freeman e Francisco Louçã. Para compreender estes processos, precisamos de olhar para a evolução histórica das economias capitalistas e identificar os seus padrões.

Um estudo recente elaborado por Mark Paul conclui que a produtividade dos EUA tem crescido a taxas médias bastante inferiores às das décadas anteriores a 1970. O mesmo acontece nas economias desenvolvidas da Europa Ocidental (incluindo Portugal) e Japão, o que sugere que após o período de expansão no pós-2º Guerra Mundial, atravessamos uma fase prolongada de menor fulgor, caracterizada por taxas de crescimento mais baixas. A recente década de estagnação limita-se a confirmar o paradoxo de Solow – os computadores aparecem em todo o lado, menos nas estatísticas da produtividade.


Sem ganhos de produtividade que impulsionem os lucros, o investimento produtivo tem sido reduzido nas últimas décadas, pelo que a ameaça de uma vaga de automação que elimine um grande número de empregos não parece provável atualmente. Não surpreende, por isso, que o capital se tenha concentrado nos mercados bolsistas e em atividades de especulação financeira que permitem ganhos de curto prazo superiores, embora acentuem a exposição da economia global a momentos de pânico no setor financeiro como o de 2007-08.

A robotização ameaça, ainda assim, substituir no futuro vários empregos que hoje são executados por pessoas. Não é difícil encontrar livros sobre o desenvolvimento impressionante da inteligência artificial nos últimos tempos e o alcance que poderá ter no mercado de trabalho. No entanto, a inovação é o traço fundamental da história do capitalismo, que nos mostra como as revoluções tecnológicas não implicam a generalização do desemprego permanente – na revolução industrial do século XIX, embora o desenvolvimento da indústria tenha feito desaparecer os artesãos, implicou simultaneamente a criação de novos empregos qualificados dentro e fora das fábricas, sendo um exemplo da forma como a tecnologia origina mudanças complexas na organização do trabalho. A evolução das sociedades capitalistas tem sido um processo de constante interação entre a inovação científica e técnica e as formas de organização da vida em comunidade.

Existem, contudo, outros aspetos a ter em conta. A desigualdade tem crescido de forma impressionante nas últimas décadas, nas quais uma parte cada vez menor da riqueza gerada é distribuída pelos trabalhadores.


Além disso, apesar do avanço tecnológico, a verdade é que atualmente cada vez mais pessoas trabalham mais horas, em empregos precários e com menores rendimentos. A tecnologia desempenha um papel importante nesta tendência, promovendo a intensificação do trabalho em condições perversas, invadindo o tempo de lazer e marcando o ritmo da vida social.

Foi isso que levou o astrofísico Stephen Hawking a afirmar, em 2016, que “se as máquinas produzirem tudo aquilo que precisamos, o resultado dependerá da distribuição dos recursos. Pode dar-se o caso de que todas as pessoas alcancem um nível de vida elevado se a riqueza gerada pelas máquinas for partilhada, ou, por outro lado, de que grande parte da população seja votada à pobreza profunda caso os proprietários das máquinas consigam fazer lobby contra a distribuição da riqueza. Até agora, a tendência parece aproximar-se da segunda hipótese, com a tecnologia a fomentar a crescente desigualdade.”

A distribuição da riqueza gerada depende, hoje como sempre, de escolhas coletivas. O desafio que enfrentamos é o de desenvolver formas de distribuir os ganhos da tecnologia e contrariar a tendência para o aumento histórico da desigualdade. Uma das formas de o fazer é através de uma reorganização do tempo de trabalho e da sua distribuição – a robotização pode contribuir para que trabalhemos menos horas semanais e diárias, como já tinha sido sugerido por Marx e, mais tarde, por Keynes. Por outro lado, o investimento na formação e qualificação das pessoas deve ser feito através da promoção pública da educação, de forma a permitir que a aprendizagem seja feita ao longo da vida, como recomenda a Organização Internacional do Trabalho. Além disso, a reconversão ambiental das economias tem potencial para gerar novos empregos sustentáveis.

Por outras palavras, embora os robôs possam substituir vários postos de trabalho, não acabarão com o emprego. Precisamos, por isso, de recuperar a promoção do pleno emprego como política fundamental nas sociedades democráticas; de outra forma, não será possível combater a crescente desigualdade e operar a redistribuição necessária da riqueza. O futuro do trabalho é o que fizermos dele.

Amanhã, em Lisboa: Ciência e ensino superior em debate


quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

A propensão para a demagogia não é boa conselheira

De acordo com os dados divulgados pela DGS na passada segunda-feira, o número de óbitos de crianças com menos de um ano de idade aumentou entre 2017 e 2018, passando de 229 para 289. Nesse dia, ainda José Rodrigues dos Santos não tinha aberto o Telejornal com um enfático «Boa noite, morrem mais crianças em Portugal. (...) Foi um aumento de 26%» e já Assunção Cristas tinha dito, a meio da tarde, que lá no CDS-PP estavam todos «muito preocupados e perplexos, porque os números da mortalidade infantil têm sido a "menina dos olhos de ouro" do nosso país (...) e nós queremos que assim continue a ser», deixando no ar a ideia de poder estar em curso uma inversão de tendência.

Ora, se em termos absolutos é importante conhecer as razões «clínicas» deste acréscimo (como aliás sugeriu o Bastonário da OM, admitindo que «o aumento da idade média da maternidade e o maior recurso a tratamentos de fertilidade» podem contribuir para a sua explicação), não é menos importante perceber o seu significado relativo, atendendo desde logo ao aumento de nascimentos nos últimos anos. De facto, ponderando o número de óbitos por mil nados-vivos, obtém-se um rácio de 3,3 em 2018, que sendo idêntico ao de 2016 (3,2) ou de 2012 (3,4) apenas se destaca pela circunstância de se ter observado um valor particularmente baixo em 2017 (2,7), que de resto explica o tal «aumento de 26%», vincado pelo jornalista José Rodrigues dos Santos.


Percebe-se que seja muito tentador fazer um «número» com o «aumento da mortalidade infantil em 2018», garimpando politicamente a mais recente variação anual. Contudo, a natureza e ritmo das dinâmicas demográficas recomendam cautela e, sobretudo, olhares mais amplos, que captem as tendências de fundo e evitem a armadilha das variações anuais.

De facto, se analisarmos a evolução, desde 2000, do rácio de óbitos de crianças com menos de um ano por mil nados-vivos, aplicando uma média móvel de cinco anos, identificamos duas tendências substancialmente distintas: até 2006/2007, a tendência de redução gradual (de 6,1 óbitos por mil nascimentos registada em 2000 para 3,6 em 2007), seguida de uma tendência para a estabilização, que se mantém até hoje, com valores a oscilar - entre subidas e descidas - entre os 3,0 e os 3,5, não permitindo relevar nenhum ano em particular.


Compreende-se que assim seja, pois quando um dado indicador começa a atingir valores muito reduzidos (recorde-se que Portugal tem uma das mais baixas taxas de mortalidade infantil à escala europeia e mundial), reduz-se a margem de descida e emerge a tendência para a estabilização de valores, mesmo subsistindo oscilações em termos anuais, que não alteram contudo o padrão mais geral. Só que isto parece não ser muito relevante para quem prefere muitas vezes optar (como o CDS-PP) pela demagogia e desinformação.

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Desacatos, imigração e direita

Atenção, cidadãos. Os órgãos de comunicação social portuguesa parecem querer arranjar rapidamente um caso semelhante aos vividos em países europeus onde a extrema-direita surge impante.

E nem é preciso ver isso num programa televisivo de informação - como foi o caso do programa SOS TVI - em que o pivot apresenta um líder convidado como Mário Machado dizendo algo como: "Dizem que a extrema-direita é xenófoba, racista e violenta. O que tem a responder a essas pessoas?" O convidado rebate a ideia, mas finaliza dizendo - sem que o pivot conteste - que, quando esteve na cadeia, quem lá estava em maioria era a raça negra e que isso se deve talvez porque "essa raça tem um problema com o crime".

Nem é preciso ir tão longe. Face aos "desacatos" - palavra muito repetida pelos jornalistas que estão a cobrir o que se passou nos últimos dias no bairro Jamaica, no centro da cidade de Lisboa, e esta noite em Odivelas - a SIC passou uma peça com excertos de uma entrevista ao presidente da Cáritas em que ele frisava que era preciso afastar este ambiente de criação de uma insegurança que levava a um esforço securitário porque, ao longo da História, se provou que não respondeu aos problemas. A nota de rodapé frisava: "Presidente da Cáritas diz que casos acabam por criar relutância à imigração".

Ao arrepio desses cuidados e aproveitando os "desacatos", a SIC Notícias decidiu escolher para tema de debate da manhã:
"Estamos ou não num momento particular de tensão entre as populações mais desfavorecidas e as forças de segurança? Olhamos também para a investigação SIC, revelada ontem, sobre a falta de meios na PSP e na GNR. Parece-lhe que fica em causa a capacidade de resposta das forças de segurança? Que medidas são necessárias para fazer face às necessidades tanto da PSP como da GNR?"
A primeira senhora que falou no fórum acabou por dizer: "Eu não era racista, mas agora sou. (...) Queremos uma polícia com a devida segurança". A pivot rematou no final: "Esta senhora quer se sentir segura e reclama mais meios para a polícia". Um condutor de meios de Loures disse: "O racismo não passa de um mito que estes senhores utilizam para se desculpar, é hábito neles usarem - julgam que são donos e senhores destes bairros e não respeitam ninguém, nem nada nem ninguém e quando as forças da ordem são chamadas por norma a intervir nestes bairros, facilmente acusam as autoridades de xonofobia, racismo, perseguição. Infelizmente, não passam de uns cobardes, escondem-se atrás de umas associações, pagas e ajudadas pelos contribuintes." A pivot: "É a opinião do António... a falar aqui dos problemas de racismo que existem no país". A palavra passa para a Fátima em Genebra, que é porteira. A sua opinião é contra os políticos que "desrespeitam a polícia que combate os bandidos". Outro cidadão disse: "Esses senhores da raça negra é que são racistas. Cometem o crime e depois culpam a polícia de certas situações". A pivot: "Vivemos de facto tempos específicos. Estamos num momento particular da discussão... Mas os números dizem que Portugal é um país seguro. Como se justifica? (...) O racismo é o principal problema da polícia?"

Mas o porta-voz da PSP, convidado e presente em estúdio, não se demarcou suficientemente.

De mãos atadas


Em linha com a esquerda que não desiste, sectores do Partido Socialista entraram em ruptura com a política expressa nos anos noventa por um antigo dirigente deste partido, que declarava abrir uma garrafa de champanhe cada vez que privatizava uma empresa. Agora, perante a tragédia, exige-se sensatez, ou seja, a nacionalização dos CTT.

Surgem logo vozes dentro do PS a dizer que é complicado, que Bruxelas tem de autorizar, que “estamos de mãos atadas”. Eu sei bem que o eixo Bruxelas-Frankfurt é um obstáculo de monta a políticas que mudem o fundamental em áreas fundamentais e é por isso que considero que a esquerda tem de ser eurocéptica.

Entretanto, quero só notar que o “estamos de mãos atadas” é uma boa metáfora para a soberania furtada, para a impotência democrática, que por todo o continente destrói a social-democracia.

Para a questão da habitação

O Público divulga um estudo, cujos resultados serão apresentados hoje na Fundação Calouste Gulbenkian e que sairá em breve num livro coordenado por Ana Cordeiro Santos com o título, inspirado num clássico da economia política, A Nova Questão da Habitação em Portugal:

“Estado transformou habitação num activo financeiro, alerta estudo (…) ‘A questão da habitação de hoje remete para a economia política de um sector cada nvez mais dominado pelo capital financeiro global, mas com impactos em territórios precisos, produzindo crescentes desigualdades socio-territoriais’, lê-se na introdução da obra (…) ‘O hiato entre os rendimentos e os preços e as rendas de casa, que empurra a população para as periferias, põe cada vez mais em causa a adequação do modelo privado para este sistema de provisão’, concluiu Ana Santos, que defende que só ‘um multidimensional processo de desfi - nanceirização’ poderá contribuir para resolver as velhas e novas questões de habitação em Portugal. Ou seja, ‘uma estratégia radicalmente divergente da preconizada na Nova Geração de Políticas de Habitação’. Este pacote de medidas que já passou no crivo do Parlamento defende a promoção de habitação a preços acessíveis, recorrendo a incentivos fiscais e a fundos financeiros estruturados para aumentar a oferta de habitação.”

sábado, 19 de janeiro de 2019

Dia 22, em Lisboa: A nova questão da habitação

«A habitação, intrínseca e irremediavelmente ligada a um território concreto, é crescentemente transformada num ativo financeiro transacionável, permitindo que agentes de uma qualquer parte extraiam as rendas fundiárias associadas, não necessitando de manter com o território e os seus habitantes qualquer tipo de ligação relacional. Neste processo, há territórios que assumem um papel decisivo – em geral as metrópoles onde se concentram as oportunidades e onde aflui a população que abandona outros espaço, numa perigosa lógica assimétrica do tipo centro-periferia. Noutros, onde a provisão de habitação se consolidou e é hoje um ativo autónomos das famílias, as condições socioeconómicas não são de afluência mas de perda. Qual deverá ser a atitude das política públicas? Contribuir para transformar radical e irremediavelmente o território, produzindo novos espaços urbanos inabitados ao mesmo tempo que a habitação condigna se torna num bem cada vez menos ao alcance da população? Ou dar atenção ao território e ao que ele ainda oferece em matéria de habitação que não inferniza a vida das pessoas, desenvolvendo esses espaços e lutando contra a amplificação das desigualdades sócio-territoriais?».

Realiza-se na próxima terça-feira, na Fundação Calouste Gulbenkian (Sala 1), a partir das 17h00, a sessão de apresentação do 4º Relatório do Observatório sobre Crises e Alternativas, intitulado «A nova questão da habitação em Portugal: uma abordagem de economia política» e produzido no âmbito do projeto «FINHABIT - Viver em Tempos Financeiros: Habitação e Produção de Espaço no Portugal Democrático». Participam na sessão de apresentação do relatório José Reis, Ana Cordeiro Santos e Jorge Malheiros, estando os comentários a cargo de Ana Drago e Helena Roseta. Estão todos convidados, apareçam.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Demagogia e desinformação como programa político

Inspirando-se num desafio que circula no facebook, em que membros dessa rede convidam outros membros a postar uma foto de 2009 e uma atual, o CDS/PP decidiu difundir a gracinha aqui ao lado, esperando certamente ser levado a sério.

Se a opção, tentativamente subliminar, de colocar lado a lado as fotos de José Sócrates e António Costa nem merece comentário, já a ideia de que o aumento da arrecadação de impostos (de 30,5 mil milhões em 2009 para 46,2 mil milhões em 2019) quer dizer que «o Estado está a ficar com mais» e «as pessoas a ficarem com menos», não deve passar em claro, por mais que os «spinners» do CDS-PP pretendam convencer os eleitores de que as coisas são mesmo assim. Isto é, que o Estado arrecada hoje mais impostos por estar a tirar dinheiro às pessoas, silenciando-se convenientemente o facto de a economia estar a criar mais riqueza e, por isso, a permitir que a receita fiscal aumente em valores absolutos.

Ora, sucede que se analisarmos a relação entre a arrecadação de impostos e a evolução do PIB - acrescentando para esse efeito o ano intermédio (2014) do período considerado pelo CDS-PP, em que o executivo de direita estava em funções - verificamos que a crítica do «Estado que fica com mais» e das «pessoas que ficam com menos» se aplica de modo expressivo à governação PAF, que o CDS-PP integrou. De facto, o peso relativo dos impostos no PIB passa de 17,4% em 2009 para 22,0% em 2014, com a agravante de - graças à austeridade fervorosamente aplicada entre 2011 e 2015 - a criação de riqueza (PIB) ter caído de cerca de 176 mil milhões de euros para 169 mil milhões de euros nesse período (2009 a 2014).

Mas mais interessante ainda é verificar que o atual governo e a maioria parlamentar de esquerda que o suporta conseguiram manter o nível de arrecadação fiscal registado em 2014 (22,1% do PIB), a par de um crescimento económico face a esse ano (+40,6 mil milhões de euros, que traduzem um aumento na ordem dos 24%). Isto é, a economia cresceu a um ritmo que permitiu o aumento da receita fiscal em termos absolutos, mantendo-se contudo o seu peso relativo face ao PIB.

Sucede porém que a demagogia e a desinformação não ficam por aqui. No plano ideológico e programático, que diacho significará, afinal, a ideia de que quando o Estado «fica com mais» as pessoas «ficam com menos»? Será o Estado uma espécie de sorvedouro, que escoa as receitas dos impostos para o fundo do mar, sem que ninguém as veja ou delas beneficie? Serão os serviços públicos de educação, saúde e proteção social, as forças de segurança e a justiça, as infraestruturas ou os transportes públicos financiados com dinheiro que cai do céu? E em que se traduzirá afinal, concretamente, o clamor do CDS-PP por mais investimento e contra a asfixia financeira dos serviços públicos? Será que tal não passa de uma espécie de oração, para que chova mais do tal dinheiro que cai do céu?

Sabemos bem que é o rancor ao Estado (com indiferença pelo seu papel e eficácia na redistribuição da riqueza e combate às desigualdades), aliado à defesa dos interesses que representa, que leva a direita a deitar mão à dicotomia entre «Estado» e «economia», numa lógica de antagonismo (como se o Estado não fosse, também ele, economia). Mas devia haver mínimos para a demagogia e o despudor com que o CDS-PP atira areia para os olhos das pessoas.

Lutas em tempos financeiros

Os regimes opressivos escondem as desigualdades económicas com pão e circo. Os EUA fazem-no com uma mera ideia: não há classes. Isto explica a auto-imagem nacional enraizada da mobilidade social, que os dados impertinentes tendem a refutar. Uma elite não precisa de se definir pelo sotaque ou pelo sangue para ser tão ossificada como a aristocracia do Velho Mundo. 

 Um dos principais comentadores políticos do Financial Times recomenda a luta de classes como alternativa à infinita fragmentação identitária norte-americana, vejam lá onde isto chegou. Lembrei-me de uma uma velha intuição da economia política radical: as discriminações raciais ou de género, por exemplo, são uma forma de o capitalismo dividir as classes subalternas para reinar. 

Na realidade, as lutas de classes nunca cessaram nos EUA. Afinal de contas, o bilionário Warren Buffett explicou as coisas de forma clara: “a luta de classes existe e a minha classe está a ganhá-la”. E daí as desigualdades económicas cavadas, só com precedentes nos anos 20.

Como Sanders e outros socialistas norte-americanos sabem, a luta dos de baixo contra a elite económica é a melhor forma de criar um “nós” maioritário contra um “eles” minoritário que pode congregar. Como dizia Ernesto Laclau nos anos setenta, o socialismo é a forma mais potente e acabada de populismo.

E eu conheço um velho país, ou aquilo a que por hábito ainda chamamos de país, brutalmente desigual e onde as classes e as suas lutas, o povo e os seus combates, também não existem…

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Dívida pública: um problema em hibernação


Os defensores da reestruturação da dívida têm estado em silêncio. Para isso contribuiu a boa conjuntura externa e a estratégia de Mário Centeno – reposição de rendimentos, mas contenção drástica de outras despesas correntes e do investimento público. Ou seja, mão-de-ferro sobre o orçamento para ter saldos primários positivos. A que se juntou um crescimento do PIB puxado pelo turismo e a bolha do imobiliário (influxo de capitais especulativos), mais a retoma do consumo à medida que se instalou a confiança no voltar da página da austeridade. A benevolência de Bruxelas para com a nova estratégia foi decisiva porque limpou do horizonte as nuvens negras que criavam incerteza quanto ao futuro. Aceite como “caso de sucesso”, Portugal viu o juro médio para o conjunto da dívida baixar substancialmente, ficando abaixo da taxa de crescimento nominal do produto. Tudo favorável à redução do peso da dívida pública.

Porém, se a conjuntura mudar, tudo o que agora corre bem fica posto em causa. O crescente peso das exportações no total da procura tornou a economia portuguesa mais sensível à conjuntura internacional. Nesse caso, o governo em funções verá os estabilizadores automáticos (despesa social, receita fiscal) produzirem novamente um défice primário. A CE, os mercados financeiros e as agências de notação recomeçarão a sua ladainha de que o país não fez as reformas estruturais de que precisava e que, por isso, tem de cortar na despesa pública para dar confiança aos mercados. E cortará porque Portugal não é a Itália nem a França. E subirão as taxas de juro que, novamente, serão superiores à taxa de variação do produto. O peso da dívida voltará a subir, como subirá o clamor dos jornalistas de economia dizendo que a geringonça foi afinal um fracasso.

Ou seja, o problema da sustentabilidade da dívida não desapareceu; ficou em hibernação até à próxima crise. Em boa verdade, enquanto durar a zona euro – e não haverá em Portugal governo que questione a zona euro, evidentemente – o país está condenado a uma trajectória de períodos de crescimento medíocre nos intervalos das crises financeiras recorrentes. Passado este parêntesis de descompressão, voltaremos à trajectória de longo prazo: continuada degradação dos serviços públicos, crescente polarização social, e a raiva surda de boa parte dos de baixo a lavrar no subterrâneo social, pronta a lançar-se nos braços de um demagogo que seja competente para lhe dar voz e ganhar eleições.

Eu não partilho da ideia de que uma nova geringonça nos tornará imunes à ascensão da extrema-direita. Para mim, a sobrevivência da zona euro, e a nossa fidelidade canina ao ‘projecto europeu’, são a maior garantia de que lá chegaremos, com atraso como é costume.

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

António Fonseca Ferreira


Morreu António Fonseca Ferreira. Para quem nos anos noventa começasse a ter interesse pela questão da habitação em Portugal, procurando relacionar a evolução das políticas com as formas de produção e ocupação de alojamentos, as transformações económicas e sociais e o processo de acumulação capitalista, encontrava em «Por uma nova política de habitação» (1987) uma porta privilegiada de entrada para conhecer o setor. Num tempo em que era ainda escassa a produção científica sobre a questão do alojamento em Portugal (num reflexo da crónica subalternização da habitação face a políticas como as de educação e saúde), a obra mapeava pistas de pesquisa e integrava, tanto de um ponto de vista temporal como analítico, referências em regra dispersas e fragmentadas. Por tudo isto, talvez não seja exagero considerar que se trata do primeiro ensaio de economia política da habitação escrito em Portugal.

Com a criação, em meados dos anos oitenta, da revista «Sociedade e Território», de que é fundador, Fonseca Ferreira contribuiria para congregar reflexões diversas sobre as questões do alojamento, urbanismo e política de cidades ou os processos de planeamento local e regional, aliando a produção de conhecimento a um intenso ativismo social e político. Engenheiro civil de formação, António Fonseca Ferreira exerceu funções de docência (ISCTE e Universidade Atlântica) e, entre outras, de Presidente da Comissão de Coordenação da Região de Lisboa e Vale do Tejo (1998 a 2009), Director Municipal e Assessor do Presidente da Câmara Municipal de Lisboa (Jorge Sampaio) e Director de Serviços no Fundo de Fomento da Habitação.

Em 1993, Fonseca Ferreira coordenou a elaboração do «Livro Branco sobre a Política de Habitação em Portugal», apresentado e debatido no Encontro Nacional de Habitação, que contribuiria - no contexto de uma das «Presidências Abertas» de Mário Soares - para obrigar o executivo de Cavaco Silva a responder às carências habitacionais persistentes nas áreas metropolitanas, descompondo assim a narrativa governamental que tentava projetar Portugal como um «oásis» situado «no pelotão da frente» europeu.

Nacionalizar


Na semana passada ficámos a saber que, se depender dos CTT, 48 municípios ficarão sem estações de correio. A pergunta não desaparece mesmo: como se destrói um Estado nacional, uma comunidade política com instituições inclusivas?

É por estas e por muitas outras que, para lá do “vírus do proteccionismo”, o “vírus do nacionalismo” também se espalha: nacionalizar é preciso, afinal de contas. Se o primeiro vírus atingiu este blogue, contrário à globalização neoliberal, desde o início, o segundo vírus, na sua versão cívica e democrática, o melhor contra-fogo às outras, atingiu o que vou escrevendo por  aqui e por ali  mais ou menos a partir de 2013:

Está prometida a privatização dos CTT – Correios de Portugal, entretanto já amputados das suas “lojas” menos rentáveis. Uma das instituições públicas seculares, que deu densidade ao território nacional, que garantiu com segurança o acesso a um bem social fundamental, que em suma criou comunidade será entregue a uma empresa privada, provavelmente estrangeira, que cuidará de outros interesses que não os que estão associados a uma necessidade dos cidadãos que aqui vivem. Uma comunidade nacional não é só um produto, maleável e mutável, socialmente imaginado, ainda que este imaginar seja decisivo, bem como a luta pela sua hegemonia. Uma comunidade nacional ganha densidade material através de instituições como os correios, a escola pública, o serviço nacional de saúde ou a segurança social e é letalmente ameaçada pela destruição do que é de todos, dos serviços públicos universais que são um dos momentos em que se conjuga, com validade, uma politicamente poderosa primeira pessoa do plural, um “nós” com implicações igualitárias. O socialismo democrático sempre dependeu desta conjugação, o que de resto não passou despercebido, por exemplo, a Friedrich Hayek, um dos seus adversários e defensor de um regime pós-nacional, de tipo federal, como melhor garantia de uma democracia limitada e de fraquíssimo alcance redistributivo, até porque necessariamente desprovida da noção de “comunidade de destino”.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Pela soberania


Face à continuada ambiguidade de Jean-Luc Mélenchon e o seu partido La France Insoumise relativamente à "questão europeia", alguns altos quadros abandonaram o partido. Entretanto, lançaram um manifesto e começaram a fazer reuniões tendo em vista a constituição de uma alternativa de esquerda soberanista. No sítio deste movimento na internet - La Sociale - foi publicada uma nota de esclarecimento sobre o conceito de soberania. Segue abaixo a minha tradução. Pode ser que isto ajude a esquerda portuguesa que tem andado desorientada a este respeito a evoluir na boa direcção. Ou, ficando tudo na mesma, motive quem já não tem paciência para esperar mais.

"Em primeiro lugar, recordemos que é soberano aquele acima do qual nada mais há. O bem soberano (summum bonum) é o bem acima do qual não há outro bem - normalmente, para os crentes, é Deus. Um poder soberano é um poder que não está subordinado a nenhum outro poder. Tipicamente, nas concepções modernas da política, o poder soberano é o poder que vem do "contrato social", deste pacto primeiro considerado o acto fundador de todo o poder político. Isto não significa que o titular de certas funções de soberania tenha todos os poderes, ou que todo o poder esteja concentrado numa única instituição. Os republicanos reivindicam a separação de poderes e recusam-se a dar todos os poderes à maioria apenas por ser a maioria, porque a maioria é apenas uma parte da nação. Mas, para os republicanos, como para todos os pensadores políticos modernos, não há liberdade imaginável para o cidadão se ele não for um cidadão de uma república livre, ou seja, uma república que não depende de outra instância estatal. Os que exigem o poder para o povo exigem que esse poder do povo seja um poder soberano. Pois se não é um poder soberano, então simplesmente não há poder do povo e, por conseguinte, não há poder dos cidadãos sem a liberdade de dizerem sim aos comandos do poder supremo.

A noção de soberania política é o resultado histórico de todo um processo ligado à constituição das grandes nações europeias na luta contra o papado e o império. A noção de soberania é anterior à democracia, mas é também o terreno fértil sobre o qual ela poderá desenvolver-se. É por esta razão que a declaração de 1789 afirma: “O princípio de toda Soberania reside essencialmente na Nação. Nenhum órgão, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que não emane expressamente dela.” Uma certa autoridade só pode ser exercida por um órgão (Parlamento) ou um indivíduo (Rei) porque esse órgão ou indivíduo está autorizado pela Nação a exercer essa autoridade. Isto significa muito precisamente que o poder supremo pertence à nação e que ninguém o pode assumir no todo ou em parte. A república nada mais é do que isso: o legislador soberano é a Nação, o povo instituído agindo directamente, ou concedendo um mandato aos eleitos para agirem. Recusar o princípio da soberania é simplesmente recusar a república e a democracia. A crítica à soberania (e aos soberanistas) é, portanto, ainda que de forma disfarçada, uma crítica à democracia e ao poder do povo. É aliás por esta razão que os adversários da soberania são frequentemente os grandes críticos do "populismo". Estes "demófobos" odeiam o povo e desprezam a nação.

Deste ponto de vista, a UE tem um significado preciso: organizar a supressão da soberania das nações, que, uma vez colocadas sob tutela, não terão outra alternativa senão aplicar a política decidida pelos representantes do capital, os dirigentes e funcionários da UE. Vimo-lo de forma brutal na Grécia. Foi repetido no conflito entre a UE e o Governo italiano de Conte. Trata-se sempre de mostrar que as nações não são soberanas, que a vontade dos povos não pode fazer jurisprudência e que só os tratados europeus, isto é, as regras estabelecidas pelos areópagos da tecnoburocracia europeísta, podem ser impostos.

A luta contra o capitalismo, a luta para pôr fim à insaciável ganância do capital, exige precisamente que as nações recuperem a sua soberania. Ninguém pode pretender satisfazer as exigências das classes trabalhadoras sem quebrar a disciplina férrea dos tratados europeus. Enquanto os famosos "critérios de Maastricht" (estabelecidos por Mitterrand!) tiverem força de lei, nenhuma política séria de justiça fiscal é possível. Como podemos evitar a evasão fiscal, a fuga de capitais e a procura do mais baixo nível social se não controlamos, antes de mais, as nossas próprias sociedades?

Tudo isto é tão óbvio que custa a compreender os discursos dos euroinómanos patenteados (de Moscovici a Macron) que dizem o que os seus patrocinadores pedem, mas sobretudo os discursos das pessoas de "esquerda", "realmente esquerda", "esquerda toda", etc., contra a soberania e o soberanismo, quando este se limita a reivindicar a soberania nacional. Esses terríveis revolucionários querem submeter sua revolução à boa vontade de uma autoridade superior à da nação soberana? Só é possível fazer a revolução aqui na França se obtivermos a autorização prévia das classes dominantes dos países vizinhos? Como sempre, esses terríveis revolucionários opõem-se à soberania nacional, e a este simples senso comum que ela pressupõe, em nome de princípios mal orientados que não têm outra função que não seja justificar seu alinhamento vergonhoso com a ordem existente."

Dia 21, em Lisboa: A Lei de Bases e o futuro do SNS

No âmbito do debate em torno da revisão da Lei de Bases da Saúde, realiza-se no próximo dia 21 de janeiro, em Lisboa, na Sala 1 da Fundação Calouste Gulbekian, a partir das 18h00, uma conferência sobre «O Futuro do SNS - Lei de Bases».

Na sessão de abertura estará presente a ministra da Saúde, Marta Temido, seguindo-se intervenções sobre a questão do «Financiamento em saúde» (por Ana Sofia Ferreira), «O papel do Estado na capacitação dos cidadãos e dos serviços de saúde» (por Isabel Loureiro), «O Hospital Público entre a complexidade e a pós-verdade» (por João Oliveira) e a «Lei de Bases da Saúde - alçapões e lucernas» (por Teresa Gago). A iniciativa encerra com um período de debate, moderado por Jaime Mendes.

Promovem esta conferência, entre outras organizações, a Associação de Médicos pelo Direito à Saúde, a Plataforma Cascais - Movimento Cívico, o Projeto SOS Amianto, a Fundação Francisco Pulido Valente, o Projeto Mais Participação Melhor Saúde e a Associação de Técnicos de Engenharia Hospitalar Portugueses. Estão todos convidados, apareçam.

sábado, 12 de janeiro de 2019

A «narrativa do caos» e o acesso à saúde

Na apresentação da proposta de Lei de Bases da Saúde do PSD - e para defender nas entrelinhas (ou mesmo fora delas) - o reforço da contratualização do Estado com o setor privado, Ricardo Batista Leite considerou não ser aceitável a situação atual, em que, segundo o deputado, «temos o governo a vangloriar-se com um aumento do número de idas aos serviços de urgência dos hospitais», quando esse aumento «é um reflexo de que as pessoas estão mais doentes e não têm as respostas de que precisariam por exemplo ao nível dos cuidados de saúde primários».

Percebe-se a ideia: segundo a direita, o «caos» em que o governo mergulhou o SNS é de tal ordem, que a insuficiência e a degradação da capacidade de resposta dos Centros de Saúde e USF está a entupir as unidades hospitalares, tornando o sistema disfuncional e evidenciando a necessidade de contratualizar, numa lógica de proximidade, o equipamento de saúde que estiver mais perto, seja público ou privado.

Sucede porém que é no tempo do governo PSD/CDS-PP que este retrato, traçado por Batista Leite, tem adesão à realidade. De facto, é na rede de proximidade (centros de saúde e USF) que se regista, entre 2011 e 2015, a maior quebra no número de consultas (-7,0%), em contraste com o seu aumento ao nível das unidades hospitalares (+7,8%), num quadro de redução global da resposta (-3,2%). Pelo contrário, é com o atual governo, suportado no parlamento por uma maioria de esquerda, que não só aumenta o total de consultas (+2.1%), como esse aumento se regista tanto ao nível dos Cuidados de Saúde Primários (CSP) como à escala das unidades hospitalares.


Deve aliás recordar-se que foi o com o atual governo e com a atual maioria de esquerda que se reduziram montantes e se alargaram as isenções de pagamento de taxas moderadoras, isentando por exemplo os encaminhamentos efetuados na sequência de contacto através da Saúde 24, contribuindo para uma maior racionalidade no sistema e redução da pressão sobre as unidades de CSP (e, numa segunda linha, das urgências hospitalares). Contudo, e apesar dos problemas que persistem, esta melhoria no acesso e funcionamento do SNS não serve, naturalmente, os interesses de uma direita ávida pelo aumento da «cooperação» com o setor privado, a expensas do Estado. Como bem assinalou Jerónimo de Sousa no debate de ontem na AR, a direita «tem desenvolvido uma campanha contra o SNS que visa, em última análise, a sua destruição. São horas de noticiário, páginas de jornais, como se os problemas do SNS fossem uma fatalidade. Como se não estivessem em causa eles próprios, como grandes responsáveis pela situação criada».

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

O governo que cuide da economia e o défice cuidará de si mesmo


O vídeo de hoje dá continuidade ao anterior ao aprofundar a relação do défice público com a economia do país. Trata-se de divulgar, em linguagem acessível a todos, o conceito de “finanças públicas funcionais”, defendido por Abba Lerner, que está banido dos cursos de Economia:
Uma das formas mais eficazes de dissipar a mais grave de todas as confusões semânticas consiste em salientar que a dívida privada difere da dívida pública por ser externa... Uma variante da falsa analogia é a declaração de que a dívida pública representa um encargo injusto para os nossos filhos, que são assim obrigados a pagar as nossas extravagâncias. Muito poucos economistas precisam de ser recordados de que, se os nossos filhos ou netos pagarem parte da dívida nacional, esses pagamentos serão feitos aos nossos filhos ou netos e a mais ninguém. Tomando-os no seu conjunto, eles não ficarão mais pobres fazendo os pagamentos do que mais ricos ao recebê-los. [Abba Lerner, The Burden of the National Debt, 1948]
Esta citação de Lerner encontra-se num texto do economista e académico sueco Lars Syll, aqui. Para quem não puder ler o artigo, deixo a tradução deste parágrafo:
Tanto para Keynes como para Lerner, era evidente que o Estado tinha a capacidade de promover o pleno emprego e um nível de preços estável - e que deveria usar os seus poderes para o fazer. Se isso significava que tinha de contrair uma dívida e (mais ou menos temporariamente) desequilibrar o seu orçamento - que assim fosse! A dívida pública não é boa nem má. É um meio para alcançar dois objectivos macroeconómicos abrangentes - o pleno emprego e a estabilidade dos preços. O que é sagrado não é ter um orçamento equilibrado ou reduzir a dívida pública por si, independentemente dos efeitos sobre os objectivos macroeconómicos. Se "finanças sãs", austeridade e orçamentos equilibrados significam aumento do desemprego e preços desestabilizadores, então têm que ser abandonados.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

A pergunta que não desaparece


Numa semana em que se anunciaram grandes investimentos, cuja lógica está bem exposta no editorial do AbrilAbril - por trás da propaganda a submissão - ficámos a saber que a multinacional Vinci, que controla a ANA, já recuperou, em cinco anos, um quinto do que pagou pela ruinosa, para o Estado português, privatização dos aeroportos nacionais.

Perante este blindado capitalismo predador e perante a degradação dos serviços públicos em muitas áreas, fruto de anos de compressão do investimento público imposta por regras europeias igualmente blindadas, é preciso não esquecer a pergunta em que aqui temos insistido: como se destrói um velho Estado?

Em jeito de nota de rodapé, peço-vos só que reparem no facilitador na foto da cerimónia Governo-Vinci, e isto para usar o termo apropriado para a advocacia dos grandes negócios, que já conseguiu a proeza de estar em vários lados ao mesmo tempo, estando sempre no mesmo lado, na realidade, e que, já agora, tem a distinção de ter o seu nome inscrito num dos principais símbolos do porno-riquismo da capital. Toda uma economia política encarnada.

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Para que tudo venha ao de cima

Em Paris, a 15 de Dezembro de 2018, três «coletes amarelos» revezam-se, na praça da Ópera, para ler uma alocução dirigida «ao povo francês e ao presidente da República, Emmanuel Macron». O texto anuncia de imediato: «Este movimento não pertence a ninguém nem a toda a gente. Ele é a expressão de um povo que há quarenta anos se vê desapossado de tudo o que lhe permitiria acreditar no seu futuro e na sua grandeza». Em menos de um mês, a cólera inspirada por um imposto sobre os combustíveis conduziu, assim, a um diagnóstico geral, ao mesmo tempo social e democrático: os movimentos que agregam populações pouco organizadas favorecem a sua politização acelerada. A tal ponto que o «povo» se descobre «desapossado do seu futuro» um ano e meio depois de ter colocado à sua cabeça um homem que se orgulha de ter varrido os dois partidos que, justamente desde há quarenta anos, se vinham sucedendo no governo. E a seguir o que dirigia a caravana tropeçou. Como, antes deles, outros prodígios da sua laia, também eles jovens, sorridentes, modernos: Laurent Fabius, Tony Blair e Matteo Renzi, por exemplo. Para a burguesia liberal, a desilusão é imensa.

Excerto do artigo de Serge Halimi que abre o dossiê do Le Monde diplomatique - edição portuguesa de Janeiro sobre mais uma sublevação francesa. Realmente, o que é desilusão para uns, é esperança para outros.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Ele não


«Manuel Luís Goucha processou o "Cinco para a meia-noite", um programa da RTP, porque num sketch humorístico o chamaram de "apresentadora". Agora, ao entrevistar um criminoso, sem informar quem era a quem estava a ver, veio dizer que a ideologia do politicamente correto era muito perigosa. Não é o único, há muita gente que gosta do mundo quando o mundo protege da discriminação, mas só quando o protege a si. E acha que gosta do politicamente correto quando é ofendido, mas não é sensível a esse sentimento, do politicamente correto, quando os ofendidos são outros. Já não falo de mim, que fui há uns anos ao lado da minha rua abordado por Mário Machado, ameaçando-me de morte, dizendo que me cortava a cabeça. (...) Eu provavelmente serei, da lista que vou dizer, o menos ofendido de todos.
Acho que a família de Alcino Monteiro, que foi morto no Bairro Alto na situação em que ele esteve envolvido, mas acima de tudo as cinco pessoas que espancou nessa noite, no que diz ter sido "um erro judicial", são capazes de estar um pouco ofendidas. Acho que a vítima que foi sequestrada, agredida ao soco e ao pontapé, amarrada - estou a fazer a descrição como vem no processo - pendurada numa cruz, enfiada numa banheira, queimada com cera de velas acesas, cortada em várias partes do corpo com um serrote (incluindo, se não me engano, no pénis), e torturada durante três horas e meia por Mário Machado e mais alguns, é capaz de ter ficado também um bocadinho ofendida. Como acho que ficou ofendido o outro sequestrado, dos vários que teve, que foi espancado e abandonado, em Monsanto, por Mário Machado. Como é capaz de ter ficado também ofendida aquela senhora que teria ajudado a Justiça a apanhá-lo, quando ele escreveu uma carta que dizia "Vou sair em liberdade em breve e juro pelos meus filhos que és a pessoa que mais odeio e vão-te matar à frente dos teus filhos. Juro, sua informadora de merda, que se não entregares 30 mil euros ao Joãozinho, vais pelo cano". Ou talvez a Procuradora Cândida Vilar, que foi ameaçada dentro da prisão, onde aliás Mário Machado espancou uma pessoa (o homem esteve sempre em reabilitação, sempre a ser reabilitado pela sociedade), quando ele escreveu uma carta pública, aberta (acho que nunca ninguém se tinha atrevido a tanto), a dizer aos nacionalistas para não se esquecerem do nome de Cândida Vilar para agir (e também foi condenado por isso).
Para que as pessoas possam ficar com o quadro completo sobre quem é esta pessoa "com opiniões polémicas" e que "tem direito à sua liberdade de expressão", vou ler o excerto de um texto que lhe é atribuído, a Mário Machado, e que está em vários sites como sendo dele, o que até hoje nunca desmentiu. (...) O texto será de 2006 ou 2007, em que diz: "O ódio é um sentimento tão nobre quanto o amor. Faz parte da nossa natureza e tudo o que vai contra a natureza é que tem que ser combatido. Vejo os nossos políticos e a comunicação social, por exemplo, mais preocupados em combater o ódio que em censurar os paneleiros, os pedófilos e afins. Adoro a confrontação física. Agarrar na escumalha e dar-lhes pontapés na cabeça, socos, sentir a adrenalina a disparar, a emoção ao fugir à polícia. Um dos anos mais felizes que tive foi o ano em que esfaqueei onze pessoas - recorde absoluto - e o sentir da faca a entrar, o inimigo a desfalecer, o seu olhar de pânico. Tudo isto em conjunto dá-me vida, recarrega-me as baterias. Adoro bater em pessoas". Este texto é-lhe atribuído até hoje, desde há bastantes anos, e ele nunca o desmentiu. Não é politicamente correto nem perigoso. O que é perigoso é ignorantes, na televisão, a baterem-se por audiências e a destruir a nossa democracia. Essas pessoas é que são perigosas.
» (Daniel Oliveira, no Eixo do Mal).

Na linha da análise no Eixo do Mal (que vale a pena ver na íntegra), é também de reter o editorial de Manuel Carvalho no Público de ontem (com o sugestivo título «Liberdade de expressão com chancela criminal»), onde se refere que «o problema principal da entrevista de Mário Machado à TVI é o próprio Mário Machado e o que Mário Machado pensa, o que acredita ou o que propõe é apenas um arrazoado de ideias daninhas que cabem nos limites da estupidez humana. É por isso que o que merece ser discutido em primeiro lugar nessa entrevista é o facto de alguém se ter lembrado de um homem com aquele passado criminal para dizer o que quer que seja às pessoas deste país. Se a liberdade de expressão existe para podermos ouvir o que nos incomoda ou ofende, como muito bem lembrou José Pacheco Pereira na edição de ontem, a liberdade de escolha de uma televisão existe para separar opiniões qualificadas de bestialidades, para destrinçar as virtudes republicanas dos comportamentos criminosos, para distinguir pessoas de bem de arruaceiros. (...) Ao ceder os seus ecrãs a Mário Machado, a TVI ultrapassou o risco vermelho que nos mostra o limite da tolerância em relação ao pluralismo e à liberdade de opiniões. Mário Machado tem direito à saudade do salazarismo e, desde que se abstenha de fazer a apologia da violência ou da violação da lei, pode defender a sua sinistra opinião. Mas uma televisão que professa a responsabilidade de informar e os princípios que dão forma a uma sociedade aberta e democrática não lhe deve dar palco a pretexto da liberdade de expressão para que possa amplificar o seu reles exemplo. E muito menos sem ter o cuidado de expor com toda a crueza o género de pessoa que é, o tipo de crimes que o levou à cadeia e o género de ideário extremista que propõe.»