sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Caminhemos


Foi a anulação de um projeto de transformação social profunda que foi enunciada nas recentes acusações de moralismo feitas à esquerda. A esta estratégia de moderação para manter o status quo a esquerda responde com a radicalidade das suas escolhas. Corremos o risco de sermos avaliados pela coerência dos nossos comportamentos face a essas escolhas? Preferimos esse risco à quietude fria dos cínicos perante as imoralidades da ordem social e económica. 

Excerto do artigo de José Manuel Pureza, a melhor resposta de um dirigente bloquista aos pretensamente amorais, aos cínicos de esquerda e de direita, que gostariam que este partido “crescesse” e aparecesse como uma espécie de CDS da esquerda, mas em versão ideologicamente ainda mais degradada, já que o contexto é estruturalmente fixado pelas determinação neoliberais europeias. Estes são aliás os mesmos que gostariam que os comunistas fossem morrer longe, indicando como as coisas estão ligadas na sabedoria convencional.

Entretanto, começa hoje o fórum socialismo. Amanhã, serei orador numa sessão intitulada Entre Centeno e Varoufakis. Aí desenvolverei temas de uma economia política da integração também crítica dos programas encarnados por estes dois economistas, embora no caso de Varoufakis se partilhe uma parte substancial do diagnóstico.

Aproveitarei o local para explorar algumas pistas interessantes, ainda que breves, que constam da moção da actual maioria no BE à próxima convenção deste partido: a valorização da soberania democrática de base nacional, a constatação da tradução do desenvolvimento económico desigual no campo político, tornando qualquer emergência de um sujeito político europeu numa quimera, e a necessidade de ter um plano de saída do euro, no mínimo como meio para fazer face às chantagens euro-liberais.

Desta forma, os bloquistas continuam a convergir com as posições dos comunistas portugueses na mais importante questão nacional. Cada uma à sua maneira, estas são de resto as duas forças políticas imprescindíveis para uma alternativa digna desse nome para este país. O caminho da convergência faz-se caminhando.

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Capitalismo de desastre

Para se ver quando se tiver tempo.

Trata-se de um documentário do mais clássico que existe e sem pretensões, que passou há dias na RTP3, enquanto dava um telejornal quase asséptico sobre o que vai pelo mundo.

O contraste é ainda maior quando se começa a ver o filme. Um investigador percorre vários países no planeta - Afeganistão, Haiti, Papua Nova Guiné, etc. - e vai repescar os casos em que a comunidade internacional interveio supostamente para ajudar certos países em estado de desastre.

A ajuda foi eficaz? O investimento estrangeiro deu autonomia a esses países? Trouxe-lhes riqueza e prosperidade, tranquilidade e segurança? Ou deixou esses países num círculo vicioso de ajuda - que não chega aos lugares, às populações - e que continuam, cada vez mais, a necessitar de mais ajuda (Afeganistão), que chega sempre de paraquedas aos países em estado de necessidade, com o apoio dos maiores políticos mundiais (Haiti), impondo-lhes contratos de exploração de matérias-primas que abandonam depois de esgotadas, deixando um rasto de poluição (Papua Nova Guiné), pagando salários que não pagam as despesas de transportes e alimentação (Haiti), muitas vezes sem qualquer intervenção dos governos locais, que brincam às democracias ocidentais com o dinheiro vindo de fora (Haiti), enquanto as centenas de milhões de dólares de ajuda pública se evaporam por canais desconhecidos...

Não há novidades. Não há coisas verdadeiras novas relativamente a décadas passadas. E por isso é que parece ainda mais chocante e criminoso. 

Especialmente dedicado a quem, em Portugal, repete e repete e repete que o investimento estrangeiro desregulado é a solução para Portugal.   

terça-feira, 28 de agosto de 2018

Nem mais, nem menos


Eu quero pagar o IRS por inteiro, desde já porque não sou nem mais nem menos do que os outros, os meus iguais, conterrâneos, portugueses tão portugueses como eu e sem culpa nenhuma das políticas responsáveis pelo êxodo de centenas de milhares de pessoas ao longo dos últimos dez anos. Por uma questão de justiça, e justiça social, ou não fosse o objectivo primordial dos impostos o melhorar de um país no seu todo, e perdoem-me a ingenuidade. E quantas vezes será preciso repetir que o cerne foi sempre a falta de trabalho, de condições de trabalho, segurança no trabalho, a ausência de uma carreira e de um futuro digno desse nome?

João André Costa, criador do blogue Dar aulas em Inglaterra, Público.

É uma crónica oportuna de crítica ao mais recente exemplo da política usada e abusada por um Estado desprovido de instrumentos decentes de política e por um governo ainda demasiado influenciado pela sabedoria económica convencional e pelas suas estreitas hipóteses motivacionais: os chamados incentivos, nomeadamente fiscais. Não há realmente área onde este tipo de instrumento não seja mobilizado, geralmente para dar a entender que se está a fazer alguma coisa, criando no processo um sistema fiscal mais opaco e injusto.

Vale mesmo tudo?


1. Depois de ver uma «onda de reclamações» em 20 queixas de pais, por falta de vagas no pré-escolar e no 1º ciclo, a jornalista Clara Viana decide dar nota de um «estudo» do Observador Cetelem para concluir, sem pestanejar, que a «maioria das famílias vai dispensar manuais gratuitos». Realizado por uma empresa de crédito ao consumo, o dito «estudo» é basicamente um amontoado de enviesamentos (como assinalou Bárbara Reis num texto de leitura imprescindível), tornando impossível qualquer encontro com a realidade. De facto, ao contrário das conclusões a que a Cetelem chega («97% [dos inquiridos] prefere adquirir livros novos»), «mais de 90% das famílias» elegíveis tem optado por «receber os manuais oferecidos pelo ministério da Educação» (como lembra Bárbara Reis).

2. Depois de fazer eco, sem pestanejar, de um dos «furos» mais repugnantes da história do jornalismo português, o Semanário Sol chama a destaque de capa, no passado sábado, um alegado «mistério» que envolveria a casa de férias de João Galamba, arrendada ao Estado pela mãe (falecida há poucas semanas), através de concurso público. O que falta de matéria jornalística sobeja, em falta de tudo, à dita «notícia»: da mais elementar sensibilidade e razoabilidade ao mais básico critério editorial, digno desse nome.

3. Que uma empresa de crédito ao consumo amanhe um «inquérito» em linha com os seus interesses, mesmo que em contra-mão com a realidade, entende-se. Que uma jornalista reproduza, sem qualquer espírito crítico, os resultados desse inquérito, já se entende menos. Mas o que é mesmo difícil de entender, tanto no caso da «dispensa de manuais» como do «mistério da casa» do Semanário Sol, é como é que este tipo de «notícias» ou «reportagens» passa incólume pelo crivo da direção de um jornal. Será que passou realmente a valer tudo, mesmo tudo?

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Quantitative easing: tudo muda para que tudo fique na mesma?


Em Novembro deste ano assinalam-se dez anos desde o início da implementação do “quantitative easing” pela Reserva Federal norte-americana (o BCE seguiu mais tarde esta estratégia) . Em resposta à Grande Recessão de 2007/08, ambas as instituições adotaram medidas não convencionais – o “quantitative easing” (QE), nome pelo qual ficou conhecido o programa de compra de ativos por parte destas instituições no mercado secundário, sobretudo títulos de dívida pública e privada. Com este programa, os bancos pretendiam diminuir as taxas de juro de curto e longo prazo, facilitando o acesso ao crédito e, com isso, fomentando o consumo, o investimento produtivo, a criação de emprego e a recuperação das economias depois da crise financeira. No entanto, enquanto alguns economistas aplaudem o sucesso desta medida, outros alertam para potenciais efeitos secundários. Os estudos mais recentes sobre os impactos do QE indicam-nos que o programa:

1. tem tido como efeito principal a queda das taxas de juro para valores próximos de zero, o que facilita o acesso ao crédito.

2. tem contribuído para a subida do preço dos ativos financeiros (ver, por exemplo, aqui), embora a subida da inflação nos bens e serviços de consumo corrente seja lenta, não correspondendo às previsões iniciais.

3. tem um efeito positivo na criação de emprego nos países que beneficiam da política monetária expansionista, ainda que os salários reais continuem sem crescer (tendência que já discutimos aqui).

Coloca-se um primeiro problema: pela conjugação dos três efeitos anteriores, o QE pode contribuir para acentuar a desigualdade de rendimento, uma vez que favorece os detentores de ativos financeiros (como ações), que como sabemos se encontram tipicamente concentrados na posse das pessoas mais ricas. É o topo que beneficia com os ganhos de capital que resultam do aumento do preço dos ativos.

Apesar de existirem alguns fatores contrariantes (a diminuição das taxas de juro favorece, por exemplo, as famílias com empréstimos para pagar, o que é relevante no caso dos empréstimos à habitação), a evidência empírica sugere que o QE contribui para aumentar a desigualdade de rendimento. Não é por acaso que Ben Bernanke, antigo presidente da Reserva Federal e, por isso, insuspeito de heterodoxias, reconhece a “correta observação de que a expansão monetária implica um aumento do preço de ativos, como ações. Uma vez que os ricos possuem mais ativos que os pobres e as classes médias, o raciocínio é de que as políticas da Reserva Federal estão a aumentar as disparidades de riqueza.”

Por outro lado, a enorme injeção de liquidez nos mercados não favorece apenas o investimento em setores produtivos, mas também a especulação financeira. Na verdade, enquanto o investimento permanece abaixo dos níveis pré-crise nestas economias, a evolução dos índices dos mercados bolsistas sugere que a última década tem sido marcada pelo ressurgimento de bolhas especulativas. Em vez de contribuir para uma recuperação económica sustentada, o QE parece reforçar a especulação financeira e o aumento do risco - o Economist questiona a racionalidade desta 'exuberância'.


Contudo, a solução contrária (uma política monetária contracionista) afigura-se ainda menos desejável que a atual, já que a consequente subida das taxas de juro teria efeitos recessivos sobre as economias (sobretudo as mais endividadas, como é o caso da portuguesa), poderia desencadear colapsos financeiros nos mercados onde os títulos se encontram sobrevalorizados, e não resolveria o problema da desigualdade. O risco de redução do programa de compra de ativos já foi discutido, por exemplo, aqui.

Na zona euro, este aparente paradoxo da política monetária é a expressão de problemas mais profundos. Depois do colapso financeiro de 2007, a estratégia seguida pelas instituições responsáveis tem sido a de procurar minimizar as perdas do sistema financeiro sem alterar a sua estrutura e o seu funcionamento, o que se reflete na ausência de alterações significativas na regulação do setor. Além disso, as normas europeias impedem que os países complementem o QE com uma política orçamental expansionista sem incorrerem em incumprimento das metas acordadas, limitando a capacidade de estes adotarem políticas de redistribuição do rendimento ou de reforço do investimento público. Assim, a enorme injeção de liquidez no sistema financeiro tem fracassado no objetivo de crescimento económico robusto das economias ocidentais, e parece ter aumentado a instabilidade do sistema financeiro. O risco de uma nova crise mantém-se.

domingo, 26 de agosto de 2018

Clarificações


No Inimigo Público encontra-se o melhor resumo do espírito da declaração de Mário Centeno sobre a Grécia: “Parabéns aos gregos por já não gastarem tudo em copos e gajas”.

A declaração do chamado presidente do chamado Eurogrupo confirma a ideia em que temos insistido contra a complacência europeísta – veja- se, por exemplo, o artigo do número de Março do Le Monde diplomatique – edição portuguesa, agora disponível em acesso livre.

Em primeiro lugar, Mário Centeno não precisou de ser influenciado nem mudado pelo Eurogrupo, porque sempre aceitou, no essencial, os seus termos ideológicos, ganhando pelo seu currículo e pela sua política interna a confiança externa da grande potência da zona, a Alemanha.

Em segundo lugar, o Johan Cruyff da nova fase da financeirização com escala europeia ilustra a brutal resiliência da economia política da integração, a sua capacidade de diluir pretensas alternativas europeístas de matriz social-democrata.

Em terceiro lugar, contra os que fazem da política um apelo à razoabilidade das elites do poder – aprendam com os “erros” da austeridade depressiva, vá lá – é preciso perguntar: por que razões hão-de os interesses de classe que têm triunfado politicamente, graças à integração supranacional, mudar o que quer que seja de essencial no campo das relações sociais de produção e de circulação? Se há cada vez mais empresas privatizadas, se a acção colectiva do trabalho é cada vez fraca, se a restauração política da finança privada aí está…

Entretanto, atentem na frase mais reveladora, do ponto de vista ideológico, da última entrevista de António Costa no Expresso: “Hoje, em várias matérias, encontra numa posição comum pessoas como a senhora Merkel, Alexis Tsipras, o Presidente Macron, eu próprio, o primeiro-ministro Sánchez, e há uns anos, provavelmente, estaríamos bastante diferenciados”.

Realmente, as instituições europeias servem para diluir todas as diferenças. E, no fim, ganha a Alemanha de Merkel.

Em jeito de adenda, não resisto a assinalar a resposta de Ascenso Simões à sensata declaração crítica de João Galamba sobre Centeno. Esta resposta constitui realmente um exemplo de elevação racional no debate público, como é apanágio de Simões. Ascenso Simões destacou-se esta semana também por ter escrito uma espécie de panegírico a Pedro Queiroz Pereira no Público, onde a certa altura refere a generosidade de um capitalista das privatizações que, vejam lá bem, arriscava “melhores ordenados para os seus colaboradores”. Como designar alguém que assina como deputado de um partido que se diz socialista e que se refere aos trabalhadores como “colaboradores”? Socialista é que não.

E, no fim, ganham o neoliberalismo e os seus colaboradores?

Nine Horses - Wonderful world



sábado, 25 de agosto de 2018

Há 30 anos

Rua Garrett, em Lisboa
Há 30 anos, ia eu a caminho do Diario de Lisboa e surgiu-me isto à frente.

Na sua edição de hoje, o site da RTP faz um trabalho de reconstituição do que se passou nesse 25 de Agosto de 1988 e mostra imagens captadas a cores das suas emissões em directo do incêndio da Baixa lisboeta que são uma angustiante viagem no tempo. E porque queriam igualmente colocar fotografias, encontraram umas minhas na net e pediram-me se as podiam usar. Ei-las neste link.

Mas o Público conseguiu fazer muito melhor... 



sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Leituras: Revista Crítica - Económica e Social (n.º 16)


No número de verão da revista Crítica dedica-se, entre outros temas, à teoria económica e ao seu ensino. É nesse âmbito que se inserem os textos de António Carlos Santos, que discute o paradigma económico dominante, a sua capacidade de adaptação e o seu fracasso, e de Vicente Ferreira, em que se apresentam os resultados de um inquérito sobre o ensino da Economia em Portugal. Segue-se um artigo de Eugénio Rosa sobre os principais fatores associados à desigualdade da distribuição dos rendimentos, explorando-se nesse contexto as atuais alterações à lei laboral, e um texto de Mariana Mortágua sobre a recuperação do Sistema Nacional de Saúde, tendo também como enquadramento a preparação do OE de 2019. Por último, Ricardo Cabral reflete sobre o fracasso da cimeira europeia de junho e o seu impacto no agravamento da crise da UE. O número 16 da revista Crítica está disponível aqui, para download gratuito. Boas leituras.

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Apoios errados, caros e promíscuos

Números fornecidos pelo gabinete do ministro das Finanças
Até agora, o Governo - e os partidos à direita - estão dispostos a prescindir anualmente de centenas de milhões de euros em favor de pouco mais do dez mil pessoas. Só em 4 anos, de 2014 a 2017, foram quase 1,2 mil milhões de euros.

Primeiro, como já foi noticiado, foram 111 milhões em 2014. Depois, em 2015, passou para 277 milhões. Custou ao Estado 350 milhões de euros em 2016. E finalmente, foi de 433 milhões em 2017. Trata-se de um assunto polémico, que o Governo ficou de mexer, mas que - ao que se sabe - ainda nem homologou uma auditoria da Inspecção Geral de Finanças de 2015 sobre o tema.

Essa perda fiscal é consequência da aplicação da legislação de atracção de estrangeiros que supostamente não se instalariam em Portugal sem benefícios fiscais. Vários países como a Suécia e a Finlândia já protestaram contra esse tipo de medidas que prejudica as suas contas públicas. Mas faz sentido ter este tipo de medidas de estímulo fiscal, numa conjuntura que já atrai - desregradamente - os estrangeiros e quando os recursos financeiros nacionais dizem ser escassos?

A legislação foi criada em 2009 - era ministro Fernando Teixeira dos Santos e secretário de Estado Carlos Lobo - e concedeu um benefício quase vitalício. A autorização de cada caso tem o prazo de 10 anos, mas é renovável sem limite.

Contudo, esse diploma suscitou litígios com contribuintes, representados por escritórios de advogados, nomeadamente os escritórios Garrigues & Associados e Ricardo Palma Borges & Associados, além, de firmas de consultoria, como a Deloitte e a PwC. E não devem ter sido pobres reformados a recorrer a esses escritórios... O Governo PSD/CDS quis resolver esse litígio - à luz daquela ideia de que a felicidade dos investidores estrangeiros é a felicidade no país, dado que os empresários nacionais estão descapitalizados. E, ao arrepio da Autoridade Tributária (AT), deu razão aos contribuintes.

A lei do orçamento rectificativo "interpretou" o texto da lei e, ao fazê-lo dessa forma, "limpou" os casos em contencioso, conferindo-lhe eficácia retroactiva. Pessoas que tinham optado por residir em Portugal, mesmo antes da entrada em vigor do regime, foram tributadas como residentes não habituais.

Além disso, foram criadas facilidades. Até então, os candidatos eram obrigados a apresentar um certificado de residência no estrangeiro, para aceder a este benefício fiscal. A partir da alteração, quem quisesse se candidatar aquele estatuto teria apenas de declarar que não reunia as condições para ser tributado como residente. Só se o Fisco desconfiasse que o contribuinte estava a mentir é que estava autorizado por lei a exigir-lhe um comprovativo de residência no exterior.

Na altura, o Ministério das Finanças garantiu que o então secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, o militante do CDS Paulo Núncio - que veio do escritório Garrigues - não tinha tido intervenção nessa decisão. Foi Vítor Gaspar quem deu a cara por elas, com base - segundo uma nota oficial- em proposta da própria AT. Na verdade, a alteração tirou o tapete à AT e caiu muito mal dentro do Fisco.

Claro que os advogados e peritos de multinacionais de consultoria aplaudiram a medida como uma forma de desbloquear contenciosos com o Fisco, de evitar novos litígios e de ser mais atractiva a quem pode beneficiar desse benefício fiscal.

Mas que efeitos teve a alteração no regime dos residentes não habituais?

É difícil despedir em Portugal?

É recorrente o discurso sobre uma alegada «rigidez do mercado de trabalho» em Portugal, que se traduziria, entre outros aspetos, na dificuldade das empresas portuguesas em despedir. Essa ideia, muito enraizada na opinião pública e que constitui um dos principais argumentos do mantra dos que defendem a implementação de «reformas estruturais» (a que se referem insistentemente, por exemplo, organizações como a OCDE, Comissão Europeia e o FMI), parece contudo não refletir a opinião dos próprios empresários.

Com efeito, de acordo com os resultados de um inquérito recentemente realizado pelo INE, apenas 12% dos patrões considera que a dificuldade em despedir constitui um obstáculo muito elevado à atividade das empresas, não indo além de 22% os que consideram esse obstáculo como elevado. Em contrapartida, 14% dos empresários portugueses refere não ter qualquer dificuldade em despedir, perfazendo 35% o universo de empresários que consideram o despedimento um obstáculo reduzido ou muito reduzido para a atividade das suas empresas.


Por setores, a facilidade em despedir (nenhuma dificuldade e dificuldade reduzida ou muito reduzida) atinge os 53% na indústria, situando-se no limiar dos 50% nos casos da construção e imobiliário e dos transportes e comunicações. No setor do alojamento e restauração, que se destaca pelo peso das respostas «não sabe/não responde/não se aplica» (42%), a facilidade em proceder ao despedimento de trabalhadores atinge os 22%. Ou seja, em nenhum setor de atividade, de facto, a dificuldade de despedir supera o peso relativo dos empresários que acham que esse não é um obstáculo relevante à sua atividade.

Estes dados, que dizem muito mais sobre a economia como ela é do que as conjeturas e agendas ideológicas de diversos especialistas, são indissociáveis de uma outra ideia de senso comum, igualmente infundada e profusamente difundida: a ideia de que o «fator trabalho» é central no conjunto de custos das empresas, quando o seu peso relativo é na verdade sobrevalorizado (uma vez que ronda em média, cerca de 20% do total desses custos). Ou seja, uma sobrevalorização que joga, mesmo em termos de debate público, em desfavor de outros custos - nomeadamente dos custos de contexto - efetivamente relevantes para equacionar a melhoria dos níveis de produtividade e competitividade da economia portuguesa.

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Ajudas de Estado

No Público de hoje
Era interessante analisar de que forma se está a criar lucro na banca.

Porque de repente, numa alteração de clima, os bancos tendem a dar muitos prejuízos. Esses prejuízos lapidam as receitas fiscais no futuro, através de créditos fiscais durante anos devidos pelo reporte de prejuízos tido no presente, ou seja, uma "ajuda de Estado" indirecta. Depois, esses prejuízos apenas são sanáveis com as "ajudas do Estado" directas, através de injecções de capital, raramente pedidas aos accionistas privados, cobrindo os buracos, os desfalques, os créditos concedidos sem as garantias devidas e que rapidamente se tornam incobráveis, raramente indo atrás do dinheiro que se perdeu num negócio com offshores ou agentes económicos fraudulentos na Costa Rica. Há presos nas cadeias por roubos bem menores do que esses.

A estas "ajudas de Estado", a Comissão Europeia - na sua visão pouco técnica do problema e acintosamente político-ideológica - fecha os olhos. Mas apenas os abre quando um Governo legítimo pretende reforçar os capitais da banca pública ou das empresas públicas, que prestam serviços básicos à população. Aí, no seu entendimento, há uma desvirtuação do mercado e a Comissão Europeia defende, antes, a privatização das entidades descapitalizadas (de preferência a baixo preço).

A campanha actual é em torno dos caminhos de ferro... tal como em França. Veremos se o Estado não vai agora investir na infraestrutura ferroviária, para depois vender o produto já limpo...

Mas a Comissão nunca se pronuncia quando se verifica, depois, que a cartelização de preços (veja-se o caso da seguradora que a CGD foi obrigada a vender por imposição externa), a transferências de rendimentos através dos preços de transferência, enfim a dita concorrência de mercado se transformaram num pesadelo para a vida de todos, com preços mais elevados pelos mesmos serviços, com menores coberturas de serviço, tudo pagando os lucros que, finalmente, são exportados para o exterior.

terça-feira, 21 de agosto de 2018

Guiar o bem


António Guterres lembra Koffi Annan como «uma força que guiou o bem» e que «nunca deixou de trabalhar para manter vivos os princípios da Carta das Nações Unidas», destacando o seu empenho no processo de independência de Timor, essencial para quebrar a indiferença e virar o tabuleiro da comunidade internacional a favor da causa, contra o peso esmagador da realpolitik.

Neste agora, oxalá a proposta de António Guterres para proteger os palestinianos possa fazer também o seu caminho, num passo entre os muitos ainda necessários, para o fim da indiferença e para uma solução justa e duradoura do conflito.

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Reestruturação da dívida grega: Mário Centeno à direita de Poiares Maduro?


Em Abril deste ano, foi publicado o artigo “How to solve the Greek Debt Problem” (“Como Resolver o Problema da Dívida Grega”), tendo Barry Eichengreen, respeitado historiador económico norte-americano e reconhecido crítico da arquitetura da zona euro, como um dos autores.

O teor do documento merece ser analisado por dois motivos: em primeiro lugar, pela sua qualidade substantiva e pela análise rigorosa que dedica ao tema da dívida grega; em segundo lugar, porque Miguel Poiares Maduro, ex-ministro adjunto do governo de Passos Coelho e atual professor no Instituto Universitário Europeu, surge, surpreendentemente, na lista de co-autores.

O conteúdo

Analisemos primeiro a matéria substantiva. Os autores concluem que os contornos de reestruturação da dívida grega que o Eurogrupo vem avançando como possíveis após a conclusão do programa grego são desadequados. Segundo os seus exercícios de simulação, a proposta, que apenas contempla a redefinição de prazos e juros dos empréstimos do EFSF (European Financial Stability Facility), não garante a sustentabilidade futura da dívida grega e pode prolongar a dependência de financiamento por mecanismos europeus como o novo ESM, durante várias décadas - com todas as implicações negativas em termos de condicionalidade política e macroeconómica que daí adviriam.

Mas porquê? Porque os saldos orçamentais primários futuros necessários para garantir o sucesso de uma proposta com esses contornos são irrealistas. Segundo a resolução do Eurogrupo de 15 de Junho de 2017 (confirmados na resolução de Junho de 2018), a Grécia está comprometida a manter um excedente primário de 3,5% até 2022, descendo progressivamente até 2% em 2030 e a manter-se nesse valor até 2060.

O problema é que, como os autores alertam, os estudos existentes sugerem que a probabilidade de excedentes primários desta grandeza se manterem ao longo de tantas décadas é próximo de zero. Citando: “Mas enquanto a abordagem do Eurogrupo - exigindo um elevado excedente primário por um período muito longo e permitindo pouco alívio da dívida – é internamente consistente, não é, infelizmente, consistente com a experiência internacional (muito menos com o histórico orçamental da Grécia). Baseado numa ampla amostra de países emergentes e avançados no período pós Segunda Guerra, Zettelmeyer et al. (2017) concluem que a probabilidade de observar um período contínuo de os excedentes acima de 2% desce para zero após cerca de 15 anos. O Eurogrupo sugere mais de 40 anos, a partir de 2018 para 2060” (tradução livre).

Embora o documento não se debruce sobre ela, uma questão que pode surgir é se a manutenção de saldos primários elevados não é apenas uma questão de sacrifício e compromisso, não sujeita a qualquer imperativo histórico. A resposta a essa possível questão é não, porque os ciclos económicos são voláteis e a despesa pública está, por meio dos estabilizadores automáticos (impostos e transferências sociais), muito dependente do ciclo económico de forma contracíclica. Além disso, em momentos de contração da procura agregada privada, pode ser essencial introduzir um choque de despesa ou investimento públicos para evitar uma recessão de maiores proporções. É por isso que os dados históricos mostram que a manutenção de saldos primários desta magnitude é implausível. Porque, num momento (ou em vários momentos) ao longo de um período de várias décadas, o ciclo económico vai inverter-se, fazendo decrescer o montante dos saldos primários até, provavelmente, se transformarem num défice. Não considerar esta regularidade é negar o comportamento das economias capitalistas desenvolvidas ao longo das últimas décadas.

A próxima questão pertinente é se os decisores do Eurogrupo não têm consciência desta realidade histórica. No que a isso se refere, a verdade é que muito provavelmente terão, apostando numa estratégia de pau e cenoura: "cumpram estas medidas difíceis agora, apesar de assentarem em pressupostos irrealistas, que mais adiante serão compensados com medidas mais favoráveis."

É contra os efeitos negativos desta estratégia que o documento alerta no capítulo “Why not just wait and see?”, onde se observa que uma estratégia que não assente em pressupostos plausíveis poderá favorecer o comportamento especulativo dos mercados – sobretudo à medida que as metas forem sendo incumpridas – lançando a Grécia para um novo programa de ajustamento. Ser generoso apenas após uma suposta expiação dos pecados pode ser uma atitude firmada em sede religiosa, mas muito nociva em economia.

Por fim, em resultado dos seus exercícios de simulação, e após desacreditarem a proposta do Eurogrupo, o conjunto de economistas defende o corte nominal de 10% a 15% do stock da dívida pública grega, como condição necessária à sua sustentabilidade futura, assumindo uma dinâmica orçamental mais realista.

Pela preponderância que alguns dos autores do texto têm no debate europeu, este é, simultaneamente, um texto relevante e ousado. Relevante, porque não é possível passar despercebido aos olhos dos membros do Eurogrupo. Ousado, porque constitui um apelo a que o Eurogrupo considere cortes significativos no stock da dívida pública grega – tema tabu há escassos anos atrás – ao mesmo tempo que desmascara o fantasioso exercício das análises de sustentabilidade desse órgão intergovernamental. Não significa que eu concorde em absoluto com as recomendações avançadas nem que eu considere esta a estratégia mais adequada para resolver o problema da dívida grega: significa apenas que este é um desafio expressivo provindo de vozes escutadas – embora raramente seguidas - em Bruxelas.

De ministro a professor irresponsável

Aparte a substância da proposta, a surpreendente presença de Poiares Maduro como um dos seus co-autores é algo que não deve passar sem nota no enquadramento político português.

Para aqueles a quem a memória vai escasseando, é oportuno recordar o percurso político do singular personagem.

Em 2014, chegava ao governo Miguel Poiares Maduro. Chegou para credibilizar o lugar antes ocupado pelo descredibilizado Miguel Relvas. Para ajudar ao sucesso da sua missão, vinha ungido – como sempre convém – dos mais altos pergaminhos académicos, na qualidade de professor do Instituto Universitário Europeu. A mensagem política era a necessária para um governo em desesperada busca de apoio social: Pedro Passos Coelho, primeiro-ministro, abria mão do seu compagnon de route de integridade duvidosa e substituía-o por um insuspeito académico de uma universidade europeia. Pôr o país primeiro para uns, jogada política para outros... Enfim, façam a vossa escolha.

Como Ministro-Adjunto, Poiares Maduro foi um definidor estratégico do discurso governamental sobre o virtuosismo da austeridade. Em Março de 2014, em resposta a um manifesto que defendia a reestruturação da dívida pública portuguesa, e que contava com subscritores de amplos setores da sociedade portuguesa, incluindo do PSD, Poiares Maduro respondia: “Esse manifesto e a simples circunstância de se falar de reestruturação da divida são uma total irresponsabilidade. (...) A forma responsável de reduzir o peso da dívida em Portugal é fazer o que o Governo tem vindo a fazer: consolidação orçamental, redução de taxas de juro em virtude dessa mesma consolidação orçamental, estender as maturidades da divida. (...) A ideia que alguns querem transmitir aos portugueses de que é possível evitar os sacrifícios com não pagar a dívida é totalmente falsa. (...) Acho que é uma irresponsabilidade e uma tentativa de em Portugal alguns tentarem convencer os portugueses que é possível evitar sacríficios com ilusões de soluções milagrosas que apenas se traduziam em maiores sacrifícios”. (ver aqui)

O ministro Poiares Maduro não fazia por menos: a reestruturação era irresponsável e as personalidades da sociedade portuguesa não passavam de vendedoras de ilusões. Que teria o ministro Poiares Maduro de 2014 a dizer ao académico Poiares Maduro de 2018? Talvez que não passava de um professor irresponsável. Nunca saberemos.

O que fica evidente neste contraste de posições é aquilo que vá sendo afirmado neste blogue desde o início da crise: a questão da reestruturação como solução política para os problemas económicos de um país não é uma questão de esquerda ou direita. Em determinadas conjunturas, como a crise das dívidas soberanas da zona euro, era a mais elementar das estratégias. O que a direita e os seus ideólogos fizeram – incluindo Poiares Maduro – foi convencer a opinião pública de que a reestruturação da dívida era uma solução só defendida por um conjunto restrito de economistas de extrema-esquerda. A defesa da austeridade foi, na verdade, muito mais um discurso ao serviço da implementação de um programa político e económico do que uma verdadeira ausência de propostas alternativas.

Poiares Maduro até pode argumentar que é autor de um artigo sobre a dívida grega e que Portugal não é a Grécia. Mas há algo que não poderá negar: é saber que, em determinados contextos, a reestruturação da dívida é uma solução desejável e que não implica que os seus proponentes sejam irresponsáveis ou vendedores de fantasias. A menos que pretenda aplicar os adjetivos a si próprio.

E o Presidente do Eurogrupo?

Relembremos: Em Dezembro de 2017, Mário Centeno foi eleito presidente do Eurogrupo. Internamente, a eleição foi acolhida com grande entusiasmo pelo próprio e por quem acalentava um governo situado ao centro: após os atribulados meses inicias em que era olhado como um perigoso ministro apoiado por partidos eurocéticos, Mário Centeno era consagrado como um membro do establishement. A nomeação vinha com um custo – também muito apreciado pelo mesmo e pelas demais forças centrípetas: Mário Centeno deixaria de poder ser – se é que alguma vez o desejou - uma voz ativa na reforma da zona euro ou o promotor de uma aliança progressista com outros governos da Europa.

E, na verdade, Mário Centeno aparenta estar muito confortável nesse papel. É suficiente recordar as suas palavras a uma agência de notícias grega, quando referiu que “o programa de ajustamento poderia ter dados resultados positivos muito mais cedo”, caso a Grécia não se tivesse desviado das medidas do programa. (ver aqui).

Quando se lê a posição do Eurogrupo de 22 de Junho de 2018, a propósito da Grécia – pelo qual Mário Centeno dá a cara como presidente – a parada é ainda elevada a outro patamar.

No documento pode ler-se: “The Eurogroup acknowledges the significant efforts made by the Greek citizens over the last years. Greece is leaving the financial assistance programme with a stronger economy building on the fiscal and structural reforms implemented. It is important to continue these reforms, which provide the basis for a sustainable growth path with higher employment and job creation, which in turn is Greece's best guarantee for a prosperous future” (ver aqui).

Ver o ministro das finanças de um governo de esquerda, que fez da rejeição da austeridade a sua bandeira, ser a face de um documento que estabelece uma relação direta entre as medidas de austeridade aplicadas na Grécia – e todo o retrocesso e sofrimento social que causaram – e o sucesso económico futuro desse país, só pode ser considerado um momento de triste memória.

No que respeita aos objetivos orçamentais futuros, pode ler-se no mesmo documento: “The Eurogroup returned to the sustainability of Greek debt on the basis of an updated debt sustainability analysis provided by the European institutions. The implementation of an ambitious growth strategy and of prudent fiscal policies will be the key ingredients for debt sustainability. In this context the Eurogroup welcomes the commitment of Greece to maintain a primary surplus of 3.5% of GDP until 2022 and, thereafter to continue to ensure that its fiscal commitments are in line with the EU fiscal framework. Analysis of the European Commission suggests that this will imply a primary surplus of 2.2% of GDP on average in the period from 2023 to 2060.”

Ora, estas são exatamente as mesmas metas que o grupo de economistas – entre os quais Poiares Maduro - revelou serem irrealistas com fortes argumentos, como vimos anteriormente. Nada de novo pelos lados do Eurogrupo, portanto: distorce-se a evidência para favorecer a narrativa de quem manda.

Deste texto, creio que se podem extrair duas notas principais:

i) A ironia de um governante que defendeu a austeridade e repudiou a reestruturação da dívida ser o autor de um texto que defende a reestruturação do stock da dívida grega. Tudo isto em conflito com a posição assumida pelo Eurogrupo, presidido pelo ministro das finanças de um governo anti-austeridade, que rejeita a reestruturação da dívida grega e prefere fazer um exercício fantasioso sobre a sua sustentabilidade.

ii) Sabemos que o atual governo marcou um corte com a lógica de austeridade – até porque, como clarificou um outro autor deste blogue, a austeridade é outra coisa. Mas não nos equivoquemos: precisamos de um ministro das Finanças que reconheça as falhas da arquitetura da união monetária, deixe claro como elas prejudicam economias periféricas como a portuguesa e pugne pela sua reforma. Aliás, à imagem de tantos prestigiados economistas internacionais próximos do establishement, como Stiglitz e Eichengreen. O Mário Centeno presidente do Eurogrupo não é esse ministro. Um Mário Centeno presidente do Eurogrupo e sustentado por uma maioria absoluta do Partido Socialista sê-lo-á ainda menos.

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Sinais de mudança?

De acordo com o mais recente relatório do ICNF, com dados até 31 de julho, o número de incêndios rurais registados em 2018 representa 64% da média do último decénio (cerca de dez mil, no mesmo período). Um ano particularmente favorável em termos meteorológicos, até ao momento, ajuda a compreender esta diferença, a que não é também certamente estranho o esforço inaudito, ao longo do último ano, nos domínios da prevenção e do combate.

Um dos dados mais interessantes deste relatório provisório diz contudo respeito à redução, muito significativa, do número de incêndios registado em julho. Com efeito, se nos meses anteriores não se observam discrepâncias assinaláveis entre os valores de 2018 e da média do decénio (2008-2017), apesar das oscilações verificadas, o número de incêndios rurais registados no mês passado representa apenas 24% da média do decénio relativa a esse mês.


A hipótese que se coloca, neste sentido, é de poder estar em curso uma mudança muito relevante ao nível dos comportamentos, com a diminuição do número de «queimadas» (a principal causa de incêndios, ao contrário do que muitas vezes se pensa) para um patamar historicamente baixo, assim que começa a «época de fogos», com a entrada do verão. De facto, se o peso relativo dos incêndios registados em junho e julho (no total dos primeiros sete meses do ano) é de 53% na média do decénio (2008-2017), esse valor reduz-se para 23% em 2018.


A confirmar-se esta hipótese, num ano metereologicamente menos severo (apesar da recente onda de calor), poderemos estar perante um dos reflexos mais relevantes que os terríveis incêndios de 2017 nos deixaram: o reforço muito claro da consciência dos riscos e da devastação que os grandes incêndios podem causar, desincentivando práticas negligentes e irresponsáveis no uso do fogo.

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Alocução aos socialistas

Continuemos nas leituras de férias.

Desta vez, citando a intervenção de António Sérgio, no banquete de celebração do 1º de Maio, em 1947:

"(...) Aos nossos socialistas, quanto a mim, compete-lhes resistirem ao tradicional costume de se empregarem espertezas e competições de pessoas para apressar o momento em que hão-de chegar ao poder, e nunca considerarem as outras secções democráticas (as outras orientações do esquerdismo) como suas competidoras numa corrida para a meta, como suas concorrentes num mercadejar político, na grande feira tumultuosa das ambições de mando.

Não, meus amigos, não. A esses outros democratas (ou só políticos ou sociais) deveis vós tratá-los como colaboradores fraternos para as partes comuns dos vossos programas de acção (em, Portugal pode havê-las, essas tais partes comuns, pelo atraso económico em que o País se encontra); e isto, ainda no caso dos demais democratas não usarem convosco do mesmo modo. Antes de tudo, buscai prestigiar-vos ante a nação inteira pelo timbre moral da vossa alma cívica; porque (como acreditais, creio eu) não é indispensável conquistar o poder para se influir de facto na orientação do Estado.

Governareis de facto (ainda que seja por intermédio de outros) se souberdes enunciar algumas ideias níticas - práticas precisas, pontuais, concretas, - de acordo com a orientação que a nossa época exige (a da planificação económica para o bem comum, ou seja, portanto a da planificação socialista)  se tratardes de conquistar um grande prestígio moral. Não tenhais a ânsia de vos alcandorar no poleiro com prejuízo das qualidades a que se tem chamado ingénuas. As habilidades dissipam-se; os carácteres mantêm-se.

Se alcançardes o prestígio intelectual e moral - e uma organização bem cuidada - os outros um dia vos hão-de vir procurar, pedindo apoio e aliança, e até oferecer o comando; ou então os governantes vos hão-de tomar as ideias, para as colocar no governo, a comandar a Nação. Não cuideis de saber do que estão fazendo outros grupos, do que se diz, do que ocorre. Não: preparai-vos a vós; aperfeiçoai-vos a vós; organizai-vos a vós. Pensai na qualidade dos companheiros de luta, muitíssimo mais do que na quantidade deles.

Antero condenou, com a mais cabal das justiças, no artigo intitulado O Socialismo e a Moral, o que chamava de o ciúme e a invejas recíprocas. Não existem ciúmes e invejas recíprocas entre os vários componentes da vossa grei socialista: nem tão-pouco os ciúmes, nem tão-pouco as invejas, para com os homens que compõem as outras facções da esquerda. Seja o vosso lema a unidade. Por mim, quero trabalhar pela unidade, pelo entendimento recíproco, pela existência de relações de convivência amável entre os homens políticos de orientações discordes. Incorrigivelmente ingénuo, fraterno, cordial."

E mais, de forma ainda mais ousada, com perguntas de furar olhos: 

terça-feira, 14 de agosto de 2018

O Passado Não Fica Lá Atrás: Desemprego, Salários e Segurança Social


Vários autores deste blog têm procurado mostrar que as crises económicas não são episódios isolados cujos efeitos negativos se circunscrevem ao estrito tempo da sua duração. Reflexos das crises económicas como o desemprego, a emigração, a degradação dos serviços públicos ou o investimento não realizado persistem ao longo do tempo por canais nem sempre óbvios ou identificáveis em leituras breves de dados de conjuntura macroeconómica.

Um dos possíveis canais de transmissão das crises para o futuro é o impacto do desemprego no sistema de pensões.

O sistema de pensões português é um sistema de repartição, em que os descontos efetuados pelos trabalhadores são utilizados para financiar a proteção social e as pensões presentes. É, com efeito, um sistema assente num forte pilar de solidariedade intergeracional, que robustece o sentimento de pertença do trabalhador à sociedade onde se insere. Ao efetuar o desconto salarial (11% de TSU, no caso português), o trabalhador não está a reservar essa porção do seu salário para seu usufruto individual futuro: está a custear as pensões das gerações que construíram a sociedade que hoje o acolhe e o rendimento dos cidadãos que foram atirados para situações de exclusão ou fragilidade, como o desemprego e a doença. É, pois, um exemplo maior de como as políticas públicas podem favorecer o sentimento de solidariedade e pertença, devendo ser olhado com particular atenção por todos os que o pretendem preservar.

O desemprego presente pode comprometer, no imediato, o sistema de pensões por dois canais, um direto e outro indireto. O canal direto deve-se ao reflexo que o desemprego tem no número de contribuições: maior desemprego está associado a menor número de pessoas a fazer contributos para o sistema, o que se traduz numa perda imediata de receita, e por um maior número de indivíduos a receber subsídio de desemprego, o que se traduz num aumento imediato de despesa. O canal indireto advém da relação inversa que, habitualmente, se verifica entre salários reais e desemprego. Com efeito, o maior volume de desemprego também se reflete na queda das contribuições para a Segurança Social, por meio da diminuição dos salários daqueles que continuam a trabalhar ou que, tendo mudado de emprego, se encontram agora numa situação salarial menos favorável.

O efeito combinado destes canais pode ter efeitos significativos, em especial em momentos em que a subida do desemprego é abrupta. O exemplo português durante os anos de crise económica é disso uma ilustração lapidar.


A partir do OE de Estado de 2012, com a subida acentuada do desemprego, o governo foi forçado a realizar transferências extraordinárias do OE para cobrir o défice do sistema previdencial. No pico dos números do desemprego, em 2013, essa transferência ascendeu a 1430 milhões de euros, representando cerca de 2,92% da despesa pública desse ano e cerca de 0,83% do PIB. Sublinhe-se que esta avultada despesa adicional foi uma consequência direta da estratégia política e económica seguida por um governo que havia sido eleito com o principal objetivo de diminuir a despesa do Estado, evidenciando o quanto as políticas de austeridade podem gerar consequências contraproducentes. Essas transferências prosseguiram até ao ano de 2017. Apenas em 2018, com a descida no desemprego entretanto verificada, foi possível pôr fim a essas transferências.

É, no entanto, errado pensar que o retorno do sistema a uma posição superavitária significa que a crise económica não terá reflexos no futuro. Os rendimentos dos pensionistas serão intensamente afetados por esse período. Por um lado, porque muitos trabalhadores atravessaram longos períodos de desemprego, que diminuem a extensão do seu período contributivo. Por outro lado – e é importante não subestimar este efeito – porque o impacto negativo que o desemprego exerceu nos salários será refletido aquando do momento do cálculo da pensão. Assim, mesmo os trabalhadores que não perderam o seu emprego sentirão os ecos da recessão.

Não conheço estudos aplicados a Portugal. No entanto, dois economistas da Universidade do País Basco publicaram em 2017, na International Review of Applied Economics, um artigo que se dedica ao estudo desses efeitos para o caso espanhol. Como explicam no o início do seu artigo, as limitações impostas pela base de dados que utilizam impedem-nos de estudar o efeito que os períodos de desemprego têm no valor das pensões de cada pensionista. Assim, os autores espanhóis focam-se no segundo efeito que vimos acima, procurando avaliar em que medida as taxas de desemprego das diferentes regiões espanholas se refletem no cálculo da pensão por via do impacto negativo nos salários reais.


Após controlarem um conjunto de outros indicadores relevantes para o valor da pensão – entre os quais o setor de atividade económica, a experiência e o nível de educação – os autores concluem que o aumento de 1% no desemprego regional diminui, em média, a pensão auferida em 0,135%. Sustentando-se neste coeficiente e nas taxas de desemprego assumidas pela Comissão Europeia no seu último relatório sobre os sistemas de pensões, os autores estimam que a diminuição do valor das pensões causado pelo desemprego nos anos de crise pode ascender 4,2% para os trabalhadores que se aposentarem em 2020 e a 6% para os trabalhadores que se aposentarem em 2025.

É provável que os valores estimados para Portugal fossem menos expressivos. Em parte, porque a taxa de desemprego portuguesa nunca atingiu os valores da taxa de desemprego espanhola, em parte porque o sistema português contabiliza toda a carreira contributiva, ao contrário do método de cálculo de Espanha, que considera apenas os últimos 25 anos de carreira contributiva.

Estes resultados mantêm-se, contudo, muito relevantes para perceber os potenciais efeitos de persistência que o desemprego causado pela crise económica e pela austeridade pode ter no cálculo das pensões futuras em Portugal. Ainda mais tendo em conta que estas estimativas estão apenas a calcular o efeito por via do impacto nos salários reais, não considerando o expressivo impacto – provavelmente, até mais relevante - que os períodos de desemprego causam no cálculo das pensões individuais.

O sistema público de pensões é uma das grandes conquistas da nossa sociedade. Como vimos, o seu desenho favorece a participação dos cidadãos de uma forma democrática e solidária, favorecendo um espírito de pertença e de perseguição do bem comum. Aqueles que o defendem devem estar empenhados nas propostas de enquadramento macroeconómico e monetário que, ao contrário da crise anterior, afastem cenários de crises desnecessárias, cujas respostas ampliam problemas cujos reflexos se fazem sentir por muitos anos. Uma política económica que eleja como eixo central o pleno emprego é o maior garante da sustentabilidade do sistema, como demonstrado pela recente experiência orçamental portuguesa e pelos resultados do estudo referido.

Poderá não ser suficiente? Sim, é verdade. As últimas projeções apontam para que o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social se deve esgotar algures em 2040. Estas previsões não devem, no entanto, servir para lançar um alarme que favoreça o aparecimento de propostas de privatização parcial, ou total, da Segurança Social. Essas pretensas soluções já mostraram não ser solução e têm os seus próprios problemas, cuja identificação, infelizmente, vai além do objetivo deste post.

Então, tudo deve ser mantido como está? Não. Devem, por certo, ser equacionadas novas formas de financiamento, tal como as receitas recentemente consignadas à Segurança Social do adicional sobre o IMI ou parte da receita de IRC. Num cenário idílico, poderíamos até considerar fontes de financiamento só possíveis à escala europeia, como uma taxa sobre as transações financeiras. Deve-se também procurar atrair novos fluxos de imigração capazes de contrariar a tendência demográfica.

Acima de tudo, temos de reconhecer que nas próximas décadas caminharemos para uma sociedade estruturalmente mais envelhecida. E essa característica poderá implicar que, em determinados anos, parte dos recursos a afetar terão que ser dirigidos aos pensionistas. É um cenário não ideal, que comprometerá certamente outras opções de política económica, mas poderá suceder e não o devemos encarar como um drama. Assim como sociedades em zonas de conflito afetam partes substanciais do seu orçamento à defesa, ou sociedades mais jovens afetam mais recursos à educação, também as sociedades envelhecidas poderão ter de afetar parte do seu orçamento anual ao pagamento de pensões.

A discussão, por conseguinte, não é sobre qual o melhor modelo de Segurança Social. A discussão relevante é a que se centra no modelo macroeconómico que favorece o pleno emprego e política de imigração que favorece a vinda de novos cidadãos para o nosso país. O modelo certo, no essencial, já o temos: um sistema de repartição solidário que cimenta as fundações do Estado Social português.

A mão invisível do «pleno» emprego

No debate sobre a recomposição do mercado de trabalho nem sempre é valorizado o efeito que a criação de emprego e a queda do desemprego geram - por si só - em termos de reequilíbrio das relações laborais. Se a existência de um «exército de reserva» de mão-de-obra constitui, para a direita, um instrumento essencial de compressão do trabalho, a favor dos interesses do capital, a redução do universo global de desempregados potencia, em sentido inverso, dinâmicas que favorecem um mercado de trabalho mais justo e equilibrado.


Têm surgido de facto, com crescente frequência, sinais de dificuldade das empresas em encontrar mão-de-obra disponível, com diferentes níveis de qualificação e em distintos setores (como sucede no caso da construção ou do turismo). Um dos indicadores que ilustram esta inversão entre a oferta e a procura é a relação entre pedidos e ofertas de emprego registados pelo IEFP: como mostra o gráfico aqui em cima, se em junho de 2013 se atingiu um valor acima dos 80 pedidos por oferta, em 2018 esse rácio assume o valor mais baixo desde 2011, com cerca de 24 pedidos por oferta de emprego.


Embora a criação de postos de trabalho esteja menos dependente da construção e de atividades relacionadas com o turismo (como mostra o gráfico e ao contrário do que muitas vezes se pensa), a verdade é que estes e outros setores têm contribuído para um segundo efeito que decorre da redução significativa do desemprego: o acesso e o regresso, ao mercado de trabalho, de desempregados de longa duração, com menores qualificações ou com mais de 40 e 50 anos. De facto, como lembra Manuel Carvalho, em recente editorial no Público, «o mercado de emprego está a ser capaz de corrigir uma das mais graves injustiças produzidas pelos anos de chumbo do ajustamento: a expulsão do mundo do trabalho das pessoas com idades mais avançadas».


Reconhecer os efeitos da descida muito significativa do desemprego, para níveis próximos do pleno emprego, não significa evidentemente dispensar políticas que enfrentem os problemas estruturais do mercado de trabalho, como o apetite enraizado por baixos salários, a persistência de elevados níveis de contratação a termo ou as desigualdades salariais que atravessam o tecido empresarial português (e não apenas as empresas cotadas em bolsa, como por vezes se pretende fazer crer). Trata-se apenas de não subvalorizar os efeitos positivos que resultam da criação massiva de emprego. Aliás, quase apetece perguntar: que nome poderemos dar ao contrário de «exército de reserva» de desempregados, tão necessário e acarinhado pela direita?

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Velhas tácticas

Por muito que se afunde no passado, há sempre carreiros, túneis, passagens e inconscientes colectivos, mecanismos mercantis, lógicas de funcionamento social que transbordam no presente e que - ai de nós! - se prolongam para lá do nosso tempo, caso nada se faça.

Pegue-se numa leitura de férias.

"Nas cortes de 1427, dizia-se que Entre Douro e Minho e na Beira não haveria cavões e jornaleiros por dinheiro. Tal não significava que não existissem, desde há muito, cabaneiros, homens que viviam do trabalho braçal, em boa parte pago em géneros, e que não tinham mais do que uma cabana. Significava que aí era predominante a economia assente em casais, adubados com o suor familiar e exauridos pela renda feudal.

Nos campos do Centro e do Sul e na periferia dos centros urbanos, os conflitos sociais incidiam em três planos principais: tabelamento dos salários, diminuição ou aumento da renda feudal e disputa de mão-de-obra. Este último conflito, exacerbado pela economia mercantil crescente, desencadearia a captura de escravos na costa africana.

Nas Cortes de Lisboa de 1389, os representantes dos povos, saídos do grupo dos melhores do concelhos [não da arraia miúda], tentaram impor o tabelamento de salários. Só o conseguiram e limitadamente nas Cortes de Viseu de 1391. A decisão foi difícil de implantar. Nas Cortes de Coimbra de 1394, os representantes dos povos protestaram contra os altos salários. O rei mantinha em Lisboa a liberdade dos preços da força de trabalho."

António Borges Coelho, História de Portugal, vol.III, Largada das Naus, pag. 40/41

O que é interessante é que, naqueles tempos, a falta de mão-de-obra fazia os salários subir. Nessa altura, os contratadores de mão-de-obra tentavam impedir a liberdade dos preços da mão-de-obra tabelando os salários. Era um contracto colectivo ao contrário dos que existem actualmente. E o rei - na ausência de um Estado - parecia querer garantir algum equilíbrio na relação de forças.

Mas a melhor forma de conseguir baixar os salários era mesmo reduzir os efeitos da procura de mão-de-obra. E isso fazia-se com o aumento da escravatura (leia-se, com custos operativos quase nulos).

Hoje, a função da escravatura foi substituída pela existência de um exército de reserva constituído por um vasto contingente de desempregados. Foi esse mecanismo que os autores do ideário económico do FMI tentaram - e conseguiram - implantar em Portugal.

E resta saber se não até ao esquecimento. Já passaram quase dez anos desde o início dos efeitos dos demandos do sector financeiro a nível internacional, em 2007/8. Os jovens tendem cada vez mais a achar que o natural é trabalhar por pouco ou nada. E se mais não fosse, há sempre os elogios sociais ao voluntariado...


Post-scriptum: Esta questão entronca-se no que se está a passar na Caixa Geral de Depósitos. A nova normalização da CGD - como um comum banco privado que tende a reduzir os seus custos operativos (incluindo os salários) - cumpre diversos objectivos: no imediato, melhora as remunerações dos seus administradores; a prazo, reduz o papel de uma banca pública (a ponto de se tornar evidente a sua privatização); reduz a capacidade de atracção de mão-de-obra pela banca pública, afasta clientes ao aumentar as receitas que pesam sobre os seus clientes em relação aos privados. Nada de novo, de facto: Não foi isso que se fez no SNS com a criação e subida das taxas moderadoras, acima das dos hospitais privados? Paulo Macedo não faz um favor à CGD, mas sim ao restante sector financeiro.

domingo, 12 de agosto de 2018

Coisas que nunca se esquecem

Em Janeiro/Fevereiro de 1954, constava assim no boletim Jovem Trabalhador, editado pelo MUD Juvenil:

"Na fábrica Palha de Aço do Poço do Bispo, o patronato - por não ter licença para o pessoal fazer horas extraordinárias - foi multado. Como o desembolsar dinheiro é mais difícil do que embolsá-lo, achava que o magro salário dos operários devia pagar essa multa. Para isso, queria dar aos operários só 25% das horas extraordinárias, quando pertencem 50%. Mas os operários na sua luta bem unida não consentiram que este abuso fosse praticado e continuam a ganhar os 50%"  
Em 2012, o pacote laboral aprovado pelo governo de direita, com a aval da troica, cortou a metade o custo a mais das horas extraordinárias face ao custo da hora normal - de 25 para 12,5% na primeira hora e de 50 para 25% nas restantes horas, cortando ainda o descanso compensatório por trabalho suplementar. Isso e a utilização do banco de horas reduziu substancial o custo para as empresas das horas extraordinárias. Aquilo que era um custo (imposto) desincentivador do trabalho para lá do horário normal, passou a ter um regime laboral fortemente incentivador do trabalho a mais e sem ser devidamente remunerado. E isso teve e tem de repercussões na vida das pessoas.

E ainda assim está.

sábado, 11 de agosto de 2018

Leituras para férias: Dois economistas comprometidos, como só se pode ser

Aproveitando o tema de sugestões de leitura para as férias, deixo duas sobre a história das ideias na Economia.

O primeiro, O Capital de Marx, escrito por dois destacados economistas marxistas dos nossos tempos, Ben Fine e Alfredo Saad-Filho, pretende “facilitar a leitura dos escritos económicos de Marx, ao fornecer uma visão geral estruturada dos seus principais temas e conclusões”. Este pequeno livro, editado pela primeira vez em Portugal no início do ano, já foi eleito “a melhor introdução à economia política de O Capital” por David Harvey, outro nome incontornável na divulgação da obra de Marx (o seu conjunto de aulas que acompanham a leitura do livro completo são de livre acesso aqui).

De leitura acessível, o livro expõe os conceitos-chave da obra – valor de uso e de troca, trabalho remunerado e excedente, capital e as várias formas em que este aparece, mais-valia e lucro – e a sua importância para o que Marx escreveu sobre a natureza do sistema capitalista, a organização e exploração do trabalho, a circulação, acumulação e reprodução do capital, bem como sobre as suas contradições internas – a produção de enorme riqueza e enormes desigualdades, a tendência complexa para a queda da taxa de lucro, a sucessão de ciclos de expansão e crises violentas, contradições tão atuais nos nossos dias como quando Marx as identificou há 150 anos (o primeiro volume d’O Capital foi publicado em Outubro de 1867).

Os autores introduzem todas estas ideias numa sequência coerente, e terminam o livro com alguns apontamentos sobre a importância da obra para compreender os tempos que vivemos: a ascensão do neoliberalismo, o domínio do sistema financeiro, a diminuição do espaço para a decisão democrática e a urgência de alternativas, essa urgência que já motivava Marx no seu tempo.

Tem-se dito que Marx é um autor redescoberto periodicamente a cada crise do capitalismo. Lá fora, os principais jornais anunciam o “regresso” das suas ideias depois do último colapso financeiro. Este é um livro adequado para evitar as leituras superficiais e ter um primeiro contacto com uma das obras mais completas e fascinantes sobre a forma como se estrutura a economia capitalista.

O segundo é o livro Keynes, O Regresso do Mestre, de Robert Skidelsky, que saiu no fim-de-semana passado com o jornal Expresso (como parte de um conjunto de edições próprias). O livro, escrito pelo mais destacado biógrafo de Keynes, situa os principais debates em que o economista britânico se envolveu na primeira metade do século passado, sublinhando a relevância das suas ideias face à atual crise da teoria económica. O prefácio à recente edição do livro, de Francisco Louçã, é suficiente para esclarecer os leitores e as leitoras:

“O livro percorre três avenidas: começa com o estado atual da economia, discute depois o auge e declínio da revolução keynesiana, em que inclui uma curta biografia, e conclui com o regresso do keynesianismo. Escrito em 2009, logo no início da recessão global que se seguiu ao crash financeiro desencadeado pela crise do subprime no mercado hipotecário norte-americano, o livro parte de um auto de acusação contra o neoliberalismo (…) O fracasso da globalização e da financeirização, ou a crueldade das políticas que estas exigiram quando a crise se generalizou, era suficientemente ostensiva para que Skidelsky as tomasse como ponto de partida para recuperar “o mestre”.“

Dois livros sobre as ideias de dois nomes fundamentais na história do pensamento económico. Dois estudiosos comprometidos, como só se pode ser – o agitador que “queria decifrar a suprema intriga”, empenhado no estudo profundo da organização económica e na mobilização dos trabalhadores contra a exploração do sistema, e o liberal que “queria uma economia humana”, participando nos debates do seu tempo sobre o papel do Estado e da política económica, e tentando exercer a sua influência.

Várias décadas depois, continua a valer a pena conhecer ambos.

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Quem cozinhava o jantar a Adam Smith?


Proponho-vos uma leitura de férias sobre a Economia e as mulheres, best-seller com tradução em 10 línguas, mas ainda não em português, de autoria da jornalista sueca Katrine Marçal.

Sendo a escrita ligeira, a argumentação é acutilante e o tema bem sério. Trata-se de um livro de divulgação de economia feminista, que mostra como a economia é uma ciência misógina, dominada pela ficção do homo economicus, onde quase só há lugar para o interesse próprio egoísta e para as transações concorrenciais de mercado. O interesse colectivo, as relações sociais não-mercantis e a cooperação são menorizadas.

A reprodução e o cuidado das criança, idosos, e outros dependentes, predominantemente a cargo das mulheres, são invisibilizadas. Não obstante, são elas, as mães, e têm sido elas, as educadoras e as cuidadoras, tanto dos capitalistas como dos trabalhadores, que mantêm, generosamente, o sistema a funcionar. Mesmo depois de também elas terem passado a participar no mercado.

Se Adam Smith tivesse reconhecido a importância das refeições que a sua mãe lhe preparou literalmente durante toda a vida, talvez a ciência económica tivesse tido outra evolução, e o sistema funcionasse um pouco melhor para todos e todas. Por ter bem presente as interdependências que se geram em sociedades cada vez mais complexas, Katrine Marçal mostra que a economia feminista está bem colocada para uma abordagem mais holista ao modo como organizamos a provisão dos bens necessários à vida humana, de um modo social e ambientalmente mais equilibrado.

Em pleno século XXI, a dicotomia emprego-família é ainda uma questão que só se coloca às mulheres. Enquanto não for colocada à comunidade no seu conjunto, a desigualdade de género no trabalho e em casa perdurará. O facto de 17% das mulheres britânicas desempregadas terem de deixar o último emprego para cuidar de algum familiar, sendo este número de 1% para os homens, não é uma questão de escolha individual, livre e autónoma; é o resultado de uma economia política e moral que não oferece as mesmas oportunidades a homens e mulheres, sobretudo às mulheres das classes trabalhadoras, que não podem recorrer aos serviços, frequentemente informais e mal pagos, de outras mulheres para as tarefas da reprodução social de que só elas continuam a ser responsáveis.

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Uma capa, toda uma economia política


Ao ver esta capa sem apelidos da Visão, lembrei-me de um dos livros recentes e mais influentes de economia política, O Capital no Século XXI: “tudo parece indicar que a herança vai desempenhar no século XXI um papel considerável e comparável ao que teve no passado [século XIX]” (p. 566). 

Lembrei-me também do igualmente insuspeito Adam Smith, considerado um dos fundadores da economia política, associando a idolatria dos ricos, ou das ricas, tanto faz, à corrupção dos sentimentos morais. Sim, por trás da economia política, e toda a Economia o é, há sempre uma economia moral; ou imoral, no caso do porno-riquismo.

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

O crime compensa

Fotograma do filme da série "Guerra das Estrelas"
Férias de verão.

Quase coincidindo com o anúncio de um lucro no primeiro semestre de 194 milhões de euros - para o qual contribuiu a saída de 418 dos 8321 trabalhadores (5%), um agravamento das comissões aos clientes e encerramento de balcões - a administração do maior banco nacional e público, com Paulo Macedo como presidente da comissão executiva, denunciou o acordo de empresa, com vista a adaptá-lo à concorrência privada.

Refere-se na nota enviada aos trabalhadores: 
"Num mercado fortemente concorrencial, e considerando as características dos Acordos de Empresa em vigor na CGD, torna-se vital e urgente rever as suas condições, aproximando-as das que vigoram na generalidade do sector". "A melhor forma de promover as alterações que se impõem no actual AE é através da figura jurídica da denúncia", lembrando - avisando - que existe um prazo limite para se alcançar um acordo. "Há, pois, que fazer um esforço de diálogo, no sentido de aproximar o AE da CGD ao da restante banca, evitando assim uma situação de desvantagem concorrencial". Apesar de alertar que não haverá vazio legal - um acordo substituirá o outro até 2020, caso haja acordo - a tabela salarial continuará a ser negociada autonomamente, à semelhança dos restantes bancos.

E para tal, usa-se até o argumento mais estafado contra acordos colectivos, agitado igualmente pelo Governo PSD/CDS em 2011/2015 para, precisamente, torpedear e arrasar a contratação colectiva quase a zero: o último acordo é 2003, o qual já reavaliou o de 1990. Está tudo muito antigo...

Os dirigentes do Sindicato dos Trabalhadores do Grupo CGD já marcaram uma greve para 24 de Agosto e desmentem os argumentos de receberem demais, trabalharem de menos, terem uma carreira absurda, com prémios de antiguidade, anuidades luxuosas, categorias a mais, acesso a crédito à habitação demasiado fácil e demasiado tempo livre.

Fica claro que, quanto menores os custos salariais, isso tem um feito imediato na diminuição dos custos operativos. Mas isso não diz muito sobre uma maior eficiência a prazo ou aumento sustentado produtividade de cada um dos que ficam. Mais: Uma banca pública tem obrigação de ser uma referência para o mercado, tanto nas práticas comerciais, como no ambiente laboral. E não o contrário. Se o mercado é selvagem, a CGD não tem de se transformar em mais um selvagem. Mas isso seria outra filosofia na cabeça de cabeças envelhecidas. E não o fazendo, aproximando-se cada vez mais do sector financeiro privado, servirá a ideia de "para quê ter um banco público se faz o mesmo que um banco privado"?

Acrescente-se que as remunerações dos membros de administração têm uma componente fixa e outra variável (ver aqui e aqui, pag.683). A componente variável depende: dos resultados do banco, do rácio entre os custos operativos e o produto bancário; do grau de consecussão dos objectivos traçados; e do contributo para a imagem e reputação da CGD. Ou seja, quanto menores os custos, menor o rácio e maior a componente variável, ainda que não possa ultrapassar a componente fixa. Pelo menos, para já. E quem vai fazer a avaliação da imagem da CGD? O Governo?

E nem se está a falar de valores. Caso se queira ir por aí, poder-se-ia acabar com a senha de presença nas reuniões comissão de remunerações (criada a 31/8/2016). A comissão tem funções de preenchimento de vagas dos órgãos sociais e definir a sua remuneração. Mas por cada reunião, o seu presidente recebe... 5500 euros e os seus vogais 5 mil euros. Apesar da comissão reunir de forma ordinária trimestralmente, há um limite de dez reuniões anuais. Esta também deve ser uma prática da concorrência privada...

Resumindo: não está provado que "a concorrência" faça melhor que a CGD. Não está provado que baixando os custos salariais dos trabalhadores se melhorará a prática da CGD. Não está provado que ser um selvagem entre selvagens é necessariamente uma melhor prática económica e social. Mas fica provado que rever o acordo de empresa, contribui para melhorar as remunerações variáveis dos seus administradores.