terça-feira, 18 de março de 2025

Amanhã


Videoconferência de apresentação da revista «Que força é essa?», dedicada aos «mundos do trabalho» e que junta especialistas das ciências sociais e do direito do trabalho, bem como sindicalistas e membros de comissões de trabalhadores. Versando sobre questões como as relações laborais e a sua regulação, sindicalismo e movimentos sociais, políticas públicas de emprego e segurança social, entre outras, a revista assume a necessidade de refletir sobre «as transformações em curso nos modos de produzir, de organizar e de gerir o trabalho, bem como sobre alternativas sociais e políticas», privilegiando a «diversidade de sensibilidades e opiniões».

O webinar de apresentação, com início às 21h00, conta com a participação de Henrique Sousa, Joana Neto, José Soeiro e Maria da Paz Campos Lima, membros da direção da revista. A participação é livre, podendo a inscrição ser feita aqui (sendo a edição digital da revista disponibilizada aos inscritos logo a seguir à videoconferência).

Solidariedade


Enquanto uns e outros reunem com os representantes de um genocídio que insistem em negar, há quem mobilize toda a solidariedade com o martirizado povo da Palestina.

segunda-feira, 17 de março de 2025

O que medimos – e o que nos escapa – quando medimos o poder de compra?

Também disponível no substack

Quando se discute o impacto da inflação na vida das pessoas, a análise centra-se na evolução do poder de compra. Os economistas avaliam-no com base nos salários “reais”, isto é, o aumento dos salários descontando o efeito da inflação. É um passo indispensável da análise: podemos receber um aumento de 5% num determinado ano, mas, se nesse ano, os preços dos produtos que costumamos consumir aumentarem em média em 5%, as quantidades que conseguimos comprar não se alteram - isto é, o nosso poder de compra mantém-se.

Para distinguir entre aumentos salariais nominais - a subida que observamos no recibo de vencimento - e aumentos reais - que dependem da relação entre a subida do salário e o aumento dos preços de tudo o que consumimos -, o indicador que se usa é o Índice de Preços no Consumidor (IPC). O IPC é construído em cada país com base num cabaz de consumo médio: um cabaz que procura representar, em média, quanto é que as pessoas gastam do seu orçamento em cada tipo de produto ou serviço. Partindo desse cabaz, as autoridades estatísticas recolhem informação sobre os preços de inúmeras variedades de cada tipo de produto ou serviço, desde o arroz ou os ovos às bicicletas, pacotes de telecomunicações ou tshirts, e registam as subidas e descidas ao longo dos meses. O INE recolhe, todos os meses, informação sobre os preços de dezenas ou centenas de categorias de cerca de 1300 produtos.

O IPC é uma média que resulta deste processo complexo de cálculo. O que este número nos diz é quanto é que os preços aumentaram em média num mês ou num ano, tendo em conta o peso que, em média, cada produto ou serviço tem na despesa das pessoas. O exercício é útil para nos dar uma ideia aproximada de como evolui o custo de vida médio num determinado período. No entanto, há algumas limitações no cálculo do IPC que o impedem de captar dinâmicas relevantes para avaliar o poder de compra e que, por isso, merecem discussão.

A primeira diz respeito ao próprio conceito de “cabaz médio”: por representar uma média, o indicador não tem em conta que os padrões de consumo são diferentes consoante o grupo social e o escalão de rendimento das pessoas. Isto é importante porque, normalmente, as pessoas com menos rendimentos gastam uma percentagem maior do seu salário em produtos essenciais – energia, alimentos, etc. Ou seja, algumas subidas de preços afetam mais uns grupos do que outros. Como foi precisamente na energia e nos bens alimentares que se registaram os maiores aumentos de preços nos últimos anos, o impacto pesa mais na carteira de quem gasta uma percentagem maior do seu rendimento nestes.


Nos EUA, uma análise de economistas da Reserva Federal mostra que o grupo dos 20% com menos rendimentos foi o que experienciou uma inflação mais acentuada desde a pandemia. Para este grupo, a subida dos preços terá sido 8,3% maior do que a inflação média. E os autores desta análise sublinham que mesmo estes valores não têm em conta outras dimensões, como a capacidade de substituição de consumos.

Isso leva-nos ao segundo aspeto a ter em conta: mesmo que estejamos a falar do mesmo produto – por exemplo, o leite – os preços não sobem todos ao mesmo ritmo. E há dados que que apontam para a existência de um fenómeno de “cheapflation”, isto é, subidas mais acentuadas dos preços nas marcas ou categorias de produtos que eram mais baratas à partida, face às marcas que eram mais caras.

Um estudo publicado no ano passado por Alberto Cavallo e Oleksiy Kryvtsov, que analisou dados sobre as vendas de produtos alimentares em 91 cadeias em dez países diferentes, concluiu que “o episódio inflacionista foi acompanhado por alterações dos preços relativos dentro da mesma categoria” e que “os preços das variedades mais baratas cresceram a um ritmo superior ao das variedades mais caras”.


Em Portugal, a tendência parece ter sido semelhante. Em 2022, no início do surto inflacionista, os preços dos produtos de marca branca subiram 32%, ao passo que os de marca de fabricante encareceram 13%, de acordo com uma análise da DECO Proteste (que estudou o custo de produtos como o arroz, a massa, o leite, a farinha ou o açúcar nos principais supermercados). Embora a marca branca continue a ser mais barata, a diferença face às marcas de fabricante diminuiu.

Novamente, esta tendência tende a penalizar quem ganha menos: as pessoas mais ricas podem deixar de consumir produtos mais caros e trocá-los pelo equivalente da marca branca para reduzir o impacto da inflação no seu poder de compra, enquanto quem ganha menos, à partida, já tende a escolher os produtos mais baratos.

Ao representar a evolução média dos preços na economia, o IPC não oferece informação sobre a variância dos preços – ou seja, sobre quais os produtos (ou as marcas) que estão a encarecer mais do que os outros. E os dados indicam que a variância costuma ser bastante acentuada: não é incomum haver períodos em que alguns preços aumentam muito e outros mantêm-se ou até diminuem. Como os padrões de consumo variam muito consoante o rendimento das pessoas, a informação sobre a média não é suficiente para uma análise mais fina sobre o poder de compra.

Um terceiro aspeto, particularmente relevante nos últimos anos, é o facto de o IPC não incorporar a variação dos custos associados às taxas de juro. A subida das taxas de juro aumentou de forma significativa os custos de empréstimos à habitação ou dos cartões de crédito. É algo que tem escapado em algumas análises sobre o poder de compra: a subida das taxas de juro representa um aumento bastante significativo dos custos na vida das pessoas.

Este aspeto tem implicações bastante relevantes para a forma como se mede o impacto dos preços da habitação. Embora o IPC inclua uma categoria que corresponde às rendas das casas, esta tem um peso muito pequeno em Portugal. Isto acontece porque a percentagem de pessoas que arrenda casa é reduzida (22,2%) face à de quem tem casa própria (77,8%) e, por isso, não paga renda.

Entre quem tem casa própria, há uma parte das pessoas que se encontra a pagar o empréstimo e tem, todos os meses, uma despesa com a prestação. Só que esta despesa não entra no cabaz usado para calcular o IPC. Assim, quando uma subida das taxas de juro leva a um aumento das prestações dos empréstimos com taxas variáveis (que representam cerca de 90% dos créditos em Portugal, um dos valores mais altos da Europa), este não é refletido no índice usado para medir a inflação, embora represente a subida de um custo significativo.

Na verdade, a prestação da casa é, para uma parte significativa das pessoas, a principal despesa do mês e um dos principais fatores que definem o seu custo de vida. Desde 2022, a prestação média em Portugal aumentou 60%, tendo passado de cerca de €250 para mais de €400. Neste momento, a prestação média já representa 34,8% do salário médio líquido no país (que ronda os €1150 por mês). Ou seja, um terço do rendimento disponível de quem recebe o salário médio é gasto na prestação da casa. Não é possível avaliar o poder de compra das pessoas sem ter em conta este custo.


Este é um problema que se estende a outros indicadores. No caso da evolução da taxa de pobreza, o economista Carlos Farinha Rodrigues explicou recentemente que “o acréscimo do custo de vida só é apanhado muito parcialmente no inquérito, através dos indicadores de privação. E um deles até mostra um aumento da percentagem da população com pagamentos de despesas de habitação em atraso devido a dificuldades económicas. Pode haver uma deterioração das condições de vida apesar da redução da pobreza, e a questão das rendas é claramente um fator com peso.”

O Índice de Preços no Consumidor é um indicador importante e não deve ser desvalorizado. Mas é preciso ter em conta que não capta tudo e que há questões às quais não permite responder. Usar o IPC para avaliar a evolução dos “salários reais” – isto é, o aumento dos salários descontando o efeito da subida dos preços na economia – pode não ser o mais adequado, uma vez que os salários mais baixos podem aumentar mais do que o IPC (o que sugeriria um aumento do poder de compra) mas não tanto como o índice de preços associado às despesas que as pessoas com menos rendimentos efetuam (o que pode constituir uma evolução menos positiva ou até uma redução do poder de compra).

Estes aspetos são ainda mais relevantes quando a inflação se concentra em produtos essenciais, como a energia ou a alimentação, e quando a resposta das autoridades passa por uma subida das taxas de juro. Ambos aconteceram nos últimos três anos e ambos têm consequências regressivas, penalizando mais quem ganha menos.

Mais sobre inflação e poder de compra




domingo, 16 de março de 2025

Haja nacionalizações


Considerando a necessidade de concretizar uma política económica antimonopolista que sirva as classes trabalhadoras e as camadas mais desfavorecidas da população portuguesa, no cumprimento do Programa do Movimento das Forças Armadas; Considerando que o sistema bancário, na sua função privada, se tem caracterizado como um elemento ao serviço dos grandes grupos monopolistas, em detrimento da mobilização da poupança e da canalização do investimento em direcção à satisfação das reais necessidades da população portuguesa e ao apoio às pequenas e médias empresas; Considerando que o sistema bancário constitui a alavanca fundamental de comando da economia, e que é por meio dela que se pode dinamizar a actividade económica, em especial a criação de novos postos de trabalho; Considerando que os recentes acontecimentos de 11 de Março vieram pôr em evidência os perigos que para os superiores interesses da Revolução existem se não forem tomadas medidas imediatas no campo do controle efectivo do poder económico; Considerando a necessidade de tais medidas terem em atenção a realidade nacional e a capacidade demonstrada pelos trabalhadores da banca na fiscalização e controle do respectivo sector de actividade; Considerando, finalmente, a necessidade de salvaguardar os interesses legítimos dos depositantes...

Decreto-Lei de 14 de Março de 1975 sobre a nacionalização da banca.

Fez na passada sexta-feira cinquenta anos que uma das medidas fundamentais de defesa da democracia e da economia nacional foi aprovada. Não há democracia sem subordinação do poder económico ao poder político, o que implica controlo democrático de setores estratégicos da economia, a começar na banca. Afinal de contas, os grupos económicos foram o esteio do fascismo. 

A privatização da banca fez parte do processo de esvaziamento económico da democracia, feito para privatizar lucros à custa de quem trabalha, como hoje acontece hoje em dia, e para socializar prejuízos, como acontece sempre nas crises financeiras que, entretanto, e graças à privatização e liberalização dos sistemas financeiros, se multiplicaram.

sábado, 15 de março de 2025

Neoliberalismo, neofascismo

Deflacionando o Estado social, inflacionando o Estado policial, o neoliberalismo acaba no neofascismo. No contexto da UE, a corrida armamentista, de que os liberais até dizer chega são dos mais entusiastas apoiantes, ajudará no processo de fascização. Sim, a IL é tão ou mais perigosa do que o Chega. Subprodutos da troika e do seu governo  PSD-CDS, apoiados pelos setores mais reaccionários do patronato, há uma divisão de trabalho entre IL e Chega. 

sexta-feira, 14 de março de 2025

No epicentro da crise


Tomando a Área Metropolitana de Lisboa (AML) como estudo de caso, e assumindo-a como epicentro da crise, está já disponível o segundo relatório da Causa Pública sobre a atual questão da habitação. Em linha com o primeiro relatório, conclui-se uma vez mais que esta crise não é apenas uma crise de habitação, antes transbordando nos seus efeitos - e a par de outros factores - para uma crise da própria economia e do modelo de desenvolvimento económico do nosso país, com um reflexo particularmente evidente no caso da AML.

De facto, e como referido na apresentação do relatório, que integra uma análise comparativa entre a AML e outras áreas metropolitanas europeias, o «modelo de crescimento dos últimos anos é, simultaneamente, uma causa da crise habitacional e um fator que limita o crescimento da competitividade». Num contexto de resistência generalizada, desde logo à escala europeia, na adoção de medidas de regulação das novas procuras especulativas - que, tudo indica, são incontornáveis para superar a crise - talvez acabe por ser a pressão da «economia» e dos seus agentes, a pressão da «competitividade», a forçar, por fim, a sua implementação.

quinta-feira, 13 de março de 2025

Não é um slogan

 

Como os neoliberais reconhecem que um Estado forte é indissociável da forma de capitalismo pela qual pugnam, vão sempre conseguir responsabilizar o Estado pelo fracasso das políticas que defendem, assegurando que estas nunca foram verdadeiramente tentadas e furtando‐se assim ao confronto do real. O neoliberalismo está sempre por realizar.

Não, não é um slogan. Sim, o neofascismo é o seu último estádio.
 

quarta-feira, 12 de março de 2025

Um jornal contra a subversão da democracia


Num sábado, em horário nobre, o chefe do governo discursava, rodeado pelo governo e com os símbolos da República atrás, sobre o «know how» das «pessoas qualificadas e especializadas» de uma empresa privada que «presta um relevante serviço» e procura «garantir a conformidade dos procedimentos» para empresas «como a Solverde que recolhem, tratam, armazenam e gerem dados e bases de dados de clientes de hotéis, de salas de jogos físicas e online (…)», envolvendo «mais de meio milhão de pessoas», e noutra empresa de «mais de dois milhões e meio de clientes»… Este momento de publicidade empresarial gratuita ocupou 10,78% do total da mensagem do primeiro-ministro (1017 carateres com espaços num texto com 9434), uma percentagem que nem seria diluída em respostas a perguntas dos jornalistas, pois o primeiro-ministro não as permitiu.

Sandra Monteiro, O carnaval da democracia, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, março de 2025.

terça-feira, 11 de março de 2025

Debate: Guerra na Europa, austeridade e extrema-direita

União Europeia prepara-se para aumentar significativamente as contribuições dos Estados-membros para o orçamento da Aliança Atlântica, operando uma militarização que, podendo ser muito lucrativa para os industriais do armamento americanos, prefigura uma segunda fase de austeridade capaz de destruir o edifício do Estado Social em que têm assentado as democracias. 


Como se chegou até aqui? Que papel desempenhou a corrosão progressiva do direito internacional e das instituições internacionais, como as Nações Unidas, na eclosão desta nova era dos imperialismos, feita de escaladas bélicas aparentemente imparáveis? 

Como poderão administrações e serviços públicos já depauperados pela recusa em contratar os profissionais necessários (médicos, enfermeiros, professores, funcionários públicos…) travar mais este declínio anunciado, com todas as consequências sociais decorrentes? 

Como poderão as democracias resistir a mais uma crise social desta magnitude, com todo o potencial de crescimento das extremas-direitas, sobretudo num contexto em que estas herdarão uma União Europeia mais militarizada e securitária do que nunca? 

O Le Monde Diplomatique convida à participação neste debate.

Na próxima sexta-feira, 14 de março, receção a partir das 18h00, seguida de lanche ajantarado antes de começar a tertúlia com os convidados. 

Oradores:

Marcos Farias Ferreira (professor de relações Internacionais no ISCSP) 

Ana Costa (Professora de Economia no ISCTE) 

João Luís Lisboa (Professor de História na FCSH-UNL) Moderação 

Sandra Monteiro (Diretora do Le Monde diplomatique – edição portuguesa) 

Local: 

SPGL, R. Fialho de Almeida, n.º 3 (Lisboa)

segunda-feira, 10 de março de 2025

Começar por dizer não


Em 1943, Michal Kalecki publicava um breve e “arguto” artigo, a expressão é de Keynes. Afiançava que “a antipatia [da burguesia] com os gastos governamentais, ou seja, com o investimento ou consumo público, é superada pela concentração de gastos públicos em armamentos”. Para Kalecki isso era particularmente assim no fascismo, onde os sindicatos foram suprimidos e onde “a máquina estatal está sob o controlo direto da parceria entre grandes empresas e fascismo”. 

É um artigo útil para Estados enredados numa UE desenhada para travar alternativas reais, onde a despesa socialmente útil será sacrificada, sob novos pretextos, se as elites do poder levaram a sua avante. No Financial Times, têm a virtude de expor o plano neoliberal em toda a sua crueza: cortar no Estado social, construir um Estado de guerra, enfrentando os problemas de estagnação com rearmamento e logo com destruição. 

Os velhos e novos processos de fascização virão por arrasto, se esta corrida para o abismo não for travada. Infelizmente, se depender da social-democracia e dos verdes com bombas, e a avaliar por sucessivos pronunciamentos por essa UE afora, não só não será travada, como será alimentada. Querem enredar-nos em mais guerras sem fim, o corolário lógico da convergência com o complexo militar industrial dos EUA. O plano dos federalistas europeus sempre foi a convergência com a economia política dos EUA. 

A partir desta periferia, temos de ter a coragem de dizer não. Sim, devemos deixar de pensar como se estivéssemos no centro. Estou certo que este tema estará presente nos combates sociais e político-eleitorais que se avizinham.

sábado, 8 de março de 2025

Dia da Internacional


Em articulação com as organizações políticas e sindicais de classe do proletariado dos seus respectivos países, as mulheres socialistas de todos os países devem assinalar anualmente o Dia da Mulher, com o propósito principal de obter o direito de voto. Esta reivindicação deve ser conjugada com a questão da mulher na sua totalidade, de acordo com os preceitos socialistas. O Dia da Mulher deve ter uma natureza internacional e deve ser cuidadosamente preparado.

Como já é tradição neste blogue, no dia 8 de março: a socialista alemã Luise Zietz fazia a proposta de um dia internacional da mulher trabalhadora na conferência das mulheres socialistas da Segunda Internacional presidida por Clara Zetkin, que seria fundadora do partido comunista alemão a seguir à Guerra. 

É então preciso nunca esquecer as origens deste dia internacional: era, é e será sobre lutas de classes, assim no plural. A luta pela democracia, contra as cláusulas de exclusão formais e informais do liberalismo realmente existente, é realmente parte da luta socialista pela igualdade substantiva, do salário à reprodução social, dos direitos políticos aos sociais, da empresa à casa.

sexta-feira, 7 de março de 2025

A corrida às armas é um bom negócio?

Também podem ler este texto no substack

“Estamos numa era de rearmamento”. Foi desta forma que a presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, apresentou o novo plano para aumentar a despesa militar na Europa. No total, a Comissão quer alocar 800 mil milhões de euros à indústria do armamento, com o montante a ser repartido entre os orçamentos nacionais dos países, o orçamento comunitário e o Banco Europeu de Investimentos.

O plano é justificado com a “ameaça existencial” enfrentada pela União Europeia (UE) face à escalada de tensão com outras regiões e há quem veja no investimento em armamento uma oportunidade para relançar a economia europeia. No entanto, há motivos para pensar que a corrida às armas traz mais problemas do que os que pretende resolver


Passou a haver dinheiro, se for para armas?

O anúncio da Comissão Europeia é o mais recente passo numa corrida às armas em que a Europa já estava envolvida. Na última década, a despesa militar dos países da UE que pertencem à NATO aumentou em 50%. Para viabilizar o novo esforço financeiro, a Comissão Europeia avança com três eixos:

  • Disponibilizar €150 mil milhões em empréstimos aos Estados que pretendam investir em mísseis, munições, sistemas de defesa aérea, drones ou outros equipamentos militares;

  • Abrir a possibilidade de que os países gastem mais do que aquilo que seria permitido pelas regras orçamentais, desde que o façam em armamento. A proposta da Comissão é que este tipo de despesa seja excluído do cálculo do défice de cada país até que os novos gastos atinjam 1,5% do PIB respetivo, o que permitiria aumentar a despesa militar total em €650 mil milhões;

  • Permitir que os países redirecionem parte dos fundos estruturais que recebem do orçamento da UE para a indústria militar. A ideia é facilitar a canalização de fundos europeus, teoricamente destinados a promover a coesão e o desenvolvimento regional, para a produção de armas e munições.

É importante ter em conta que esta mudança de posição surge depois de décadas de obsessão com o controlo do défice e da dívida pública. Desde a entrada em vigor das regras orçamentais, os países europeus foram levados a comprimir o investimento público em áreas como a saúde ou a educação sob o pretexto de garantir a sustentabilidade das contas públicas.

Em Portugal, o sub-investimento tem degradado os serviços públicos e constituído um dos principais obstáculos ao desenvolvimento da economia. O investimento público “líquido”, que representa o saldo entre a formação bruta de capital fixo (isto é, o valor investido em obras públicas, equipamentos, I&D, software, etc.) e o consumo de capital fixo (que mede o que se vai perdendo com o desgaste dessas obras públicas e equipamentos), tornou-se negativo neste período. Por outras palavras, o que o Estado investe nem chega para compensar o desgaste das infraestruturas.

Fonte: Eurostat

Agora, a preocupação com as contas públicas é abandonada para reforçar de forma substancial a despesa em armamento, enquanto os limites se mantêm para todas as outras categorias de despesa dos governos. Se esta opção é claramente discutível do ponto de vista político, o caso não melhora quando olhamos para o plano económico.


Investir em armas compensa?

É possível encontrar argumentos económicos a favor e contra o aumento da despesa militar: por um lado, um aumento da despesa pública cria procura adicional e pode impulsionar o investimento e a inovação nos setores a que essa procura se dirige (algo que é conhecido como o efeito multiplicador); por outro lado, a canalização de recursos para a defesa limita a capacidade de investimento noutras áreas que podem ser mais produtivas e benéficas para a sociedade.

O impacto deste tipo de despesa depende de onde esta é efetuada, pelo que é preciso perceber onde são produzidas as armas. No que diz respeito à indústria do armamento, há um país que se destaca claramente do resto: os EUA. Nos últimos anos, a indústria do armamento norte-americana reforçou a sua posição dominante nas exportações de armas e tornou-se responsável por quase metade das transações internacionais.

Fonte: Politico

Entre 2019 e 2023, mais de metade das importações de armas da Europa foram provenientes dos EUA, de acordo com o Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI). E não há sinais de inversão desta tendência. De acordo com Pieter Wezeman, investigador do SIPRI, “prevê-se que o volume de armas transferido dos EUA para os países europeus aumente significativamente nos próximos anos”. Mesmo que alguns países estejam a investir na sua indústria militar doméstica, uma parte dos fundos terá como destino o exterior. E se olharmos para dentro da Europa, o setor é dominado por um pequeno número de grandes empresas concentradas em quatro países - Alemanha, França, Espanha e Itália. Os benefícios da “era do rearmamento” não serão iguais para todos.

Mesmo admitindo que a nova procura de armamento recai maioritariamente sobre empresas europeias, há outros problemas que se colocam. Com o modelo de intervenção adotado pelas instituições europeias - classificado pela economista Daniela Gabor classifica como “de-risking” -, em que os Estados assumem boa parte dos custos e do risco do investimento para garantir os lucros privados, é dado enorme poder às grandes empresas do armamento, que têm um interesse material na escalada de conflitos.

Além disso, ao contrário do que acontece com outros setores, o investimento na indústria do armamento vai favorecer inovações tecnológicas que tenham aplicação militar, o que nem sempre corresponde a inovação socialmente útil. O facto de, historicamente, o investimento militar ter estado na origem de inovações importantes para a sociedade, como o GPS ou a internet, tem a ver com ter sido um setor em que o Estado investiu de forma significativa com base em objetivos que eram considerados prioritários. Essa lógica pode ser replicada noutras áreas, como a produção de energias renováveis ou a preservação dos recursos naturais, dependendo do que se considera prioritário.


Armas a troco de quê?

Na UE, o combate às alterações climáticas já está a ser relegado para um plano secundário face à urgência do rearmamento. Esta opção tem consequências não apenas para o ambiente, mas para a própria economia. A dependência energética da UE, que importa praticamente todo o petróleo e a maioria do gás natural de que necessita, é um fator de vulnerabilidade económica. A invasão da Ucrânia por parte da Rússia, que fez disparar os custos da energia, provocou um aumento do custo de vida para a maioria das pessoas e atingiu de forma significativa o setor industrial, o que ajuda a explicar o encerramento de fábricas e a crise da economia europeia.

Este contexto sugere que há bons motivos para priorizar o investimento na produção e armazenamento de energias renováveis e em investigação para a reconversão energética da indústria, com o objetivo de reforçar a autonomia energética e reduzir a exposição a choques de preços provenientes do exterior, além de contribuir para o combate às alterações climáticas - o principal risco que enfrentamos enquanto sociedade. Com a corrida às armas, estamos a concentrar os nossos esforços na batalha errada.

Embora a Comissão Europeia tenha feito tudo para incentivar a despesa em armamento, isso não significa que o tenha feito sem contrapartidas. Fontes internas citadas pelo Público admitem que “a prazo, estas despesas terão de ser acomodadas nas contas nacionais, ou através de um aumento de impostos, ou de uma redução na despesa pública”. Não é difícil antever que o reforço extraordinário dos gastos em armamento terá como consequência uma contenção da despesa em outras áreas. Entre os países ocidentais, os que dedicam uma fatia maior do orçamento à indústria militar tendem a gastar menos em proteção social.

O plano da Comissão Europeia tem um mérito: mostrar que, quando existem objetivos que se consideram prioritários para a sociedade, as medidas necessárias para os atingir não podem ficar dependentes de regras cegas de controlo estrito do défice orçamental. O problema fundamental é que as instituições europeias só se mostram dispostas a dar este passo para o rearmamento, depois de décadas em que negaram essa possibilidade para investir em escolas, hospitais, transportes públicos ou habitação acessível, além de terem forçado os países mais vulneráveis a efetuar cortes nestas áreas.

A escalada das tensões entre os países ocorre num contexto de ascensão da extrema-direita nos EUA e na Europa. Décadas de austeridade, erosão dos serviços públicos e compressão dos salários e do poder de compra da maioria das pessoas alimentaram o ressentimento e deram um contributo importante para a emergência de forças políticas reacionárias. Com necessidades de investimento evidentes para reforçar os serviços públicos e promover a transição energética, uma nova vaga de cortes no investimento público e no Estado Social em nome do rearmamento só vai acentuar os problemas.


Contra o rearmamento. Financiem-se os serviços públicos e não a guerra.

“Vamos lá, senhoras e senhores. Por favor, compreendam uma coisa básica. A ideia da invasão da Rússia era manter a NATO fora da Ucrânia. E o que é a NATO, na verdade? É o exército dos EUA, com os seus mísseis, os seus destacamentos da CIA, e tudo o resto. O objetivo da Rússia era manter os EUA afastados da sua fronteira. Porque é que a Rússia está tão interessada nisto? Se a China ou a Rússia decidissem instalar uma base militar no Rio Grande ou na fronteira canadiana, os Estados Unidos não só se passariam como entrariam em guerra em cerca de dez minutos. Quando a União Soviética tentou isto em Cuba em 1962, o mundo quase acabou num Armagedão nuclear”, in transcrição editada do discurso de Jeffrey Sachs no Parlamento Europeu, a 19 de fevereiro de 2025, sobre a UE, a guerra por procuração da NATO na Ucrânia e o genocídio de Israel na Palestina. 

Como dizíamos a 4 de março de 2022, a invasão da Ucrânia pode mesmo ser condenada sem legitimar o imperialismo dos EUA e da UE. 

De resto, o que não falta são intelectuais, políticos, professores e diplomatas que, a seu tempo, avisaram do resultado provável da expansão da NATO para leste e que a desaconselharam. 

No momento histórico em que a Comissão Europeia, imparável num duplo processo de açambarcamento de competências que os tratados não lhe outorgam e de integração neoliberal furtiva, insiste em enterrar a União Europeia numa guerra por procuração que perdeu o mandante, que ninguém pode ganhar e que os europeus a quem foi perguntado não desejam, não vejo nada politicamente tão importante como reafirmar a necessidade de enfrentar os belicistas e a sua guerra de classes. 


Na opinião publicada, enxames de colunistas bem longe da linha da frente e melhor instalados no conforto que o sistema lhes proporciona, asseguram-nos que não há alternativa ao rearmamento.

À direita, por exemplo, sem qualquer surpresa, é-nos garantido que a “Europa deve reduzir o seu Estado-providência para construir um Estado de guerra”. 

À esquerda, para outro exemplo, acena-se com Trump, Putin e Musk e, numa narrativa que – missão impossível - apenas se mantém íntegra se soterrar Biden nos confins do esquecimento, apela-se, pia e inconsequentemente, a um rearmamento que não destrua o que “sobra do Estado Social”. 


É isto que nos vendem como comentário sensato. Isto e o lunático desbragamento militar atómico dos verdes com bombas.  

Nuances de colunistas à parte, a guerra à despesa social para financiar o rearmamento é a verdadeira guerra que a retórica militarista esconde; a guerra que o capital, enredado na armadilha da austeridade, impõe ao trabalho

Se a corrida armamentista revelou uma vez mais quão falaciosa é a ideia de não haver dinheiro, uma espécie bastarda de Keynesianismo de guerra circunscrito a despesas militares não é solução, mas problema. 

A esquerda que não alinha com o neoliberalismo e que defende os direitos de quem trabalha não aceita a falsa narrativa segundo a qual o rearmamento é necessário. 

Se há dinheiro, e há, esse dinheiro deve ser investido em pão, saúde, habitação, educação e ambiente. É isto que gera a paz. A manteiga e não os canhões que Trump nos quer impingir e que as lideranças europeias, vassalos despeitados, lhe querem comprar.

quinta-feira, 6 de março de 2025

Colóquio A Revolução e a Economia, 15/03 (sábado), ISEG (Lisboa)



Até que ponto e de que forma é que a irrupção revolucionária de 25 de Abril de 1974 foi consequência do esgotamento do modelo económico do Estado Novo? Numa altura em que as leituras revisionistas sobre esse modelo ganham fulgor, que balanço devemos fazer das contradições e bloqueios que caracterizavam a sociedade e economia portuguesas nas vésperas da Revolução? Que novas experiências de organização económica foram ensaiadas nas fábricas e nos campos no período revolucionário? Que visões e modelos de sociedade é que essas experiências procuravam concretizar e quais os limites e desafios que enfrentaram? Como, com que atores e com que consequências teve lugar a transição liberal na ressaca da Revolução?

Cinquenta anos volvidos sobre o período revolucionário desencadeado pelo 25 de Abril de 1974, o Abril é Agora e o CEsA - Centro de Estudos sobre África e Desenvolvimento promovem um colóquio para analisar a Revolução de Abril nas suas relações com a economia, incluindo ao nível da política económica e da economia política. Ao longo de um dia de comunicações e debates, pretendemos discutir os antecedentes da Revolução, o processo revolucionário propriamente dito e o legado da experiência revolucionária em termos daquilo que foi conquistado, aquilo que permaneceu e aquilo que foi desmantelado.

No ISEG, em Lisboa, a campanha Abril é agora reúne historiadores, economistas e outros especialistas no dia 15 de março para debater estas e outras questões de forma rigorosa e tomando partido, como deve fazer toda a boa ciência social. Estão todas e todos convidados a juntar-se a nós para este evento.

Inscrição livre e gratuita, mas obrigatória, aqui. 

quarta-feira, 5 de março de 2025

Censurar o desgoverno

 

Naturalmente, o Governo, através do Ministério dos Negócios Estrangeiros, veio logo aplaudir o perigoso impulso belicista da Comissão Europeia, o negócio estrangeiro tão promíscuo, o novo pretexto para erodir ainda mais as funções sociais do Estado. Entretanto, a arte de Peter Kennard ajuda a sintetizar muitas palavras de merecida censura a este desgoverno.

terça-feira, 4 de março de 2025

Censurar o belicismo


A avaliar pelas sondagens na Alemanha e na França, os serviços de propaganda da Comissão Europeia vão ter imensas dificuldades em convencer os cidadãos dos países da UE de que a corrida armamentista serve outra coisa que não as indústrias da morte e a guerra. 

Há que investir no medo, sempre no medo, no medo dos de baixo, porque os de cima estão demasiado seguros. 

Creio que a maioria compreende a acrescida insegurança social e geopolítica que tal desperdício representa, mas isso não dispensa um poderoso movimento pela paz. 

É claro que a Comissão Europeia, a mesma que apoia o genocídio perpetrado por Israel na Palestina, pode contar com uma falange de intelectuais para justificar a necessidade de sacrificar os Estados sociais e o investimento socialmente necessário para transferir 800 mil milhões para os bolsos da mais lucrativa e opaca das indústrias capitalistas. 

É para isto que existem verdes com armas, em plena crise climática; ou social-democratas com armas, em plena crise social. Fim do mundo, fim do mês, a mesma luta, como diz um slogan que ganha sempre novos sentidos.

Montenegro também já tinha dito que era favorável a tal desperdício: «Os próximos anos serão de acréscimo de investimento em segurança e defesa (…) Não há como evitar». Imaginem as promiscuidades, as oportunidades, que tais parcerias público-privadas vão gerar.

A UE precisa de muito mais do que gastar em armas

Os mesmos que até há pouco defendiam a disciplina orçamental acima de tudo, defendem agora que o cumprimento das regras pode ser posto de lado – desde que seja para gastar em armamento.

O paradoxo é evidente. Se os constrangimentos financeiros eram tão intransponíveis que não permitiam investimentos fundamentais para a coesão social, para a modernização da economia ou para a transição energética, como se justifica que agora haja margem para financiar um aumento substancial da despesa militar? Das duas, uma: ou os argumentos sobre a insustentabilidade das finanças públicas europeias foram um pretexto para impor um modelo de sociedade, ou há quem acredite que gastar em armas faz bem às contas públicas.

A situação actual vai revelando aquilo que já se suspeitava: os limites orçamentais europeus não são neutros nem tecnicamente inevitáveis. São o resultado de escolhas políticas que determinam que certos tipos de despesa são indesejáveis, enquanto outros podem ser tolerados, independentemente do impacto que tenham na estabilidade financeira da zona euro. A ironia é que, ao longo das últimas décadas, muitos dos investimentos adiados ou sacrificados em nome da disciplina orçamental foram precisamente aqueles que poderiam ter tornado a Europa mais capaz de lidar com alguns dos problemas que agora enfrenta.

O resto do meu texto pode ser lido no Público

Quinta-feira, em Lisboa


Considerando que a questão da habitação constitui «um fator de reprodução das desigualdades sociais, que acentua os determinantes de classe social, idade, género, nacionalidade ou etnia», o estudo identifica «um mercado de arrendamento tripartido» na Área Metropolitana de Lisboa, do qual faz parte um segmento liberalizado, «que se dirige sobretudo a uma população em idade ativa que enfrenta uma elevada sobrecarga com os custos habitacionais e instabilidade contratual», um segmento protegido, mas que «concentra más condições de habitabilidade, albergando uma população inquilina sem capacidade financeira para transitar para o mercado liberalizado» e um segmento informal, que «acolhe uma população que acumula precariedade laboral, habitacional e de cidadania».

O lançamento do nº 21 dos Cadernos do Observatório sobre Crises e Alternativas do CES, sobre «O Arrendamento Habitacional na AML: um mercado segmentado, inacessível e inseguro», da autoria de Ana Cordeiro Santos, Raquel Ribeiro, Rita Silva e Carlotta Monini, tem lugar na próxima quinta-feira, 6 de março, no Auditório da Biblioteca Nacional, em Lisboa, a partir das 17h00. Juntamente com Ana Drago, participarei nos comentários ao estudo, na sequência da sua apresentação. A entrada é livre, apareçam.

segunda-feira, 3 de março de 2025

Qual é o custo de ter o verão no ano todo?

Texto disponível no substack (de acesso livre)

Em 2025, o verão parece ter chegado mais cedo à Índia. As previsões meteorológicas apontam para que o mês de março seja o mais quente de que há registo no país. É uma tendência que se tem verificado nos últimos anos: não só o calor é cada vez mais intenso - no verão do ano passado, as temperaturas em Nova Delhi atingiram os 50ºC, provocando enormes dificuldades às pessoas -, como as ondas de calor começam mais cedo no ano.

A onda de calor precoce vem na sequência de um inverno mais seco do que o comum. Entre janeiro e fevereiro, as regiões de Gujarat e Goa tiveram um défice de precipitação de 100% - por outras palavras, não houve chuvas neste período. Maharashtra teve um défice de 99% e houve muito pouca chuva noutras regiões. A maioria dos cientistas reconhece o papel das alterações climáticas neste processo. Um especialista citado pelo jornal britânico Independent explica que “o aquecimento global afetou a precipitação na Índia durante o inverno. Os verões têm-se alargado e a época de inverno tem-se reduzido, com os padrões de precipitação erráticos a ter impacto nos perfis de temperatura no país”.

As temperaturas anormalmente elevadas para esta altura colocam riscos para a produção agrícola, em especial no caso do trigo. A Índia, que é o segundo maior produtor de trigo do mundo, já tem tido problemas com as colheitas nos últimos anos devido às ondas de calor que afetam o norte e o centro do país, onde se concentra a produção.

As previsões para este ano não são animadoras e o impacto das colheitas mais fracas já se faz sentir: os preços do trigo atingiram valores recorde neste mês devido aos constrangimentos da oferta. A subida dos preços traduz-se num aumento do custo de vida para a maioria.

Não é uma tendência nova. Nos últimos anos, a Índia tem registado níveis elevados de inflação dos alimentos, em boa medida devido ao impacto das alterações climáticas. Além das colheitas de trigo, as produções de açúcar e de tomate também foram afetadas pelo clima, aumentando o custo da alimentação e acentuando tensões sociais. Esta tendência é especialmente preocupante num país que tem um quarto da população subnutrida de todo o mundo e onde 190 milhões de pessoas passam fome.

Os fenómenos meteorológicos extremos (como as ondas de calor, secas prolongadas, incêndios ou cheias), que têm sido amplificados pelas alterações climáticas, estão a afetar a produção agrícola e, com isso, os preços que pagamos pelos produtos. É uma parte importante da explicação para o aumento dos custos do café ou do chocolate, aqui discutidos recentemente.

Uma análise publicada no ano passado pelo banco central da Índia alerta para os riscos que as alterações climáticas colocam para a inflação dos produtos alimentares. A subida média dos preços dos alimentos passou de 2,9% entre 2016 e 2020 para 6,3% nos anos mais recentes. De acordo com os autores, “um fator distintivo determinante para esta diferença significativa tem sido a incidência de múltiplos choques da oferta simultâneos devido a eventos climáticos”.

E os impactos não se resumem à Índia. As fracas colheitas levaram o governo a impôr restrições às exportações de trigo ou arroz não-basmati. Como a Índia é um dos principais produtores mundiais, as restrições afetam o acesso a alimentos e o custo de vida em muitos outros países, sobretudo em África e na Ásia. Por sua vez, a disrupção na produção de açúcar repercutiu-se num aumento dos preços das bolachas e outros doces a nível mundial.

Embora os problemas sejam mais acentuados nos países mais pobres, esta está longe de ser uma realidade distante. Este tipo de choques tem-se tornado mais frequente um pouco por todo o mundo devido às alterações climáticas. Um estudo publicado por investigadores do Banco Central Europeu (BCE) concluiu que, em 2022, as temperaturas-recorde registadas no verão aumentaram a inflação dos alimentos entre 0,43 a 0,93 pontos percentuais na Europa. Com o aquecimento projetado para o continente nos próximos anos, poderá haver um aumento da taxa de inflação dos alimentos de até 3,2 pontos percentuais, o que levaria a uma subida de até 1,2 pontos percentuais na taxa de inflação total, aumentando o custo de vida.

Este fenómeno pode ser descrito como “shockflation” – inflação provocada por choques que afetam a produção (e os preços) em setores específicos e depois se repercutem no resto das atividades económicas que dependem destes. Com o aquecimento global, é provável que este tipo de choques se torne mais frequente no futuro, sendo que a pressão sobre os preços é amplificada pelo poder das grandes empresas para proteger (ou aumentar) as margens de lucro.

Aumentar as taxas de juro para combater a inflação não ajuda a resolver nenhum destes problemas. Uma das alternativas que têm sido propostas é a criação de stocks de reserva de bens alimentares e matérias-primas à escala internacional, que permitem aos países estabilizar a oferta e evitar oscilações excessivas dos preços.

A Índia possui uma reserva de trigo e tem utilizado essa reserva nos últimos anos. Para compensar a quebra das colheitas, as autoridades aumentaram o volume de trigo vendido aos compradores (como produtores de farinha ou de bolachas), com o objetivo de reforçar a oferta e conter a pressão sobre os preços. No entanto, no ano passado, as reservas de trigo atingiram o valor mais baixo desde 2008. Se as colheitas não recuperarem, esta estratégia tem limites.

Face a estes constrangimentos, é cada vez mais difícil justificar adiar o investimento em medidas de adaptação às alterações climáticas. É necessária uma discussão mais abrangente sobre a transformação estrutural dos sistemas de produção e distribuição de bens essenciais, sem ceder a teses catastrofistas que asseguram que não há soluções. Como argumenta o economista James Meadway, “à medida que a crise de adaptação [às alterações climáticas] se acentua, é expectável que sejamos confrontados com questões mais determinantes: sobre como produzimos o que comemos, quem o produz e como deveria ser distribuído de forma justa”. O preço a pagar pela inércia é demasiado alto.

Este texto também está disponível no substack. Se gostarem, podem aceder e subscrever de forma gratuita.

domingo, 2 de março de 2025

Censurar o neoliberalismo


Confirma-se que Luís Montenegro é um videirinho, para usar a linguagem técnica da ciência política. É a última e bem sórdida encarnação da subordinação do poder político democrático ao poder económico, ao arrepio da Constituição. 

Isto não é só defeito, é também, e sobretudo, feitio de uma política que substituiu a economia mista, prevista na Constituição, por uma economia neoliberal, através de privatizações e de liberalizações sem fim, de erosões sem fim da base material da autoridade do Estado democrático. 

Sim, esta política e os seus cada vez mais venais executantes merecem censura.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Das casas e do habitar


«Entre as muitas crises que no nosso tempo se sucedem e se atropelam como a multidão em hora de maior afluência — crises para todos os gostos e de grande utilidade na arte da governação, também chamada “governança” — há uma pesada como o betão: a crise da habitação (a rima que aqui ocorre é fraca, mas justa). É uma crise transnacional, em expansão, atravessa fronteiras e oceanos. E alastra em sentido inverso ao da demografia: a população diminui, mas a falta de casas aumenta.
A especulação imobiliária e a concentração dos habitantes nos grandes centros urbanos são as duas principais causas geralmente apontadas. Mas devemos pôr a hipótese de que para tal contradição contribui uma outra causa menos calculável por governos, urbanistas e economistas: a tendência contemporânea para uma hegemónica cultura do single. Cada indivíduo, e já não a família, procura o seu espaço vital mínimo
».

Excerto do artigo de António Guerreiro no Público de hoje, que vale a pena ler na íntegra. Mobilizando um conjunto de referências importantes na história da arquitetura, Guerreiro junta - ao efeito decisivo da especulação e, em segunda linha, da concentração urbana - a questão da «individualização» do habitar. Não deixando ainda de aludir, oportunamente, ao retrocesso que a nova lei dos solos representa, e que é ainda mais absurdo neste contexto, ao nível dos compromissos com a sua não impermeabilização.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

A saúde é uma causa pública


Depois do estudo sobre fiscalidade, divulgado em novembro de 2023, e do recente relatório sobre a crise de habitação (novembro de 2024), a Causa Pública divulgou recentemente o estudo «Saúde em Portugal - Opções para uma causa pública», coordenado por Joana Mira Godinho, João Durão Carvalho, João Oliveira e Manuela Silva.

Reconhecendo os desafios decorrentes do «envelhecimento da população, impacto da pandemia e da Troika, evolução tecnológica, suborçamentação do SNS e erosão de recursos humanos», bem como o «crescente investimento privado e uma narrativa de degradação do SNS que incentiva a privatização», os autores assumem a defesa do «fortalecimento do SNS», rejeitando «a sua redução a um modelo minimalista e assistencialista». O estudo apresenta recomendações em 15 domínios, incluindo as questões associadas ao «financiamento, valorização dos profissionais, sustentabilidade e organização dos cuidados».