domingo, 8 de setembro de 2024

Ignorância ou desonestidade?

No quadro plurianual das despesas públicas apresentado pelo governo na passada sexta-feira pode-se ler que a receita prevista de impostos para 2025 seria de quase 294 mil milhões, um aumento de mais de 50 mil milhões e de 21% face a 2024. 

Quem conhece minimamente os dados económicos do país chegaria facilmente à conclusão de que estes valores não se poderiam referir exclusivamente a impostos (em contabilidade nacional os impostos cobrados em 2023 foram de cerca de 67 mil milhões e as contribuições para a segurança social 33 mil milhões). De facto, como mais tarde esclareceu o governo, estes valores incluem outras receitas assim como financiamento obtido por emissão de dívida pública. 
 
Perante estes dados, a iniciativa das liberdades censitárias reagiu da seguinte forma:


Das duas uma, ou o partido que faz dos impostos a questão central de praticamente toda a sua ação política não tem a mínima noção do seu tema de eleição ou então decidiu, conscientemente, cavalgar uma terminologia infeliz do governo para iludir os portugueses. Qualquer uma destas alternativas não surpreende.

Balanço de uma privatização em curso

Na passada semana, a ministra da Saúde deu uma conferência de imprensa para, alegadamente, proceder a um balanço da execução do plano da saúde. Mas mais que o plano e a sua execução, o momento terá servido sobretudo para tornar públicas duas medidas, manifestamente lesivas para o SNS (como Tiago Santos já aqui assinalou), que evidenciam o empenho do Governo na privatização do setor. Ou seja, o balanço do plano parece ter sido apenas um pretexto, uma espécie de papel de embrulho, para ofuscar o significado e alcance político dessas medidas.

Para esse objetivo, até a assunção, por parte da ministra, de que «nem tudo correu bem» - com apenas 8 das 15 medidas urgentes do plano concluídas nos três meses previstos - ajudou a dar um ar de boas intenções e a preparar o anúncio das tais boas notícias: a criação de 20 centros de saúde com gestão privada e financiamento público (aprovada no dia seguinte), e a atualização dos preços das ecografias obstétricas convencionadas com o setor privado.

No caso das ecografias pagas aos privados, estamos a falar de aumentos muito expressivos, como ilustra o gráfico seguinte: de 55€ por cada ecografia realizada no 1º e 3º trimestre da gravidez, e de cerca de 80€ por cada ecografia realizada no 2º trimestre. Globalmente, está em causa uma despesa a rondar os 3,6M€, que poderia e deveria ser investida no próprio SNS, capacitando-o e reforçando a sua autonomia na realização destes exames.


No caso dos 20 centros de saúde privados com financiamento público - já sintomaticamente saudada pelo presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada (em linha com a satisfação do diretor executivo da Associação de Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo, pelo aumento dos valores por turma nos Contratos de Associação) - a lógica é a mesma. Em vez de investir no SNS, o Governo paga com o dinheiro de todos o surgimento de novas unidades privadas, com a agravante de lhes oferecer condições de gestão que nega às unidades de saúde familiar públicas. Para além de, não menos grave, esta medida incentivar a entrada de médicos mais jovens no privado, em vez de os fixar e atrair para o serviço público de saúde.

É claro que a conversa para dissimular a «ida ao pote» (lembram-se?), e fazer da saúde um negócio patrocinado com recursos públicos, é a de sempre. Em vez de assumirem com clareza ao que vêm, argumentam, com a sonsice habitual, que o privado apenas está a complementar o serviço público e que o importante é assegurar o acesso à saúde, não importando quem presta os cuidados. Tudo isto enquanto se procede à transfega de recursos para os agentes privados, financiando a sua expansão, os seus lucros e a sua capacidade para ir buscar mais médicos e outros profisisonais ao SNS, deixando-o simplesmente definhar. Até que seja tarde demais.

sábado, 7 de setembro de 2024

Com drama


Carmo Afonso foi saneada da última página do Público. Era uma das cronistas mais populares e nenhuma explicação foi dada, logo a mais óbvia permanece. Foi substituída por Pedro Adão e Silva, mais conforme à sabedoria convencional, a que não passa sem verberar contra “o populismo”. Por exemplo, até na TAP conseguiu convocar umas supostas “instrumentalizações populistas desastrosas”, mas sem dizer quem, quando ou porquê. 

Mais importante, muito mais importante, desde que começou a escrever há meses na última página, Adão e Silva ainda não encontrou oportunidade para se debruçar sobre o genocídio em curso na Palestina, mas já escreveu várias vezes sobre Kamala Harris, incluindo sobre os seus gostos musicais. É uma das principais apoiantes do mortífero colonialismo sionista e já garantiu que vai persistir na linha de sempre dos EUA. 

Carmo Afonso escreveu no Público que “a desdramatização daquilo que é dramático é uma modalidade nacional”. É uma modalidade que Adão e Silva pratica, tal como o surf, sobre o qual de resto já escreveu bem. Será que Pedro Adão e Silva vai continuar a desdramatizar também pelo seu silêncio?

Era tudo tão simples, não era?


Tal como no Plano de Emergência da Saúde, apresentado em maio, com objetivos manifestamente irrealistas que criaram falsas expetativas (como o próprio Presidente da República viria a assinalar), também na educação, com o Plano +Aulas +Sucesso, o Governo nunca deixou de estar em campanha, fixando objetivos de credibilidade mais que duvidosa e alimentando assim, de novo, expetativas inverosímeis.

Concretamente, com as medidas do plano, o ministro Fernando Alexandre prometeu uma redução, até ao final do 1º período, «em pelo menos 90% do número de alunos sem aulas desde o início do ano letivo», e «todos os alunos sem interrupções prolongadas» no final do ano letivo. O que se sabe, neste momento, é que, apesar das medidas adotadas, a situação da falta de professores se agravou face ao ano letivo anterior. De acordo com o Expresso, a poucos dias do início das aulas, «há mais 30% de alunos com professores em falta».

Mas não se critique apenas a ambição irrealista do ministro da educação, quando é o próprio Primeiro-Ministro a ter que travar a fundo e inverter o que disse há um ano atrás, quando sugeriu que bastaria mudar de governo para que tudo se resolvesse. Agora, já assume não ser possível superar o problema de um dia para o outro, reconhecendo a sua natureza estrutural, para a qual contribuiu bastante, aliás, a redução de cerca de 30 mil professores no ensino público, da última vez que a direita esteve no governo.

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Não dar cavaco à saúde


Num daqueles alinhamentos cósmicos que nada deve ter de acidental, com o anúncio da criação de 20 Unidades de Saúde Familiar com gestão privada (USF-C) reaparece da penumbra de onde nunca deveria ter saído o grande representante da introdução do neoliberalismo tatcheriano em Portugal, Cavaco Silva.

Em mais um artigo miserável, Cavaco Silva, com a sua habitual cagança que manda os políticos meterem coisas na cabeça que apenas ele, o iluminado, pode ensinar, discorre sobre uma restrição orçamental do Estado que não é mais do que uma conta de um fraco merceeiro. Cavaco Silva dá mau nome à economia, mas isso já sabíamos.

Cavaco Silva interessa aqui por ser exatamente o representante do tal neoliberalismo que desemboca nas ditas USF-C.

Um dos discursos mais conhecidos de Margaret Thatcher, e mais repetido desde sempre pelos seus seguidores neoliberais, encaixa na perfeição com o artigo de Cavaco Silva:
«Não esqueçamos nunca esta verdade fundamental: o Estado não tem outra fonte de dinheiro que não seja o dinheiro ganho pelos próprios cidadãos. Se o Estado quiser gastar mais, só o pode fazer pedindo emprestado as suas poupanças ou cobrando-lhe mais impostos. Não vale a pena pensar que outra pessoa vai pagar - essa “outra pessoa” és tu. Não existe dinheiro público, existe apenas o dinheiro dos contribuintes.»
Esta passagem encarna a ideia de que o Estado não cria valor, o Estado apenas drena valor que é criado no setor privado, em particular pelos patrões que investem. Por isso, dizem-nos, é preciso retirar o Estado da economia e deixar florescer o empreendedorismo privado.

Depois surgem as Unidades de Saúde Familiar com gestão privada e uma pessoa percebe o paradoxo: quando são públicas não criam valor, são apenas um sorvedouro do dinheiro dos contribuintes. Ao tornarem-se privadas, passam a ser parte de um mercado e aí sim, é criar valor em barda. Percebemos que nesta mundividência, o valor é uma noção dependente do título de propriedade.

As faculdades de economia ajudam. Basta lembrar que a equação do produto é sempre apresentada como Y=C+I+G+E-I. O setor privado “investe”, mas o Estado “gasta”.

Se o Estado usar o seu dinheiro para criar, gerir e desenvolver a atividade das USF, é um gasto e como ensina Cavaco Silva, cuidado com os impostos. Se isto for entregue a um privado, vai aparecer nas revistas e jornais como uma nova oportunidade de negócio, pujante, com perspetivas de crescimento, CEO premiados pela sua visão, conferências cheias de glamour para apresentação das perspetivas futuras do setor e jornalistas babados com mais uma oportunidade de exploração para alimentar o nosso porno-riquismo.

Obviamente que “o presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada aplaude com ênfase esta medida” e já esfrega as mãos enquanto diz que é “o início do caminho para a privatização” e que é “a primeira articulação entre o público e privado”. Já sabemos que antevê muito mais “oportunidades”.

Quem trabalha com a saúde pública numa ótica de prestação de cuidados a toda a população já apontou os problemas.

Constantino Sakellarides, talvez quem mais sabe de saúde pública neste país, aponta o óbvio: que se trata da abertura à privatização dos cuidados de saúde primários e que que estas USF-C vão retirar recursos ao SNS.

O presidente da Associação Nacional das Unidades de Saúde Familiar (USF-AN), André Biscaia fala na "tentativa de privatização de uma área que tem estado sempre sob a esfera pública, com muito bons resultados".

Mas quem aponta mesmo melhor o paradoxo são o presidente e o vice-presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, respetivamente, Nuno Jacinto e António Luz Pereira, que afirmam:
«nestas unidades vamos criar condições mais atrativas para os profissionais e equipas se fixarem…. Mas se assim é, a questão principal é a de perceber se temos capacidade para oferecer condições mais atrativas por que é que não o fazemos em relação às unidades atuais, aos profissionais que estão no SNS, por que não aplicamos esse modelo de financiamento de uma forma generalizada e vamos só aplicá-lo a unidades que são geridas pelo setor provado e social. É isto que nos gera muita confusão!»
«se é possível dar melhores condições, porque não dar essas mesmas condições aos profissionais que já estão atualmente no SNS e alargar as USF modelo B que já existem de forma a cobrir toda a população?»
Mas o que é que eles entendem disto? São médicos e estão preocupados em garantir que as famílias portuguesas têm todas cuidados de saúde de qualidade. Não entendem que apenas o setor privado cria valor. Não entendem que a saúde, provida para todos por um SNS gratuito, financiado por impostos, é um fardo para todos. Mas se for explorada por privados e der lucro, é criação de riqueza, é empreendedorismo, é iniciativa, é valor acrescentado.

Valha-nos Cavaco Silva para explicar.

Três dias


A Festa do Avante! começa hoje. Lembremos que é a festa do jornal que tem o recorde mundial na clandestinidade e que ainda hoje cobre, como nenhum outro, as lutas sociais de norte a sul do país. Pela minha independente parte, irei os três dias, comprei a EP, como costumo fazer. 

No sábado, pelas 10h, estarei no pavilhão de Coimbra a debater o futuro de Abril com Francisco Queirós. Pregaremos aos convertidos mais disciplinados, imagino, mas mesmo estes precisam de debater e de trocar argumentos, até para persuadir outros. 

No domingo, pela primeira vez neste milénio, farei um turno de trabalho na Festa, a vender doces típicos da minha região. Não há melhores. Não é preciso ser militante para trabalhar em festa. 

Afinal de contas, “esta vida são dois dias, a Festa do Avante! são três”. 

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Plano neoliberal


Desculpai a repetição, mas com a entrega de centros de saúde a capitalistas da doença, confirma-se, uma vez mais, que este é o Governo da CUF, para a CUF, pela CUF. E tem um plano em 7 passos, revelado por Vítor S. (sim, o neoliberalismo não passa sem plano; “plano para a liberdade”, chamou-lhe Hayek, em 1944): 

“1. Criam a imagem de caos no SNS; 2. Apregoam na campanha que a salvação está no privado; 3. Ganham eleições; 4. Esvaziam o SNS com saneamentos políticos; 5. Provocam um verão caótico nas urgências; 6. Vende-se o SNS aos privados; 7. Saem do governo para grupos privados.” 

Um outro grande teórico do neoliberalismo, Pedro Passos Coelho, defendeu que o plano neoliberal passa por uma forma de Estado particular: o Estado-Garantia, ou seja, a garantia estatal da colononização da saúde pelo capitalismo da doença. 

Este capitalismo é viral e espalha-se por todos os sistemas de provisão socializados. Retomo uma reflexão de 2016 sobre batalhas educativas, publicada no Le Monde diplomatique - edição portuguesa, até porque este Governo tem igualmente, e em coerência, um plano para a deseducação: 

Este vírus espalha-se na educação sempre que subsidiamos, seja através de contratos, seja através de benefícios fiscais, as moralmente distorcidas preferências elitistas das famílias em matéria de educação privada. Estas têm externalidades negativas para o conjunto da comunidade, por exemplo através da criação de barreiras de classe cada vez mais intransponíveis. 

Mas este vírus espalha-se também sempre que descuramos as relações sociais subjacentes à provisão. Isto acontece quando os trabalhadores da educação e os seus sindicatos são tratados como alvos abater, fazendo-se convergir as relações laborais na esfera pública com a maior desigualdade e precariedade que campeia na privada. Isto também acontece quando a lógica cooperativa dos mecanismos democráticos de gestão colegial das escolas é substituída pela lógica do comando empresarial, na figura de um director todo-poderoso, associada à perversa promoção da concorrência entre escolas. 

Esta última tendência é igualmente favorecida pelo perigo da crescente municipalização do ensino público no nosso país. A escola, mesmo que formalmente pública, tenderá assim a ficar refém de directores pouco escrutinados e da lógica clientelar de muitos municípios. Em conjunto poderão ter no futuro poder para contratar e despedir pessoal docente e não-docente cada vez mais precário. 

O vírus liberal emerge também na selecção e exclusão dos alunos pelas escolas públicas, imitando as práticas das escolas privadas, de acordo com o capital económico e cultural das famílias, determinante no sucesso escolar, ou com as necessidades dos alunos. O reforço da uniformização das escolas – escolas para ricos e escolas para pobres –, num país desigual e com taxas recorde de pobreza infantil, tem de ser travado através de batalhas em múltiplas frentes. 

A potência do vírus liberal está na sua capacidade mutante, na forma como se adapta aos vários sistemas de provisão sem perder a sua natureza. As parcerias público-privadas na saúde ou o cheque-dentista são outros tantos exemplos, desta vez no sistema de provisão de saúde, deste vírus, aí ainda mais potente pelos lucros poderem ser ainda maiores. 

As esquerdas que queiram ganhar os debates em torno dos sistemas de provisão de saúde, de educação e de outros não podem perder de vista o projecto global subjacente ao neoliberalismo, recusando a ilusão da liberdade de escolha que alimenta todas as desigualdades. Isto exige argumentos à altura do inimigo. Todas as batalhas têm de ser mesmo educativas.

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Falta de casas para quê e para quem?

Nos censos da população e da habitação o INE recolhe informação sobre a forma de ocupação dos alojamentos, distinguindo as situações de residência habitual (primeira habitação), residência secundária ou de uso sazonal e fogos devolutos. Sabemos que, na ponderação do número total de alojamentos pelo número de agregados familiares, o respetivo rácio quase não se alterou na última década, passando de um valor de 1,45 para 1,44 alojamentos por família.

Por si só, este dado deveria ser suficiente para fazer pensar os que continuam a defender, na direita que vai do Chega ao PSD, passando pela IL e pelo CDS-PP, que a atual crise de habitação resulta de uma mera falta de casas. Isto é, como se a subida vertiginosa dos preços na última década resultasse de um aumento significativo da população residente (procura) ou, em alternativa, de uma redução substancial do número de alojamentos (oferta), independentemente da diminuição do volume de construção.

Numa aproximação mais fina à evolução das carências habitacionais, podemos ainda ponderar, a partir dos dados censitários, a diferença entre o número de casas de residência habitual (primeiras habitações) e o número de famílias residentes, desconsiderando portanto, para o efeito, as segundas habitações e os fogos devolutos. Ao fazer essa análise, chegamos a uma conclusão clara: nunca a diferença entre o número de primeiras habitações e o número de agregados familiares foi tão reduzida como nos censos mais recentes, de 2021.


De facto, se em 1981 havia cerca de mais 155 mil famílias do que alojamentos de residência habitual, em 2011 essa diferença reduz-se para 53 mil, rondando, em 2021, o valor aproximado de 7 mil. Ou seja, em 2021 há apenas cerca de mais 7 mil famílias do que primeiras habitações, o que faz aproximar o respetivo rácio da unidade (uma habitação de residência habitual por família), ao contrário do que sucedia nos anos censitários anteriores.

Significa isto que não há um problema de falta de casas, como a escalada de preços claramente sugere? Sim e não. Ou melhor, não e sim. Na perspetiva das dinâmicas demográficas - em termos de evolução do número de famílias e alojamentos - o aumento de preços que se tem registado não tem sustentação. Mas se considerarmos que na génese da atual crise está o surgimento de novas formas de procura, que encaram as casas como meros ativos de investimento (nacional e internacional, a par da captura de habitações para fins turísticos), então sim, faltam casas e poderemos até, no limite, nunca conseguir construir o suficiente para satisfazer essas procuras.

Se não foi a demografia a provocar a subida dos preços, a verdade é que acabam por ser as famílias quem paga a fatura, dada a sua menor capacidade para disputar o acesso a uma casa para viver com as lógicas especulativas, que apenas procuram casas para investir. É por isso, aliás, que os retrocessos que o atual Governo já empreendeu, e que se prepara para aprofundar e alargar (eliminando as medidas de regulação do Alojamento Local e das procuras externas, a par do reforço das lógicas de subsidiação pública da procura e da oferta), têm tudo para agravar ainda mais a situação, instigando o aumento dos preços, em vez de os fazer descer ou, pelo menos, de os tentar conter.

Determinante de cultura

Não sei se já reparastes, mas, no Portugal dos Pequenitos, um intelectual público que se preze não vê, não visita e não lê, antes revê, revisita e relê. Já nasceu visto, visitado e lido, ouça. E a repensar, claro, a repensar. Pensar é que não.

Estava a reler umas páginas de um formativo livro – O Fardo do Homem Negro, do historiador Basil Davidson, editado, em 2000, pela saudosa Campo das Letras – e deparei-me com duas passagens; dois intelectuais a sério, dos que viram, visitaram, leram e lutaram, em diálogo, a pensar:


Cabral vive


Os factos dispensam-nos de provar que o instrumento essencial da dominação imperialista é a violência. Se aceitamos o princípio segundo o qual a luta de libertação é uma revolução e que esta não acaba no momento em que se iça a bandeira e se toca o hino nacional, veremos que não há, nem pode haver, libertação nacional sem utilização da violência libertadora por parte das forças nacionalistas, para responder à violência criminosa dos agentes do imperialismo.
Amílcar Cabral, Textos Políticos de Amílcar Cabral, Cadernos Maria da Fonte, Lisboa, 1974, p. 25.

O centenário do nascimento de Amílcar Cabral (1924-1973), um dos grandes marxistas e nacionalistas africanos, celebra-se em Coimbra, entre hoje e o dia 13 de setembro. Hoje, às 18h, na Biblioteca Municipal de Coimbra, discute-se o livro O Mundo de Amílcar Cabral. Seguem-se mais debates, uma exposição, oficinas, teatro ou música

terça-feira, 3 de setembro de 2024

Parece


Quem não quiser falar de capitalismo puro e duro, de privatizações sem fim, deve calar-se sobre a corrupção. Há muito que se sabe da sua natureza sistémica, indissociável de processos de neoliberalização entranhados. Por exemplo, em 2009, quando escrevia no Jornal de Negócios, perguntava: É o tempo da corrupção geral? Hoje, parece que é.

Privataria


Inspecção-Geral de Finanças conclui que TAP foi comprada com empréstimo com garantia da própria empresa O relatório da auditoria da Inspecção Geral de Finanças (IGF) às contas da TAP concluiu que a compra de 61% da companhia aérea ao Estado, em 2015, por um consórcio liderado por David Neelman foi financiada com um empréstimo de 226 milhões de dólares concedido pela Airbus, com a compra de 53 aviões à construtora pela TAP como contrapartida, e com a companhia aérea portuguesa a prestar garantia por esse crédito. Ou seja, a IGF estabelece que a TAP foi comprada com garantia da própria TAP.
 

Esta comprovada privataria é a enésima demonstração da natureza antipatriótica do Governo da Troika. Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque terão muito de explicar, espera-se, sem esquecer o inevitável Miguel Pinto Luz. Por falar nesta figura sombria, também com responsabilidades políticas neste negócio, recupero uma nota que aqui deixei quando se soube que ia a ministro e logo das Infraestruturas e Habitação.

Anti-Luz

Para lá da famosa carta de conforto na vergonhosa privatização da TAP, aposto que um jornalista de investigação passaria horas de diversão a escrutinar a polémica Fundação Alfredo de Sousa, a cujo Conselho de Administração Miguel Pinto Luz ainda preside, creio. Fica no concelho de Cascais, que não pertence ao distrito do Algarve. 

É parte do mamarracho capitalista académico da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa (vulgo Nova School of Business and Economics...). Gere, com os “parceiros corporativos”, ou seja, com grandes empresas que financiam, muito capital ligado ao campus de Carcavelos e atividades conexas, incluindo os terrenos cedidos pela Câmara Municipal de Cascais para a construção. Pinto Luz também faz parte do executivo camarário, como Vice-presidente. 

Ainda há almoços grátis, sob a forma de rendas fundiárias e não só?

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Exemplar


Aparentemente, a única coisa moral que resta aos palestinianos é morrer. A única coisa legal que nos resta é vê-los morrer. E em silêncio. Caso contrário, arriscamos as nossas posições académicas, financiamentos e modo de vida. 

A única coisa que moral que nos resta é arriscar, como sempre fez esta engajada escritora indiana. Sigamos o seu exemplo.

domingo, 1 de setembro de 2024

Anti-Câncio

Fernanda Câncio, com todo o carácter de quem nada sabia antes e tudo sabia depois, “se fizesse ideia”, declarou há uns tempos que este blogue já não é “respeitável”. 



O que dizer de pessoas que só criticam outras quando estas caem em desgraça? 

Já agora, José Sócrates não foi responsável pela “bancarrota”. E isto por três razões. 

Porque um Estado nunca entra em bancarrota, porque a inação objectivamente golpista do BCE foi responsável pela transmutação de uma crise financeira do liberalismo numa crise da dívida denominada na moeda que o BCE controla, se decidir controlar, e porque havia a alternativa da reestruturação liderada pelo devedor num país que, em 2011, tinha dinheiro para fazer face aos seus compromissos internos.

Além disso, escandalosos dez anos depois de ter sido preso para ser investigado, num directo televisionado que degradou a democracia, ainda não julgado, José Sócrates já mais que pagou a eventual dívida à sociedade. E isto caso se prove que tinha, de facto, dívida. 

anticomunismo primário de Câncio levou-a a colocar no mesmo plano ético Hugo Soares e Paulo Raimundo, como se desconhecesse a diferença entre estar indeciso perante o fascismo de Trump e o liberalismo que financia, arma e permite o genocídio de Kamala, ou recusar os termos dessa falsa escolha numa eleição onde, obviamente, os portugueses não votam, mas, se votassem, teriam alternativas não enterradas nesta distopia. 

Enfim, Câncio representa tudo o que está mal numa certa intelectualidade luso-liberal que se diz de esquerda, mas que adora a política de direita: do deslumbramento com o poder e da arrogância moral com pés de barro à empatia selectiva com o colonialismo sionista

Ao contrário de outras rubricas anti, esta não merece mais linhas.

A melancolia de esquerda pode esperar...


... já que “a vida são dois dias e a Festa do Avante! são três”!

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Pedalada


O modelo proposto é o do
“New Deal Verde”. Um ambicioso programa de desmercadorização da provisão de serviços públicos da água à energia, passando pelo transporte coletivo, que assegure emprego e rendimento aos trabalhadores através da socialização do investimento e da propriedade dos meios de produção. O exemplo da produção da energia elétrica, com mobilização pública de investimento centralizado, planeado, que permita, por um lado, a criação de trabalho de qualidade, sindicalizado e bem-remunerado e, por outro, a garantia do acesso à energia como direito social, mostra um caminho já trilhado antes e que pode ser replicado em muitos outros sectores. O combate às mudanças climáticas é o combate ao capital e essa é também a luta dos trabalhadores pela sua emancipação.

Excerto de Alterações Climáticas: Superar a Jardinagem Política, mais um texto de Nuno Teles no seu substack. Se o professor de Economia da Universidade Federal da Bahia não vem ao blogue, o blogue vai até ele.

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Passar ao lado da questão de fundo

No debate sobre a concentração de serviços de obstetrícia como solução para as intermitências de funcionamento em períodos críticos (meses de verão e quadra natalícia), e aludindo à reorganização da rede de maternidades promovida por Correia de Campos, tem sido defendido (ver por exemplo aqui ou aqui) ser esta a estratégia a adotar, dando nota dos obstáculos políticos (relacionados com a oposição à medida por parte de autarcas e deputados dos círculos eleitorais em questão), inerentes a essa abordagem.

Sucede, contudo, que os fundamentos em que assentou a reorganização da rede de maternidades em 2006/07 são bem distintos daqueles em que se baseia a atual proposta de concentração de serviços. O que estava em causa no tempo do ministro Correia de Campos, para lá da racionalização da despesa, era a necessidade de garantir, em territórios em declínio demográfico, um volume e diversidade de situações que assegurassem a «massa crítica» necessária à própria qualidade da resposta. Hoje, distintamente, o que está em causa é apenas a falta de recursos humanos para garantir o regular funcionamento destes serviços do SNS na região de Lisboa e Vale do Tejo, que é tudo menos desertificada.

Por outro lado, o que se constata é que os privados têm vindo, paulatinamente, a realizar uma proporção cada vez maior de partos (de 6,2% para 17,2% do total, entre 1999 e 2022), estimando-se, de acordo com a Ordem dos Médicos, que mais de 40% do total de ginecologistas e obstetras trabalhem no setor privado, sendo que na Grande Lisboa, cerca de 50% dos obstetras apenas trabalha no privado.


Muito mais que uma questão de reorganização e concentração dos serviços, a questão de fundo é pois, por isso, a da capacidade de reter e atrair novos profissionais para o SNS, travando a sua fuga para um setor privado em expansão. Um setor privado que é incapaz de cumprir plenamente princípios de política pública, como demonstra a prática de transferência de situações clínicas mais complexas para o SNS ou o excesso de recurso a cesarianas (65% do total de partos no privado em 2022, que comparam com os 32% registados no SNS, segundo a Pordata).

Não se espere, contudo, que o atual governo dê passos no caminho necessário, de fixação e atração de novos profissionais de ginecologia e obstetrícia para o SNS. Pelo contrário, não só o atual executivo propiciou uma situação ainda mais crítica no verão de 2024, face a 2023, como as medidas que já adotou e pretende adotar - nomeadamente no Plano de Emergência e Transformação na Saúde - vão no sentido de um reforço significativo do recurso ao setor privado, alimentando-o assim com um volume cada vez maior de recursos públicos.

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Currículo perfeito


Profunda conhecedora de swaps na ótica do perdedor, governante da troika, especialista em austeridade e em sucatear património público, beneficiária das portas giratórias, com passagem direta de vende-pátrias para uma multinacional de cobrança de créditos duvidosos, onde a sua agenda deu jeito certamente: Maria Luís Albuquerque tem um currículo perfeito para comissária europeia. 

No Livre afiançaram que se lhe conhece “muito pouco pensamento europeu”. Pelo contrário, quem apresentou um livro de Mithá Ribeiro, deputado do Chega, cobrindo-o de elogios, tem pensamentos neoliberal e neofascista perfeitamente adequados para a UE realmente existente e para os seus efeitos reais para lá da euro-ingenuidade. 

Pensar melhor


Nós não temos uma elite do poder. Temos uma elitita, tal como temos um Portugal dos Pequenitos. Elas pensam como se fossem Carrie Bradshaw e eles pensam como se fossem Mr. Big, pensam politicamente como se estivessem num episódio de O Sexo e a Cidade

Paulo Raimundo pensa como se estivesse numa periferia europeia, solidária com o povo palestiniano. Pensa como se o imperialismo tivesse a “força mais letal” – palavras de Kamala Harris – para apoiar todos os genocídios. Pensa como se não fosse obrigado a escolher o mal menor, até porque, surpresa, não é cidadão dos EUA. Pensa como quem constrói alternativas de forma internacionalista, focado no combate ao capitalismo neoliberal, ao colonialismo e ao racismo. 

Quem é que pensa melhor?

terça-feira, 27 de agosto de 2024

Insubmissão antiliberal


A gravidade do momento exige uma resposta firme da sociedade francesa contra o inacreditável abuso de poder autocrático de que é vítima.

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Quem ganha com a política monetária do BCE?


Apesar de o Banco Central Europeu (BCE) já ter reduzido as taxas de juro há três meses, a verdade é que isso ainda não se reflete no bolso das pessoas. Os dados mais recentes do INE, noticiados pelo Público, ajudam a perceber porquê. Nos últimos dois anos, desde que o BCE começou a subir as taxas de juro, a prestação média dos créditos à habitação passou de €261 para mais de €400 em Portugal. E os juros representam uma fatia cada vez maior das prestações: em 2022, correspondiam a cerca de 17% do valor pago todos os meses, em julho deste ano já representam 60% do total. Tendo em conta que o rendimento médio líquido em Portugal é de €1137 mensais, isto significa que a prestação da casa representa hoje mais de um terço do salário médio.

A política monetária do BCE agravou a crise do custo de vida para muitas famílias. Mas nem todos se podem queixar. Os principais bancos em Portugal lucraram 1,2 mil milhões de euros só nos primeiros três meses deste ano, o que representa uma subida de 33% face ao mesmo período do ano anterior. Os valores tornam-se ainda mais impressionantes quando se tem em conta que, no ano passado, os lucros dos bancos portugueses já tinham batido recordes. Depois dos lucros extraordinários acumulados em 2023, os bancos ainda conseguiram superar estes valores no início de 2024, muito devido à margem financeira - a diferença entre os juros que cobram aos clientes nos empréstimos e aqueles que pagam nos depósitos.

O problema da política monetária do BCE não é só o facto de ter assente em premissas erradas. É que, ao contrário do que muitos economistas assumem, as opções de política monetária são tudo menos neutras, sobretudo do ponto de vista distributivo. Um aumento das taxas de juro tende a prejudicar os devedores, sobretudo os que se encontram nos escalões de rendimento mais baixos, e a beneficiar os credores. Na prática, tende a beneficiar os mais ricos. Tendo em conta que a redução da taxa de inflação teve pouco a ver com a atuação dos bancos centrais, convém questionar a quem serve a política monetária do BCE.

domingo, 25 de agosto de 2024

Diz que é uma espécie de anti-Tavares


Em 2020, Rui Tavares garantia no Público que “a Sociedade das Nações teve um início bem acolhido por grande parte da população mundial”, referindo os infames “mandatos”, uma tecnologia de controlo imperialista já criticamente escrutinada na história da economia política. 

Reparai que “grande parte da população mundial” estava, em 1919, sob o jugo do imperialismo, sob a forma colonial ou semicolonial e assim permaneceu. Para um historiador liberal, a “grande parte” é, implicitamente, a opinião pública ocidental. O liberalismo está sempre a confundir “género humano com Manuel Germano”. 

Wilson, o seu incensado líder, tinha recusado a inserção de uma clausula de igualdade racial, proposta pelo Japão, na Conferência de Paris, em linha com a aceitação da expansão dos impérios coloniais vencedores. Os que, logo em 1927, fundaram, em Bruxelas, a Liga contra o imperialismo e a opressão colonial, com a ajuda da Internacional Comunista e inspirados no seu Congresso dos Povos do Oriente de 1920, também discordariam de Tavares, mas deles não reza a história dominante ocidental, embora reze cada vez mais a história do Sul que não é global, porque é soberanista. 

Chegou-me há pouco às mãos uma outra crónica de Rui Tavares, agora no Expresso em papel, um luxo garantido a poucos políticos pelo quase-falido Grupo Impresa, o da sociedade indigente de comunicação. 

Tavares coloca aí Nicolás Maduro no mesmo saco do genocida de Israel e do seu apoiante húngaro (EUA-UE, na realidade). É o seu enésimo uso da teoria liberal da ferradura, incapaz de atentar em tudo o que importa na avaliação política, da intenção à consequência, do contexto nacional às mortíferas sanções imperialistas internacionais, sem esquecer os erros e efeitos não-intencionais de política. Só não erra, quem não tenta. 


Obviamente, temos de ter toda a paciência para o relativismo sonso de quem foi à embaixada israelita, estava o genocídio a começar; de quem acha que a perigosa belicista verde alemã dos negócios estrangeiros é o suprassumo do ecologismo; e nem sequer falo, olha, já o estou a fazer, da invenção de um Marx ao serviço da sua utopia federalista (ou será distopia?). Confesso que esta última é a minha preferida, já que fez escola entre intelectuais do Livre. 

Isto anda mesmo tudo ligado no euro-liberalismo. A Primeira Guerra-Mundial foi um lamentável acidente, já ouvi dizer Tavares, fruto de atavismos conservadores e nacionalistas. Afinal de contas, o progresso liberal estava a correr tão bem. A contingência é tudo e a estrutura nada. A palavra imperialismo está banida, sobretudo quando associada a uma economia política à la Lénine que foi à raiz da rivalidade, como de resto reconheceu, numa nota de rodapé metida a medo, Thomas Piketty, em Capital e Ideologia

Limito-me por agora a deixar duas questões puramente políticas, com hipóteses puramente políticas associadas: se os militantes do Livre estão em geral bem à esquerda de Tavares, como explicar o controlo férreo que este tem do pequeno aparelho do partido, como se viu nas últimas eleições; e como explicar os inconsequentes números públicos em torno da unidade da esquerda em que é useiro e vezeiro e nos quais ninguém sério pode acreditar, até dados os precedentes históricos relevantes? 

Para que não pensais que só critico: considero até que o intelectualmente muito capaz Tavares faz mais sozinho do que muita esquerda acompanhada para levar a água ao seu moinho ideológico; pelo menos, Tavares compreende o papel da luta das ideias e da persuasão e é aí que radica parte do seu, espero que temporário, sucesso relativo. Mas só parte: ele é a esquerda que a direita adora, afinal de contas. 

Entretanto, o meu jornal de sempre, o Público, com sinais de decadência inequívocos, chega e sobra para ter acesso ao extremo-centro para onde converge quem já disse querer dialogar com a direita: despolariza, filho, despolariza; complexifica, filho, complexifica. 

Diz que foi uma espécie de anti-Tavares, porque Rui Tavares não é Karl Dühring e eu definitivamente não sou o tão subestimado Friedrich Engels, o gigante de A situação da classe trabalhadora em Inglaterra, regressado a Manchester, vindo da Ucrânia, há uns anos, numa memorável intervenção artística e política de Phil Collins.

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

O imperialismo é letal


O imperialismo é primeiramente a política externa da potência dominante do sistema internacional ao serviço do capital financeiro. Os EUA são a potência imperialista por excelência e logo o país mais perigoso do mundo. E estes factos estruturais estão para lá da conjuntura política. Kamala Harris, citada pelo Financial Times, confirmou-o ontem no discurso de aceitação: “como chefe suprema das forças armadas, assegurarei que os EUA têm a força mais letal no mundo”.

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Diz que é uma espécie de anti-Reis


Recusai pensar como um certo tipo de economista dominante. Só assim dareis as respostas mais óbvias às perguntas mais reacionárias sobre necessidades sociais vitais e que devem ser coletivamente assumidas. 

Os economistas convencionais gostam de alardear, como suprassumo da sofisticação, uma definição histórica e institucionalmente vazia de Lionel Robbins, de 1935, relacionando necessidades supostamente ilimitadas, recursos supostamente escassos e escolhas supostamente racionais. A partir desta definição chegam a uma noção de eficiência inventada por um fascista chamado Vilfredo Pareto para bloquear a igualdade. É inaplicável, até porque está dependente de uma alocação prévia de direitos e de obrigações que fica necessariamente por avaliar e de pressupostos heróicos. Depois, é só andar com a idiota análise custo-benefício para cá e para lá. 

Muitos papagueiam a definição de economia de Robbins, como se dissesse alguma coisa de significativo. As economias substantivas realmente existentes são outra coisa. São processos de institucionalização, histórica e geograficamente situados, escolhas sociais acerca de mecanismos de coordenação, critérios contestados no acesso a bens sociais, relações sociais de produção e de reprodução, determinando quem se apropria do quê e porquê, o que podemos ser e fazer com as nossas vidas, quem tem liberdade e quem está exposto a essa liberdade, etc. 

Nem necessidade, nem escassez, nem racionalidade são apropriadamente definidas no cânone neoclássico. Vale todo o relativismo, que disfarça mal a opção antissocialista dominante, profundamente normativa: o utilitarismo mais rasteiro é o refúgio filosófico dos que se dizem rigorosos. E dizem-se também isentos de valores, o topete. E assim têm sido deseducadas gerações de estudantes de economia. Sim, os economistas são menos cooperativos, devido a este ensino. 

Felizmente, a evidência empírica cada vez mais avassaladora mostra as vantagens absolutamente cruciais da socialização precoce das crianças fora do círculo familiar estreito, por exemplo em termos do seu desenvolvimento cognitivo e logo moral. Mas o homo economicus não nasce, não se desenvolve, não tem vulnerabilidades. Já aí está, já aí esteve, já aí estará, para todo o sempre, para ocultar todo o sadismo social. 

Os humanos são outra coisa. Fazem o melhor de que são capazes, de facto, mas nas circunstâncias que são as suas, sendo o dever da ação coletiva humanizar essas circunstâncias e desenvolver aquelas capacidades. O centro de tudo é a instituição, na definição dada por John Commons e que cito de memória: “ação coletiva que liberta, constrange e formata a ação individual”. 

Entretanto, o acesso universal e gratuito às creches, a sua massificação, é uma necessidade social, com um preço socializado, através de impostos, como toda a gente deve poder constatar, incluindo a partir do exemplo dos países que foram à frente, com vantagens também de género, quer no alívio do “altruísmo imposto” às mulheres, quer na geração de emprego feminino. Sim, o Estado social universal é o melhor que aconteceu à igualdade de género e de classe. 

Se houver necessidades vitais por satisfazer, deve haver racionamento assumido, e como Amartya Sen elogiou o que foi instituído na Segunda Guerra Mundial no Reino Unido, com listas de espera, neste caso, e mecanismos de voz para que estas sejam eliminadas tão rapidamente quanto possível. É bem melhor do que o silencioso e socialmente enviesado racionamento pela carteira. Os economistas convencionais só procuram complicar para ofuscar. Ignorai-os, que eles hoje em dia ignoram tanto do que importa. 

Pelo menos, Robbins era claro no seu antissocialismo visceral nos anos 1930. Havia ali uma honestidade que era função da época. A seguir à Segunda Guerra Mundial, Robbins lá assentou, rompeu com Hayek e aproximou-se intelectualmente de Keynes, advogando a massificação, de resto bem-sucedida, do ensino superior no seu país, atentai. 

Ricardo Reis, apoiante das direitas, ocupa a cátedra com o nome de Robbins na LSE, Oh My God, e não tem hoje “incentivos” para tal evolução. Apoucar os trabalhadores pobres e o Estado social é vantajoso, sabemo-lo há muito e por isso temo-lo criticado com denodo neste blogue e para lá dele.

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Silêncios tão ruidosos como as bombas que destroem universidades


Esta ruína é o que sobra da principal universidade de Gaza, arrasada pelo colonialismo sionista, no quadro de um metódico processo de eliminação de uma nação. Já não resta qualquer universidade, já não há escolas. 

Apesar dos protestos de estudantes e docentes, incluindo de sindicatos da FENPROF, e de uma ou outra tomada de posição, como a da Universidade do Minho, o silêncio cúmplice tem dominado a universidade portuguesa. 

Este silêncio dominante está em linha com a história mais tenebrosa da universidade, tanto mais que outro galo cantou quando começou a Guerra da Ucrânia. Até um notável professor russo chamado Vladimir Pliassov, que garantia graciosamente o ensino desta língua, foi saneado sem mais pelo reitor da minha universidade, lembrai-vos. Também houve quem protestasse, umas centenas de professores com memória. Também não valeu de nada, embora haja combates cujo mérito está logo em travá-los.

Israel é Israel, não há cá cortes de relações ou sanções. O fascismo também era o fascismo. Por cada Bento de Jesus Caraça, havia dezenas de medíocres papagaios do corporativismo fascista e do liberalismo autoritário de recorte fascista, de acordo com a fase ou a tendência. 

Hoje, a desdemocratização das universidades, conquista UE/OCDE que apagou a herança de abril no governo universitário, paga-se mesmo muito cara, em cada vez mais planos, com reitores e diretores dotados de poderes longos e de legitimidades democráticas curtas. Estamos cada vez mais próximos do informal modelo Nova SBE, da opaca Universidade SA. 

Sabem qual é a razão destes silêncios universitários dominantes, dado que aí os professores de carreira têm outra estabilidade? É tudo brutalmente simples, creio, para lá das convicções ideológicas: dada a cumplicidade ativa dos EUA e da UE, há financiamentos que não podem ser perdidos e a ciência está cada vez mais sob controlo, convém não arriscar. Há quem arrisque, claro. Sempre houve.

Entretanto, o genocídio atinge sempre a informação, o conhecimento e a cultura, sem as quais não há essa aposta diária a que chamamos nacionalidade. As elites portuguesas não a valorizam, algumas até a apoucam, mas as elites palestinianas não se podem dar a esse luxo. 

Os comandos colonialistas da morte têm assassinado mais jornalistas do que em qualquer outro cenário de guerra na história. Os jornais portugueses, os jornalistas portugueses, também andam demasiado silenciosos. Aposto que é da precariedade e do correlativo medo entre os que sabem, por contraste com a opulência dos apologistas da morte na televisão. E a cúmplice UE financia cada vez mais o jornalismo e Israel também. Sim, estou a pensar em monstros morais, como a avençada Helena Ferro Gouveia.

Os consensos de Washington e de Bruxelas (e de Telavive) explicam tudo, mas tudo, sobre a elite com mais poder deste país - entreguista, vira-latista, mandonista. Sim, precisamos de palavras vindas do Brasil e já agora de seguir o exemplo das suas muito mais corajosas academia, media alternativa e política externa.

domingo, 18 de agosto de 2024

Não calar


“Quem não quer falar de capitalismo deveria calar-se também sobre o fascismo”, disse Max Horkheimer em 1939. Em 2024, podemos dizer que quem não quer falar do capitalista Mário Ferreira, que controla a TVI-CNN, deveria calar-se também sobre a fascista Helena Ferro Gouveia.

Perante as sociopatas declarações de Ferro Gouveia, da apologia desbragada do genocídio, em linha com ligações conhecidas, Carmo Afonso pergunta e bem: “qual é o limite para aquilo a que assistimos na televisão?” 

Infelizmente, creio que não há limite, porque não há autoridade democrática que se dê ao respeito constitucional. Só há capitalismo televisivo puro e duro, ou seja, fascismo televisivo.

sábado, 17 de agosto de 2024

Enfim


A sociedade indigente de comunicação usa e abusa do sinal aberto, um bem público, difundido ideias fascistas, de que o machismo e o ódio à cultura são parte integral, conjuntamente com o belicismo, o classismo e o racismo. 

Há mesmo um défice de autoridade do Estado, quando temos José Gomes Ferreira com responsabilidades no que passa aí por informação, só para dar um exemplo. Já há fascistas, como Nuno Rogeiro, a partilhar impunemente toda a espécie de mentiras, como não se cansa de denunciar Luís Galrão

E, sim, José Miguel Júdice, da extrema-direita estudantil na Universidade de Coimbra, membro da rede bombista de extrema-direita no PREC e negocista desde aí, também é tecnicamente um fascista. E é mais um poderoso sinal do declínio editorial e isto para já não falar da situação financeira do medíocre grupo Impresa. 

Perante mais um momento fascista de José Miguel Júdice, Pedro Marques Lopes limitou-se a um “enfim”. Quem me lê, sabe que uso muito o “enfim” como muleta. Por isso, sei que o “enfim” tem múltiplas camadas. 

O “enfim” pode ser a reação de um conservador ao fascismo. “Enfim”, são uns brutos, mas o que tem de ser, tem de ser, trata-se de salvar as pratas da família. O “enfim” pode ser um “que maçada e inconveniência este tio, porque não se cala?”, um “cala-te boca”. 

O “enfim” neste contexto pode mesmo ser o reconhecimento dos limites da liberdade de expressão em meio laboral no capitalismo realmente existente: “é melhor sinalizar muito discretamente a crítica, mas sem melindrar o patrão, que o herdeiro anda nervoso e ainda me despede”.

Enfim, os patrões têm poder, porque têm a capacidade de infligir custos significativos a quem, neste caso, só colabora, mas ganhando várias vezes mais do que um jornalista que aí trabalhe.

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Lutar contra as direitas nas redes sociais, nas ruas, em todos os lados


Our eyes are soft with sorrow


Já que estamos com saudades dos anos 1960-1970 no cinema, com saudades do comprometido casal Gena Rowlands e John Cassavetes, deixo aqui outro dueto maravilhoso da mesma época.
   

Até sempre, Gena Rowlands


É possível um jovem universitário, chegado à capital, apaixonar-se por uma norte-americana muito mais velha? Era, realmente. E quando praticamente não havia norte-americanas em Lisboa. 

Havia, isso sim, pequenas salas de cinema espalhadas pela capital, como o Cine 222, ao Saldanha. É muito triste ver uma sala de cinema encerrada. Foi aí que vi Gena Rowlands pela primeira vez, ali nos idos de 1995/1996, mais de duas décadas depois de ter sido magnificamente filmada pelo seu realizador, John Cassavetes. 

Em 2024, frequento a sobrevivente sala a cheirar a mofo do Avenida, em Coimbra, onde há caminhos para a paixão do/no cinema. Quanto pior é a sala, melhor é o filme, adaptação da hipótese de Paul Krugman sobre salas de conferências. Divago, deixai-me divagar. 

Rowlands será sempre uma “mulher sob influência” e que muito me, nos, influenciou. Há um antes e um depois em todas as grandes e impossíveis paixões. Não esquecemos o belo momento, o tal “raio de luz indireta”. Morreu-nos esta semana, mas ela já era imortal há muito. Como tantas vezes acontece, João Quadros vai à essência: 

“Acho que poucas actrizes me perturbaram tanto psicologicamente como a Gena Rowlands. Talvez fossem aqueles papéis em que a loucura da personagem nos ultrapassa. Ficamos suspensos na esperança que recupere. Eu tinha vontade de ligar e dizer – não tomes nada, deixa a porta encostada, vou já.” 

Pedro Rei, por quem soube da triste notícia, informou-nos que o magnífico serviço público que dá pelo nome de RTP-Play tem dois filmes em que ela ocupa o ecrã todo. Ela vive aí e em tantos lados, para todo o sempre. Até sempre, Gena Rowlands.

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Lado a lado para memória futura


 

Iluminar de novo


Mas na realidade o homem nunca foi tão egoísta como a teoria exigia. Embora o mecanismo do mercado tivesse privilegiado a sua dependência em relação aos bens materiais, as motivações «económicas» nunca formaram o seu único incentivo para trabalhar. Os economistas e os filósofos utilitaristas exortavam-no para abstrair, nos negócios, de todas as motivações que não fossem «materiais», mas em vão. Uma investigação mais profunda mostrava sempre que ele agia por motivos extraordinariamente «mistos», não excluindo os do dever para consigo próprio e para com os outros e, talvez, até encontrando um prazer secreto em trabalhar por trabalhar. 

A generosidade, a benevolência e a virtude cívica não são recursos escassos de oferta limitada, mas também não são competências que possam ser melhoradas e expandidas de forma ilimitada com a prática. Em vez disso, tendem a exibir um comportamento complexo e compósito, atrofiando quando não são praticadas e invocadas pelo regime socieconómico prevalecente e tornando-se de novo escassas quando são defendidas e estimuladas em excesso. Para tornar as coisas ainda mais complicadas estas duas zonas de perigo (...) não são conhecidas e muito menos são estáveis. 

A hipótese de um novo iluminismo radical foi forjada pela filósofa catalã Marina Garcés e é o título do seu pequeno grande livro a não perder, editado pela Orfeu Negro e ideal para transportar para praia, rio ou montanha, para sorver em goles pequenos, com tempo. Estes dois autores luminosos de eleição não são aí referidos, sendo parte do cânone de economia política e moral, indispensável para um trabalho convergente com o de Garcés. 

Aproveito este ensejo para agradecer à editora Orfeu Negro não só por este livro luminoso, mas por todos os outros, sobretudo os que me têm permitido passar horas de pura felicidade com o meu filho, do Incrível rapaz que comia livros a O meu avô. Ainda gosto de pensar no presente, sei que já é memória, ele há muito que já lê outros livros e sozinho. A conversa, essa, é como se não terminasse. 

A escola pública tem o dever de ensinar a todas as crianças o gosto pela leitura, pela escrita e pela argumentação, libertando-as das determinações familiares; uma ou outra técnica adicional e assim se formam trabalhadores e cidadãos insubmissos. Sem insubmissão, a economia e a cidadania, com separações artificiais abolidas, não funcionam bem. 

Não é preciso ser-se pós-moderno para concordar com a historiadora económica neoliberal Deirdre McCloskey: uma parte crescente da atividade económica no capitalismo tardio mobiliza sobretudo a retórica. Tento persuadir os estudantes do seguinte: façam o que fizerem profissionalmente, o vosso trabalho envolverá persuasão e daí a importância de escrever e de falar cada vez melhor, o que exige prática, na sala de aula e fora dela. As humanidades contam tanto na economia e não só, sem esquecer o prazer secreto no trabalho pelo trabalho, de que falava Polanyi.

O ensino, contra McCloskey, é uma parte fundamental de um setor público que cria valor socializado (bom, ela ensinou numa universidade pública grande parte da vida...). Sim, precisamos da economia mista, base material da soberania democrática, com motivações mistas, sendo que hoje estamos numa das zonas de perigo de que falava Hirschman. É só o começo de conversa, rumo a uma sociedade mais regulada e civilizada.

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Mais um número no genocídio


Ontem ficámos a saber que o Governo dos EUA aprovou a venda de mais 20 mil milhões de dólares em armamento para Israel. Os 36 quilos por habitante de material explosivo, que já foi lançado pelo colonialismo sionista em Gaza, não bastam. Assim se fabrica um genocídio. 

O complexo militar-industrial determina em grande medida a política externa de alinhamento total com o sionismo: o marxismo simples e despojado explica mais do que a sofisticada sabedoria convencional liberal também nas relações internacionais. 

O resto é obra do complexo militar-ideológico. Basta atentar, por cá, nos serviços prestados pelo jornalismo dominante, escrito e televisionado, ou pela academia que é um nexo de contratos. E nós somos periféricos no cada vez menos relevante contexto europeu. As somas são mais pequenas e há silêncios que valem ouro.

Já agora, é preciso não confundir o direito internacional e a ONU com a chamada ordem internacional baseada em regras, feitas à medida dos interesses do capital que é grande dos EUA. Fazer distinções é fundamental e mais ainda aqui e agora.

Pedalada das Américas


Um número recente da The Economist anunciava triunfalmente o sucesso da transição energética para a energia solar. Em 2004, a instalação de um gigawatt de capacidade solar demorava um ano. Em 2010, demorava um mês. Hoje, demora menos de dez dias. O progresso tecnológico e a queda de preços, devida às economias de escala do sector explicariam a trajetória de crescimento muito acima do esperado. O “custo nivelado de energia” solar, uma medida que procura calcular os custos líquidos presentes com diferentes fontes de forma comparável, caiu para um milésimo do custo estimado nos anos sessenta. Hoje, o custo da energia solar e eólica está em torno de 40 dólares por megawatt, face aos 50-75 dólares do carvão. Os subsídios públicos, essenciais que foram nesta indústria nascente, poderiam ser agora retirados, deixando o mercado funcionar e resolver as mudanças climáticas.

O livro do geógrafo Brett Christophers The Price is Wrong – How capitalism won’t save us oferece uma perspectiva detalhada e céptica em relação a este triunfalismo. As notícias publicadas já depois do lançamento do livro parecem dar razão a Christophers. O investimento na geração de energia renovável na Europa e no Brasil parece ter estagnado. Esta é, portanto, uma realidade paradoxal (custos decrescentes e investimento estagnado). O livro dá-nos várias pistas explicativas. O ponto de partida de Christophers é a crítica ao presente modelo de produção energética, guiado por pretensos mercados competitivos e eficientes, onde os preços sinalizam a melhor alocação para o capital. Um modelo que esquece o “lucro” enquanto motor da acumulação de capital.

Se Nuno Teles, Professor de Economia da Universidade Federal da Bahia, não vem ao Ladrões, o Ladrões vai até ao seu regressado substack, com uma recensão a não perder.

terça-feira, 13 de agosto de 2024

Bastante factual ou não?


Olhai para este mapa, por favor. É a expressão visual de mais um holocausto colonial. Os pontos vermelhos são as zonas atingidas pelo exército terrorista de Israel, com a cumplicidade ativa dos EUA e da UE. 36 quilos de material explosivo por cada um dos habitantes de Gaza. 

As principais potências imperialistas antes da Primeira Guerra Mundial - Reino Unido, França e Alemanha -, responsáveis principais pela barbárie de 1914-1918, emitiram ontem um comunicado vergonhoso, onde conseguem não dizer a palavra Israel. Como disse Benjamim Fogel, “chegámos ao ponto em que Israel já não pode ser mais defendida e por isso os líderes ocidentais fingem que não existe”.   

Lembrai-vos que os vencedores da Guerra (Reino Unido e França) dividiram despojos dos impérios derrotados, incluindo partes do alemão e do otomano. Razão, toda a razão, tinha Lénine, ao contrário de algumas distorções de que a sua obra é alvo por historiadores liberais das ideias, como Rui Bebiano do Livre. 

Não por acaso, os bolcheviques tornaram públicos bastantes documentos secretos da diplomacia da guerra. No quadro da política colonial dos mandatos, Reino Unido e França passaram a controlar uma grande parte do Médio Oriente, sendo responsáveis longínquos por tudo o que ali se tem passado (a declaração Balfour é logo de 1917...). 

A Sociedade das Nações é hoje demasiado incensada pela historiografia liberal (por exemplo, atentai na opinião de Rui Tavares, que, de resto, foi à embaixada de Israel no início do genocídio, que isto anda tudo ligado quando se é consistente). A SdN foi pouco mais do que um instrumento austeritário e colonial do imperialismo europeu e colapsou na prática depois de ter colapsado na teoria (os soviéticos ainda aderiram, em 1934, mas depois houve a Etiópia, a Espanha, Munique e tudo o resto). 

Ao contrário da tese da continuidade, a ONU é muito diferente, sobretudo depois do absoluto reconhecimento da perversidade do colonialismo e do imperialismo em todas as suas dimensões, ali entre 1960 e 1974. 

Este aparte destina-se apenas a sublinhar os velhos e os novos imperialismos e subimperialismos. Sim, Reino Unido, França e Alemanha são cada vez mais vassalos dos EUA, em linha com a UE, obviamente. 

Felizmente, o mundo é menos eurocentrado e menos dominado pelos EUA. Isto vê-se na ONU e em Guterres, apesar da falta de poder, mas sobretudo vê-se na República Popular da China e no que vem por arrasto. Os EUA são há décadas e de longe o país mais perigoso do mundo. É muito positivo que haja freios e contrapesos à altura. 

Isto é tudo bastante factual ou não?