Dos múltiplos problemas que a zona euro e a União Europeia (UE) enfrentam, três deles, estruturais, merecem, na minha perspetiva, ser destacados.
Os outros dois são problemas de divergência económica circular e cumulativa.
No interior da zona Euro, trata-se da divergência que resulta do comércio praticado de forma totalmente irrestrita numa zona económica heterogénea e amarrada a uma política monetária comum, o que cava um fosso, que se aprofunda continuamente, entre o centro/norte e a periferia, entre países credores e países devedores, e cria incessantemente dívida externa e, consequentemente, dívida privada e pública.
Na relação da UE com o resto do mundo, a divergência resulta de decisões estratégicas tardias, porque meramente reativas, ou simplesmente más, forçadas pela necessidade de resposta às questões colocadas pelo recuo da globalização decorrente da pandemia e pela política protecionista adoptada por Trump e reforçada por Biden. Divergência que é também consequência da guerra na Europa. Em resultado das sanções, o preço a que se paga a energia, a ocidente dos Urais e até à nossa costa atlântica, tornou-se comparativamente mais elevado, a que acresce a maior dificuldade deste espaço económico em aceder a mercados terceiros. Assim, também no plano externo à UE, a divergência começou a cavar um fosso. A UE, de um lado, e a China e os EUA, do outro. Circunstância que, à escala internacional, tende a colocar a UE numa posição idêntica à que, no seu seio, se encontra a periferia.
Neste contexto, onde decide focar-se a Alemanha, perdão, a Comissão e os economistas que nos trouxeram até aqui? No endividamento público. Num problema artificialmente criado pelos próprios.
A proposta da Comissão relativa a novas regras orçamentais introduz uma abordagem, que é apresentada como nova, para classificar os países em termos de endividamento público com base numa Análise da Sustentabilidade da Dívida (ASD), dividindo-os em grupos de alto, médio e baixo risco. Objetivo semi-declarado? Inscrever a austeridade, ainda mais profundamente, nas regras de governação económica e social, assumida ‘razão de ser’ do novo ordenamento proposto.
Isto apesar dos mais de 260%/PIB de dívida pública do Japão, que não tem qualquer problema de “sustentabilidade” da sua dívida.
Isto apesar da fraude de Reinhart e Rogoff ter revelado o que nunca devia ter deixado de ser claro: pura e simplesmente não há um limite numérico pré-determinado que possa definir para toda e qualquer economia um nível adequado de endividamento público.
Isto apesar de até o FMI, disponibilizando evidência empírica, reconhecer que a austeridade não diminui a dívida.
Isto apesar de, desde o fim do padrão-ouro, um Estado monetariamente soberano não enfrentar problemas de incumprimento na dívida denominada na sua moeda.
“Concordo plenamente com Christian Lindner quando diz: ‘Os mercados de capitais não distinguem entre os motivos nobres ou menos nobres pelos quais a dívida é contraída e aquilo em que é investida. Os mercados simplesmente avaliam se é sustentável ou não é sustentável.’ Um forte argumento a favor da utilização da análise de sustentabilidade da dívida”, defende Blanchard.
Sem surpresa, e num só tuite, o ordoliberal ministro das finanças alemão mostra quem estabeleceu os termos da discussão. Os termos de quem, de facto, manda na UE: alegadamente, os mercados, e apenas os mercados, sozinhos, decidem da sustentabilidade das finanças públicas e fazem-no em função de critérios exclusivamente técnicos e neutros, pretensamente ditados por uma análise de sustentabilidade que gera conclusões inequívocas e unívocas. Tudo errado. Tão errado como necessário, contudo, ao colete de forças da política única que, de facto, temos na UE.
Sem surpresa, o antigo economista-chefe do FMI concorda com o ordoliberal ministro das finanças alemão.
O que faz este tipo de análises a que Blanchard e Lindner se referem é, essencialmente, comparar a taxa de crescimento de uma economia nacional (g) com a taxa de juro que paga a sua dívida pública (r). Comparação esta realizada em termos nominais, o que significa que inflação conta, e muito, como mostra a evolução recente da dívida portuguesa, cujo recuo se deve, em grande medida, à parte nominal do crescimento do PIB.
Em termos aritméticos, nesta forma de analisar a sustentabilidade, se g = r, o crescimento do PIB nominal é suficiente para pagar os juros sem necessidade de cobrar mais impostos ou diminuir a despesa. Ou seja, sem alteração da posição orçamental, o que pode ser económica e/ou politicamente impossível de fazer. Por isso, nesta análise, todas as situações em que o crescimento (g) é igual ou maior que a taxa de juro (r) indicam uma dívida pública sustentável e o inverso nas restantes possibilidades.
Para lá da aritmética, contudo, na análise da sustentabilidade há uma óbvia dimensão política associada à escolha das formas de condicionar a evolução do crescimento (g) e da taxa de juro (r), que pode ser mantida na sombra.
“Discordo totalmente de Blanchard e de Lindner. A sustentabilidade da dívida pública dependerá em grande medida do facto de a dívida ser utilizada para investimentos que aumentam o potencial de crescimento de uma economia e a tornam mais resistente ou para financiar coisas que não o fazem”, responde Uli Volz.
De facto, no que a crescimento (g) diz respeito, a sustentabilidade da dívida depende do multiplicador orçamental, ou seja, do efeito da despesa pública na evolução do PIB.
Multiplicador orçamental este que, em 2013, colocou Blanchard no centro do debate político quando, na qualidade de economista principal do Fundo Monetário Internacional (FMI), se viu obrigado a reconhecer “que o fundo falhou nas suas previsões para a Grécia e para outras economias europeias, porque não compreendeu bem como é que os esforços de austeridade do governo poderiam prejudicar o crescimento económico”. Mas a Economia que temos é, infelizmente, isto. Se não fosse, a reputação de Blanchard dificilmente continuaria a permitir-lhe estas tiradas influentes.
A clarificadora resposta de Uli Volz, contudo, não trata da outra parte da equação que determina a sustentabilidade da dívida pública, a taxa de juro. Uma variável que é essencialmente o resultado da decisão – plenamente discricionária na zona euro - do banco central.
Em 2011, este tipo de desenho institucional, cujas disfuncionalidades esta proposta da Comissão acentua, permitiu uma intervenção não democrática, passiva mas nem por isso com menor alcance, na periferia da zona Euro. Tenho para mim que seria bom que todos compreendêssemos que a decisão do banco central de intervir e, no caso, de não intervir, no mercado de dívida pública, tendo consequências na capacidade de financiamento do Estado, é sempre, necessariamente, uma decisão política, com efeitos políticos.
As regras propostas pela Comissão não só carecem de fundamento económico como não resolvem, pelo contrário, nenhum dos três problemas fundamentais enunciados no início deste texto.
Draghi, insuspeito de antipatia pela austeridade, mostra estar mais atento. Não descolando inteiramente destas regras, vem a este debate dizer que a proposta da Comissão é insuficiente e que é necessário um orçamento comum, propondo, por isso, que se avance para uma UE Federal. Draghi sabe de experiência vivida que a arquitetura do Euro é disfuncional e que as divergências acima enunciadas podem tornar-se insanáveis.
As elites europeias, entretanto, receosas, alardeiam uma mais que justificada preocupação com o resultado das suas políticas.
Alguém imagina a opinião pública alemã a permitir contribuições necessariamente muito avultadas para um orçamento federal? E alguém imagina um orçamento federal sem uma perda total da soberania democrática nacional?
Razões para inquietação não faltam. Deixar a política entregue aos mercados e a instituições supranacionais pretensamente independentes, vulnerabiliza, não só, a economia, como a própria democracia.
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