segunda-feira, 27 de março de 2023

A inflação, os lucros e a crise do custo de vida

A última reunião do Banco Central Europeu (BCE) reacendeu o debate sobre a natureza da crise inflacionista que atravessamos. De acordo com economistas presentes, o banco central possui dados que mostram que as pressões inflacionistas estão associadas sobretudo ao aumento das margens de lucro das empresas e não à evolução dos salários.

Não se pode dizer que a conclusão seja nova: os dados que o BCE tem vindo a publicar nos últimos meses mostram que os lucros e as margens das empresas estão a aumentar de forma mais acentuada do que os salários na maioria dos setores. A análise mais recente do FMI, com dados até ao terceiro trimestre do ano passado, aponta no mesmo sentido: os salários reais caíram substancialmente na maioria dos países e não há risco de estarem a alimentar a inflação.

Na verdade, ao longo do último ano, houve uma quebra generalizada do poder de compra. Em Portugal, a queda dos salários em termos reais (isto é, tendo em conta a evolução dos preços) atingiu os 5% no ano passado, mas o excedente bruto de exploração das empresas, que traduz margens de lucro no valor acrescentado bruto, registou um aumento de 7% no 3º trimestre de 2022. Enquanto a maioria das pessoas enfrenta dificuldades crescentes para pagar as contas da luz, do gás ou do supermercado, as empresas destes setores têm registado lucros recorde.

Um estudo publicado recentemente por Isabella Weber e Evan Wasner aponta uma explicação para este fenómeno: com os preços a aumentar de forma transversal em alguns setores, nenhuma empresa corre o risco de perder quota de mercado ao subir os seus preços. Neste contexto, as disrupções na oferta de alguns produtos deram a empresas com maior poder de mercado a oportunidade de subir os preços de forma a manter (ou até aumentar) as margens.

Em Portugal, depois da atenção dada aos lucros recorde de grandes empresas da energia como a Galp ou a EDP, o foco passou a estar nas principais cadeias de supermercados, como o Continente, detido pela Sonae (que viu os lucros subir 28% no ano passado, depois de já terem subido 45,6% no ano anterior), ou o Pingo Doce, detido pela Jerónimo Martins (cujos lucros já tinham crescido 48% em 2021 e cresceram mais 27,5% em 2022).

Embora as empresas se esforcem por fazer os resultados parecer menos positivos, a verdade é que o facto de terem conseguido manter essencialmente as suas margens é revelador do enorme poder de mercado que possuem e que lhes permite proteger os lucros à custa dos consumidores e de muitos pequenos produtores. É o que acontece em setores onde o poder está concentrado num pequeno número de grandes empresas, como o da distribuição, onde os principais supermercados têm sido frequentemente multados pelo envolvimento em esquemas de conluio e concertação de preços, sem que isso afete substancialmente o seu modelo de negócio.

A evolução dos salários e dos lucros traduz a desigualdade que já existia na distribuição do rendimento. É verdade que a subida dos preços poderia ser acompanhada de pressão acrescida por parte dos trabalhadores para tentar garantir que os salários os acompanhavam. Só que, com a sindicalização em mínimos históricos, os trabalhadores têm cada vez menos poder negocial no conflito distributivo inerente à inflação. Tanto nos EUA como na Zona Euro, as taxas de sindicalização caíram a pique nas últimas décadas, o que foi acompanhado pela redução da parte do rendimento produzido que é recebida pelo trabalho (e pelo aumento da parte recebida pelo capital).

A pressão para aumentos salariais é, por isso, muito menor do que na última grande crise inflacionista na década de 1970. Se a isso se juntar a política monetária recessiva do BCE e as medidas de contenção salarial de governos como o português, o resultado é uma transferência de rendimento da base para o topo. Uma política económica progressista tem de ter como prioridade o reforço dos salários: os custos do trabalho não podem ser os únicos impedidos de aumentar neste contexto.

Artigo publicado inicialmente no Setenta e Quatro.

domingo, 26 de março de 2023

O pequeno ditador

Sabem aquelas crianças mimadas que se transformam em adolescentes agressivos, o fenómeno do “pequeno ditador”, diagnosticado pelo pedagogo Javier Urra

Lembrei-me disto quando assisti à birra pública de uma das principais encarnações do capitalismo de herdeiros perante a descida do IVA, mais uma prenda do governo à burguesia compradora: Diálogo com a distribuição é possível “desde que o Governo se torne honesto”

Toda esta birra de Pedro Soares dos Santos, porque alguém do governo fez umas declarações inconsequentes sobre a grande distribuição. Os pequenos ditadores, habituados a que ninguém os conteste dentro da sua redoma autoritária, são assim. 

Os liberais nacionais, por sua vez, não passam de apoiantes destes indivíduos agressivos e autoritários, como a última crónica de João Miguel Tavares ilustra. Falam de mérito, mas é só conversa, já que apoiam de forma intransigente estes herdeiros e querem que o poder do seu dinheiro distorça ainda mais o processo político democrático. É tudo bastante transparente e mal-educado. A fundação pingo doce já não lhes basta. Querem mais financiamento para PSD, Chega e IL, no fundo. 

Diz ele que “os empresários portugueses devem ter uma palavra a dizer sobre a forma como o sector público gasta a riqueza que o sector privado cria.”. Na realidade, no capitalismo liberal esta era A palavra. O neoliberalismo não passa de um regresso a formas de democracia censitária. 

Já agora, note-se que trabalhadores do sector público criam riqueza como trabalhadores do sector dito privado. Os bens e serviços produzidos pelo sector público têm, pela sua natureza tipicamente não-mercantil, um preço socializado a que chamamos imposto e o seu acesso tem por isso menos barreiras pecuniárias. Além disso, sem Estado não há sector privado, mas o contrário não é necessariamente verdadeiro. De resto, a despesa de uns, pública ou privada, é rendimento de outros. 

É tempo de acabar com esta mimalhice liberal. Já somos crescidos e não gostamos de pequenos ditadores.

Precariedade


Este é um podcast da Fiequimetal, a Federação Federação Intersindical das Indústrias Metalúrgicas, Químicas, Eléctricas, Farmacêutica, Celulose, Papel, Gráfica, Imprensa, Energia e Minas, filiada na CGTP.

A precariedade é uma realidade vivida por centenas de milhares de trabalhadores. Mas é mais realidade quando falada na 1ª pessoa e torna ainda mais chocante como é que é aceite na legislação nacional, como um elemento de flexibilidade empresarial, quando se trata de maus tratos sociais, de exploração pura e dura, de dumping social.

E depois, aqui d'El-Rei que os salários estão muito baixos.

sábado, 25 de março de 2023

Haja memória


É notável a arrogância mal educada de um economista neoliberal que tem estado persistentemente errado. Haja memória:

Apoiaram a adesão a um euro que esteve associado a duas décadas de dependência externa crescente, investimento decrescente e estagnação persistente.

Ficaram sem saber o que dizer na crise financeira de 2007-2008, mas estiveram na primeira linha de defesa da troika e de uma política destrutiva de austeridade, que levou a taxa desemprego ao dobro do máximo histórico antes do euro, compelindo centenas de milhares de concidadãos a emigrar; uma política totalmente desnecessária se o BCE tivesse feito o que lhe competia – controlar a taxa de juro –, como fez de 2015 a 2021.

Foram sempre contra aumentos relevantes do poder de compra do salário mínimo, questão de dignidade e de boa economia da procura, em linha com duas hipóteses ideológicas que lhes são caras: os salários devem ser sempre a variável de ajustamento em crises, e as relações laborais tornam-se “livres” quando os direitos passam dos trabalhadores para os patrões e as obrigações dos patrões para os trabalhadores.

Estão de novo na dianteira do cortejo fúnebre da endividada economia portuguesa, ao apoiarem os aumentos da taxa de juro impostos pelo Banco Central Europeu (BCE). Sem atender às suas causas, insistem que a inflação se combate com desperdícios chamados recessão, desemprego, falências empresariais e pessoais.

Escolho, entre tantos economistas convencionais, dois académicos ideologicamente empenhados no cortejo: Fernando Alexandre e Luís Aguiar-Conraria.

Foram, há uns anos, coautores de um estudo sobre poupança, escrito para a Associação Portuguesa de Seguros, onde advogaram, que surpresa, a privatização da segurança social, ou seja, que as pensões fossem jogadas no casino financeiro. Tudo em nome da promoção da poupança baseada no medo.

Excerto de crónica no setenta e quatro de 10 de Novembro de 2022.  

sexta-feira, 24 de março de 2023

Casas e territórios, pessoas e mobilidades

No âmbito da divulgação temática dos resultados dos Censos de 2021, neste caso sobre dinâmicas territoriais, o INE fez um exercício interessante, comparando a distribuição percentual da população residente com a distribuição percentual do número de alojamentos, por NUT III do Continente. Feitas as contas, observa-se que em sete NUT o peso relativo da população (face ao total) supera o peso relativo de alojamentos, permitindo concluir que «a relação da distribuição da população e dos alojamentos familiares clássicos sugere uma menor adequação da disponibilidade potencial de oferta de habitação à população nos municípios das áreas metropolitanas».


Como as pessoas mudam de lugar de residência e as casas permanecem, este exercício do INE evidencia o acentuar, por mais uma década, da progressiva litoralização na ocupação do território, agora com uma incidência ainda maior nas áreas metropolitanas e, neste universo, na de Lisboa, refletindo o modelo de desenvolvimento unipolar, recentemente identificado por José Reis (ver, por exemplo, aqui ou aqui).

Uma leitura mais imediata e menos atenta desta análise, porém, poderá gerar a ideia de que há áreas do país onde existem mais casas que pessoas. E também, a partir dessa perceção, que estamos perante um fenómeno recente, demonstrativo da alegada «falta de casas» e do défice de construção ao longo da última década, nos termos da narrativa da direita para explicar a crise de habitação. Ora, o que os dados mostram é que não só em nenhum território o número de alojamentos é inferior ao número de famílias, como o respetivo rácio regista variações, desde 2001, que são apesar de tudo, e em geral, menores do que se poderia pensar.


O dado porventura mais relevante, aliás, não é o da ligeira redução do rácio de alojamentos por família nas áreas metropolitanas (de 1,26 para 1,23, na última década, no caso do Porto; e de 1,29 para 1,25 no caso de Lisboa), mas antes da sua subida, na última década, em territórios do interior. Como demonstram, por exemplo, os casos da Beira Baixa (onde o rácio passa de 1,92 para 2,05) ou das Beiras e Serra da Estrela (onde sobe de 1,90 para 2,03).

Ao que acresce, sublinhe-se ainda, a falta de congruência destes dados - na perspetiva da narrativa da «falta de casas» - com o aumento dos preços da habitação, que afetam sobretudo as áreas metropolitanas e o Algarve. Ou seja, territórios onde as novas formas de procura de alojamento, nacionais e internacionais, que encaram a habitação sobretudo como um investimento, parecem ter um potencial explicativo mais determinante que a «disponibilidade potencial» de partida (medida pela relação simples entre residentes e casas), em termos de oferta de habitação.

A quem serve mesmo a redução do IVA? 2

Página do XXI Governo

Há uma contradição que o Governo deveria esclarecer. 

Há cerca de 7 anos, o Governo anunciou uma descida da taxa de IVA para a restauração como forma de garantir a "sustentabilidade das empresas, a criação de condições para que possam investir e, sobretudo, para que possam criar emprego". Ou seja, nessa altura, o Governo estava convicto de que uma descida do IVA iria aumentar as margens brutas das empresas de restauração. 

Hoje, o Governo - se bem que não tenha mudado de opinião sobre a ineficácia da descida do IVA para baixar preços - está convicto que a descida da taxa de IVA para 0% num conjunto de "bens essenciais" (cuja lista não foi especificada) irá se repercutir nos seus preços. Ou seja, beneficiando os consumidores e prejudicando as empresas. 

O que mudou?

quinta-feira, 23 de março de 2023

Ideias úteis para um mundo complicado

Quando entrámos nos confinamentos causados pela pandemia umas das minhas decisões foi a de procurar colmatar uma falha grave no meu percurso académico. Decidi dedicar-me a aprender economia marxista. Li algumas coisas e continuo a sentir-me profundamente ignorante no assunto. Mas ajudou-me imenso, em particular, a organizar o meu foco da análise económica para aspectos como relações de poder, exploração, sistemas de produção, circuitos e acumulação de capital, taxas de lucro, contradições internas, etc. A partir daí, qualquer análise, por exemplo, sobre a economia portuguesa, me parece profundamente coxa sem ter estas coisas em conta.

Isto tudo a propósito das recentes polémicas com os grandes grupos de distribuição.

Uma análise a este setor não pode focar-se apenas nos recentes aumentos de preços e recentes resultados dos respetivos grupos empresariais. Uma análise séria tem de começar umas décadas atrás, na constituição destas empresas, no seu modelo de crescimento, na sua relação com produtores, consumidores, concorrentes, Estado e sua política económica (ou ausência dela).

Não é sequer preciso ser muito exaustivo para perceber coisas simples que gosto de explicar aos meus amigos não economistas: Não é um acaso que seja ali que estão os grupos económicos de maior crescimento. Não é um acaso que seja ali que estão os portugueses mais ricos (e não na indústria, e ainda menos na agricultura). E se ligarmos isso com coisas como o nosso fraco investimento em I&D, a nossa balança comercial cronicamente deficitária e a crescente dívida pública, percebemos que não há mesmo ali acaso nenhum.

Percebemos o modelo de negócio deste setor. O seu modelo de crescimento consiste em reduzir os custos, esmagando margens dos produtores, aproveitando o poder negocial imenso que detém e comprimindo ao máximo os custos salariais, e a seguir maximizar receitas, explorando ao máximo a capacidade de impor preços de oligopólio aos seus consumidores, a que se junta a capacidade de induzir o consumo através de um marketing agressivo. É esta a vantagem que apresentam, por exemplo, relativamente a pequenas mercearias e é por isso que este setor, ao contrário de outros está tão concentrado em apenas uns poucos grandes grupos.


Diga-me, quem tiver coragem, de onde mais podem vir os lucros num setor como este onde não há espaço para grande inovação, para melhorias de produtividade ou criação de novos produtos. Não é preciso ser revolucionário. Experimentem comparar com uma empresa farmacêutica ou com um construtor automóvel onde a inovação e o risco colocam de facto oportunidades e desafios (que estas empresas bem se esforçam para resolver, nem sempre com os meios mais aceitáveis).

Este modelo de negócio foi fortemente beneficiado pela abertura ao exterior, por uma taxa de câmbio sobrevalorizada, pela ausência de uma política industrial, pelo foco na financeirização da economia. O verdadeiro mérito de Belmiro de Azevedo e Alexandre Soares dos Santos foi terem percebido, antes de outros, que a economia portuguesa levava esse caminho. Outros souberam, no entanto, apostar em setores parecidos: no imobiliário, na banca, ou nas empresas privatizadas em monopólios naturais ou quase naturais, sempre longe da concorrência, sempre perto das ótimas rendas. Outros ainda apostaram na saúde privada aproveitando a falta de investimento do Estado no setor público. É seguir o dinheiro.

Este tipo de relações gera fluxos de capital que dependem de todo um conjunto de condições da economia e que levam a acumulação em determinados setores e grupos empresariais em detrimento de outros. O capital, como organismo vivo, mexe-se sempre para onde possa prosperar e multiplicar-se.

Depois os nossos "liberais" acham estranho que o cidadão comum não celebre os lucros avultados de empresas rentistas. Lucros que assentam de forma óbvia na capacidade que essas empresas têm de impor o seu poder de mercado sobre os consumidores. Outro exemplo são as petrolíferas. É quase como se eu, consumidor, devesse felicitar o restaurante aonde vou por me cobrar mais 20 ou 30% pelo meu almoço só porque estou a contribuir para o seu lucro.

Sem sair de uma perspetiva capitalista, isto não era assim tão problemático se não identificasse aqui um modelo de crescimento da economia extremamente precário, dependente do exterior, dependente das condições do setor financeiro, dependente de um contínuo esmagamento dos setores mais frágeis sujeitos ainda mais a concorrência internacional, e necessitado ainda mais de um contínuo esmagamento dos trabalhadores, dos seus salários e direitos laborais, deixados como única variável de ajustamento da economia sempre que uma porta entreaberta deixa entrar uma pequena corrente de ar.

Perante tudo isto, metade da discussão dos últimos dias (obviamente importante e necessária no curto prazo) passa para segundo plano. E se quem é prejudicado nisto tudo são principalmente os trabalhadores (também como consumidores que são), também são prejudicadas tantas empresas de setores concorrenciais e tantos pequenos e médios empresários, a quem apenas uma completa alienação faz identificar-se mais com estas empresas rentistas do que com quem é prejudicado às suas mãos.

A quem serve a redução do IVA?

 

A extrema-direita nunca desilude. 

O partido da extrema-direita acaba de dar uma conferência de imprensa em que a primeira medida defendida para reduzir a inflação foi a descida da taxa de IVA. Ora, a quem serve essa descida? 

O gráfico acima mostra a situação da cobrança de IVA em 2020 por escalões de imposto cobrado, segundo as estatísticas da Autoridade Tributária. Nas colunas a azul, temos o número de contribuintes de IVA. E a linha a laranja mostra a receita de IVA cobrada e entregue por cada um desses escalões de imposto. No escalão mais à direita - acima de 5 milhões de IVA cobrado - havia 69 contribuintes (0% do total de 979.877 contribuintes) que entregaram ao Estado 4,4 mil milhões de euros de IVA (20% da 21.744 milhões de euros). 


Ora, o que aconteceria se fosse aprovada uma descida das taxas ou da taxa mais reduzida de IVA? 

Muito provavelmente - tal como aconteceu em Espanha ou em Portugal com a descida de IVA da restauração - os preços não sofreriam alteração (porque não há forma administrativa de os controlar) e a descida da taxa de IVA iria engrossar a margem bruta dos vendedores. 

Se isso acontecesse, quem iria beneficiar mais? Todos os vendedores com as maiores cobranças de IVA. Ou seja, esses 69 contribuintes que cobram 20% da receita de IVA, ou os 134 contribuintes que cobram 1,4 mil milhões de euros de IVA (6% a receita) ou os 298 contribuintes que cobram 1,7 mil milhões de IVA (8% da receita). Só estes 500 contribuintes cobram um terço da receita do imposto. E eram esses que iam beneficiar com a medida proposta pela extrema-direita. 

Pergunta: serão estes os financiadores da extrema-direita?  

Estes valores são os relativos ao total dos produtos. A Autoridade Tributária não divulga valores por escalões e por tipo de produto ou mesmo por taxas de IVA ventilada por escalões de cobrança dde IVA. Mas muito seguramente este tipo de leitura seria possível para os bens alimentares ou de primeira necessidade.    



O grave destas decisões - o PM ontem já admitiu que o Governo estava a ponderar essa medida para os bens alimentares - é que ninguém pára para pensar nos seus efeitos. No final, essa medida iria representar um enorme bónus a quem nada preciso disso e, sobretudo, que muito provavelmente está a beneficiar com a inflação. 

PS: Interessante é que os (neo)liberais da extrema-direita alertem para o facto de o Estado não ter meios administrativos para lidar com medidas mais musculadas na Habitação, mas omitam que o Estado não tem igualmente meios de verificar que uma descida de IVA se reflecte na descida de preços. Na prática, a teoria é outra, não é? 


quarta-feira, 22 de março de 2023

Controlo e descontrolo

No Expresso do passado sábado, voltei a enunciar alguns dos principais argumentos a favor do controlo dos preços na distribuição alimentar. Aqui fica para vossa leitura (carregar na imagem para aumentar).


Temos a taxa de IRC mais alta da Europa?

Volta e meia, insiste-se na ideia de que Portugal tem uma das taxas de IRC mais altas da Europa. Isso é verdade se se olhar para a taxa máxima de 31,5%. Mas a taxa efetiva, que corresponde ao que a maioria das empresas paga efetivamente após deduções, é pouco mais de metade, como mostram os dados disponibilizados pela Autoridade Tributária.

A taxa geral de IRC em Portugal é de 21% e já desceu substancialmente ao longo dos anos. Convém notar que, no caso das pequenas e médias empresas, os primeiros €50.000 de matéria coletável pagam apenas 17% e a taxa de 21% só se aplica ao excedente. Para uma empresa atingir a taxa máxima, tem de ser sujeita à derrama municipal, entre 0% e 1,5% consoante o município em questão, e à derrama estadual, que pode ir dos 3% aos 9% e se aplica a empresas com rendimento coletável superior a €1,5 milhões.

Em 2020, a percentagem de empresas portuguesas com rendimento coletável superior a 1,5 milhões de euros - ou seja, a percentagem de empresas que poderia ser alvo da derrama municipal ou estadual - correspondia a... 0,8% das empresas com coleta registada. É por isso que é útil olhar para a taxa efetiva de IRC, que indica o peso do imposto efetivamente pago no rendimento total das empresas quando se consideram os vários benefícios fiscais. Os dados da Autoridade Tributária dizem que empresas médias chegam a pagar mais do que algumas das maiores.

Centrar o debate na taxa máxima de IRC é revelador de falta de rigor ou de seriedade. De resto, até o think tank mais ativo da direita portuguesa já confirmou, talvez sem essa intenção, que não há qualquer relação entre estas taxas e o rendimento per capita dos países.

Mais: a ideia de que os cortes de impostos para as empresas estimulam o crescimento económico também não sobrevive ao confronto com os factos, como mostra a revisão de literatura feita pelos economistas Philipp Heimberger e Sebastian Gechert (o artigo foi publicado na European Economic Review e um resumo feito pelos autores pode ser lido aqui).

Não só não há evidência empírica que recomende a redução do IRC como solução para o crescimento, como há bons motivos para pensar que o problema da economia portuguesa é outro: o perfil de especialização pouco produtivo, favorecido pelas forças de mercado no contexto da integração europeia e da perda de instrumentos de intervenção pública na economia. É tema para um debate mais amplo, como tem sido feito aqui, aqui ou aqui.

terça-feira, 21 de março de 2023

Querido diário - Até a Maria João Avillez se queria virar contra a Europa

Público, 21/3/2013

Há dez anos, a direita estava desorientada. 

Vítor Gaspar fora nomeado para o Ministério das Finanças em Junho de 2011 como um "técnico". Um "técnico" que iria colocar o país na ordem, depois dos desvarios económicos do PS que, na narrativa na direita, obrigara à entrada da troika. Uma versão da verdade dos acontecimentos que está longe de corresponder à realidade. Primeiro, porque foi a própria direita a querer chamar o FMI - e o seu programa de austeridade e a declarar que estava preparada para isso; depois, porque, depois da troika, a situação económica do país era bem mais grave do antes da aplicação do seu programa e ninguém pediu uma segunda troika para compensar os resultados gerados pela primeira.  

RTP, 27/11/2010

As incongruências entre o programa e a realidade estavam bem patentes na desorientação da direita. Maria João Avillez escreveu um artigo no jornal Público que era a imagem clara da confusão política nas hostes da direita. Tudo falhara e o país estava a gritar contra a direita e a direita não percebia o que de mal tinha feito, o que se passara de mal com um programa que parecia tão claro. Se o seu plano tinha falhado, o que iria ser da direita? Era o suicídio?

Vítor Gaspar chamou a atenção da jornalista: “Reparou que eu comecei e acabei a última resposta desta manhã com um ‘não sei’?” 

Maria João Avillez estava de cabeça perdida, sacudindo a água do capote do que a direita defendera desde o início - uma redução do peso do Estado: 

Sim, Gaspar talvez “não saiba” por saber demasiado bem que as coisas são o que são, que o país é o que sempre foi, que a Alemanha quer o que quer. Talvez ele ache que não haja remédio. Talvez saiba que toda a gente reclama (hipocritamente) que se façam cortes no Estado sabendo que eles quase só podem incidir em salários ou pensões. (...)

O problema era da comunicação oficial. Mas por que razão é que o Governo estava sempre a fazer previsões quando acabava sempre por as falhar? 

Lições essenciais de política monetária, por Jon Stewart

(para ver, clique na imagem)

Sem aparente dificuldade, um comediante expõe o viés, que favorece o capital em detrimento do trabalho, subjacente à política monetária.

Ou como, para conter os preços, face à evidência de lucros especulativos, os bancos centrais escolhem criar deliberadamente desemprego.

Desconfiem sempre de um economista muito sério. Tenhamos confiança e recordemo-nos que, removidos os falsos impedimentos, aquilo que podemos fazer, podemos pagar. Três passos: olhar, querer ver, ver.

* Lamento mas não há versão em português. Se encontrar o tempo necessário, adicionarei mais tarde uma tradução.

É já na próxima quinta-feira, às 17h30

 

Agora, parece ser já consensual que os salários estão demasiado desvalorizados. Que os salários mínimos se aproximam demasiado dos médios e que isso é mau porque revela uma economia de baixos salários, ancorada em sectores de fraca expansão da produtividade. 

Consensual? Apenas na aparência. Na prática, a teoria é outra. 

Quer saber porquê? Apareça nesta sessão de lançamento deste livro. 

Fizeram da I&D um fetiche

"Nas economias mais avançadas, um conjunto limitado de sectores é responsável pelo grosso das despesas em I&D. Em países como a Alemanha, a Coreia do Sul, o Japão e outros, perto de 4/5 das despesas em I&D são realizadas pelos sectores farmacêutico, automóvel, de máquinas e equipamentos, das tecnologias de informação e dos serviços científicos e técnicos (os dados são do Eurostat). Dentro desses sectores, a maioria da I&D tem lugar no seio de empresas de muito grande dimensão. O caso extremo é o Japão, onde 90% dessa despesa é executada por empresas com 500 ou mais trabalhadores. Suécia, Coreia ou Alemanha não andam longe. As empresas em causa são quase sempre multinacionais, que competem à escala global contra um número restrito de concorrentes. Com poucas excepções, essas empresas não se tornaram gigantes por gastarem muito em I&D; elas fazem hoje muito investimento em I&D porque precisam de estar na fronteira do conhecimento para resistirem à concorrência nos segmentos em que actuam há muitas décadas.

Ora, em Portugal os sectores que, por regra, são os mais intensivos em I&D representam apenas 10% do valor acrescentado, o que é cerca de metade do que se verifica nos países mais ricos. E quase não há empresas com 500 ou mais trabalhadores nesses sectores – as que existem são sucursais de multinacionais que realizam a maioria da I&D nos países de origem. Sendo assim, faz pouco sentido esperar que Portugal tenha o mesmo nível de despesas em I&D que os países referidos. Na verdade, os gastos em I&D em Portugal são já superiores ao que seria de esperar, dado o perfil de especialização da economia nacional. E não é por sobreinvestirmos em I&D, sem grande critério nem estratégia abrangente de desenvolvimento, que Portugal ficará repleto de empresas gigantes a disputar os mercados mais sofisticados à escala mundial.

O sobreivestimento em I&D empresarial no nosso país é já evidente em vários sectores – por exemplo, o peso das despesas em I&D no VAB em Portugal é 3,8 vezes superior ao da Alemanha nas indústrias extractivas, 2,7 vezes no sector das madeiras, 3,1 vezes na indústria do papel, 2,5 vezes no sector da construção, 2,7 vezes no sector dos transportes e 4,4 vezes na banca e seguros. Serão estes sectores em Portugal tão mais inovadores do que os congéneres alemães? Não é provável. O mais plausível é que uma cegueira deliberada leve as autoridades portuguesas a tratar como I&D actividades que não o são verdadeiramente, empolando as estatísticas e concedendo incentivos fiscais e outros subsídios que em muitos casos não se justificam."

O resto do meu artigo pode ser lido no Público.

segunda-feira, 20 de março de 2023

Querido diário - "Reforma do Estado" queria cortar 4 mil milhões... mas ninguém sabia onde

Público, 20/3/2013

Há dez anos, Vítor Gaspar era já um ministro das Finanças do Governo de Passos Coelho que se despedia do país.

Em sessão com os deputados da maioria - pouco depois saiu do Governo e foi parar ao... FMI - mostrou-se empático com as suas dificuldades em falar com os "vossos" eleitores. "Vossos não: nossos!", responderam os deputados.

Os políticos da maioria PS/CDS, que antes das eleições tinham feito um discurso (neo)liberal da necessidade de redução da intervenção pública, sem nunca concretizar onde, eram então confrontados com a necessidade de corte de 4 mil milhões de euros, sem que o Governo tivesse ideia - mais uma vez! - a quantos servidores do Estado isso iria corresponder. O problema das "reformas estruturais" que visam reduzir o papel do Estado na sociedade é que acabam fatalmente por redundar em protestos das populações - contra os cortes na escola pública e nas carreiras dos professores, nos hospitais, nos tribunais, nas forças armadas, etc. -, os quais criam problemas eleitorais aos partidos que se apresentam como defensores dos seus interesses.

Ainda recentemente, numa entrevista ao jornal público, Teresa Violante, investigadora do Instituto Max Planck e da Universidade de Frankfurt, disse algo parecido:
"As pessoas são a favor da UE, mas também são a favor do Estado social. Se as duas questões forem colocadas no mesmo plano e em confronto – que nunca o são, a não ser por partidos de margens – as pessoas aí provavelmente não terão a mesma resposta. Enquanto houver essa identificação entre projecto europeu e fundos estruturais, as pessoas continuarão a ser a favor. Agora, se houver uma identificação de problemas de redistribuição que não são apenas nacionais – crise dos professores, crise do SNS, tudo isso tem que ser reequacionado como problemas redistributivos no espaço europeu – tenho a certeza absoluta que essa discussão adquirirá outras dimensões, como adquiriu outras dimensões em Itália, aqui ao lado".
A entrevista é muito interessante e merece ser lida com atenção, pela dissonância geral em relação ao discurso dominante.
Questão: Apesar da integração europeia ser apoiada pela grande maioria dos portugueses, a maioria das leis vem da Europa. Votar no PS ou no PSD torna-se igual?

Resposta: A alternância democrática neste momento não é muito evidente. O eleitorado é hoje chamado a escolher entre um programa Coca-Cola ou um programa Pepsi-Cola, sobretudo no espaço da zona euro. As escolhas democráticas dos governos nacionais estão muito condicionadas por um espaço de decisão que é pré-determinado por actuação de órgãos que não são democráticos. O ramo dos independentes: o Banco Central Europeu, a Comissão [Europeia] e o Tribunal de Justiça da UE.
É isto. Mas ninguém parece se importar, como já dizia o Paulo Coimbra aqui.

Entretanto, agora que as recentes declarações enviesadas de Cavaco Silva têm sido criticadas, deixo-vos um comentário em editorial sobre outras declarações, desta vez a propósito de bancos, bem como uma referência a um aniversário de dez anos de uma outra guerra que destruiu um país, levou à morte de centenas de milhares de pessoas e foi o detonador de actos de terrorismo por todo o mundo:

Público, 20/3/2013

Cavaco não sabe, não se lembra ou finge não saber?


«A atual a crise é o resultado do falhanço da política do governo no domínio da habitação nos últimos sete anos. (...) Face a este conflito de intere..., este conflito de direitos - direito de habitação e direito de propriedade - os marxistas ignorantes das regras da economia de mercado que vigora na União Europeia, a que pertencemos, dirão que se proceda à coletivização da propriedade urbana privada (...), através da ameaça do arrendamento compulsivo de casas devolutas. (...) Deixemo-los em paz com a sua ignorância» (Cavaco Silva).

Talvez, de facto, o próprio já não se lembre, mas Cavaco Silva promulgou, em maio de 2014, a Lei de Bases da Política Pública de Solos, de Ordenamento do Território e de Urbanismo, do então Governo de Passos e Portas, que «consagrou o dever de [os proprietários] utilizar[em] os imóveis, a par com o dever de proceder à sua conservação e reabilitação». E talvez não saiba, mas há Estados membros da União Europeia (como a Dinamarca, a Espanha ou os Países Baixos), em que «o Estado toma posse de casas para as arrendar», sem pôr igualmente em causa os direitos de propriedade (sendo que, sublinhe-se, não há direitos sem obrigações).

É provável que Cavaco não se recorde, mas o Programa Especial de Realojamento (PER), por si lançado em maio de 1993 - e com diversos bairros concluídos já depois de 2000 - «só arrancou após uma forte pressão do então Presidente da República, Mário Soares, que fez uma Presidência aberta na área metropolitana de Lisboa» (em janeiro e fevereiro de 1993), «expressamente para revelar e pôr na agenda as graves carências habitacionais na capital e sua periferia». Isto é, num contexto em que o então Primeiro-Ministro se referia a Portugal como estando no «pelotão da frente» da Europa, e Braga de Macedo descrevia o país como um «oásis» no contexto internacional.

Talvez Cavaco Silva não saiba, mas a atual crise está muito longe de afetar apenas o nosso país, atravessando praticamente toda a Europa. Uma crise habitacional que traduz, sobretudo, o rotundo fracasso do mercado para dar resposta à questão da habitação, no contexto da tal «economia de mercado que vigora na União Europeia», que retraiu políticas de promoção pública direta de alojamentos, incentivando - ao invés - a financeirização do setor e lógicas de investimento especulativo, que encaram as casas como meros ativos financeiros.


De facto, a atual crise de habitação tem contornos internacionais, com os preços, no seu aumento vertiginoso, a descolarem da relação simplista entre oferta e procura à escala dos países, refletindo dinâmicas associadas ao aumento do turismo e dos investimentos imobiliários especulativos, nacionais e internacionais, desencadeados com a crise financeira de 2008 e que se intensificaram, um pouco por toda a parte, a partir de 2013.

Perante tudo isto, aparentemente Cavaco não sabe, não se lembra, ou finge não saber. Deixemo-lo em paz com a sua sonsice.

Bancos centrais: independência ou controle democrático?

Baseado num livro de Richard Werner, o documentário* abaixo, tornado público em Novembro de 2014, é sobre o poder dos bancos centrais para criar mudanças económicas, políticas e sociais e sobre a forma como o fazem.

Diria que é um documentário generalista e acessível, mas dirigido a um público informado e interessado em questões económicas e políticas, e que algum conhecimento prévio do trabalho de economistas não neoclássicos pode ajudar.

Por exemplo, a hipótese da instabilidade financeira de Hyman Minsky (aqui resumida por Steve Keen) e a conclusão de Keynes e Schumpeter segundo a qual o investimento não é financiado por poupança, mas pela expansão endógena da oferta monetária bancária (aqui confirmada pelo Banco de Inglaterra), sendo pilares fundamentais da compreensão do capitalismo e da sua inerente instabilidade, constituem também o tipo de conhecimento que permite perceber, por exemplo, o funcionamento opaco e muito pouco escrutinado dos bancos centrais e, simultaneamente, expor a ficção neoliberal da sua independência e a sua real dependência dos mercados financeiros. Tudo questões, mais ou menos, diretamente tratadas no documentário.



Num relato cadenciado e repleto de informação histórica, o trabalho de Richard Werner permite-nos compreender, por exemplo, como a articulação entre Tesouro e banco central, entre a política orçamental e a política monetária, se constituiu como o arranjo institucional que produziu uma política de crédito, fortemente expansionista, assente, não na poupança prévia, mas na criação monetária, capaz de suportar a transformação radical da devastada estrutura produtiva japonesa pós 2ª guerra mundial, fazendo emergir, literalmente, dos escombros uma economia com pleno emprego, enorme prosperidade e razoável igualdade.

O documentário evidencia também como, entre os anos 80 e os anos 90 do século passado, sob forte influência, senão mesmo imposição, da potência monetária que, com o fim de Bretton Woods, consolidou a sua posição hegemónica no novo arranjo monetário internacional (os EUA), o banco central do Japão é objeto de uma profunda reconfiguração que o compatibiliza com a nova ordem imposta pela antiga potência ocupante e o torna, pretensamente, independente.

É, a meu ver, um momento importante do filme até porque, de seguida, Werner expõe a responsabilidade daquele reconfigurado ator monetário, o banco central do Japão, na criação de uma enorme bolha de crédito, à qual se seguiria uma inevitável crise económico-social que acabaria por produzir o consentimento - que não existia na sociedade nipónica - para uma reestruturação neoliberal da economia, ou seja, para as tais ‘reformas estruturais’ que nós, no sul da Europa, infelizmente, tão bem conhecemos.

Um outro momento de particular interesse (1h22m24s) é aquele em que as questões relacionadas com a zona euro são abordadas. Começa assim: “Os exemplos das crises japonesa e asiática ilustram como crises podem ser manipuladas para facilitar a redistribuição da propriedade económica e para implementar mudanças legais, estruturais e políticas. Hoje [2014] eventos similares estão em progresso na zona euro”.

Nesta parte, o documentário, para além de apontar a responsabilidade do BCE na bolha de crédito que antecedeu a crise, erradamente designada, das “dívidas soberanas”, também denuncia, primeiro, o facto de aquele banco central ter podido prevenir as crises bancárias que se seguiram e não o ter feito, e, segundo, de só ter agido depois de ter promovido a transferência de parcelas de soberania orçamental dos estados membros do euro para a União Europeia e de a ter obtido.

“As deliberações dos órgãos de decisão do BCE são secretas. A mera tentativa de influenciar o BCE – por exemplo, através do debate democrático e da discussão - é proibida de acordo com o Tratado de Maastricht”, ouve-se, a seguir, no documentário, que continua assim: “o BCE é uma organização internacional que está acima e fora das leis e jurisdição de qualquer nação individual. Os seus quadros superiores transportam passaportes diplomáticos e os arquivos e documentos dentro do BCE não podem ser alvo de busca ou retenção por qualquer força policial ou do ministério público”.

Quando estamos a aproximar-nos da parte final (1h22m24s), vemos Richard Werner a perguntar a Trichet, o antecessor de Draghi e Lagarde na presidência do BCE: “Onde é que, no tratado de Maastricht ou nos estatutos do BCE, diz que é trabalho do BCE apoiar a reforma estrutural ou qualquer outra agenda política?”. Vale a pena atentar no descaramento e no viés ideológico da resposta de Trichet, mas para isso terão de ver o documentário. Se o fizerem, não se arrependerão, prometo.

De seguida, Richard Werner, continua chamando a atenção para o facto da comissão europeia se ter apoiado num único estudo para justificar a independência do BCE e desse estudo ter sido manipulado para obter o resultado desejado, ou seja, para concluir indevidamente que os bancos centrais independentes conseguem inflações mais baixas.

O documentário termina recordando diferentes e muito significativos episódios históricos em que as manobras (“deception”) de bancos centrais independentes, bancos que não prestam contas a nenhum tipo de órgão eleito, resultaram em verdadeiras calamidades públicas, com repercussões muito graves e conhecidas de todos.

Como é possível estarmos na posse de toda esta informação e não concluirmos que é mais que tempo de colocar os bancos centrais sob escrutínio democrático?

* Legendas em português disponíveis nas definições do documentário no YouTube.
** Republicação parcial; originalmente dado à estampa a 2 de abril de 2020, aqui.

domingo, 19 de março de 2023

O que rende é herdar o Continente


A semana passada, Cláudia Azevedo, presidente da comissão executiva da Sonae, que detém a cadeia de hipermercados Continente, dirigiu uma carta aos trabalhadores na qual lamenta uma “campanha de desinformação sobre as causas da inflação alimentar”. Uma campanha certamente deliberada e organizada, orquestrada pelo maquiavélico inspetor-geral da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE), em conluio com o ministro da Economia. 

Esta missiva, em tom de vitimização, surge, note-se a coincidência, na sequência de declarações de António Costa Silva, que admitiu a possibilidade de tomar “medidas mais musculadas” – sem, na verdade, adiantar nada de concreto – para conter a inflação nos bens alimentares. Na mesma conferência de imprensa, Pedro Portugal Gaspar, inspetor-geral da ASAE, apresentou dados bastante esclarecedores: em algumas grandes superfícies têm sido registadas margens médias de lucro bruto de até 50% em bens alimentares essenciais, como as cebolas (superior a 50%), os ovos, laranjas, cenouras e febras de porco (entre 40 e 50%), ou ainda as conservas de atum, azeite e couve coração (entre 30 e 40%).

O resto da crónica pode ser lido no setenta e quatro.

sábado, 18 de março de 2023

A esperança saiu à rua

Até o Público fala em mais de cem mil...

Querido diário - Maus diagnósticos, más receitas e tempo perdido

Público, 18/3/2013

Há dez anos, numa altura em que o BES começava a vender as suas obrigações com um perfil nitidamente ilegal, o ministro da Economia do Governo Passos, Coelho Álvaro Santos Pereira, - hoje o economista-chefe da OCDE que defende soluções sociopatas para fazer baixar a inflação - reuniu um grupo de "sábios" para repensar a reindustralização do país. 

O grupo, pelas suas opiniões, já era desequilibrado. E o jornalista Manuel Carvalho, presentemente director do jornal Público, ainda o desequilibrou mais ao procurar o comentário de um economista que ... até fez parte do Governo de Passos Coelho, como secretário de Estado adjunto dos responsáveis da Administração Interna, juntamente com Juvenal Silva Peneda e os militantes do CDS Filipe Lobo d'Ávila e João Almeida. Dizia ele:   

“Essa ideia da reindustrialização causa-me alguma preocupação”, diz Fernando Alexandre, professor da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho. “É um discurso errado, como é errado o discurso sobre o regresso à agricultura”, porque na maior parte dos casos dos bens produzidos e transaccionados “o valor acrescentado está nos serviços que incorporam e não na sua produção e montagem”. Veja-se um par de sapatos. “O que é, de facto, mais valioso? A parte do fabrico ou o design que incorpora?”.“Em vez de falarmos da reindustrialização, é importante apostar em todos os bens transaccionáveis, sejam eles serviços ou produtos transformados”. Seja a venda de serviços de saúde ou sapatos, o que interessa é criar produtos capazes de gerar valor para a economia”.

Dita assim, a ideia pode - à primeira vista - fazer sentido. Mas pode ser arriscada, como pode ser perigosa a inércia. Porque nem todas as actividades têm o mesmo poder de arrasto ou de criação de valor. E depois porque o essencial será conseguir pensar que papel pode Portugal desempenhar na divisão internacional de trabalho ou, como agora se diz, nas cadeias de criação de valor a nível internacional. E essa tarefa é algo que não pode ser deixada apenas - nem sobretudo - aos agentes económicos. Este tipo de discurso - que se articula com a ideia de que devemos afastar qualquer tipo de planificação a nível central, que devemos esvaziar todas as estruturas públicas de pensamento estratégico (como o fez Cavaco Silva na década de 80/90) - acabou por ser responsável pelo facto de Portugal ter perdido décadas sobre o que poderia fazer e se encontrar numa situação em que está numa situação muito frágil, superdependente das importações de bens e da "exportação" da actividade turística e de acolhimento de estrangeiros, a quem concede benefícios - nomeadamente fiscais - que não se dá aos nacionais, contribuindo para desigualdades sociais no país. 

Veja-se o discurso que os "sábios" tinham há dez anos e, por momentos, fechem os olhos e pensem se não é algo que poderia ser dito hoje. E imagine então o que será dito... daqui a dez anos!

 

 

sexta-feira, 17 de março de 2023

Para quê?


O Financial Times dava hoje de manhã grande destaque às declarações do economista-chefe da OCDE: garantindo que não estamos em 2008, no meio de uma crise financeira, defendeu a continuação da perigosa subida das taxas de juro e a retirada dos sempre reversíveis apoios a famílias e empresas. Apoios devem ser só para a banca.

Nada que surpreenda. Afinal de contas, estamos a falar de Álvaro Santos Pereira, o Ministro da Economia no tempo do governo da troika, um dos muitos adeptos da austeridade em todas as frentes: monetária, orçamental e relações laborais.

Se há coisa que Pereira já mostrou saber é como gerar recessão e aumentar a taxa de desemprego, ao mesmo tempo que se transferem recursos de baixo para cima e de dentro para fora, se aumenta a dívida pública em percentagem do PIB e se aprofunda a especialização da economia em sectores estruturalmente pouco produtivos como o turismo (com pastéis de nata, claro).

Haja memória, haja diários.

Querido diário - A asfixia resulta?

Público, 17/3/2013
 
A tira do Bartoon é de há dez anos. E - pensa-se - teria a ver com a sétima avaliação da troika à aplicação do Memorando de Entendimento com a troika.  

Dito desta maneira, parece óbvia que a política seguida - de forte contracção da procura interna para obter uma desvalorização salarial competitiva - foi um completo disparate, à luz dos ojectivos traçados. Não é asfixiando alguém que se consegue que respire melhor. 

A evolução do défice comercial externo é a prova disso: apesar da forte redução peso dos salários no PIB de 2010 a 2016, quando se tenta aumentar o consumo, o investimento e até as exportações, a componente importada - essa sim! - asfixia o crescimento e o desenvolvimento. Não são os salários. Se naquele período a Balança de Bens melhorou, isso deveu-se à asfixia do consumo e investimento gerada pelo corte salarial; não por melhoria de competitividade externa. Mal se recupera a vida e o poder de compra, o défice da Balança de Bens afunda-se outra vez e apenas é compensado pelo superávite da Balança de Serviços (sobretudo turismo). E esse problema nacional mantêm-se.  

Basta que algo suceda ao turismo e esse problema, aparentemente invisível, emergirá com toda a força. 

Fonte: INE, a partir dos valores das contas nacionais
 

Mas mesmo que se mostre qual é o problema, estas ideias - de que é necessário manter os salários baixos - voltam a aparecer, como parasitas. Agora é a propósito do combate à inflação. Impede-se os salários de subir para evitar "uma espiral inflacionista" e resta saber se não virá uma nova crise do sector financeiro desregulado, que nos obriguem, de novo, a pagar. Ora, mais uma vez, assistiremos a uma redução a prazo do peso dos salários no PIB em proveito dos lucros. E mais uma vez os desequilíbrios se tornarão evidentes quando tentarmos crescer e desenvolver-nos. E pelo caminho apenas se criará devastação social, ampliação das desigualdades e pobreza, com riscos políticos de deriva à extrema-direita.

É loucura pensar que aplicar a mesma política, produzirá resultados diferentes. O problema é outro.


quinta-feira, 16 de março de 2023

Diz que é assim que funciona o capitalismo

É hoje claro que o acontecimento chave na falência do Silicon Valley Bank foi o colapso do valor da sua carteira de obrigações. 

A atuação subsequente da Reserva Federal (o banco central dos EUA) visa impedir que o sistema financeiro se desmorone como um castelo de cartas, impedindo outras falências, essencialmente isentando as obrigações detidas pelos bancos das consequências das suas próprias operações de política monetária, ou seja, das consequências da maior subida da taxa de juros dos últimos 40 anos. 

Usando uma nova ferramenta criada para o efeito, uma linha de financiamento de emergência, a Reserva empresta dinheiro aos bancos, desde que estes possam depositar obrigações como garantia colateral. 

Até aqui nada de particularmente novo, é isto que fazem quotidianamente os bancos centrais no seu papel de prestamistas de último recurso. 

No entanto, em vez de condicionar o empréstimo ao valor da obrigação no mercado – valor que colapsou –, a Reserva permitirá que os bancos lhe peçam emprestado o montante total que inicialmente pagaram pelas obrigações. É uma economia que basicamente isenta os banqueiros do risco que impende sobre todos os outros.
 
Ou seja, se os bancos têm os seus balanços recheados de obrigações que perderam valor em resultado da subida da taxa de juro imposta pela Reserva (o preço de uma obrigação varia - variava - inversamente à taxa de juro), e se esta perda de valor erodiu o capital dos bancos e os faliu, a Reserva finge que não, que aquelas obrigações não perderam valor nenhum.


Dito de outro modo, o valor das obrigações deixou de importar se estas forem detidas por um banco. Estamos num capitalismo de risco socializado no sistema financeiro, um capitalismo de farsa para uns poucos e de tragédia para os restantes. Um período histórico onde os banqueiros recebem quantias cada vez mais obscenas para nos colocarem, novamente, à beira de uma crise talvez sem precedentes. 

Já em 1930, Keynes escrevia que, relativamente às questões monetárias, os Estados soberanos reivindicam para si não só a prerrogativa de decidir qual é o dicionário em vigor no seu espaço nacional, mas também a de escrever e reescrever os termos desse dicionário. É só pena que esta capacidade editorial não seja colocada à disposição dos 99% de baixo. 

Entretanto, o que dizer do estado da agenda de política monetária da Reserva (e dos restantes bancos centrais que, subordinadamente, a têm acompanhado, como o BCE e o Banco de Inglaterra)? No mínimo, que esta agenda está em grandes dificuldades e que a credibilidade destes governadores é irrecuperável. Tudo, mas não o Banco do Japão, no mesmo barco. E este mete água. 

Os bancos centrais aumentaram vertiginosamente as taxas de juro porque esperavam que condições financeiras mais apertadas gerassem desemprego e salários mais baixos e, no fim, preços mais baixos. 

Se foi sempre evidente que o efeito destas políticas na sociedade tinha sido escandalosamente descurado, agora tornou-se patente que as suas consequências no sistema financeiro também não foram devidamente ponderadas. Técnicos ‘independentes’ tão habilitados: tanta irresponsabilidade não é uma forma de sociopatia?


Daí que também pareça mesmo que estamos no momento ideal para fazer regressar as mais que desacreditadas regras dos tais 3% de défice e 60% de dívida que, no passado, tão bons resultados produziram. 

Como diz um amigo, ‘Brace yourselves [agarrem-se bem], estamos à beira de descobrir que andámos a viver acima das nossas possibilidades’. 
 

Já há outra vez dinheiro?

Porque é que quando são propostas políticas progressistas que ajudam os 90 por cento do fundo, a questão parece ser sempre: "Como é que vai pagar por isso"?


Mas quando os 1% do topo pedem resgates, cortes nos impostos e subsídios, a pergunta parece ser sempre: "De quanto é que precisa?"

quarta-feira, 15 de março de 2023

Agora é só continuar a cavar

 


Excelente oportunidade para observar pela enésima vez: o soberano não depende dos mercados; os mercados é que dependem do soberano


Outra vez os mitos sobre os controlos de preços?


No seu último artigo de opinião no Público, Outra vez o controlo de preços?!, o economista Ricardo Arroja critica o regresso da ideia do controlo de preços ao debate público. Apesar de reconhecer o “forte apelo social” da medida, Arroja assegura que se trata de uma “proposta que a história tem condenado sempre ao fracasso” e que não deve ser recuperada. “De uma forma simples, não funciona”, argumenta Arroja. No entanto, a história dos controlos de preços é bastante menos simples do que é dado a entender. Este é um resumo de uma perspetiva menos simplista sobre o assunto.

1. Que tipo de controlos de preços é que existem?

Há mais do que uma opção para regular preços. Os governos podem fixar preços específicos para um produto, podem definir limites máximos ou mínimos (como acontece em vários países com a definição de um salário mínimo) ou definir uma banda dentro da qual os preços podem flutuar, garantindo que não descem abaixo de um valor que se considere mínimo para assegurar um rendimento adequado para os produtores e que não excedem um valor que se considere o máximo comportável pelos consumidores.

Em alternativa, os governos podem definir limites às margens de lucro das empresas que comercializam determinados produtos: desta forma, não definem um preço que pode tornar-se pouco realista face à evolução dos custos das empresas, mas limitam a dimensão dos ganhos que as empresas podem obter a venda dos seus produtos.

Existe ainda a hipótese de influenciar a evolução dos preços de alguns produtos através da constituição de reservas de matérias-primas ou de outros bens não perecíveis. Nos casos em que essa gestão de stocks é possível, os Estados podem limitar as flutuações de preços dos produtos, intervindo no mercado para estabilizar a oferta do produto em questão e libertando reservas em períodos em que há menos produção e acumulando-as em períodos em que há oferta em excesso.

2. O controlo de preços provoca sempre escassez?

A oposição ao controlo de preços labora sobre um equívoco intelectual: o princípio de que a concorrência perfeita idealizada se verifica nos mercados dos produtos em que a inflação se tem concentrado ao longo dos últimos meses. Arroja explicita-o claramente quando diz que, para os “defensores da economia de mercado, […] os preços não se definem, sendo antes o resultado da interação entre um número potencialmente ilimitado de agentes económicos”.

Este raciocínio parte do pressuposto de que a oferta e a procura são suficientemente elásticas para responder aos incentivos do mercado – o que, traduzido do economês, significaria que as pessoas compram mais ou menos quantidades e as empresas produzem mais ou menos quantidades apenas em função do preço. “Numa economia de mercado, o preço regula a oferta e a procura dos bens e serviços. É tão simples quanto isto. É o preço dos bens e serviços que cria os incentivos que conduzem depois ao ajustamento da oferta e da procura”, explica Arroja.

O problema deste raciocínio é que nenhuma das condições se verifica atualmente: a energia é um bem essencial, indispensável para qualquer família e para a esmagadora maioria das empresas, pelo que a procura é bem menos flexível do que se supõe; além disso, os constrangimentos na oferta de energia levam tempo a resolver. O mesmo se aplica no caso dos bens alimentares essenciais.

Os mercados de produtos energéticos como o petróleo, o gás ou a eletricidade são tipicamente dominados por um pequeno conjunto de grandes empresas, à semelhança do que se verifica no setor da distribuição alimentar. Neste contexto, a concorrência é quase nula. Aquilo a que assistimos é a um aumento das desigualdades entre a maioria das pessoas, com dificuldades crescentes para pagar as contas da luz, do gás ou do supermercado, e as empresas que têm registado lucros recorde.

3. O controlo de preços nunca funcionou?

Ao longo da história, o controlo de preços foi utilizado por vários países, implementado de forma diferente e com resultados muito diversos. Até o país mais insuspeito – os EUA – recorreu à regulação pública dos preços durante e após a 2ª Guerra Mundial através da Agência de Administração de Preços criada por Roosevelt em 1941, com resultados não apenas ao nível da contenção dos preços, mas também da distribuição dos recursos, melhorando o acesso das pessoas com menores rendimentos a bens alimentares.

Atualmente, há políticas de regulação de preços aplicadas em vários países, por exemplo, na área da habitação. Quase metade dos países da União Europeia tem mecanismos de controlo de rendas, que também existem em vários estados dos EUA, onde os estudos realizados não indicam que estes tenham tido um impacto negativo na oferta de habitação, ao mesmo tempo que tornaram o seu custo comportável para as famílias.

Na Alemanha, o governo reuniu especialistas para desenhar recentemente um preço não-linear para o gás, fixando um teto para o consumo considerado essencial para as famílias (e outro para empresas) e permitindo que o preço de mercado se aplique acima desse valor. Embora possa haver dúvidas sobre alguns detalhes, nomeadamente no que diz respeito à possibilidade de revenda do gás obtido a custos mais baixos, o princípio é o mesmo: estabilizar o preço de um consumo essencial.

Em Portugal, o governo chegou a limitar a margem de lucro na venda de máscaras e testes rápidos de COVID-19 no início do confinamento com o objetivo de travar práticas especulativas, sem sinais de que tenha provocado escassez.

4. Para que serve o controlo de preços?

A ideia de que não devemos condicionar o funcionamento das empresas nestes mercados, como sugere Arroja, ignora ou omite os seus impactos distributivos. Em países como Portugal, com níveis elevados de pobreza energética e fraco isolamento térmico das casas, deixar as empresas da energia atuar é uma terapia de choque com enormes custos para os mais vulneráveis.

Ao longo dos últimos meses, os dados disponíveis nos EUA e na Zona Euro indicam que as pressões inflacionistas estão associadas sobretudo ao aumento das margens de lucro das empresas (e não dos salários). Um estudo de Isabella Weber e Evan Wasner, já referido neste blog, aponta uma explicação para este fenómeno: com os preços a aumentar de forma transversal num setor, nenhuma empresa corre o risco de perder quota de mercado ao aumentar os seus preços. Neste contexto, as disrupções na oferta de alguns produtos deram a empresas com maior poder de mercado a oportunidade de subir os preços de forma a manter ou até aumentar as margens.

As medidas de intervenção do Estado sobre os preços ou as margens de lucro obtidas na venda de determinados produtos servem para combater esta tendência. No caso de bens essenciais, o governo pode atuar de forma a regular os preços, seja através da definição de limites à evolução dos preços praticados pelas empresas (no caso da eletricidade, do gás ou das rendas das casas) ou através da limitação das margens de lucro que estas podem obter (no caso dos bens alimentares). Uma regulação eficaz dos preços em setores sistemicamente importantes – isto é, setores em que um aumento dos preços rapidamente se alastra ao resto da economia, como é o caso da energia – pode ajudar a prevenir pressões inflacionistas.

5. O controlo de preços é uma bala de prata?

A regulação temporária dos preços de bens essenciais é uma medida que pode ser equacionada para estancar práticas especulativas. Este tipo de medidas, complementada com outras medidas como a tributação dos lucros extraordinários, permite “comprar tempo” enquanto se resolvem os problemas estruturais da oferta. A sua eficácia depende do acesso ao máximo de informação possível, ao contrário do que acontece atualmente em setores como a distribuição, onde seria necessária mais transparência em relação aos algoritmos usados na definição de preços. E depende também das medidas que forem adotadas para a acompanhar.

É importante ter em conta que a inflação se traduz numa crise do custo de vida porque os salários não estão a acompanhar os preços. A manutenção e/ou aumento das margens das empresas acontece em simultâneo com a compressão da maioria dos salários, resultante das medidas de desregulação laboral que fragilizaram a posição dos trabalhadores e conduziram a sindicalização a mínimos históricos, bem como da política recessiva do BCE e da contenção salarial de governos como o português. Uma política económica progressista tem de ter como prioridade o reforço dos salários: os custos do trabalho não podem ser os únicos impedidos de aumentar neste contexto.

A médio prazo, a resposta progressista passa pelo investimento público, nomeadamente no setor da energia – o epicentro da inflação. O investimento serve tanto para aumentar a capacidade de produção de energias renováveis, como para reduzir o consumo de energia de forma socialmente justa, através do reforço dos transportes públicos (para substituir os carros) e da melhoria da eficiência energética (para reduzir o recurso ao aquecimento). Se queremos evitar problemas persistentes de inflação, é preciso atuar na raiz do problema.

Arroja cita Albert Einstein, que terá dito que “a insanidade consiste em repetir a mesma coisa, vez após vez, esperando resultados diferentes”. É uma frase que assenta como uma luva à ideia de que devemos continuar a confiar acriticamente nos mercados para produzir os melhores resultados, pelo menos entre quem se preocupa com o impacto distributivo da inflação. Ou à ideia de que devemos continuar a acreditar nos benefícios da livre concorrência em setores em que esta nunca existiu, pelo menos entre quem analisa os mercados e as empresas realmente existentes.