…de onde veio esta ideia de que uma renda tinha de cobrir (e até ultrapassar) o valor da prestação paga pelo senhorio?
@rottenstein1 |
Isto é: vejo amiúde gente a defender que as rendas não estão assim tão altas, ou podiam até subir, porque se tem assistido a uma subida das prestações (em resultado da subida da Euribor). O raciocínio é algo como: com uma prestação de 500€ e uma renda de 700€ considera-se que a diferença (200€) é o lucro do dito arrendamento. No entanto, contabilisticamente, esta conta não faz o menor sentido.
Em primeiro lugar, a prestação depende de diversos fatores que dependem (quase) exclusivamente do comprador, por exemplo, do número de anos do crédito, da % de capitais próprios investidos na compra do imóvel. Logo por aí, a relação entre prestação e renda deixa de fazer qualquer sentido. Por exemplo, um proprietário pode reduzir o prazo numa ótica de reduzir os custos com o financiamento, mas aumentando a prestação. Da mesma forma, o proprietário pode amortizar grande parte do crédito antecipadamente) ou pode não haver crédito nenhum. Por que razão o valor da prestação há de ser indicativo do que quer que seja?
Em segundo lugar, contabilisticamente, os 500€ da prestação não são uma despesa, mas a soma de uma despesa (com o financiamento, i.e. os juros) mais um investimento (i.e. a amortização). Contabilisticamente significa que os juros são, de facto, uma despesa que sai da riqueza em numerário (que está no ativo) e sai do capital próprio do dito proprietário. Mas a amortização corresponde apenas a transformar um ativo (dinheiro) noutro ativo (o imóvel), bem como passar um passivo (o crédito) para um capital próprio (o mesmo imóvel).
Há obviamente a possibilidade de haver perdas, isto é, depreciações, e num qualquer negócio isso teria de ser tido em conta para a determinação do preço, mas mais uma vez, isso nada tem a ver com o valor da prestação.
É claro que em termos de caixa é fácil fazer a conta simples entre saídas e entradas de numerário. Mas isto não é o lucro ou a rentabilidade de um negócio, mas apenas retrata a liquidez de curto prazo do mesmo. Portanto, para se ver se um negócio imobiliário dá lucro tem de se ter em conta: os custos de financiamento, o valor futuro do imóvel, e os restantes custos (de manutenção, gestão, impostos, condomínio). Se a receita for maior do que a soma destes custos há um lucro. Se a receita for menor, há um prejuízo. A prestação não é nada para aqui chamada.
E mesmo com isto, há mais uma palavra a dizer: se, por algum motivo, os custos do negócio subirem, não é mecânico que tal subida se deva refletir no preço (i.e. renda). Num negócio normal esse custo é repartido entre empresa e consumidor dependendo das condições do mercado. O risco de perda não é o que usam para justificar o privilégio do lucro? Pois bem.
Mas eu acho que isto é bem mais do que um mero erro contabilístico. Parece-me claro que este aparente equívoco é, na verdade, apenas um artifício usado por muitos para justificar aumentos desproporcionais de renda num mercado onde se tornou regra esperar enriquecer muito e em pouco tempo.
É por isso que não bate a bota com a perdigota. No discurso individual, não há senhorio que esteja a ganhar muito dinheiro e são sempre uns pobres coitados. Mas depois, todos sabemos dos aumentos dos preços, aumentos das rendas, e somos obrigados a ouvir falar no grande dinamismo do mercado imobiliário como bem mostra Nuno Serra aqui.
De qualquer forma, tudo isto é apenas mais um argumento para aquilo que já sabemos: direitos de cidadania não deviam sequer estar sujeitos aos desmandos do mercado. E é o Estado que tem de agir, principalmente através da criação de uma oferta pública de habitação a preços acessíveis digna desse nome.