sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Mais uma leitura

As empresas vivem na "ditadura dos mercados". E o que é benéfico para os lucros das empresas nem sempre é benéfico para a sociedade. Grande parte do conhecimento científico tem de ser gerado em total liberdade de investigação, sem a pressão do lucro, sem a encomenda de resultados numa ou noutra particular direcção (...) Dadas as falhas de mercado inerentes à produção de conhecimento científico puro e a sua inegável importância para o desenvolvimento e bem-estar social, o financiamento através de bolsas individuais e para projectos é essencial, sendo os cortes preocupantes e um retrocesso na produção científica com consequências futuras presentemente incalculáveis. O governo aponta, porém, uma mudança de modelo de financiamento com enfoque num 'conhecimento lucrativo'. Este conhecimento, em conjunto com o conhecimento puro, faz todo o sentido em ser fomentado. No entanto, não faz sentido algum culpar os investigadores pela fraca produção de conhecimento aplicado ao mundo empresarial. Não são os investigadores que "vivem no conforto de estar longe das empresas e da vida real" mas sim a maioria das empresas que não consegue viver no desconforto de investir em investigação e desenvolvimento.

Sandra Maximiano, O saber não ocupa lugar, mas custa

Junto-me ao Nuno Serra com mais uns excertos de uma crónica sobre ciência e seus inimigos, desta vez da autoria da economista comportamental Sandra Maximiano no Negócios. Sublinho que a sua abordagem económica à ciência é absolutamente convencional pelo menos desde a década de sessenta, estou a pensar, por exemplo, no artigo de Kenneth Arrow de 1962, estando centrada na elástica ideia de falha de mercado da teoria económica neoclássica.

Leituras

«Cortes tão acima da média reflectem uma escolha. Uma decisão política. Uma prioridade negativa. (...) Esta decisão define claramente uma linha estratégica de desenvolvimento. Uma linha em que em vez de se apontar para um reforço da competitividade pelo reforço da capacidade de inovação do país, se despreza este factor chave para a evolução da produtividade, deixando o país entregue à triste alternativa de ser competitivo apenas com base no controlo dos custos salariais. Esta opção é assim consistente com a política de baixos salários, já não como um dos pilares, mas como o pilar único de competitividade do país. (...) A opção pela redução do investimento em ciência a níveis muito superiores aos da redução geral da despesa é também uma opção ideológica. Parte da ideia de que o Estado não tem nenhum papel a desempenhar no desenvolvimento económico, assente numa visão de que o crescimento é apenas feito pelas empresas.»

Manuel Caldeira Cabral, Desinvestimento na ciência: uma prioridade do actual Governo

«Nuno Crato incentiva a mediocridade. O título da entrevista do presidente da FCT, que o ministro da Educação tutela, é toda uma tese de doutoramento. Diz ele: "Queremos que a ciência esteja cada vez menos dependente do Orçamento do Estado." Cá está o liberalismo de pacotilha: tudo o que é Estado é horrível, tudo o que é privado é o nirvana. Não importa ao dr. Seabra que os grandes avanços científicos que abriram caminho a coisas tão prosaicas como a internet, o GPS, a nanotecnologia - isto é, o iPhone, o iPad, medicamentos espantosos e outras maravilhas da economia privada - tenham na sua origem investigação paga e dirigida por dinheiro público. (...) Silicon Valley e os míticos empreendedores de garagem existem, sim, mas em regra beneficiam do esforço incremental que foi (é) desenvolvido por universidades e laboratórios financiados pelos impostos.»

André Macedo, Sem Estado não havia Apple

«Talvez convenha chamar à atenção para um facto singelo: os "cérebros" não aparecem por arte mágica, são resultado do investimento continuado no sistema de ensino, em particular através da aposta nas universidades. Se temos hoje "cérebros" é porque tivemos uma política científica coerente, alavancada pelos fundos comunitários, ao longa da, note-se, década perdida. (...) Se mais provas fossem necessárias, o massacre das bolsas de investigação mostra como Nuno Crato é um ministro perigoso. Movido por um espírito revolucionário, desmantela o que existe, que tem defeitos, é claro, para em seu lugar nos deixar um enorme vazio. (...) Daqui a uns anos continuará a sangria de jovens forçados a emigrar mas, ao contrário do que hoje acontece, Portugal voltará a exportar mão-de-obra pouco qualificada, disponível para aceitar empregos de baixos salários. Não mais se falará de fuga de cérebros.»

Pedro Adão e Silva, O fim dos cérebros

«Fui ver o programa deste Governo e detectei algumas imprecisões às quais modestamente proponho uma correcção, a bem da coerência que tal documento impõe: (...) onde se lê "Graças às políticas de investimento de sucessivos governos, a ciência em Portugal representa uma das raras áreas de progresso sustentado no nosso país, tendo vindo a dar provas inequívocas de competitividade internacional" deverá ler-se "A ciência, à semelhança de outras áreas de progresso do nosso país é despesista e tem de ser recalibrada, apesar de ter vindo a dar provas inequívocas de competitividade internacional". (...) Onde se lê "Instituir mecanismos que dêem voz a toda a comunidade científica nacional" apagar, foi um erro. (...) Julgo que assim se entende melhor a execução da política de ciência deste Governo.»

Gonçalo Calado, Proposta de errata ao programa do Governo

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Carta


A renegociação da dívida pública é inadiável. Como se reclama na petição Pobreza Não Paga a Dívida, Renegociação Já, de que somos signatários com mais de seis mil outros cidadãos e cidadãs, é urgente desencadear um processo de renegociação da dívida pública que defenda o interesse nacional e trave o processo de regressão económica e social atualmente em curso. 

O resto da carta que Eugénia Pires, Isabel Castro, José Castro Caldas, Luísa Teotónio Pereira e Manuel Martins Guerreiro da IAC escreveram aos deputados pode e deve ser lido no Público. A petição chegou ao Parlamento. Agora é a vez dos deputados. Estejam atentos.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Beneficiários

O nosso problema é dinheiro. Somos tesos e estamos falidos. O Estado está demasiado presente na vida dos portugueses e das empresas. Esta é uma das minhas minha preferidas: os portugueses vão ter que decidir se querem uma sociedade socialista ou capitalista. Sempre Alexandre Soares dos Santos, claro: “A Sociedade Francisco Manuel dos Santos SGPS foi a empresa privada que recebeu mais benefícios fiscais relativos ao ano fiscal de 2012, com 79,9 milhões de euros.”

Entretanto, ficámos a saber que o Estado garante 53,8% das receitas da Espírito Santo Saúde, liderada por Isabel Vaz, a que um dia reconheceu que melhor negócio do que a saúde só mesmo a indústria de armamento. Recupero a pertinente análise recente de Manuel Esteves: “O que levou o Governo, sempre tão diligente no cumprimento do memorando da troika, a evitar cortes nos benefícios prestados pela ADSE não foi a saúde dos funcionários, mas sim a saúde financeira dos grupos privados de saúde.” Os grandes grupos económicos estão sempre seguros, de facto.

Ciência, educação e desperdício

1. Em recentes declarações à Antena 1, a secretária de Estado da Ciência, Leonor Parreira, afirmou que as pessoas deveriam estar informadas «de todos os mecanismos possíveis de atividade» e que, nesse sentido, não ficassem «estritamente concentradas num único mecanismo, que era o que existia até agora, que era a bolsa, que em boa verdade era um pseudo emprego». O que a governante não diz é que os cortes no financiamento da ciência, dos centros de investigação e de projectos científicos, levados a cabo pelo governo nos últimos dois anos, tiveram como consequência óbvia o afunilar dos ditos «mecanismos possíveis de actividade», empurrando os investigadores para as bolsas de formação avançada (o tal «pseudo emprego»), que acabaram de sofrer a amputação que se conhece. De facto, uma parte do acréscimo recente da «procura» (só entre 2011 e 2012 o número de candidatos a bolsas de doutoramento e pós-doutoramento aumentou 42%), reflecte os impactos da asfixia financeira imposta ao financiamento de centros e de projectos de investigação.


2. Para se ter uma ideia do desinvestimento que está em marcha - e do seu significado em termos de desperdício de potencial humano e de prejuízo para a capacitação do sistema científico português - basta olhar para o numerus clausus do último concurso de bolsas individuais de formação avançada (doutoramento e pós-doutoramento). Em média, na escala de notação de candidaturas (1 a 5), apenas os candidatos com classificações superiores a 4,4 obtiveram bolsa. E em nenhuma das áreas científicas consideradas essa média de notações inclui, para concessão de bolsa, valores que não superem os 4,3. O que explica a violenta redução do número de bolsas atribuído não é, de facto, uma suposta diminuição da qualidade das candidaturas, mas sim o torniquete financeiro aplicado na formação avançada de recursos humanos.
Não se pense, contudo, que o Ministério de Nuno Crato se encontra desprovido de «soluções técnicas» que lhe permitam apresentar este estrangulamento como sendo natural. Basta-lhe, na verdade, transpor para o domínio da formação avançada o procedimento adoptado no último concurso de projectos científicos, em que para se conseguir aprovação poderia já não bastar uma classificação de «excelente», sendo necessário atingir uma de duas novas categorias entretanto criadas: «marcante ou notável» e «excepcional».


3. A destruição dos progressos alcançados por Portugal nos últimos anos, em matéria de investigação científica, não resulta de nenhuma imposição da Troika: é apenas uma opção ideológica deste governo (e que contraria, aliás, o programa eleitoral com que Passos Coelho se alçou ao poder). De facto, a sintonia entre Nuno Crato e o ministro da Economia é, neste âmbito, perfeita: há ciência a mais para a economia retrógrada e subdesenvolvida que se deseja, assente em sectores de baixa intensidade tecnológica e condenada ao fracasso na arena da competitividade internacional. O investimento em ciência e na qualificação de recursos humanos é, para a actual maioria - e para a «economia real» de que falava Pires de Lima - um enorme desperdício.
Não fosse assim e seria muito fácil, para o ministro Nuno Crato, preservar a prossecução dos níveis de investimento, registados até aqui, na formação avançada de recursos humanos: bastaria cortar nas verdadeiras gorduras da educação, nomeadamente nas transferências orçamentais para os colégios e escolas privadas do ensino básico e secundário, que não servem, na esmagadora maioria das situações, nenhuma espécie de interesse público, muito pelo contrário.


De facto, como mostra o gráfico anterior, pode estimar-se que entre 2011 e 2013 o governo da maioria de direita gastou bastante mais em contratos com colégios e escolas privadas do ensino básico e secundário do que com bolsas individuais de doutoramento e pós-doutoramento. Aliás, bastaria uma redução substantiva nos encargos com os mais que dispensáveis Contratos de Associação para assegurar a ausência de cortes na formação avançada de recursos humanos. O governo poderia ter optado por evitar este obsceno desperdício? Sim, claro que podia, mas não era a mesma coisa.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

«Renegociar a dívida: quando e como?»


«No momento em que é entregue na Assembleia da República a Petição "Pobreza não paga a dívida: renegociação já", subscrita por mais de seis mil cidadãos e cidadãs, a Iniciativa para a Auditoria Cidadã (IAC) apresenta e leva à discussão as razões que justificam a abertura urgente de um processo de renegociação da dívida.»

O debate, que conta com a participação de José Castro Caldas (IAC) e Ricardo Cabral (Universidade da Madeira), terá lugar amanhã, 29 de Janeiro, a partir das 17h30, no Centro de Informação Urbana de Lisboa (Picoas Plaza, Rua Viriato, 13). Estão todos convidados.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Como é que se diz depois queixem-se em francês?

Um espectro percorre a Europa austeritária, mas, hoje, desgraçadamente, é o do crescimento das heterogéneas forças de extrema-direita nas próximas eleições europeias em muitos países. O caso da francesa Frente Nacional (FN), que continua a aparecer à frente nas sondagens para as europeias, é o que tenho acompanhado com mais atenção. Destaco o seu enraizamento popular – metade da classe operária declara votar FN e deteta-se uma forte relação entre desemprego e implantação a nível regional – e destaco a viragem programática operada por Marine Le Pen no campo da economia política: do populismo neoliberal do pai, anti-impostos e anti-regulação, de resto já em mudança desde os anos noventa, passou para uma plataforma que, em certa medida, se apropriou de diagnósticos e propostas elaboradas sobretudo por intelectuais críticos à esquerda, da desindustrialização à desglobalização, passando pelo apontar o dedo ao elefante na loja de porcelana chamado euro.

Com ironia feroz, Frédéric Lordon chama a atenção para a forma como este processo de parasitagem deixa certos sectores da esquerda com complexos, podendo levar, por um medo absurdo de associações espúrias, a um total vazio programático neste campo.


A FN conquista um novo fôlego porque à sua maneira está a conseguir monopolizar partidariamente a fusão da questão social e da questão nacional, o mais potente combustível político. Fá-lo, articulando exigências de segurança de um eleitorado popular acossado pelo desemprego, pela austeridade e pela globalização, injectando-as com os elementos xenófobos e islamofóbicos tão tradicionais da sua plataforma quanto tóxicos, mas que só com muita má-fé ou com muita ignorância podem ser declarados como estando associados a um indispensável programa soberanista e democrático. A FN fá-lo com sucesso, também porque a esquerda partidária, e aqui posso generalizar muito mais do que gostaria, perde, em larga medida, por falta de comparência programática no plástico terreno do nacional, atrelada que está às ilusões de reforma do euro, de uma outra globalização e a outras apostas de futuro mais do que duvidoso, até porque sem contacto com as aspirações populares. O PCF é neste campo um exemplo que contrasta com os melhores momentos da sua história.

Esta perda por falta de comparência tem declinações europeias e está patente, por exemplo, nas decisões do congresso do Partido da Esquerda Europeia, onde o PCF tem naturalmente influência. A decisão, ainda que com vários cuidados, de participar, com Alexis Tsipras, numa ilusão federalista, a da “eleição” para Presidente da Comissão Europeia, sendo que é o Conselho, e bem, que tem a última palavra, é sintomática de impasses mais vastos.


No fundo, enquanto a esquerda não enfrentar os três tabus, diagnosticados por Aurélien Bernier, que foi quem, tanto quanto sei, cunhou a ideia de desobediência, que ajudámos a trazer para o debate nacional – Europa, Estado-Nação e globalização, ou seja, desobediência a sério, recuperação da soberania no campo socioeconómico e um certo proteccionismo –, quem cresce é a FN. Como é que se diz depois queixem-se em francês?

domingo, 26 de janeiro de 2014

É só mais um reaccionário?

Não sei se um historiador tem mais obrigações do que qualquer outro intelectual, e, de resto, todos os indivíduos são, de uma forma ou de outra, intelectuais, mas sei que Paulo Pinto tem razão quando assinala o “significado social, profundamente elitista, diria mesmo aristocrático” das declarações de Rui Ramos sobre a evolução científica do país.

O horror de classe a instituições mais inclusivas, sejam de ciência ou de outra forma de capacitação individual e colectiva qualquer, deste consistente cultor de Burke e reabilitador de D. Miguel e de Salazar exemplifica a mentalidade reaccionária, que se funde com o imaginário neoliberal, em acção no nosso país, isto para aludir a um livro de história crítica de toda uma tradição intelectual que comecei a ler esta semana e onde, não por acaso, já encontrei uns excertos que se lhe aplicam na perfeição:
“O conservadorismo é a tradução teórica da animosidade em relação à capacidade de acção das classes subordinadas (…) A capacidade de acção é prerrogativa de uma elite (…) Historicamente, o conservador tendeu a favorecer a liberdade para as ordens superiores e o constrangimento para as inferiores (…) O que o conservador vê, e não gosta, na igualdade não é a ameaça à liberdade, mas sim a sua extensão, porque nessa extensão ele vê a perda da sua liberdade.”

sábado, 25 de janeiro de 2014

Não pensem em ter futuro



«Enquanto no debate público se avolumam vozes contra os cortes (...), o ministro da Educação e Ciência garantia no Parlamento que o Governo quer ciência "de grande qualidade", que "o Governo não desinvestiu na ciência e continua a apostar na formação avançada" e que há um "programa de retenção dos melhores dos nossos cientistas e dos melhores investigadores internacionais." (...) Proceder como procede o Governo nesta área, desinvestindo claramente e sugerindo que isso é investir ainda mais, equivale a dizer que estamos mais ricos estando mais pobres, porque aprendemos a viver com a nossa pobreza. Não. Se o Governo quer, na verdade, sujeitar a ciência aos cortes anunciados, que afirme isso mesmo e não disfarce com piedosas intenções. Quem aguentou coisas tão graves também aguentará essa. Esqueça, nesse caso, é "a retenção dos melhores" e a "ciência de grande qualidade", pois não basta desejá-la para ela acontecer. Se o investimento diminuir, os resultados também diminuirão.»

Do Editorial do Público de hoje ou, dito de outro modo, da homenagem de Nuno Crato à novilíngua e ao duplipensar, na semana em que se cumpriram 63 anos após a morte de George Orwell.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Um novo rumo sem ilusões


A recente conferência de imprensa de François Hollande deu a machadada final nas ilusões dos que ainda alimentavam a ideia de um possível braço-de-ferro entre a França e a Alemanha para travar aquilo que Passos Coelho designa "nova normalidade" - o progressivo desmantelamento do Estado social, qualquer que seja o partido eleito. Perante a pressão política dos interesses económicos e financeiros globais, e seus aliados internos, Hollande declarou a sua convicta adesão à "austeridade expansionista". Como ele próprio em tempos tinha lembrado, "foi François Mitterrand - com Pierre Bérégovoy - que desregulamentou a economia francesa e a abriu amplamente a todas as formas de concorrência. [...] Deixemos, portanto, de vestir roupagens ideológicas que não enganam ninguém" (Serge Halimi, "Le Monde diplomatique", Janeiro de 2014).

Como é do conhecimento comum, a "austeridade expansionista" é uma teoria errada, mas isso pouco importa porque o capital global e a UE continuam a adoptá-la, como sempre fizeram desde que se impôs a liberalização dos movimentos de capitais especulativos. Importa lembrar que no mandato de François Mitterrand, eleito em 1981 com o apoio das esquerdas, o relançamento da economia vinha associado a uma ambiciosa política industrial apoiada por um importante sector empresarial do Estado. Contudo, num ambiente internacional recessivo, o modesto crescimento da procura interna acabou por fazer aumentar os défices público e externo. Estando a França amarrada ao sistema monetário europeu, os capitais especulativos não perderam tempo a dar uma lição ao novo governo socialista. O ataque ao franco obrigou a uma intervenção de larga escala para segurar a cotação da moeda, com a consequente redução das reservas em divisas. Naquele quadro institucional, a política dos socialistas era insustentável. Por isso, no dia 23 de Março de 1983, à noite, Mitterrand tinha pela frente uma escolha com enormes implicações para o futuro da Europa: manter a política económica que tinha sido legitimada em eleições, o que implicava abandonar o SME, contando com a política cambial e o financiamento interno, incluindo o do Banco de França ou, aderir à "desinflação competitiva" (rigor monetário, orçamental e salarial), na expectativa de que uma futura moeda única, eliminando a especulação cambial e reduzindo o poder da Alemanha, viesse a permitir o crescimento com emprego numa Europa social.

Mitterrand preferiu a segunda opção, a conselho de Jacques Delors e contra a opinião de Jean-Pierre Chevènement. Não foi uma escolha inconsequente, já que, ainda antes da derrota de 1986, os socialistas franceses avançaram para a liberalização dos mercados financeiros. De seguida, o Acto Único Europeu concedeu a liberdade de circulação aos capitais, permitindo-lhes a especulação com a dívida dos estados. Como lembra Liêm Hoang-Ngoc, professor de Economia e deputado socialista francês no Parlamento Europeu, a interpretação liberal dos critérios de Maastricht "generalizou-se na década de 90 entre os 13 governos social-democratas e depois entre os conservadores que lhes sucederam, todos felicitados pelos governadores monetaristas dos bancos centrais e pelos comissários que não paravam de impor "reformas estruturais" liberais no que toca à protecção social e aos serviços públicos através de múltiplas directivas" (Refermons la parenthèse libérale, p. 77).

Revisitar a história da substituição do socialismo democrático pelo social-liberalismo europeísta é importante para percebermos o que hoje se está a passar. De facto, Holande não capitulou frente à finança e ao ordoliberalismo, apenas deu continuidade à história do seu partido e da sua família política europeia nas últimas décadas. Em Portugal, também o PS será coerente com a sua identidade. Talvez para eliminar quaisquer dúvidas, afirma em "Um Novo Rumo para Portugal" a fidelidade a "uma Europa política, social e económica com uma dimensão federal" e a necessidade de construir uma alternativa política, mas "Sem demagogias. Sem ilusões".
(O meu artigo no jornal i)

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Novo normal?

Hoje a notícia é a diminuição do défice conseguida pelo governo em 2013. Manipulação contabilística (Banif não conta) e receitas extraordinárias contribuem para um sucesso que seguramente será usado ad nauseam pelo governo. Mas a festa não ficará por aqui. A estabilização da actividade económica actual, o crescimento homólogo que aí vem (o último trimestre de 2012 e o primeiro de 2013 foram particularmente maus), o provável regresso aos mercados com emissão de dívida a dez anos e a possível estabilização ou mesmo diminuição da dívida face ao PIB (graças ao crescimento contabilístico do último) criam uma combinação perfeita para este governo até meados deste ano, altura de eleições e fim do programa da troika.

Sabemos que a austeridade permanente instalada não permitirá grandes voos à economia portuguesa. Todavia, se a retoma internacional se mantiver, poderemos estar a entrar num novo período para a economia portuguesa. Crescimento anémico, elevadas taxas de desemprego, baixos salários, aumento das desigualdades, relações laborais desestruturadas e o Estado-social em fanicos, mas sem a continuação da depressão económica. Este modelo será sempre frágil e provisório, dado o endividamento público e externo, mas o panorama político transformar-se-á necessariamente.

A esquerda tem de estar à altura desta nova realidade e trabalhar neste quadro exigente. Com a experiência dos últimos anos, confesso a minha angústia. Dois caminhos afiguram-se como prováveis. Por um lado, a capitulação perante a austeridade, com esta a servir de permanente pano de fundo no debate político. A discussão política colocar-se-ia neste campo sobretudo na distribuição dos custos da austeridade na sociedade. Por outro lado, o estado de negação, num discurso de continuidade em relação ao passado recente. Ambos se inscrevem no que tem sido, grosso modo, a prática recente, onde a contínua queda do PIB e aumento do desemprego permitiram estratégias políticas razoavelmente bem-sucedidas em torno da "austeridade inteligente" e da "agit-prop contestatária". A análise profunda dos mecanismos por detrás da actual crise, onde a relação entre Portugal e a UE é central, ficou arredada, tendo as alternativas daí decorrente ficado nas margens do debate. Se a esquerda não conseguir superar a actual modorra, receio que estejamos a caminhar para um "novo normal" de declínio social e político da democracia portuguesa. Aliás, e como sublinhou o João Rodrigues, não é por acaso que Passos Coelho, na sua moção, sublinha a emergência de uma “nova normalidade.”

Basta de empreendedores

Caiu o número de portugueses que vê o empreendedorismo como positivo, diz estudo internacional. Trata-se de uma boa notícia, dadas as histórias da carochinha para graúdos, recordando o saudoso João Pinto e Castro, que se escondem por detrás do conceito mais propagandeado da actualidade e que exprime melhor do qualquer outro a injunção de Margaret Thatcher: “a economia é o método, mas o objetivo é mudar a alma”. De resto, é sabido que os países da OCDE que têm mais empreendedores, mais auto-emprego, um tecido empresarial mais pulverizado, são precisamente os menos desenvolvidos. Compare-se Portugal, México ou Grécia com Alemanha, nórdicos ou EUA: um excesso de “empreendedores”, no entendimento convencional, faz mal à economia. É então preciso acabar com a conversa do empreendedorismo. E nem é preciso entrar em argumentos do lado da procura.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Um governo a uma só voz e com grande visão estratégica



A 16 de Janeiro, o ministro da Economia, Pires de Lima, sugeriu que os cortes nas bolsas de doutoramento e pós-doutoramento seriam um prenúncio da necessária ruptura com «um modelo que permite à investigação e à ciência viverem no conforto de estar longe das empresas e da vida real». No dia seguinte, o primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, negou a existência de cortes nas bolsas de doutoramento (com base no princípio matemático de que 729 é um valor superior a 1198), e assegurou que o governo «não desinvestiu na ciência, nestes anos, apesar da crise». A 18 de Janeiro, o presidente da FCT, Miguel Seabra, somou as verbas dos programas-quadro (alocadas directamente pela UE a cientistas nacionais e que não dependem por isso de opções governamentais) aos fundos da instituição a que preside e defendeu que não se pode falar «num desinvestimento em ciência a nível global». Ontem, o secretário de Estado da Inovação, Investimento e Competitividade, Pedro Pereira Gonçalves, retoma o mote de Pires de Lima e sustenta que a saída de pessoas qualificadas para o estrangeiro (em resultado da ausência de oportunidades de fazer investigação no nosso país), «é positiva» e «traz coisas boas para Portugal». E numa entrevista ao Canal Q, o historiador Rui Ramos, membro de um dos conselhos científicos da FCT (juntamente com a mulher de César, perdão, de Nuno Crato), disse que o investimento feito em ciência nas últimas décadas constitui uma «política golpista», da qual não resultou «uma sociedade mais esclarecida», mas antes «uma sociedade mais obscurantista».

Perante esta profusão de justificações para os cortes efectuados nas bolsas de doutoramento (-40%) e pós-doutoramento (-65%), não se pense que o governo navega propriamente à deriva ou que foi tomado por um surto de contradições internas e desorientação geral. Os cortes efectuados respondem a diferentes objectivos, que vão desde a simples e cega «consolidação orçamental» até à prossecução da agenda ideológica de retrocesso económico, social e cultural do país, a coberto das pretensas imposições do Memorando de Entendimento e dos credores. Ao contrário do conhecido sketch dos Monthy Phyton (retirado do filme «O Sentido da Vida»), a diversidade de explicações, por parte de membros do governo, para os cortes das bolsas da FCT, não é propriamente um exercício de nonsense. Aliás, a entrevista de Rui Ramos ao Canal Q, na passada terça-feira, é neste sentido muito esclarecedora quanto à miserável ideia de futuro e de país que está verdadeiramente em causa. Ou, dito de outro modo, é uma espécie de decalque - para o universo da ciência e da investigação - das teses do «eduquês», do «facilitismo» e da «década perdida» (com os equivalentes relatórios PISA a desmentir, implacavelmente, as conclusões obscurantistas, infundadas e ressabiadas que se pretendem propagar).

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

A austeridade é para sempre e a derrota também?

O economista português, um blogue de economia política a acompanhar regularmente, convenceu-me a dar uma olhadela à parte económico-financeira da moção política que Passos Coelho leva ao Congresso do PSD. É que a irrelevante indirecta a Marcelo foi muito discutida, mas o importante é mesmo que se confirma que a força que esta gente tem cá dentro está hoje decisivamente lá fora, nas estruturas de constrangimento, na economia política ao serviço dos credores, com escala europeia. Passos diz com toda a franqueza que “muitas pessoas poderão sentir-se um pouco frustradas por constatarem, após o termo do Programa, a persistência de muitas das regras que associavam ao regime da Troika”, “regras novas que não devemos ver como estando associadas à excepcionalidade mas que são a nova normalidade.” Sabem qual é o grande problema? Passos e companhia arriscam-se a ter toda a razão e toda a força para o seu programa de recorte tão regressivo quanto antidemocrático. É por estas e por outras que a esquerda que não desafie essas regras, as novas e as velhas, que não lhes desobedeça, que espere por amanhãs europeus que nunca cantarão, está condenada à derrota que importa, a que ocorre no campo das ideias e das políticas públicas. Para sempre. E o pior é que passará, cada vez mais, a chamar vitória à derrota, aceitando os termos ideológicos neoliberais: releiam, por exemplo, Vital Moreira ou Correia de Campos sobre Hollande.

Água na fervura

São vários os motivos avançados para a recente descida das taxas de juro da dívida soberana portuguesa: aparente estabilização da economia, contágio do "sucesso" irlandês, fuga de capitais dos países emergentes para a zona euro, etc. Sem desmerecer os motivos avançados e a diminuição da diferença face à dívida alemã, parece-me estranho é não ter lido nada sobre a relação entre a taxa de inflação e a taxa de juro. Se a taxa de inflação cai, os juros nominais deveriam cair de forma a manter a taxa de juro real, ceteris paribus.  Num momento em que os receios de deflação na zona euro durante um longo período se adensam, parece-me natural que os juros nominais diminuam. Claro está que, se tal descida for acompanhada por uma equivalente diminuição da inflação, o esforço real de mobilização de recursos continua a ser o mesmo.

Adenda: Afinal, o facto de não ter lido nada sobre o assunto deve-se simplesmente à minha falta de atenção. O Pedro Nuno Santos já tinha elaborado sobre o tema. Obrigatório ler.

Desinvestir em ciência, hipotecar o futuro


Concentração promovida pela ABIC (Associação dos Bolseiros de Investigação Científica) em frente à Sede da FCT (Av. Dom Carlos I, em Lisboa). Hoje, a partir das 15h00.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Uma lição de defesa da Constituição em Coimbra


Lá estarei, até porque qualquer programa político que valha a pena começa por um desejo: que o artigo 1.º se concretize efectivamente, o tal que proclama que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.”

Say it again and again

Hoje reparei que ontem cometi um erro no meu post sobre uma França crucificada no tal croissant de ouro: afirmei que só mesmo Vital Moreira para dar vivas à social-democracia perante um discurso, o de Hollande, que confirmou a trágica morte da social-democracia às mãos da integração europeia realmente existente. Afinal, a Vital Moreira também se juntou Correia de Campos no Público de hoje: “Hollande pretende agora corrigir a rota, o que só o honra e aos socialistas, pela defesa dos valores da República e do Estado Social que corriam graves riscos de sustentabilidade”.

Para terem uma ideia do grau de colonização ideológica, comparem com Wolfgang Munchau, comentador de assuntos europeus desse bastião da esquerda radical que dá pelo nome de Financial Times: o pensamento em Paris é agora escandalosamente pré-keyenesiano, recuando mais de 200 anos, esta viragem é uma grande desgraça para a periferia europeia e só fora do arco desta desgovernação é que haverá vozes a contestar a ideia bizarra de que a oferta cria a sua própria procura. Bem mais sensato.

domingo, 19 de janeiro de 2014

Say it again: croissant d'or...


Perante um Hollande retoricamente algures entre o liberalismo económico clássico de um Jean-Baptiste Say e o ordoliberalismo alemão, só mesmo Vital Moreira para exclamar, em previsível apoio, “viva a social-democracia!” Enfim, deixemos por um momento Vital Moreira e a sua aposta no sucesso do “ajustamento” ou no sucesso do projecto político, patrocinado pelas fracções transatlânticas da burguesia europeia, de reforço da integração económica, tudo grandes contributos para a destruição dos Estados sociais e para os sucessos das Frente Nacionais, e voltemo-nos para a realidade de quem está atento à história das ideias económicas e à política económica, de quem se lembra, mesmo que não esteja necessariamente à esquerda.

Ambrose Evans-Prichard, por exemplo, sublinha que as dificuldades recentes da França são, entre outros factores, o resultado de uma austeridade orçamental de 1,8% do PIB, o que, dado o que se sabe sobre multiplicadores, não só impediu qualquer recuperação económica, como ajudou a colocar o desemprego no valor mais alto dos últimos 16 anos. Isto para já não falar, ponto sublinhado por economistas da banca ou da academia, respectivamente Patrick Artus ou Jacques Sapir, dos efeitos desindustrializadores de aderir a uma, e insistir numa, moeda estruturalmente forte, um dos maiores erros geoeconómicos e geopolíticos das elites francesas do pós-guerra.

Como seria de esperar, muitos historiadores económicos convencionais ficaram horrorizados com a invocação de Jean-Baptiste Say por Hollande. Kevin O’Rourke foi só um exemplo. O’Rourke é coautor, com Alan Taylor, num dos últimos números de uma revista académica para economistas muito sérios, o Journal of Economic Perspectives, de mais um artigo, “cruz de euros”, sobre os paralelismos entre a desgraça do padrão-ouro entre as Guerras e as desgraças do Euro. De resto, Taylor adulterou ironicamente uma das formulações dos críticos norte-americanos do padrão-ouro no final do século XIX – “não crucificarás a humanidade numa cruz de ouro”: “não crucificarás a humanidade num croissant de ouro”.

O ponto histórico com relevância contemporânea é o seguinte: a austeridade está inscrita num sistema cambial rígido e esta é uma combinação absolutamente destrutiva, por exemplo, para qualquer projecto social-democrata de combinação de liberdades democráticas, justiça social e pleno emprego. A França dos anos trinta, um dos países a ficar desgraçadamente mais tempo no padrão-ouro, e a França de hoje são exemplos da miopia das ideias e dos interesses de classe.

Regressemos a Vital Moreira para rematar. Ao apoiar as presentes conjuntura e estrutura europeias, está na realidade a declarar: morte à social-democracia!

sábado, 18 de janeiro de 2014

O dia em que a elevação e a excelência marcaram presença no debate parlamentar

Ou como em menos de 5 minutos se desmascara a baixeza de uma farsa, se explica pedagogicamente a natureza das democracias parlamentares e se defende a justeza de uma causa.



Leituras

«O que Nuno Crato está a fazer é romper com a herança deixada pelos governos socialistas de Guterres e Sócrates, estratégia que o abandono precipitado de Barroso não permitiu executar. Mas esta é a agenda ideológica da direita. A declaração de António Pires de Lima — ao condescender que haja investigação financiada pelo Estado desde que seja orientada em função da “vida real” (assim suprindo a falta da investigação privada) — demonstra que a direita está unida em torno deste objectivo. No fundo, há um ano, Cavaco Silva antecipou o futuro do investimento em I&D: criar um, dois, três, muitos espremedores de Nutella.»

Miguel Abrantes, I&D: criar um, dois, três, muitos espremedores de Nutella

«A fim de ilustrar a razia, vou focar o caso de uma candidata a bolsa de pós-doutoramento, que ficou bem longe da linha de corte das candidaturas aprovadas. (...) O programa de investigação proposto na sua candidatura a bolsa insere-se perfeitamente na temática dos projectos dos orientadores, que foram aprovados ininterruptamente em concursos competitivos da FCT no âmbito do Programa CERN, desde 2000 até à suspensão unilateral do programa por parte da FCT em 2013. (...) Não tenho dúvidas de que há muitos outros casos gritantes como o seu, de jovens cientistas promissores com a carreira truncada, salvo aqueles poucos que talvez consigam um lugar numa universidade estrangeira, na esperança de um dia poderem voltar para um Portugal diferente, se nessa altura ainda se lembrarem do país.»

George Rupp, A tortura e o massacre

«Muitas coisas que hoje multiplicam riqueza nasceram de descobertas que não procuravam o lucro e que até pareciam de pouca utilidade para a "vida real". Arrisco-me à suprema das heresias: que as empresas não são o único destinatário nem da investigação científica, nem da existência humana. (...) O tempo da ciência não é, porque não consegue ser, muitas vezes, o tempo do retorno imediato do investimento. E, no entanto, sem a investigação que não garante "resultados concretos" a curto-prazo quase tudo o que as empresas vendem dificilmente teria chegado a ser inventado. Explicar isto a um ministro que não me parecia ser ignorante é embaraçoso. Não para quem explica, mas para o ministro.»

Daniel Oliveira, Cérebros em saldo

«As empresas têm como objectivo ser competitivas. Pires de Lima parece reconhecer que a I&D é, para isso, um elemento essencial. Mas o problema da falta de competitividade das nossas empresas não é o investimento público em I&D estar (aparentemente) desfocado da economia real. O problema (ou um dos problemas) é as empresas portuguesas estarem desfocadas da ciência, da investigação, da inovação. É continuarem a ignorar o investimento privado em I&D. E é, também, terem nos dois últimos anos assistido impávidas à emigração de uma parte significativa da geração mais qualificada de sempre.»

João Jesus Caetano, Regressámos ao início da década de 90 na discussão sobre a transferência de conhecimento

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Ainda a propósito do milagre económico a que estamos a assistir

A minha entrevista a Paulo Magalhães no programa 'Política Mesmo', da TVI24, na passada 4ª feira (a partir do minuto 37). Clicar aqui.


O fracasso e as ilusões do grandioso ajustamento

A operação de propaganda em curso, à escala nacional e internacional, assente num suposto «milagre económico português» e nos bons auspícios que o «programa cautelar» reserva para o nosso país, tem em vista difundir três mensagens essenciais. Desde logo, que a estratégia de ajustamento resultou e, nessa medida, que os sacrifícios acabaram por ser relativamente suportáveis, sugerindo-se de seguida que os seus impactos são razoavelmente fáceis de reverter (apesar da proclamação, recorrente, de que o país continua a não ter uma vida fácil pela frente). Por último, a noção de que o «programa cautelar» que vier a ser assinado com as instituições europeias é afinal uma espécie de prémio pelo «êxito» do ajustamento e representa, nesses termos, uma ruptura com o modelo de austeridade imposto pela Troika (ao ponto de se falar na reconquista da soberania do país no próximo dia 17 de Maio).

O Ricardo Paes Mamede desmontou recentemente (aqui, aqui e aqui), alguns dos principais embustes que sustentam esta operação de camuflagem da realidade e que continuará a fazer o seu caminho nos próximos meses, a bem da agenda ideológica da «grande transformação estrutural» e dos resultados que a direita possa vir a ambicionar nas próximas eleições europeias, com a generosa ajuda da fragmentação à esquerda (que parece confirmar-se, apesar dos esforços desenvolvidos, em sentido contrário, pelo Manifesto 3D). E o Nuno Teles e o João Rodrigues também já se referiram neste blogue (por exemplo aqui e aqui) ao facto de a assinatura de um «programa cautelar» não significar mais do que uma espécie de continuação da austeridade por outros meios, sejam quais forem os contornos específicos que esse programa venha a assumir.


A devastação económica e social causada pela aplicação, «além da Troika», do Memorando de Entendimento, fica contudo reflectida no incumprimento, em toda a linha, das metas inicialmente estabelecidas (gráfico em cima). De facto, era suposto que o país, entre 2011 e 2013, tivesse aumentado em apenas 2,3 pontos percentuais a taxa de desemprego: mas na verdade esse aumento foi de 4,6 pontos percentuais (isto é, o dobro). Do mesmo modo, a dívida pública (em percentagem do PIB) deveria supostamente ter aumentado em «apenas» 22 pontos percentuais: na verdade, esse aumento foi de 38 pontos percentuais (isto é, quase o dobro do previsto). Relativamente ao PIB, a estimativa inicial apontava para que, em 2013, o país já estivesse a crescer, cerca de 0,1% abaixo do valor registado em 2011 (1,3%): mas, na verdade, não só o Memorando não só conduziu a qualquer espécie de retoma da economia como esta atingiu um nível de contracção na ordem dos -2,1%. E mesmo uma das principais bandeiras do proclamado «sucesso do ajustamento», a redução do défice (6% em 2013), ficou muito aquém das previsões iniciais (os milagrosos 3%). Não sobra margem para dúvida: a austeridade em dobro produz destruição redobrada e resultados «positivos» apenas pela metade.

A amplitude dos desvios face aos objectivos fixados demonstra pois o fracasso da estratégia de ajustamento e consolidação orçamental seguida pelo governo e pela Troika. E não só os seus impactos, na economia e na sociedade, não se inverteriam nunca com a mesma celeridade com que foram causados, como a sua putativa reversibilidade esbarra nas condições com que o país objectivamente se confronta: os factores estruturais que conduziram à crise mantém-se intocados (da continuidade da submissão da economia que trabalha aos apetites do sistema bancário e financeiro até à manutenção de uma zona monetária disfuncional, passando pelo agravamento das fragilidades estruturais da economia portuguesa), como se lhes somam novas circunstâncias desfavoráveis, em particular as que decorrem das imposições de um Tratado Orçamental que inviabiliza quaisquer perspectivas de investimento público, de recuperação da economia e de criação de emprego. Para se perpetuar o desastre, vendem-se novas ilusões.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

"A mudança no perfil estrutural da nossa economia é já um facto incontornável"

Diz Passos Coelho que "A mudança no perfil estrutural da nossa economia, que era uma mudança indispensável, é já um facto incontornável".

A julgar pelo gráfico abaixo (retirado daqui), só espero que a mudança em causa seja tão incontornável quanto irrrevogável foi a demissão de Paulo Portas em Julho de 2013. É que, segundo os dados oficiais, o peso dos sectores de média-alta e alta tecnologia nas exportações de bens caiu de 41,3% em 2008 para 36,7% em 2013.




Tem, pois, razão o Primeiro-Ministro. A crise e o programa de ajustamento têm vindo a alterar a  estrutura produtiva portuguesa - tornando-a ainda mais frágil do que era.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

C'est toujours la même histoire?


“Temos de produzir mais e melhor. É sobre a oferta que temos de agir. Ela depois cria a procura”. Quem disse isto? Jean-Baptiste Say ou um qualquer seguidor do economista político liberal francês que, certa ou erradamente, acabou por simbolizar muito daquilo que a macroeconomia keynesiana sensatamente rejeitou? Não necessariamente, já que foi François Hollande quem o disse, citado no Negócios, na sua apresentação de novas rondas de austeridade e de neoliberalização, versão francesa, a única política permitida pelo euro.

Na realidade, há trágicos elementos de repetição na história das renúncias da esquerda francesa e na história da integração europeia, criticamente analisada, que as duas estão articuladas. De facto, desde a viragem para austeridade de Mitterrand e do seu ministro das finanças, um tal de Jacques Delors, no início dos anos oitenta, rompendo com o programa comum transformador, até ao acto único, à liberalização financeira e ao euro que é a mesma história trágica da social-democracia francesa: todas as abdicações são em grande medida justificadas em nome da integração e dos seus tão construídos quanto cada vez mais sólidos constrangimentos.

É por estas e por outras que a integração europeia realmente existente, a expressão da globalização no continente, tem de ser vista, como aqui temos insistido, como a grande máquina de destruição do socialismo democrático europeu, dado que foi a grande máquina de destruição da soberania democrática. O mais extraordinário é que a social-democracia francesa foi uma das grandes construtoras da tal máquina, a que tem no euro o seu motor, de resto responsável pelo declínio relativo, do ponto de vista da sua indústria e da sua força política, de uma França a quem também não serve uma moeda com esta natureza.

Quantas mais derrotas, quantas mais renúncias, quantas mais aceitações dos termos dos supostos adversários serão necessárias?

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Exercício

Um exercício simples de economia política: leiam as duas notícias e façam as ligações – Goldman Sachs assume “óptima relação com o Estado” português e Portugal é o que mais defende a troika entre os resgatados.

Um jornal que também é contra a autoflagelação


A narrativa neoliberal sobre a emigração da austeridade tem traços ideológicos que vêm de longe. A tónica é sempre colocada na liberdade e nas escolhas, quando os contextos de acção dos cidadãos e as políticas que lhes subjazem são a própria negação das condições materiais e substantivas para a autonomia e as escolhas livres. A cegueira voluntária que reduz a emigração a jovens diplomados, bem-sucedidos e potencialmente rentáveis para o país (dito, sem rir, pelos mesmos que negam o ensino superior como um direito universal e gratuito, dizendo ser um investimento das famílias em si próprias), não é apenas uma forma de criar falsos conflitos entre gerações e de remeter para responsabilidades individuais os infortúnios de vidas que na verdade, estão a ser desbaratadas por enquadramentos políticos e institucionais com origem no país e na União Europeia. 

O que a «nova diáspora» tem de novo e positivo (mais pessoas com formações superiores, gerações mais habituadas ao contacto externo e mais apoiada em redes internacionais, mais acesso a tecnologias que encurtam distâncias, mais cidadãos apetrechados para não desistirem dos seus sonhos) foi muito construído, depois do 25 de Abril, com a oposição do neoliberalismo. O que a «nova diáspora» tem de velho e revelho são as desigualdades económicas, sociais e territoriais que a democracia não resolveu e um país com debilidades estruturais (produtivas, redistributivas) que a crise financeira e as respostas austeritárias, no quadro da União Europeia e do euro, só vieram agravar.

Excerto do artigo mensal da Sandra Monteiro no Le Monde diplomatique - edição portuguesa. Para além das propostas para uma reestruturação da dívida, da autoria da economista Eugénia Pires da IAC, na componente portuguesa do número de Janeiro podem encontrar um dossiê sobre os impactos da austeridade em diversas áreas da produção intelectual. Com este número podem também adquirir  um dos últimos livros de Boaventura de Sousa Santos: “A autoflagelação é a má consciência da passividade, e não é fácil superá-la num contexto em que a passividade, quando não é querida, é imposta.”

Curiosas coincidências vindas da frente anti-austeritária italiana

Chegam de Itália notícias que soam familiares. Várias dezenas de cidadãos com uma história de intervenção activa na vida política italiana desafiam as forças de esquerda a juntarem-se em algo maior. O mote é a proposta de apoio a Alexis Tsipras, o dirigente da esquerda grega, na sua candidatura a presidente da Comissão Europeia, enquanto representante de uma Europa de solidariedade e de progresso. Lê-se na versão online do diário romano La Repubblica de há dois dias (a tradução é minha):

"Gostaríamos que em Itália surgisse uma lista cidadã, de cidadãos activos, uma lista de pessoas que escolhem Tsipras como um candidato para a presidência da Comissão Europeia. Não é fácil, porque temos muito pouco tempo para criar algo. Para fazer isso, precisamos de toda a intelegência de Tsipras, aquela que lhe permitiu formar uma coligação entre as várias áreas da esquerda grega. Uma coligação com prioridades bem definidas. É claro que não deve ser uma mera coligação dos antigos partidos de esquerda radical, porque ela não teria nenhuma hipótese de sucesso. Precisamos de algo maior, algo para sacudir a consciência da sociedade, indo além das margens muito estreitas das formações políticas existentes. Com o objetivo de unir as forças da sociedade afectadas pela crise".

Poucas semanas antes era lançado o manifesto (no diário Il Manifesto) que transcrevo abaixo. Um texto pouco habitual num país que se habituou a ver na Europa o modo de transcender as suas tensões e contradições internas:

"Ao Presidente da República, Giorgio Napolitano
Ao Presidente do Conselho de Ministros, Enrico Letta
Ao Presidente da Comissão Europeia, José Manuel Barroso
Ao Governador do Banco Central Europeu, Mario Draghi

A crise já dura há seis anos. Provocada por trinta anos de neoliberalismo, agrava, por sua vez, a pobreza e a desigualdade. Multiplica o exército dos desempregados. Destrói o Estado-Providência e desmantela os direitos dos trabalhadores . Compromete o futuro das gerações mais jovens . Produz uma regressão intelectual e moral geral. Mina os fundamentos das constituições democráticas que nasceram no pós-guerra. Alimenta o ressurgimento nacionalista e neo-fascista.

Concebida como um sinal de esperança, uma Europa unida, árbitro da cena política continental, representa hoje, aos olhos da maioria das pessoas, um poder hostil e ameaçador. E a própria democracia surge como um mero simulacro, ou pior, um engano perigoso.

Para quê? É a crise, como é habitual repetir-se, a causa imediata de tal estado de coisas? Ou são as políticas orçamentais que, por recomendação das instituições europeias, os países da zona do euro implementam para lhe fazer face, em conformidade com os princípios neoliberais? Nós acreditamos que esta última é a verdade.

Estamos convencidos de que a política económica adoptada pelos governos europeus, longe de combater a crise e promover a recuperação económica, fortalece a primeira e impede a segunda. Os tratados europeus prescrevem uma austeridade financeira que é incompatível com o desenvolvimento económico, bem como qualquer política redistributiva, de equidade e de progresso. Os sacrifícios impostos a milhões de cidadãos não só resultam em pobreza e sofrimento, mas, deprimindo a procura, também impedem o crescimento económico. Desta forma, a Europa, a região do mundo potencialmente mais avançada e próspera, arrisca-se a entrar numa trágica espiral de destruição.

Isto não pode continuar. É urgente mudar de rumo, atribuindo às instituições políticas, nacionais e comunitárias, a tarefa de implementar políticas expansionistas, e ao Banco Central Europeu a função prioritária de estímulo ao crescimento.

Se a obrigação de um equilíbrio orçamental surgiu até aqui como uma escolha forçada, manter essa atitude constituiria um erro imperdoável e seria a responsabilidade mais grave que uma classe dominante poderia assumir perante uma sociedade que tem o dever de proteger."


Encontrar o justo equilíbrio entre utilizar o principal espaço de democracia ao nosso dispôr - o nacional - e juntar forças com quem não desiste de uma Europa de progresso: eis um dos grandes desafios dos nossos tempos.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

A crise familiar


Dois pontos em que aqui temos insistido: sem compreender o processo de financeirização do capitalismo não é possível compreender o endividamento de amplos segmentos da população e a crise; sem compreender as interdependências entre decisões públicas e privadas, não é possível compreender, por exemplo, por que é que o Estado não se pode comportar como se fosse uma família em crise, através da austeridade, sem afectar as famílias realmente existentes, através da quebra de rendimentos, do desemprego e dos riscos de insolvência que não cessam de crescer.

As questões das decisões de endividamento, ao nível micro, meso e macro, estão no centro das preocupações de alguns cientistas sociais e de um projecto: esta conferência internacional do CES sobre o crédito ao consumo e a crise financeira das famílias, que se realiza em Lisboa, na próxima sexta-feira, a partir das 10h, é um exemplo de um esforço interdisciplinar, reunindo economistas, psicólogos e juristas, para compreender e regular melhor o crédito às famílias e, já agora, para desmontar o fraudulento temos vivido acima das nossas possibilidades. A inscrição é gratuita, mas obrigatória.

Sobre os sinais de retoma e sobre um segundo resgate disfarçado de programa cautelar

Através do blog As Minhas Leituras cheguei a um resumo das minhas intervenções no programa da SIC Notícias "Expresso da Meia-Noite" da passada 6ª feira. Ficam os agradecimentos a quem fez a montagem.



domingo, 12 de janeiro de 2014

Improváveis companhias

Pedro Braz Teixeira, antigo assessor de Manuela Ferreira Leite e autor de “O Fim do Euro em Portugal?”, comentou no passado dia 1, em artigo de opinião no i, o guiãopolítico para as Europeias de 2014 que o João Rodrigues, o Nuno Teles e eu próprio escrevemos e aqui divulgámos há algumas semanas. Fê-lo de forma muito cordial e cordata, que aqui saúdo, não deixando de manifestar, a par de algumas críticas, a sua concordância em relação a diversas posições por nós defendidas no guião - o que será surpreendente para quem deste autor apenas conheça o quadrante político, mas menos para quem conheça a posição muito crítica que tem assumido em relação ao Euro. É que se ainda são certamente minoritárias, ainda que inevitavelmente em crescimento, as fracções da esquerda que identificam na ausência de autonomia monetária um constrangimento determinante à adopção de estratégias viáveis de recuperação económica (e de inversão dos muitos recuos a que trabalhadores e classes populares têm vindo a ser sujeitos), à direita a posição de Braz Teixeira é verdadeiramente insólita. Aliás, apesar de não conhecer com qualquer tipo de profundidade o pensamento político de Braz Teixeira, direi mesmo que das duas, uma: ou este economista é menos de direita do que aparenta, ou então não compreende verdadeiramente aquele que tem sido o papel absolutamente central do Euro como mecanismo de expansão e consolidação do poder do capital à escala europeia. Se o fizesse, dificilmente defenderia o fim daquele que é, à escala europeia e nas últimas décadas, nada mais nada menos do que o mais estrondoso sucesso da direita e dos interesses que esta representa.

Em última instância, é com certeza o facto de não raciocinar explicitamente em termos de classe que permite que Braz Teixeira valorize os argumentos “técnicos” mais do que o interesse do seu próprio campo político recomendaria: a zona Euro não é uma zona monetária óptima, a taxa de juro agrava os problemas em vez de sinalizá-los eestabilizá-los. Digamos que o feitiço mediante o qual a economia dominante consegue apresentar-se aos olhos dos mais incautos como uma abordagem objectiva, não ideológica e não conotada com os interesses de qualquer classe social particular volta-se aqui, de forma relativamente invulgar, contra o feiticeiro. Por sua vez, claro, é essa mesma visão que subjaz a algumas das críticas que Braz Teixeira nos endereça, quando considera que os nossos argumentos são “mais políticos do que económicos” e que, ainda que o fim do Euro seja previsível, “é pouco provável que Portugal saia pelo próprio pé”. No fundo, para que se atinja aquilo que defende, Braz Teixeira parece depositar a sua confiança num sistema económico que se corrija automaticamente, sem intervenção da “política”, no sentido de uma racionalidade conceptualizada em termos abstractos.

De forma improvável e conjuntural, é uma posição que poderemos considerar relativamente benigna. Mas à esquerda, claro está, temos outras obrigações: de rejeitar o pensamento mágico, de perceber que as transformações sociais nascem de lutas concretas e, seguramente, de não ficar à espera, por medo ou tacticismo, que a nossa própria emancipação seja conduzida por terceiros. 

sábado, 11 de janeiro de 2014

Sempre a subir

Soubemos hoje que Álvaro Santos Pereira vai para um alto cargo na OCDE, graças, dizem, ao seu mérito, que Vítor Gaspar poderá ir para um cargo alto no FMI, graças ao mérito de Merkel, e que José Luís Arnaut vai para um baixo cargo, de consultor, na Goldman Sachs, graças ao mérito de ter estado em todo os lados nos negócios das últimas grandes privatizações. Reparem como, independentemente das motivações ou do tal “mérito”, que não existe em abstracto, dependendo sempre de critérios, acções políticas tão neoliberais quanto antipatrióticas são posteriormente tão recompensadoras. Entretanto, o Expresso indica que Maria de Luís Albuquerque se desfez em elogios à troika. É caso para perguntar: para onde subirá a seguir?

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Sinais inequívocos de retoma da indústria

No imaginário do governo Portugal está a viver momentos de reindustrialização. Uma das demonstrações do sucesso do programa de ajustamento seria o regresso em força da indústria, visível no crescimento das exportações. No entanto, não é isso que nos dizem as estatísticas.

Por exemplo, o índice de emprego na indústria apresentado pelo INE esta semana (ver linha vermelha no gráfico seguinte) revela valores inferiores aos verificados um ano antes. A aparente recuperação do índice relativo às horas trabalhadas na indústria entre Agosto e Outubro (linha verde) surge aqui como um fenómeno essencialmente sazonal.




No mesmo sentido, análise dos resultados do Inquérito ao Emprego do INE mostra que o aumento de postos de trabalho verificado nos 2º e 3º trimestres de 2013 são explicados em 90% pelos serviços (reforçando a ideia de que podemos estar perante um efeito turismo). Já o número de empregos no sector secundário caiu mais de 17 mil entre o 1º e o 3º trimestre de 2013 - e mais de 100 mil, quando comparado com o 3º trimestre de 2012.




Se o emprego na indústria não cresce, então como é possível que cresçam as exportações? São quatro os principais factores explicativos:

1. Mais de metade desse crescimento é explicado pela nova refinaria da GALP em Sines (que gera muitíssimos menos empregos do que receitas de exportação, é um fenómeno pontual e, ao mesmo tempo, acarreta um aumento das importações de petróleo em bruto, pelo que os efeitos nas contas externas são limitados).

2. Para além da refinação de petróleo, o aumento na exportação de bens é explicado fundamentalmente pela procura internacional de matérias primas como o papel, a borracha, os plásticos e os produtos alimentares (os produtos referidos explicam 3/4 do crescimento da exportação de bens desde 2008), cujo desempenho exportador é fortemente influenciado pelo factor preço e não apenas pela quantidade (já agora, esse aumento dos preços explica boa parte do recente aumento das importações).

3. Tirando as matérias-primas, o principal sector responsável pelo aumento das exportações é o turismo (o que não só não permite falar em retoma da indústria, como tem uma natureza fortemente sazonal).

4. O aumento das exportações industriais não representa mais produção na indústria, mas antes substituição do mercado interno por mercados externos.

Concluindo: não, não estamos a assistir à reindustrialização do país. Tal como não estamos perante qualquer milagre económico, apesar da estabilização das economias europeias e do efeito do aligeirar da austeridade em 2013 graças às decisões do Tribunal Constitucional. Os problemas que sempre tivémos cá continuam, não foram resolvidos pelas estratégia da troika e da actual maioria, apesar da destruição de emprego, da degradação do tecido produtivo, da emigração forçada e da crise social.

Audácia, precisa-se



A recente publicação do Manifesto 3D reflecte um anseio de longa data de muitos activistas das esquerdas, inconformados com a sua fragmentação e frustrados pela sua incapacidade de concretizarem uma iniciativa política unitária. Face ao drama da presente conjuntura, e aproximando-se novos actos eleitorais, o arranque deste projecto tornou-se inadiável. O tom do Manifesto é revelador desta urgência: não havendo mudança na atitude dos partidos situados à esquerda, será criado um novo partido, ou coligação de partidos, para disputar as europeias e, possivelmente, também as legislativas. Depois de uma longa espera, incluindo a realização de um Congresso Democrático das Alternativas, para muitos activistas, partidariamente independentes, chegou a hora de assumir que a idealizada convergência terá de se transformar em concorrência, pelo menos ao PCP e ao PS. Ainda assim, uma plataforma política que se apresenta ao público à espera de uma decisão do BE - em rigor lançando-lhe um ultimato - até será mobilizadora de muitos cidadãos politizados. Porém, aos olhos do país, evoca sobretudo tacticismo: proclama que quer juntar forças mas, de qualquer modo, vai criar um novo partido. 

Tratando-se de construir uma alternativa à esquerda, alguns dirão que mais vale tarde do que nunca. Porém, o texto do Manifesto está longe de ser convincente quanto ao que se propõe como alternativa que dê força e sentido prático ao protesto. Desde logo pelo título. Querendo "defender Portugal", implicitamente admite que a estratégia é a resistência. Ou seja, subliminarmente, reconhece que por agora não temos força para vencer o adversário. Acontece que a gravidade da situação em que nos encontramos exige muito mais do que uma proposta política defensiva face os poderes nacionais e europeus que nos esmagam.

Não é uma alternativa, também porque, tratando-se de uma proposta que visa atrair os europeístas das esquerdas (incluindo os do PS), convenientemente nada diz sobre o nó górdio da crise que estamos a viver. Sabendo os seus líderes que a presente política económica está inscrita no Tratado de Lisboa, no Tratado Orçamental e nas directivas da zona euro, ainda assim presumem que um governo de Portugal pode travar a austeridade, renegociar a dívida, impedir novos resgates, defender-nos do Tratado Orçamental e recuperar o Estado social. Tudo isto sem admitir que a nossa participação na moeda única possa estar em causa. Sem admitir que não há estado social sem política económica de pleno emprego, algo impossível no âmbito da zona euro. Se a vontade de criar um amplo movimento político obriga os promotores a evitar falar do essencial, da causa maior do endividamento externo do país, então isto não é a alternativa política de que o país precisa. Um frentismo que, para existir, não pode assumir perante o eleitorado as implicações últimas do embate com o ordoliberalismo, fica aquém da alternativa por que o país anseia.

Do meu ponto de vista, precisamos de um partido com os valores da esquerda que fale para todo o povo e formule um novo desígnio para o país. Desde logo, que defenda a recuperação da soberania monetária como pré-condição para sairmos da crise e para nos desenvolvermos. Mas também um partido aberto à sociedade e que defenda o aprofundamento da democracia sob diversas formas, incluindo a prevenção e o combate à corrupção. Um partido que defenda um Estado social forte e estratego, dotado de uma administração pública valorizada e liberta das nomeações partidárias. Um partido que, recusando ver o trabalho, a moeda e a natureza como mercadorias, atribui um lugar central à economia social, à protecção do ambiente e ao controlo da finança. Na encruzilhada em que estamos, Portugal precisa de um partido político com esta ambição, com a audácia dos que fizeram Abril há quarenta anos. Esse teria o meu apoio.

(O meu artigo no jornal i)

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Quanto tempo falta?

Excelente trabalho do Negócios de ontem, em especial de Nuno Aguiar, dando também espaço ao comentário do Nuno Teles: “com ou sem cautelar, recuperação da soberania não tem hora marcada”. Se este título é certeiro, aconteça o que acontecer – resgate, programa cautelar ou saída à irlandesa –, dadas as estruturas de constrangimento associadas ao euro, dado o facto de ficarmos sempre entre a espada do controlo pelas forças do capital financeiro e a parede das suas regras políticas, importa então perguntar: por que é que a farsa de Portas e do governo em torno da soberania pode ter algum efeito político, sendo que o ponto alto será uma semana antes das eleições europeias, ao contrário do que diz o relógio? Respondo parcialmente com outra pergunta: será que é porque ainda são poucos os que apresentam com clareza o que implica recuperar efectivamente as bases materiais da tal soberania, da capacidade para exercer a autoridade democrática sobre a política económica, ficando assim tal conceito demasiado à solta, entregue a artistas como Portas, que não são assim confrontados politicamente com as suas fraudes?

Entretanto, hoje, Helena Garrido escreveu um editorial no Negócios onde pergunta, tomando Portas como pretexto: “Soberania? Mas qual soberania?” Tende a associar a palavra ao salazarismo, ao nacionalismo agressivo, a conspirativos estratagemas políticos, etc. Seria melhor que perguntasse: Democracia? Mas qual democracia? É que a soberania é uma condição necessária, ainda que não suficiente, para a democracia. Não é por acaso que a nossa Constituição proclama, no seu artigo 1º, que Portugal é uma República soberana. É que sem isso não é possível ter um Estado de direito democrático e social.

Os defensores da actuais políticas estão a dar, por essa Europa fora, um magnífico contributo para a ascensão dos nacionalismos agressivos que dizem combater. O problema da atual configuração da UE e da existência do euro, da austeridade permanente aí inscrita, é serem as maiores ameaças à paz e à prosperidade na Europa, dado que no seu ADN está a destruição do grande estabilizador chamado Estado social, está a redução dos salários diretos e indiretos e tudo isto conjugado com a arrogância imperial, de um lado, e com a humilhação da dignidade nacional, do outro. Uma potente combinação. Neste contexto, falar de delegar soberania para obter paz e prosperidade é uma grande ilusão. Não se deve nunca delegar soberania democrática para uma escala irremediavelmente menos democrática. No fundo, é a mesma história de sempre, a que se repete com formas concretas sempre novas: as utopias liberais, as que destroem a soberania democrática, estão prenhes de monstros.

O dia em que fui ao Inferno falar do Manifesto 3D e da retoma do emprego

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Sinais inequívocos de retoma do emprego

Na sua declaração natalícia, Passos Coelho fez questão de assinalar a criação líquida de 120 mil postos de trabalho entre o 1º e o 3º trimestres de 2013. A selecção do período em análise não é inócua: se tomarmos como referência o início do Memorando e do actual governo (2º trimestre de 2011), a queda do emprego foi, na verdade, superior a 430 mil postos de trabalho; e em termos homólogos (isto é, face a igual período do ano anterior) a queda do emprego foi superior a 100 mil (os dados são do INE).

 
 

Mais grave ainda é o tipo de emprego que está aqui em causa. Quando olhamos para a duração da semana de trabalho dos tais 120 mil empregos criados verificamos que o grosso dos novos empregos refere-se a actividades que ocupam entre 1 e 10 horas por semana. Isto não é emprego, é desespero.

Tirando esse grupo, o emprego só cresce, e pouco, para atividades de duração superior às 40 horas, ultrapassando assim os limites estabelecidos na lei para o horário normal de trabalho desde há quase 20 anos.

Pelo contrário, o emprego caiu significativamente para horários mais próximos da duração normal: ao longo de 2013 foram destruídos em termos líquidos mais de 310 mil empregos com duração entre 30 e 40 horas semanais.




Em suma, a criação de emprego em 2013 não passa de ilusão estatística, que serve os propósitos de um governo ávido por apresentar como sucesso uma situação de desastre. Dá para pensar se esta suspeita não tem mesmo razão de ser.


Adenda: abaixo está o quadro retirado do site do INE, construído a partir daqui: http://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_indicadores&indOcorrCod=0005551&contexto=bd&selTab=tab2 (é preciso alterar as condições de selecção para ter os dados do 1º trimestre de 2013 e a desagregação da duração da semana de trabalho).