domingo, 31 de julho de 2022

Marcelo, o moralista

Marcelo, o moralista, fez um apelo às grandes empresas com lucros (extra)ordinários: “devem tomar iniciativa de sacrificar distribuição de dividendos”. 

O dever destas empresas, com estas regras e com esta relação de forças, é o de distribuir o máximo de lucros para os seus acionistas no mais curto espaço de tempo, mesmo que isso macroeconomicamente implique um sacrifício do investimento, padrão há muito já identificado. A moralidade neste campo, a antítese do moralismo, tem de estar em primeiro lugar inscrita na fiscalidade e em outras obrigações sociais associadas à propriedade. 

A discussão sobre política económica em Portugal é tão dominada por pressupostos neoliberais que até uma modesta proposta fiscal de taxação soa radical por cá, embora esteja a ser adoptada lá fora, da Espanha à Hungria, passando pela Itália. O Governo já rejeitou tais radicalismos. Talvez a pressão o leve a nomear uma comissão, mas só depois de um Verão que não será azul. Depois mete-se o Natal, sem esquecer a maioria absoluta de um P sem S.

 

sexta-feira, 29 de julho de 2022

O neoliberalismo é o caminho para o neofascismo

Contra os arrebatamentos da “esquerda” euro-liberal que se entrega a banqueiros, já aqui defendi que a Itália é um imenso laboratório neoliberal, construído em cima de um imenso cemitério político das esquerdas e de uma economia mista que funcionava muito melhor do que a economia estagnada há mais de duas décadas, obra da UEM. 

Nunca se esqueçam dos seguintes pontos de história política e da economia política, assinalados por Manuel Loff, historiador dos fascismos: 

“A extrema-direita só chega ao poder pela mão do resto das direitas (…) O seu crescimento coincide com a imposição da nova ordem neoliberal (…) O ciclo histórico do novo assalto da extrema-direita ao poder (o anterior foi o do fascismo no período entre guerras mundiais) é diretamente proporcional à crise dos partidos dominantes liberal-conservadores e social-democratas (…) A extrema-direita avança tanto mais quanto menos esquerda a sério houver para se lhe opor.”

Entretanto, Thomas Fazi, um raro observador soberanista da economia política italiana, escreveu um artigo que merece tradução. O contexto é o da demissão do desastroso governo dito de unidade nacional de Draghi, um dos criadores do letal vínculo externo indissociável do euro: “é mais provável que a próxima crise do euro rebente nas ruas da Europa do que nos mercados financeiros”. 

Gostava também de ter escrito isto – “a realidade é que a crise do euro nunca terminou: o euro é a crise”.

 

quinta-feira, 28 de julho de 2022

Os fazedores de recessões e os seus cães

 

No reino da Europa neoliberal, parece não haver outra visão que não passe pela desgraça da espécie sub-humana que vive ou viveu do seu trabalho; e pela boa vida da super-raça que empresta dinheiro àquela subespécie. E que, entre as duas, deve haver uma vintena de polícias, não eleitos por ninguém, que mandam nos cães que mantêm o sistema assim a girar. 

O resto da crónica - até para perceber quem são os fazedores de recessões, quem é a vintena de polícias e de que cães se trata - pode ser lido no Setenta e Quatro.


Inflação: ironias de um debate

Há quem nos queira convencer que subir as taxas de juro e criar uma recessão e desemprego para, indiretamente, baixar os custos salariais é um bom caminho. Mas controlar os preços da energia para impedir lucros extraordinários e conter, diretamente, a fonte da inflação é imprudente. 

Afundar a proporção dos salários no rendimento nacional (já em queda) é boa política económica. Mas não permitir que empresas oligopolistas exerçam o seu poder de mercado para triunfarem na crise, aumentarem a sua margem de lucro e amplificarem a transmissão da inflação a toda a cadeia produtiva é má política económica. 

Neste debate, dizem eles, não há interesses conflituantes. Tudo é técnico e estamos todos no mesmo barco. 

Não acreditem. Como em muitos outros debates, depurado o aparato da discussão mediática, o espectro da luta de classes está sempre lá. As políticas monetária e regulatória não são exceção. 


Diz que é um jornal


Um “jornal”, aspas muitas aspas, como o i serve basicamente para isto: defender os interesses do grande patronato. O drama é quando o marxismo mais básico explica o essencial em muita comunicação social. 

De facto, falar dos “economistas”, colocar uma fotografia de João César das Neves e uma declaração sobre “populismo típico de extrema-esquerda” é uma fraude: da OCDE a Mario Draghi, passando por insuspeitos juristas ordoliberais com cultura económica, atrevo-me a dizer que a maioria defende um imposto sobre os lucros caídos do céu. 

Bem sei que só neste país é que se diz só neste país, como assinalava Sérgio Godinho, mas aposto que já só em Portugal é que esta medida passa por radical. Radical, do que vai as raízes do problema, é mexer nas relação de propriedade. 

E falar de descapitalização, quando as grandes empresas distribuem dividendos a rodos a acionistas gananciosos, em detrimento do investimento paciente, é não ter a mais pequena noção da realidade dos mastodontes empresariais que estão a lucrar com a situação.

quarta-feira, 27 de julho de 2022

Eles têm poder


Alegrai-vos, em linha com um Ministro da Economia enlevado com os grupos económicos: a Jerónimo Martins aumentou os seus lucros em 40% no primeiro semestre. Há aqui um padrão.

Neste contexto, é prudente reservar algum dinheiro para um estudo da fundação pingo doce, vulgo Francisco Manuel dos Santos, sobre inflação, contratando um ou outro economista convencional habitual. 

Trata-se de alertar para o perigo da espiral inflacionista puxada pelos salários e para a necessidade de uma vigorosa subida das taxas de juro para aumentar o desemprego, perdão, para aumentar a poupança

E trata-se sobretudo de ofuscar a transferência maciça de rendimentos do trabalho para o capital que está em curso, superior à da troika, e de reduzir os mastodontes empresariais à lógica de um merceeiro com olho para o negócio, fazendo com que a realidade do poder do grande capital desapareça da vista.

Casas a menos ou financeirização a mais?

Uma profunda crise habitacional atravessa hoje a Europa, com as famílias a ter crescentes dificuldades em conseguir uma casa a preços acessíveis. Há quem considere que o problema resulta de uma mera escassez de oferta, mas a questão parece ser bem mais complexa. De facto, e em linha com o que acontece no caso de Portugal, não se registam à escala europeia variações no número de famílias (procura) e de alojamentos (oferta) que justifiquem a escalada de preços, iniciada em 2013.


Vale a pena reparar bem nos números: entre 2015 e 2020, o total de famílias na U27 (excluindo a Grécia) aumentou cerca de 2,5% (ou seja, mais 4,7 milhões de famílias, passando-se de um total de 187 para 191 milhões). No mesmo período, o total de alojamentos registou um aumento de 4,2% (passando-se de 217 para 226 milhões, o que traduz um acréscimo acima do registado no caso das famílias, com mais 9,1 milhões de fogos). Em termos de rácio, observa-se portanto a passagem de 1,16 fogos por família, em 2015, para um valor de 1,18 em 2021.

Assumindo 2015 como base de referência (2015=100), o que se verifica é que enquanto o número de famílias e de alojamentos registam variações ténues e idênticas (102,5 e 104,1, respetivamente), o aumento dos preços da habitação dispara para 126,9 em 2020, face ao valor 100 de 2015. Ou seja, evidenciando um claro desfasamento entre o preço da habitação e a relação «convencional» entre oferta e procura, obrigando a considerar que outros fatores explicam a vertigem dos preços, que afeta praticamente todos os países da União Europeia (com a exceção da Finlândia, Chipre e Itália, que denotam equilíbrio na evolução das três variáveis).


Ou seja, como já referido aqui, estamos muito provavelmente perante o efeito de novas dinâmicas de procura de habitação, alheias à simples relação entre «casas» e «famílias». Importando conhecê-las com detalhe, essas dinâmicas encontram-se muito provavelmente associadas a novas lógicas de financeirização, que encaram «a habitação como um ativo de investimento financeiro». O que, traduzindo na prática um défice de oferta, implica perguntar: «há falta de casas por quê, para quê e para quem?»

terça-feira, 26 de julho de 2022

Quem controla?


Como já vai sendo hábito, António Nogueira Leite exibe o seu preconceito e ignorância ao acusar os que defendem o controlo de preços de bens fundamentais de estalinismo económico

Na realidade, mesmo no capitalismo neoliberal ainda há preços direta ou indiretamente controlados pelos Estados, a começar na taxa de juro e a acabar em alguns elementos da fileira energética. Aposto que voltaremos a ter mais no futuro: da terra e da habitação ao trabalho, outras tantas mercadorias fictícias

Ao longo da história do breve século XX, muitos defensores da mais equilibrada economia mista saíram em defesa de controlos de preços e não foi só em situações de guerra. Por exemplo, o insuspeito John Kenneth Galbraith, conselheiro de vários presidentes democratas nos EUA, partindo da sua bem-sucedida experiência de controlo de preços durante a Segunda Guerra Mundial, deixando lastro em livro nos anos cinquenta, argumentou, nos anos setenta, que a presença de mastodontes empresariais, superando a ficção do mercado concorrencial, tornava o controlo de preços numa ferramenta essencial de combate à inflação, até para travar espirais contraproducentes.  A teoria limitava-se a acompanhar a prática em muitas economias mistas antes de tudo ter mudado para pior nesta área, salvo em países que, sem alarido, mantiveram aqui e ali controlos cruciais.

As grandes empresas, que não são um defeito, mas antes um feitio, do capitalismo maduro, têm poder e requerem um poder compensatório de natureza pública, o que pressupõe também propriedade pública em setores sensíveis, de resto ao contrário do que Galbraith tendeu a pensar. Ou os mastodontes empresariais controlam preços cruciais ou o poder público o faz, como se vê. 

Sabemos, até pelo número de conselhos de administração em que se senta, o que Nogueira Leite sempre prefere. Pensando por uma vez como economista convencional, é tudo uma questão de incentivos.
 

segunda-feira, 25 de julho de 2022

Ser ou não ser Amorim


A Galp registou um aumento de 153% nos seus lucros no primeiro semestre. O seu CEO, imitando a iniciativa liberal, veio tentar desviar as atenções para os impostos, mas como Vicente Ferreira já aqui indicou, as margens contam “e não é muito e não é pouco, bastante”, na famosa formulação. 

Da França à Alemanha, os governos estão a intervir nas principais empresas energéticas. Por cá, o Governo nem uma taxa sobre estes lucros extraordinários se atreve a criar, quanto mais reverter uma privatização nociva para o país. 

Quando o feminismo neoliberal se cruza com o capitalismo fóssil e de herdeiras na transição energética, o resultado é Paula Amorim e os seus privilégios. Aposto que é para incentivar a indústria do luxo, a que também se dedica nos tempos livres. Todo um sistema sustentável.

Ser ou não ser Milhazes


Alguém deveria informar Milhazes, e seus congéneres, que esta forma de combater o Partido Comunista Português não resulta. Estão a radicalizar quem tiver uma mera simpatia, a chamar para as trincheiras quem só estava a apanhar sol. Sá Carneiro disse algumas boas frases e não tenho nada o costume de as citar, mas aqui não resisto: “A melhor maneira de combater o comunismo é melhorar as condições dos trabalhadores.” Sá Carneiro ao menos sabia qual era — e é — a empreitada do PCP. 

Carmo Afonso é particularmente certeira na sua crónica da passada sexta-feira no Público, dando pretexto para duas ou três notas. 

Em primeiro lugar, o espectáculo deplorável, e sem contraditório, de Milhazes e companhia é a demonstração do declínio editorial profundo de uma comunicação social dominante que dá infinitamente mais palco a fascistas de mercado do que aos que são fiéis ao melhor da Constituição da República Portuguesa. A impotência da regulação no neoliberalismo, neste caso da ERC, fica demonstrada em mais uma campanha contra a Festa do Avante na SIC. O declínio abismal da qualidade televisiva é um efeito da sua submissão ao nexo-dinheiro, uma grande obra iniciada pelo cavaquismo. 

Em segundo lugar, Sá Carneiro viveu num tempo em que o chamado reformismo do medo, dada a correlação de forças nacional e internacional, até chegava à cultura da direita, sobretudo depois de derrotado o fascismo. Os principais beneficiários foram os trabalhadores. Do marxista Eric Hobsbwam ao social-democrata Thomas Piketty, passando por Pierre Rosanvallon, discípulo do historiador anti-comunista François Furet, o breve século XX tem vindo a ser reinterpretado à luz do efeito externo do socialismo realmente existente: sem o medo da revolução a reforma social-democrata não teria cogitado tantos apoios entre uma certa elite mais conservadora pelo menos até aos anos setenta. Depois de 1989, outra foi a História, realmente

Em terceiro lugar, num contexto de “policrises” geradas pelo neoliberalismo, a sabedoria convencional no fundo, bem lá no fundo, sabe que o marxismo mais escorreito e despretensioso tem cada vez mais poder explicativo e prescritivo, até porque não lhes passa pela cabeça melhorar as condições dos trabalhadores, antes pelo contrário. Daí que insistam nestas campanhas perversas, onde vale tudo.

domingo, 24 de julho de 2022

Chega de desinformação

Na passada quinta-feira, André Ventura voltou à carga com o discurso anti-imigração: «é o venham de qualquer maneira, venham que nós temos cá subsídios para vos dar enquanto não temos para dar aos que cá precisam, verdadeiramente, de subsídios. (...) Venham cobrar que salários venham, venham haja emprego ou não haja, que a economia portuguesa está cá para vos sustentar. Triste país este, que não consegue sustentar os seus, mas quer sustentar com subsídios os que vêm de fora». Só que não:


Como o Chega insiste, apostando em falsas perceções do senso comum, importa repor a verdade dos factos: o volume de contribuições dos imigrantes para a Segurança Social tem superado sempre, e muito, o valor que estes recebem em prestações sociais. Ou seja, os imigrantes são contribuintes líquidos do sistema e não uma espécie de «recebedores de subsídios», como Ventura quer fazer crer.

Mais: ao serem contribuintes líquidos da Segurança Social, os imigrantes contribuem positivamente para a sustentabilidade do sistema de pensões e o financiamento do sistema de proteção social que a todos beneficia. Razão pela qual, aliás, importa assegurar aos imigrantes condições de trabalho digno, garantindo «regulação, negociação coletiva e fiscalização das condições de trabalho», como sublinhou recentemente Manuel Carvalho da Silva.

sexta-feira, 22 de julho de 2022

Manifestamente exagerada


Se o Banco Central Europeu (BCE) está disponível, com a primeira subida da taxa de juro de referência da última década, para sacrificar o investimento e o emprego, em nome do combate a uma inflação sobretudo puxada pelos custos da energia e pelo oportunismo das grandes empresas, a verdade é que não parece estar disponível, no contexto de “policrises”, para repetir a crise evitável das dívidas que não são soberanas.

De facto, a instituição pós-democrática mais poderosa da zona euro decidiu continuar o caminho da sua americanização, começado pela encarnação do neoliberalismo chamada Mario Draghi (este processo foi analisado pelo historiador económico Adam Tooze em Crashed). Sim, também a sustentação do neoliberalismo requer comando político da moeda, ainda que disfarçado de técnica.

Quero com isto dizer que o novo instrumento de intervenção nos mercados secundários de dívida pública ontem anunciado é aparentemente ilimitado, embora esta hipótese vá ser provavelmente testada pelos próprios mercados, e sem condições novas, para lá da tralha neoliberal que já constrange a acção orçamental dos governos, sobretudo periféricos.

Fala-se de uma intervenção de controlo das reações dos mercados, para lá do que seria justificado pelos “fundamentos económicos”, orientada pela “sustentabilidade da dívida”. Obviamente, estes dois termos são incertos e parcialmente determinados pela própria acção do BCE.

Como diria Keynes, em contexto de incerteza, vale-nos a discricionariedade do soberano monetário e logo orçamental. O problema é que a ligação tesouro-moeda é aqui indireta, para lá do facto relevante que o soberano não é popular. Da ficção da independência dos bancos centrais, propagada pela teoria neoliberal, passámos há muito para a realidade neoliberal europeia da dependência dos governos em relação aos bancos centrais. No regime keynesiano, como lembrou um dia o saudoso Silva Lopes, num aparte inesquecível numa confererência, o Ministro das Finanças telefonava para o Banco Central a dar ordens. Melhor regime.

Sim, a morte do neoliberalismo é manifestamente exagerada.

quinta-feira, 21 de julho de 2022

Pratiquemos a desobediência


Adoro o cheiro a desobediência a Bruxelas pela manhã: ‘Portugal “não aceita” proposta de Bruxelas para reduzir 15% do consumo de gás’.

Na realidade, Portugal e Espanha não têm interligações com o resto da UE que justifiquem aceitar tal imposição. É no que dão as pressas, resultantes de sanções imprudentes. E, sim, cada caso tem de ser um caso. É assim que temos de acabar com o suposto mercado único, na energia e não só.

Eterno optimista da vontade, pode ser que um dia, com outra relação de forças, a desobediência se torne um hábito e que quem nos governe deixe de ser “bom aluno de maus mestres”, como diria o saudoso José Medeiros Ferreira. A realidade da sociedade portuguesa impõe-no.

quarta-feira, 20 de julho de 2022

Estado da Nação em tempos de incerteza

«Quem disputa audiências clama por mudanças radicais. Se em alguns casos a resolução de problemas do país exige, de facto, transformações profundas e concentradas no tempo, noutros requer a prossecução de intervenções cujo impacto decorre da sua coerência e persistência, muito mais do que do grau de inovação e radicalidade das medidas em causa.
O facto de serem pouco inovadoras ou dramáticas não torna menos importante o escrutínio das políticas públicas. Obriga, no entanto, a que o debate vá além de frases feitas e de polémicas mais ou menos estéreis, assentando antes na análise cuidada dos resultados e dos processos envolvidos. É isso que tentamos fazer nesta 4ª edição de “O Estado da Nação e as Políticas Públicas”, que tem o mesmo objetivo das edições anteriores: ir para lá da espuma dos dias, focando as atenções nos desafios estruturais que se colocam a Portugal e em algumas respostas recentes para os enfrentar em diferentes domínios da governação
».

Da introdução de Ricardo Paes Mamede à edição de 2022 do relatório sobre o Estado da Nação e as Políticas Públicas, este ano com o título «Recuperação em Tempos de Incerteza» (acesso gratuito ao relatório, na íntegra ou por capítulos, aqui). Tal como nas três edições anteriores (2019, 2020 e 2021), este trabalho surge por ocasião do debate parlamentar sobre o Estado da Nação. Este ano, e dando sequência à inovação introduzida no ano passado, o IPPS-Iscte, em parceria com o CoLABOR, junta ao relatório uma interessante base de dados («O Estado da Nação em Números»), que vale a pena consultar.

terça-feira, 19 de julho de 2022

Economia política com claro sinal


Em declarações ao Financial Times, a chefe de uma das maiores empresas das indústrias de guerra norte-americanas apela aos governos ocidentais para que haja um “claro sinal de procura”: afinal de contas, precisam de garantias sobre a “sustentação” da guerra na Ucrânia para que os stocks de armas sejam repostos, com grandes lucros naturalmente. 

Ainda no Financial Times, discute-se a “situação impossível” do BCE, ou seja, a situação de uma zona euro disfuncional. Impossível é mas é a situação das classes populares, em particular nas periferias. A imprudente escalada sancionatória e a ausência de apostas diplomáticas não ajudam nada. 

Perante a decisão política de subida das taxas de juro, parte de um plano perverso mais vasto, insisto

A recessão e o desemprego que resultam de uma política ao serviço dos credores atingirão os elos mais fracos, ou seja, os países endividados como Portugal e em particular as suas classes trabalhadoras. Para estas classes, o conselho das instituições europeias e dos governos que lhes são submissos é o mesmo de sempre: aguenta, aguenta. 

No euro, os salários são a variável de ajustamento, seja em contexto deflacionário, seja em contexto inflacionário. É para isso que serve o desemprego promovido pelas mais difíceis condições de crédito e pela austeridade que inevitavelmente se seguirá. 

O espectro da “fragmentação”, ou seja, de grandes discrepâncias entre as taxas de juro pagas pelo centro e pela periferia, é a declinação financeira de uma zona euro marcada pela instabilidade, intrínseca à opção de não garantir a solvência da dívida através do Banco Central. 

Para compensar, o BCE garante que tem um misterioso instrumento, a revelar oportunamente em data não definida, para evitar a fragmentação. Sabemos qual é: ou compra dívida e segura os juros da periferia ou nada feito. Na Alemanha, onde os credores têm mais poder, há quem não goste desta política.

segunda-feira, 18 de julho de 2022

Um jornal em defesa do SNS

Hoje, a multiplicação de tensões na esfera laboral, muitas das quais estão já a conduzir a greves e outras formas de luta, mobiliza também a resposta neoliberal. Há que preservar o que na sua perspectiva é essencial. Em primeiro lugar, impedir que a valorização do poder sindical entrave a histórica transferência que está em curso de rendimento do trabalho para o capital. Em segundo lugar, impedir a verdadeira «reforma estrutural» de que os serviços públicos precisam, e que passa pela recusa da dilapidação de recursos públicos para alimentar negócios privados. É por isso que as lutas na saúde, em particular com a pandemia, assustam tanto os neoliberais: através delas, os sindicatos dos trabalhadores do SNS (profissionais de saúde, administrativos, da limpeza e tantos outros) mostram como as suas reivindicações estão alinhadas com a defesa dos serviços públicos essenciais.

Sandra Monteiro, Saúde e «grupos de interesse», Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Julho de 2022.


domingo, 17 de julho de 2022

Ah pois é...

"Eu geralmente voto em quem promete cortar mais nos impostos..." 


A indignidade anti-comunista


Amigo dos comunistas portugueses, fiz questão de ir ao concorrido comício no Campo Pequeno há uns meses. Os amigos são para as ocasiões, sobretudo quando está em curso uma campanha anti-comunista particularmente descarada. 

Não fiquei surpreendido com o contraste entre a dignidade do evento e a indignidade da sua cobertura televisiva, em particular na SIC. Perante a justa queixa, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social  (ERC) deliberou o seguinte

“Considerar que a peça jornalística, ao ter um registo opinativo, que desvaloriza e ridiculariza a posição do PCP, não observa o rigor informativo, pelo incumprimento da necessária isenção e pela não demarcação entre informação e opinião, ao arrepio do disposto na alínea a) do n.o 1 do artigo 14.o do Estatuto do Jornalista.” 

No entanto, a regulação no neoliberalismo é totalmente inconsequente, limitando-se a ERC a “instar a SIC a assegurar a difusão de uma informação que respeite o pluralismo, o rigor e a isenção, nos termos previstos no artigo 34.o, n.o 2, alínea b), da Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido”. 


quinta-feira, 14 de julho de 2022

Eles têm um plano


No meio de tantas crises entrelaçadas, até parece que as elites da União Europeia (UE) têm um plano. Se assim for, é caso para dizer que este combina uma avaliação equivocada da relação de forças, subordinação aos EUA e à sua aposta na corrida armamentista, dirigida em última instância contra a China, sem esquecer o tradicional enviesamento de classe inscrito na zona euro.

O resto da crónica pode ser lido no setenta e quatro


Está a decorrer agora


Combustíveis e margens


Mais uma notícia para a série "o problema dos preços dos combustíveis está sobretudo nos impostos cobrados pelo Estado": a margem de refinação da Galp mais do que triplicou no 2º trimestre deste ano. Ficou em 22,3$ por barril, bem acima dos 6,9$ por barril registados entre janeiro e março, à semelhança do que se tem verificado com as outras petrolíferas.

No comunicado citado pelo Expresso, a Galp diz que "capturou o ambiente de mercado favorável". É um eufemismo simpático para a tendência que realmente se verifica: num setor fortemente concentrado, as grandes empresas como a Galp conseguem aumentar os preços e as margens no atual contexto e registar ganhos extraordinários à boleia da crise.

Espanha, Itália e Reino Unido já avançaram com a tributação dos lucros extraordinários das empresas. É uma forma de repor alguma justiça social e financiar políticas públicas de resposta à crise. Por cá, o governo continua a não parecer muito interessado no assunto.

 

quarta-feira, 13 de julho de 2022

Novo banco, nova agressão


Tarde e a más horas, cada vez mais gente chega à conclusão que as esquerdas consequentes tiraram há alguns anos: o interesse público não foi defendido no Novo Banco. O neoliberal Manuel Carvalho fala agora de agressão ao país, uma expressão curiosamente usada pelos comunistas para se referirem à ingerência do tempo da troika e que continuou para lá dela. Pactos de agressão tem havido muitos, de facto. 

Eterno optimista, tenho esperança que até Carvalho chegue a uma conclusão, daqui a uns anos: a condição necessária para defender o interesse público num sector que lida com o crédito, com a confiança, é a propriedade pública e uma gestão muito diferente da lógica privada. Afinal de contas, quando 75% da banca estava em mãos públicas, antes das privatizações de Cavaco e companhia, não havia agressões destas. 

O problema, como temos insistido nos últimos anos, radica no facto de Portugal ser nesta área o equivalente a uma colónia da UE, aplicando-se no rectângulo um princípio particularmente perverso, aceite por Centeno e companhia: pagam, mas não mandam, dado que é necessário internacionalizar, ao invés de nacionalizar, a propriedade. Lamento, mas é a lógica da UE, aceite de forma subserviente pelas elites deste pobre país. 

 

Hoje


O Setenta e Quatro celebra hoje o seu primeiro aniversário. Para assinalar a data, o jornal promove um debate sobre «Os desafios do jornalismo português», que conta com a participação dos jornalistas Paulo Dentinho (RTP 1), Judith Menezes e Sousa (TSF) e Daniel Oliveira (SIC/Expresso), e a advogada Carmo Afonso. A conversa é moderada por Ricardo Cabral Fernandes, diretor do Setenta e Quatro, seguindo-se a apresentação da edição de aniversário e um momento de convívio. O evento tem lugar no Bar Park, em Lisboa (Calçada do Combro 58), a partir das 18h00.

terça-feira, 12 de julho de 2022

Uberizações, vergonhas

Pelas suas reformas fiscais e laborais regressivas, transferindo rendimentos e poder de baixo para cima, Macron tem sido justamente acusado de ser o presidente dos ricos. Sem surpresas, soube-se agora que o herói do extremo-centro europeísta serviu a Uber como Ministro da Economia. 

O grande capital transmuta-se em grande influência política com cada vez maior facilidade. Tem-se falado de uberização das relações laborais. Podemos passar a falar de uberização da política. Isto anda tudo ligado. 

Se falamos de multinacionais como a Uber, temos pelos vistos também de passar a falar da uberização da economia convencional, ou seja, de economistas académicos das mais prestigiadas universidades que são pagos, mas neste caso bem pagos, para produzir estudos feitos à medida destes grandes interesses capitalistas, que aliás podem fornecer os dados e tudo.  

Os interesses dominantes pagam às ideias dominantes, num círculo vicioso com mecanismos que já tinham ficado evidentes com as ligações perigosas de economistas académicos muito sérios ao sector financeiro. Tudo se compra e tudo se vende numa distopia povoada de homo economicus do ponto de vista motivacional. 

Sim, temos um problema imbricado com o poder capitalista, a desigualdade e a corrosão de carácter crescentes.

Que tipo de sociedade pretendemos?


Depois do imenso sofrimento de uma guerra, as sociedades esperam não voltar ao sistema que lhe deu origem. Também foi essa mudança radical que muitos esperaram que viesse a acontecer quando se conseguisse controlar a pandemia. Infelizmente, essa mudança não está no horizonte, ainda para mais com uma guerra na Europa sem fim à vista.

Após a Segunda Grande Guerra, os britânicos votaram por maioria absoluta num programa do Partido Trabalhista que criou o Serviço Nacional de Saúde universal e gratuito, a escola pública, habitação, propriedade publica de todos os tipos de transporte, nacionalização dos monopólios naturais (energia, água, correios, portos, etc.). A vida dos cidadãos melhorou imenso, sobretudo a vida dos "de baixo".

Tudo isso foi possível num país bombardeado e endividado.

A vitória militar tornou evidente a vitória da cooperação, do esforço colectivo, do planeamento, sobre o individualismo, a competição e a imensa desigualdade que dominavam antes da guerra. Foi este espírito de 1945 que reergueu o Reino Unido no pós-Guerra, de que dá testemunho este documentário de Ken Loach (sem legendas em português, infelizmente).

O filme termina com um depoimento/mensagem que deveríamos considerar seriamente na conjuntura dos nossos dias:

Dar início a um diálogo entre as gerações que viveram o tempo da reconstrução do país, os anos seguintes ao 25 de Abril, e os jovens que não fazem ideia da poderosa transformação social que foi, e tem de continuar a ser, um Estado social. Um Estado que restaura o sentido de uma vida em comum e solidária, o sentido de um "Nós" com dignidade para todos, com saúde, educação, habitação, pleno emprego, segurança social, sistema fiscal progressivo, e direito do trabalho que protege a parte mais fraca. Que tipo de sociedade pretendemos?
«Estou absolutamente convencida de que a geração mais velha, em vez de ser um fardo para a sociedade, tem o dever absoluto de tomar a iniciativa e juntar-se aos jovens, falar com eles e explicar-lhes. Eu digo aos pensionistas que desliguem a televisão, retirem os auriculares dos ouvidos e comecem a contar como era a visão em 1945. O que é que pretendíamos? Como a vimos progredir? O que significava a expressão “do berço à cova”? O que significava a propriedade colectiva, a partilha e a comunidade? O que significa? Comecem a reconstruir esse entendimento do tipo de vida que pretendemos. Penso que temos uma boa oportunidade de fazer isto.» (1:29:50)

segunda-feira, 11 de julho de 2022

Os rankings são também um problema de mau jornalismo

Ano após ano - e são já mais de 20 anos de rankings de escolas - as parangonas prediletas da comunicação social (com raras exceções) ainda continuam focadas nas diferenças, em registo de competição, entre o público e o privado. Alguns exemplos: «Privados continuam a dominar o topo. Melhor pública em 33º lugar» (Jornal de Notícias); «Escolas públicas de Lisboa e Porto fora do top 50» (Público); «Fosso entre escolas públicas e colégios é menor» (RTP); «As 32 melhores secundárias são privadas» (Diário de Notícias); «Notas descem mas públicas aproximam-se da média no privado» (TSF); «No top 50 há duas escolas públicas» (Observador).

Ano após ano também - e de forma visivelmente concertada (não há um só caso, que pudesse ser apontado como exceção) - os colégios e escolas do ensino privado continuam a não fornecer qualquer informação sobre o perfil socioeconómico dos seus alunos (ver imagem, adaptada da lista de ordenação feita pelo Público), impedindo assim qualquer comparação séria dos resultados obtidos. É como se, numa prova de ciclismo, e ao registar os que vão chegando à meta, fosse irrelevante - para um jornalista - que uns tenham feito a prova num veículo motorizado e outros de bicicleta, dando como válida e fidedigna - em termos de mérito - a ordem de chegada.


Não é verdade, aliás - ao contrário do que refere o Público (caixa verde, na imagem) - que seja o Ministério da Educação a não fornecer os «dados de contexto socioeconómico (...) para as privadas». São as próprias escolas privadas que decidem, por razões óbvias (desde logo a inconveniência de tornar visíveis, e mensuráveis, as práticas de seleção dos melhores alunos), não partilhar esses dados com o ministério, que fica assim impedido de os disponibilizar à comunicação social (juntamente com a informação de contexto dos estabelecimentos de ensino da rede pública).

Tem por isso razão Rodrigo Queiroz e Melo, da Associação de Estabelecimentos de Ensino Particular, quando diz que «não há conhecimento sem informação» e que «em Portugal temos muito pouca informação relevante sobre o que se passa no sistema educativo». Só é pena, de facto, que a sua própria associação contribua de forma reiterada para essa desinformação, optando por não divulgar dados sobre o perfil socioeconómico dos alunos que frequentam as escolas privadas. E que, nestas circunstâncias, jornais, rádios e televisões continuem a não se recusar a publicar resultados destas escolas enquanto as mesmas não forneçam esta informação. Tanto mais quanto, já de si, os rankings estão muito longe de conseguir traduzir o trabalho desenvolvido por cada escola, como lembra, e muito bem, o ministro da Educação João Costa.

domingo, 10 de julho de 2022

Querido diário - Doutores de mula ruça

Público, 4/7/2012

Há dez anos, o Governo era agitado por mais um drama. 

Já não bastava o facto de estar a ser passado um rolo compressor sobre o que era rendimento dos trabalhadores, no activo e na reforma, como ainda por cima, tudo indicava que havia muitas coisas que se passavam na penumbra dos bastidores. E que revoltava. Era como se a par desse estado de emergência, os pequenos promovidos aproveitavam-se do sistema de excepção para o qual tinham trabalhado. Era o caso que Jerónimo de Sousa associou ao que vivera nas suas origens, quando havia uns "doutores da mula ruça"


Relvas tinha sido, próxima dessa altura, objecto de uma intervenção da Entidade Reguladora da Comunicação Social por, a 18/5/2012, ter feito ameaças a uma jornalista do jornal Público de que revelaria na internet aspectos da sua vida privada se continuasse a apresentar perguntas sobre os serviços de informação. O caso caiu no domínio público e a ERC foi forçada a intervir. Mas de lá, nada saiu de relevante (ver no ponto 2 apresentação do caso e decisão): O conselho da ER acabou por não dar como provada a ameaça. A jornalista perdeu o emprego: demitiu-se por falta de solidariedade da direcção editorial do jornal que, segundo a nota da ERC, "afastou o cenário de pressão ilícita" e que acabou mesmo por publicitar nas páginas do jornal os aspectos que o ministro ameaçara divulgar.
 
Público, 8/7/2012

E além desse caso, ainda pairavam, na altura, rescaldos de casos menos políticos gerados no tempo do Cavaquismo...
 


Querido diário - Chumbo

Público, 6/7/2012

Na altura, foi mesmo uma pedrada no charco.

Andava o governo alegremente a querer fazer as suas revoluções neoliberais, passando por cima a Constituição (essa letra morta; os sindicatos a tentar resistir como podiam e a contrapor-se àquele discurso de inevitabilidade, que "tinha de ser assim" a bem das empresas e da competitividade nacional. Que apesar de termos 22% de pobres e de 40% de pessoas pobres antes de apoios sociais, todos "nós" tínhamos "vivido acima das nossas possibilidades" e agora tínhamos expiar as nossas culpas e pecados à luz do Santo Ofício dos princípios das instituições da troica. Que apesar de se ter saído de uma crise internacional, a melhor forma que Portugal tinha de sobreviver era - não promover os rendimentos, a procura e a produção nacional - mas asfixiar o rendimento, transferir rendimentos dos trabalhadores para as empresas (cortes de feriados e de dias de férias, corte na retribuição salarial do trabalho suplementar, cortes nas compensações por despedimento, cortes no subsídio de desemprego, etc., ) e aumentar o desemprego, para forçar os desempregados a aceitar mais baixos salários e, assim, tornar possível às empresas reduzir a sua massa salarial e aumentar as suas margens e lucros; tudo para reduzir o consumo, o investimento e, no final, as importações. E agradar aos mercados financeiros que nos "emprestaram"  dinheiro a elevadas taxas porque os cânones liberais impedem o Estado de emitir moeda própria, de forma gratuita.

Vivia-se um estado político de emergência provocada, semelhante a um golpe de Estado, a um Estado invadido, em que todas as medidas se tornam possíveis, sem que haja oposição.  

Mas aos poucos começou a haver. 

E o que veio depois a acontecer, provocou uma tal hecatombe à direita, da qual, passados dez anos, o CDS não recuperou e o PSD ainda mal se refez tendo, para sarar as suas feridas - espanto político! - reabilitado precisamente a equipa responsável pelo desastre nacional que foi a aplicação da receita neoliberal em Portugal, da austeridade redentora. E até com as mesmas caras, mas agora branqueadas e lavadas pela comunicação social, porque, afinal, tinham tido funções menores no desastre...! Grande alívio.

A direita entrou, pois, numa crise que, aos poucos, está a ceder a passagem à extrema-direita, seja ela a dos jovens neoliberais urbanos ou a da tropa de choque proto-fascista, criada e alimentada para, quando for necessário, ser capaz de bater a esquerda nas ruas. 

Mas a direcção do PS deveria estar atenta aos sinais que se vão formando pelo descontentamento das suas cedências a uma agenda europeia neoliberal, acelerada militarmente pela guerra em vários continentes. Que o PS não se torne - em mais um estado de emergência provocada - no mordomo europeu da preparação dos jovens nacionais para uma guerra que não é nossa. 


sexta-feira, 8 de julho de 2022

O BCE deve subir a taxa de juro para combater a inflação?


Revelar o quadro teórico do qual se extraem as recomendações de política pública é um bom ponto de partida para uma discussão que se pretende transparente. A maioria dos proponentes da subida das taxas de juro tem como quadro teórico implícito a designada macroeconomia do novo consenso, ainda muito influente nos círculos europeus. A inflação é geralmente vista como o resultado de um excesso de procura na economia, que se expressa na exigência de salários nominais excessivos e incompatíveis com uma inflação estável. Uma taxa de inflação baixa é alcançada de forma indireta, através do controlo do poder reivindicativo do fator trabalho: a subida da taxa de juro abranda o ritmo de crescimento ou faz decrescer o investimento e o consumo privados. Essa diminuição da procura agregada causa aumento de desemprego, que reposiciona a reivindicação salarial num nível consistente com uma inflação constante.

Mas a inflação presente não tem origem no excesso de procura, nem na aceleração dos salários nominais. A inflação na zona euro, descontada dos custos de energia e de bens alimentares, é de apenas 3,8%. Os salários nominais negociados situaram-se em 2,8% no primeiro trimestre, o que compara com uma inflação global de 7,4%. Em Portugal, prevê-se uma quebra dos salários reais de 0.8%, o que, a par de um crescimento da produtividade de 3.5%, se concretizará numa transferência adicional de 4,3% do rendimento nacional do trabalho para o capital.

Ao invés, o debate internacional tem atribuído a inflação a três fatores do lado da oferta: os constrangimentos nas cadeias de produção globais, a subida dos custos energéticos, associada à guerra na Ucrânia, e a subida das margens de lucro dos setores oligopolistas, como é o caso da fileira energética, num contexto de desancoragem de preços.

Será que, num contexto em que a inflação é causada pelo lado da oferta, a subida da taxa de juro é eficaz? A resposta até pode ser eventualmente positiva, mas com efeitos dramáticos e desnecessários para a desigualdade e para o desenvolvimento. Configura a metáfora do tratamento que cura a doença matando o paciente O aumento da taxa de juro causaria uma recessão artificial, com o aumento do desemprego e contração salarial. Seriam os desempregados e os trabalhadores, cujos salários reais já estão em queda, a suportar todo o fardo do ajustamento, enquanto as margens de lucro continuariam a subir em muitos setores. Por outro lado, é uma trajetória que compromete o futuro da economia portuguesa. Nos últimos vinte anos, Portugal registou níveis de investimento muito baixos, em parte pelo efeito negativo da austeridade nas taxas de lucro. Aumentar a taxa de juro significa contrair a acumulação de capital, com reflexos muito negativos na capacidade produtiva e no ritmo de incorporação de inovação tecnológica. Ser defensor de uma subida da taxa de juro e ter simultaneamente como prioridades a convergência tecnológica e o aumento da produtividade da economia portuguesa é um paradoxo.

Mas o argumento mais preponderante na oposição à subida da taxa de juro advém da fragilidade macroeconómica em que Portugal se encontra. Com os stocks de dívida pública e privada que Portugal apresenta, usar a taxa de juro como instrumento de política monetária corre o risco de aumentar os custos de financiamento soberanos para níveis incomportáveis, como ficou demonstrado na passada semana. Sem uma solução robusta para os problemas de desenho institucional da zona euro, defender a subida das taxas de juro é aceitar o regresso da austeridade.

(Publicado originalmente no semanário Expresso)

Teme-se o pior


Começou hoje a discussão parlamentar da proposta de lei denominada pelo Governo de Agenda para o Trabalho Digno.

Hoje, foi um debate curto, de pouco mais de uma hora e que vai prosseguir em comissão parlamentar, onde se discutirá a proposta do Governo e os projectos dos deputados. Mas deu para perceber ao que se vem.

A ministra do Trabalho apresentou-se da mesma forma de sempre: com um discurso cheio de palavras redondas como se o PS - juntamente com a direita - não tivesse fortes responsabilidades na actual realidade laboral descrita pela ministra como "inadmissível" (!), como se Ana Mendes Godinho não estivesse no Governo desde 2015 e como ministra do Trabalho desde 2019, como se não tivesse aprovado em 2019 um pacote de medidas contra a precariedade (aliás com forte apoio patronal). Disse:
Esta é "uma das mais importantes e ambiciosas reformas em matéria de legislação laboral para chegar a milhões de trabalhadores"; é o resultado de "um processo longo que se iniciou com o Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho", que incide sobre o "futuro colectivo", expressa em 70 medidas com quatro objectivos "muitíssimo caros": "o combate sem tréguas à precariedade e a valorização da promoção do trabalho digno", a "valorização dos jovens no mercado de trabalho", a "promoção da conciliação entre a vida profissional, pessoal e familiar" e a "real dinamização efectiva da negociação colectiva, promovendo a participação dos trabalhadores". "Esta é uma agenda forte, uma agenda corajosa, uma agenda ambiciosa de que o país precisa e de que os jovens precisam".
Apesar de o PS estar há 7 anos no Governo, Ana Mendes Godinho disse que a proposta "responde a graves problemas que, de forma absolutamente inaceitável, persistem no mercado e trabalho e na sociedade poertuguesa". Cerca de 62% dos jovens têm contratos precários e os seus salários são 40% abaixo dos contratos permanentes. "É isto que não podemos aceitar" (palmas do PS)... Medidas que passam por "combater o recurso abusivo ao trabalho temporário e à eterna precariedade como meio normal de contratação que é inadmissível!", (palmas do PS), "medidas para impedir esquemas de substituição por outsourcing após despedimento colectivo ou extinção do posto de trabalho"; "Medidas para impedir a eternização de uma vida permanentemente temporária com contratos temporários que impede qualquer estabilidade ou autonomização", etc., etc. tudo o que "socialmente não podemos aceitar!".
Mas depois, foi incapaz de discutir os assuntos apresentados, incapaz de responder a questões políticas postas de diversas bancadas, respondendo de uma só vez (ou seja, esquivando-se) aos pedidos de esclarecimento que lhe foram postos e recorrendo a tiradas e chavões de marketing político.

O problema é mesmo a falta de casas?


Na reação à atual crise de habitação, que atravessa hoje a generalidade dos países europeus, incluindo Portugal, «a nossa direita apressou-se a identificar a "falta de casas" como a raiz do problema. Isto é, como se o que estivesse em causa fosse um simples défice de oferta. (...) Sucede, porém, que esta tese não colhe quando se olha para os números, tirando o tapete à leitura convencional a que a direita, convenientemente, deita mão. De facto, tanto o número de alojamentos (oferta) como de famílias (procura) pouco se alteraram ao longo da última década. O parque habitacional aumentou em cerca de 111 mil fogos entre 2011 e 2021 (+1,9%) e as famílias residentes em cerca de 105 mil (+2,6%), ao passo que o Índice de Preços da Habitação (IPH) subiu vertiginosamente no mesmo período, “descolando”, em termos de ritmo de crescimento, da evolução da oferta e da procura.»

O resto da crónica pode ser lido no Setenta e Quatro.

quinta-feira, 7 de julho de 2022

Quando é que a AR vai discutir a crise?


Discute-se na AR a moção de censura apresentada pelo Chega. Infelizmente, os discursos passam ao lado das causas mais importantes da crise que estamos a viver e que, tudo o indica, se agravará nos próximos meses. E as causas são estas:

1) o colete de forças da moeda única (vulgo "Portugal das contas certas") que leva o Governo a evitar uma negociação séria das carreiras na Administração Pública (SNS, Educação, etc.), a admitir que terá de voltar a olhar para o sistema de pensões com os óculos do neoliberalismo, a limitar o essencial do investimento público ao PRR, a conduzir uma política de relações públicas dirigida aos mercados financeiros, a exibir um discurso de "bom aluno" no quadro de uma UE cada vez mais pressionada pelos países da Europa central e de leste, ou seja, no quadro de uma UE submissa aos interesses geo-estratégicos dos EUA;

2) as sanções económicas e financeiras decretadas contra a Rússia que, como muitos previram (comparando com sanções antecedentes), não impedem a guerra, não derrubam Putin, nem afundam a economia russa, pelo menos pelo que se viu até agora. Um verdadeiro "tiro no pé" da UE com consequências que se afiguram gravíssimas, sem que a Ucrânia tenha qualquer benefício.

Na realidade, as sanções produziram na UE uma gravíssima crise de energia (última hora: nacionalizações na Alemanha e na França), possivelmente também uma crise alimentar de grande escala no Sul global, uma enorme subida do custo de vida que mais uma vez agravará a vida dos pobres e de boa parte da classe média, um abalo no excedente comercial da Alemanha, um novo cenário internacional que pode pôr em causa o modelo de crescimento alemão, com repercussões negativas para o resto da zona euro. Recorde-se que a Alemanha é o terceiro destino das exportações portuguesas.

Isto, ao mesmo tempo que o BCE anuncia subidas (cautelosas, é certo) da taxa de juro para "combater" uma inflação que nada tem a ver com excesso de procura, e a UE promete com grande espectáculo um novo alargamento que (a concretizar-se, o que duvido) produzirá na UE o caos institucional, como de resto António Costa já percebeu.

O melhor cenário para os próximos meses seria uma situação de relativo equilíbrio no confronto militar que conduzisse a Rússia e a Ucrânia a aceitarem o regresso às negociações.

Eu sei que este cenário é injusto para a Ucrânia invadida, cuja classe dirigente, pouco importa agora as suas motivações, acreditou poder contar com outros exércitos ao seu lado para submeter os separatistas e enfrentar a Rússia. E tinham alguma razão para acreditar nessa ajuda musculada porque, embora 'de jure' a Ucrânia estivesse fora da NATO, a NATO estava 'de facto' na Ucrânia antes do golpe de 2014. Um dia saberemos mais sobre esta trágica instrumentalização da Ucrânia pelos EUA.

Na verdade, os EUA conduziram a Ucrânia a uma situação-limite, como bem explicam os diplomatas que conhecem a História e, estando agora aposentados, não se sentem condicionados pela propaganda.
Também por compaixão para com o povo ucraniano, precisamos de algum realismo para pôr fim à tragédia. O trio Scholz-Macron-Draghi devia ter a ousadia de dizer a Joe Biden (alguém acredita?) que a guerra tem de terminar já, até porque o stock de armas e munições dos fornecedores está perto do fim.

Enquanto esperamos por melhores dias - uma espera activa, pela minha parte - devemos dispensar a voz dos falcões da guerra (dos que querem uma "solução militar"). Ouçamos antes a voz de diplomatas experientes, de académicos que anteciparam o que estamos a viver, de militares que trabalharam para a NATO, ou mesmo o idoso Henry Kissinger, gente que conhece bem o que nos conduziu a este beco e sabe como isto ainda nos pode conduzir à catástrofe nuclear. Alguns exemplos: (1), (2), (3).

Querido diário - O passado actual

Público 5/7/2012

Sim, não é um engano. Este artigo foi publicado ... há 10 anos. Mas, com as devidas adaptações estatísticas, poderia ter sido publicado... hoje. 

Passaram dez anos, mas podem passar ainda mais. Porquê? Porque aquilo que impediu que se mudasse continua a fazer perdurar os seus efeitos. Há fortes e externos condicionalismos. E são tão mais fortes esses condicionalismos porque, precisamente, são externos.  

Podemos votar. Mas podemos mudar?

terça-feira, 5 de julho de 2022

Aumentar os salários agravaria a inflação? Not so fast

Portugal é um dos países da OCDE em que os salários mais perderão com a inflação prevista para este ano. Apesar de se prever uma redução do poder de compra ao nível do período da troika, o Governo não tem mostrado intenções de atuar. António Costa fez questão de explicar que não aprovaria aumentos salariais extraordinários este ano porque “temos mesmo de travar a inflação e não multiplicá-la numa espiral que depois ninguém sabe como é que se controla”. O ministro das Finanças, Fernando Medina, disse que a subida dos salários seria “ilusória” porque provocaria aumentos de preços na mesma proporção.

Para o Governo, a proteção do poder de compra é indesejável. Seguindo a lógica da “espiral salários-preços”, é-nos dito que a definição de aumentos salariais pelo menos alinhados com a inflação obrigariam os empresários a aumentar os preços de forma a preservar as margens de lucro esperadas. Como resultado, teríamos nova subida do nível geral de preços, tornando o aumento dos salários ilusório. No entanto, há pelo menos três motivos para desconfiar desta tese.


1. Não são os salários que estão a fazer aumentar os preços.

Se olharmos, por exemplo, para a evolução dos salários negociados na Zona Euro, percebe-se que estes têm estado relativamente estagnados nos últimos tempos e que não acompanham a escalada dos preços. Mais: a experiência histórica não nos permite afirmar que existe uma relação direta entre aumentos salariais e aumentos dos preços, como concluiu um estudo de economistas da Reserva Federal norte-americana, já referido aqui. A relação é bastante mais complexa e depende de vários outros fatores, como o peso dos sindicatos e da negociação coletiva, o poder de mercado das empresas ou a origem da inflação.

No cenário atual, em que a inflação se tem concentrado sobretudo no setor da energia, facilmente se percebe que o problema não está num excesso de consumo alimentado pelos salários, mas sim em problemas do lado da oferta. As disrupções que a pandemia e a guerra provocaram nas cadeias internacionais de produção e distribuição estão a afetar os custos de matérias-primas essenciais um pouco por todo o mundo.


2. Além da guerra, o que está a puxar a inflação são os lucros das empresas.

Apesar do impacto da guerra, há sinais de que as empresas – sobretudo as maiores – estão a ser capazes de aumentar os preços numa proporção superior. O poder de mercado permite às grandes empresas aproveitar o contexto para aumentar as margens. Uma análise publicada em maio pelo Bank of International Settlements mostra que, nos EUA e em alguns países da UE (incluindo Portugal), a experiência das últimas décadas tem sido esta: com as taxas de sindicalização em mínimos históricos e a erosão do poder negocial dos trabalhadores, o que tem aumentado verdadeiramente é a margem média das empresas.

É isso que se tem verificado no setor da energia e no da distribuição, em que o mercado é dominado por um pequeno número de grandes empresas que registaram enormes aumentos dos lucros no primeiro trimestre do ano. Um estudo do Economic Policy Institute sobre a inflação na economia norte-americana entre o início da pandemia e o final do ano passado (antes da guerra) confirma que a expansão dos lucros tem sido a principal responsável pela escalada dos preços.

O mesmo acontece na Zona Euro: Isabel Schnabel, do conselho executivo do Banco Central Europeu, notou recentemente que “os lucros unitários têm crescido a um ritmo sem precedentes” e têm sido “um fator-chave para a inflação”. Existem ferramentas que podem ajudar a mitigar o aumento dos preços, como a limitação das margens de lucro ou a tributação dos lucros extraordinários, que já foi sugerida pela OCDE ou pelo FMI. Não as utilizar e imputar exclusivamente os custos da inflação aos salários é uma decisão política.


3. O crescimento económico é decisivamente influenciado pela procura – e, por isso, pelos salários.

A teoria económica convencional, dominante nas faculdades, no comentário político e entre os membros do governo, assume que o crescimento da economia depende sobretudo de fatores do lado da oferta e, pelo menos no longo prazo, não é influenciado pela procura agregada. Mas há bons motivos para pensar o oposto.

Numa economia assente no crescimento sustentado dos salários, através da promoção do pleno-emprego e da proteção laboral, as empresas são forçadas a investir e a inovar para responder à procura crescente por aquilo que produzem. Além disso, há estudos empíricos que sugerem que boa parte das indústrias beneficia de economias crescentes à escala, o que significa que, nessas empresas, um reforço da capacidade produtiva (ou seja, um aumento do número de trabalhadores e de equipamentos utilizados) gera um aumento proporcionalmente superior da produção. Neste sentido, as políticas de rendimentos que impulsionam a procura são mais do que compatíveis com o crescimento da produtividade.

A conclusão é que não há motivos para achar que uma espiral inflacionista está ao virar da esquina. Com a restrição salarial imposta pelo Governo, o que teremos é uma quebra acentuada do poder de compra da maioria das pessoas. E isso terá consequências que, pelo menos desde a intervenção da troika, o país conhece demasiado bem.

Artigo publicado inicialmente no Setenta e Quatro.